Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
042388
Nº Convencional: JSTJ00013053
Relator: VAZ DE SEQUEIRA
Descritores: BURLA AGRAVADA
Nº do Documento: SJ199112190423883
Data do Acordão: 12/19/1991
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N412 ANO1992 PAG234
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 26998/91
Data: 06/26/1991
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 313 N1 ARTIGO 314 C.
Sumário : I - Existe burla quando no primeiro momento se verifica uma conduta astuciosa comissiva ou omissiva que, directamente, induza ou mantenha o erro ou engano, e no segundo momento se verifique um enriquecimento ilegitimo, de que resulte prejuizo patrimonial do sujeito passivo ou de terceira pessoa, não podendo uma eventual culpa da vitima constituir desculpa para o agente.
II - Tendo o ofendido entregue ao reu a quantia de 4000000 escudos, sabendo que este, na altura, aceitava depositos em dinheiro sobre os quais pagava juros de 10% ao mes e tendo-se o reu comprometido perante o ofendido a pagar-lhe juros daquele montante, quando se encontrava numa situação economica dificil, tendo mesmo vendido ja muitos dos seus bens de raiz, pelo que apenas pagou ao ofendido a importancia de 100000 escudos, ausentando-se depois para fora do pais, o reu cometeu o crime de burla dos artigos 313 n. 1 e 314 c) do Codigo Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Pelo 2 Juizo Criminal de Lisboa foi, em Tribunal Colectivo, julgado A, com os sinais dos autos, sob acusação do Ministerio Publico de haver cometido um crime de burla dos artigos 313 n. 1 e 314 alinea c) do Codigo Penal.
O reu, foi absolvido dos crimes imputados.
Inconformado, a representante do Ministerio Publico naquele 2 Juizo, recorreu para a Relação de Lisboa que, por seu acordão de 26 de Junho de 91 negou provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.
Desta feita, o Senhor Procurador da Republica naquela Relação, recorre para este Supremo, defendendo o ponto de vista de que, face aos factos provados, o Reu teria cometido o crime de burla por que fora acusado, devendo por isso ser condenado.
O arguido não contra-alegou.
Chegados os autos a este Supremo Tribunal foram os mesmos com vista ao Excelentissimo Procurador Geral Adjunto que disse nada ter a acrescentar ao ponto de vista defendido pelo recorrente.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: em sede de materia de facto vem provado:
- em data indeterminada do 2 semestre de 1984, o reu foi contactado por B, afim de reaver a quantia de 2000000 escudos que depositara na "Organização D. Branca".
- O reu referiu então ao B que não era possivel reaver tal quantia.
- O B sabia que o reu, na altura, aceitava depositos em dinheiro, sobre os quais pagava o mesmo juro que aquela organização pagava ...
- pelo que o B entregou ao reu a quantia de:
4000000 escudos.
- Tendo-se então comprometido a pagar ao ofendido juros mensais de 10 por cento sobre a quantia depositada.
- O reu pagou a quantia de 100000 escudos respeitante a juros do dinheiro que recebeu em deposito por parte do B.
- Apos o que se ausentou para fora do pais.
- O reu se apoderou da quantia de 4000000 escudos que
B lhe entregou, por estar convencido de que o reu detinha tal quantia e estava em condições de pagar juros mensais de 10 por cento.
- sabia o Reu que provocava uma diminuição patrimonial a B.
- O ofendido pediu ao Reu para que este diligenciasse no sentido de este reaver os 2000000 escudos que depositara na "Organização D. Branca".
- O reu vendeu muitos dos seus bens de raiz, encontrando-se numa situação economica dificil
- o reu, apesar de pedidos varios do ofendido, nunca lhe devolveu os 4000000 escudos.
Perante esta materialidade factica e mister saber-se se o reu, com a sua conduta, cometeu ou não o crime de burla.
Como dizem os tratadistas, o crime de burla apresenta-se como a forma evoluida de captação do alheio. Aqui o agente serve-se do erro e do engano para que incauteladamente a vitima se deixe espoliar. Como refere Nelson Hungria "o expoente de improbidade operosa e hoje o aratitectus fallaciorum, o saroc, o burlão, o cavalheiro de industria. O latrocinio, a grassatio e a rapina foram outorgados pelo enliço, pela artimanha, pelo colalionato. A mão armada evoluiu para o conto do vigario.
(Confere o Codigo Penal de 1982 de Leal Henriques - Simas Santos).
O burlado nas hipoteses ou erro, como de engano, so age contra o seu patrimonio ou de terceiro por que tem um falso conhecimento da realidade. Simplesmente esse seu falso conhecimento nasce, no caso de mero engano, da mentira que lhe e dada a conhecer pelo burlão.
A vitima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro.
Na manutenção do erro a vitima desconhece a realidade; o agente perante um erro ja existente, causa a sua persistencia, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vitima se liberte dele.
O segundo momento do crime de burla e a pratica de actos que causem prejuizo patrimonial.
Como se viu, no primeiro momento deve verificar-se uma conduta astuciosa comissiva ou omissiva que, directamente induziu ou manteve o erro ou engano; no segundo momento deve verificar-se um enriquecimento ilegitimo, de que resulta prejuizo patrimonial do sujeito passivo ou de terceira pessoa.
Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o patrimonio de terceiro ou do burlado. Mas se o engano e mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegitimo - no sentido civil do termo, aquele que não corresponde objectiva ou subjectivamente a qualquer direito - em prejuizo da vitima, não ha lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerada abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem medio suposto pela ordem juridica, uma vez que uma eventual culpa da vitima não pode constituir uma desculpa para o agente (apend ob. cit).
Na posse dos elementos acabados de referir, importara tão so o averiguar-se se in casu o reu tera ou não cometido o crime de burla.
O ofendido B entregou ao Reu a quantia de 4000000 escudos, sabendo que este, na altura, aceitava aceitava depositos em dinheiro, sobre os quais pagava o mesmo juro que a desmembrada "Organização D. Branca" - 10 por cento ao mes.
Por sua vez o Reu comprometeu-se perante o ofendido B a pagar-lhe juros mensais de 10 por cento sobre a quantia depositada.
Nesta parte do processo causal reside o engano em que o
Reu fez cair o ofendido que lhe entregou a aludida importancia tão so por estar convencido de que o Reu detinha tal quantia e estava em condições de pagar juros mensais de 10 por cento.
O engano utilizado pelo reu, para se apropriar de bens do ofendido, consistiu precisamente no facto de lhe prometer pagar juros de 10 por cento ao mes, sabendo de antemão de que tal lhe era impossivel, estando numa situação economica dificil e tendo vendido muitos dos seus bens de raiz.
A inverosimil ingenuidade do ofendido, não pode constituir desculpa para o agente, como se anotou.
O certo e que o arguido pagou ao ofendido tão so 100000 escudos respeitante a juros, tendo-se ausentado para fora do pais, sabendo o reu que estava a provocar uma diminuição patrimonial a B.
Tem-se assim verificado: o engano do ofendido, a pratica de actos causadores de prejuizo patrimonial com o subsequente enriquecimento ilegitimo.
O valor do prejuizo do ofendido e consideravelmente elevado e não se mostra reparado o dano.
Cometeu assim o Reu o crime de burla dos artigos 313 n. 1 e alinea c) do artigo 314, ambos do Codigo Penal.
A moldura penal vai de 1 a 10 anos de prisão, devendo-se na fixaçaõ da pena ter-se em consideração os comandos e directivas do artigo 72 do mesmo diploma legal.
A intensidade do dolo e forte, a ilicitude grave, reclamando a prevenção geral e especial num justo equilibrio dentro da apontada moldura penal.
O que tudo visto acorda-se:
1) em conceder provimento ao recurso, revogando-se o acordão recorrido.
2) em condenar o reu A, como autor do ilicito do n. 1 do artigo 313 e alinea c) do artigo 314, ambos do Codigo Penal, na pena de quatro anos de prisão e 4500 contos a favor do ofendido - artigo 34 do Codigo de Processo Penal d) Declarar perdoado um ano de prisão - artigo 14 n. 1 alinea a) da Lei 23/91 de 4 de Julho.
Boletim ao Registo Criminal e D.N.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
Lisboa, 19 de Dezembro de 1991.
Vaz de Sequeira,
Lucena e Valle,
Jose Saraiva.
Decisões impugnadas:
I Acordão de 91.02.14 do 2 Juizo Criminal de Lisboa;
II Acordão de 91.06.26 do Tribunal da Relação de Lisboa.