Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6629/04.0TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
MÁ FÉ
PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 326.
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., 857 e segs.; RLJ 127-274 e segs..
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 223, 452; RLJ 122-213 e segs..
- J. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., 199.
- Teixeira de Sousa, em http:/blogippc.blogspot.pt/2014/09/presuncoes-judiciais-e-competência.html , em comentário ao acórdão do S.T.J. de 09.07.2014 (proc. nº 299709/11).
- Vaz Serra, RLJ 108-352.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 349.º, 610.º, 611.º, 612.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º3, 682.º, N.º2.
LOFTJ / 1999: - ARTIGO 26.º.
LOSJ: - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 08.11.84 (BMJ 341-388), DE 03.12.85 (BMJ 344-361), DE 14.10.97 (CJ STJ V, 3, 68) E DE 24.05.2005, 08.10.2009, 14.01.2010, 07.07.2010 E 14.06.2011, ESTES EM WWW.DGSI.PT .
-DE 19.10.94, BMJ 440-381.
-DE 09.03.95, BMJ 445-423.
-DE 10.11.98, 11.1.2000 E DE 4.5.2000, BMJ 481-449, 493-351 E 497-320, RESPECTIVAMENTE, E DE 26.01.99, 17.10.2002, 13.05.2004, 21.04.2005 E DE 12.07.2007, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 08.07.2003, CJ STJ XI, 2, 151; DE 09.12.2004, CJ STJ XII, 3, 144; DE 09.09.2008, CJ STJ XVI, 3, 23; DE 14.06.2011, CJ STJ XIX, 2, 104 E DE 22.05.2012, CJ STJ XX, 2, 90.
-DE 12.02.2009, CJ STJ XVII, 1, 90 E DE 30.09.2010, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 27.05.2010 E DE 12.01.2011, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 09.07.2014, PROC. Nº 5944/07, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Como requisito da impugnação pauliana, a má fé não exige uma actuação dolosa, com a intenção de causar dano ao credor, mas tão só a consciência de que o acto vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade.

II - É reconhecida a dificuldade de prova desse requisito e a relevância que, por isso, assume o recurso a presunções judiciais fundadas em regras de experiência.

III - Ao Supremo está, porém, vedado o uso de presunções judiciais e, conhecendo, por regra, tão só de matéria de direito, apenas pode sindicar o juízo presuntivo feito pela Relação se ele "ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados".

IV - Daí também que, por regra, não possa o Supremo sindicar se houve ou não erro da Relação ao não usar de uma presunção judicial.

V - De todo o modo, a presunção judicial só é legítima se não alterar os factos que foram objecto de prova e das respostas do julgador (não impugnadas).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA - …, LDA., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra:

- BB e mulher CC;

- DD e mulher EE; e

- FF e mulher GG.

Pediu:

a) que seja declarado impugnado o negócio de compra e venda celebrado entre os Réus através da escritura pública outorgada em 02/08/04, constante de fls. … do livro …  do 2° Cartório Notarial de Barcelos;

b) a condenação dos 3°s Réus a reconhecer que a propriedade do imóvel é da titularidade dos 1°s e 2°s Réus; e

c) o cancelamento do registo de aquisição do imóvel a favor do 3° Réu marido, correspondente à inscrição G-1, constante da apresentação nº 31/040804.

Como fundamento, alegou que é credora da sociedade “HH, Ldª.” (da qual os 1º e 2º Réus maridos são únicos sócios), por conta de fornecimentos de artigos do seu comércio, numa importância que ascendia a € 200.557,69 em 30 de Abril de 2004, cujo pagamento estava garantido por uma letra em branco aceite pela referida sociedade e avalizada pelos 1ºs e 2ºs Réus.

Perante a acumulação do crédito e os constantes atrasos e falsas declarações por parte da devedora para obstar a que a Autora recebesse o seu crédito, esta última requereu o arresto dos bens da sociedade “HH, Ldª.” e dos 1ºs e 2ºs Réus, tendo posteriormente instaurado a respectiva acção executiva.

Antes, porém, do arresto de um imóvel correspondente a 3 pavilhões destinados a indústria que eram propriedade dos 1ºs e 2ºs Réus, estes alienaram-no ao 3º. Réu marido, unicamente para se eximirem ao pagamento à Autora e diminuir as garantias patrimoniais do crédito desta, pois a declaração constante da respectiva escritura pública não tem correspondência com a vontade real dos outorgantes, que não quiseram vender nem comprar.

  

Os 1ºs e 2ºs Réus contestaram, reconhecendo parcialmente a dívida da sociedade “HH, Ldª.” (que dizem deverá rondar os € 150.000,00), mas alegando que nunca deram o seu consentimento para o preenchimento da letra onde se encontram apostos os seus avais. Acrescentaram que os bens arrestados tinham um valor de mercado superior ao dobro do crédito da Autora e que não agiram com intenção de impedir a satisfação do referido crédito, uma vez que o negócio jurídico realizado correspondeu à vontade real das partes.

Concluíram pela improcedência da acção.

Os 3ºs Réus também contestaram, impugnando grande parte da factualidade alegada pela Autora na sua petição inicial e defendendo que o negócio jurídico celebrado correspondeu a uma verdadeira compra e venda, tendo-se transmitido para si a propriedade e a posse do imóvel em questão.

Concluíram também pela improcedência da acção.

A Autora replicou, impugnando os novos factos alegados nas contestações e mantendo a posição assumida na petição inicial.

  

Os 1ºs Réus, entretanto, foram declarados insolventes, por sentença transitada em julgado, tendo os autos prosseguido contra a massa insolvente dos mesmos, representada pelo respectivo Administrador de Insolvência.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou improcedente a presente acção e, em consequência, absolveu os Réus do pedido.

No recurso interposto, a Relação manteve a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a autora pede agora revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:


1. O douto acórdão recorrido não levou em consideração a conjugação dos supra referidos factos provados, tais como o preço da compra e venda ter sido inferior em cerca de 50% do valor real, assim como os factos da escritura ter sido outorgada na data precisa de término da diligência de arresto aos bens moveis e os devedores serem amigos do terceiro adquirente, factos que conjugados deveriam em nosso entender dar como provado o requisito da má fé entre devedor e comprador e procedente o instituto da impugnação pauliana.
2. O acórdão da Relação não valorou as supra referidas circunstâncias.

Tendo em consideração que o teor deste último número nada acrescenta de útil e relevante ao primeiro, constata-se que estas conclusões repetem o teor das que foram apresentadas na apelação (tendo sido apenas substituídos, no início, os termos "A douta sentença recorrida" por "O douto acórdão").

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Trata-se de decidir se a factualidade provada permite considerar verificada a má fé dos réus, intervenientes na venda do aludido imóvel, como requisito da procedência da impugnação pauliana.

III.

Vêm provados os seguintes factos:

1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de distribuição por grosso de artigos de papelaria, material de escritório, informática e equipamentos de desporto.

2. No exercício da sua actividade, a A. manteve regulares relações comerciais com “HH, Lda.”, sociedade comercial por quotas com sede na Rua …, nº …, freguesia de ..., concelho de Braga, consubstanciada em contratos comerciais de fornecimento que efectuava a esta última.

3. O 1° e 2° RR. Maridos são os únicos sócios da referida sociedade, sendo que a gerência da mesma estava confiada ao R. BB.

4. Todos os referidos fornecimentos eram titulados por facturas, cujo prazo de pagamento foi fixado em 90 dias da data de emissão das mesmas.

5. Face à cadência regular com que aqueles fornecimentos eram efectuados, entre ambas as empresas foi sendo estabelecido um sistema contabilístico de fólios de conta-corrente, no qual eram lançadas a débito as facturas relativas a fornecimentos e “notas de débito” e a crédito os pagamentos efectuados pela identificada sociedade “HH”, bem como as “notas de crédito” relativas a devoluções.

6. Em 30/04/2004, a referida conta-corrente apresentava um saldo credor a favor da A. no montante de € 200.557,69 e, no fecho do ano de 2004, de € 201.523,87.

7. Não obstante ao longo de todo o historial comercial com a A. aquela sociedade manter sempre pendente um saldo negativo elevado, nunca deixou de proceder a regulares pagamentos por conta dos débitos contraídos.

8. Em Setembro de 2003, o 1º R. Marido solicitou à A. que não apresentasse a pagamento o cheque nº … sacado sobre o “II” no montante de € 25.651,99, que tinha sido emitido e entregue pela sociedade para crédito da sua conta.

9. Em Outubro de 2003, de novo o 1º R. Marido solicitou à A. que não apresentasse a pagamento os cheques nos … e …, ambos sacados sobre o “II” no montante de, respectivamente, € 11.544,92 e € 21.789,25, que tinham sido emitidos e entregues pela identificada sociedade para crédito da sua conta.

10. Em Dezembro de 2003 o 1º R. Marido solicitou à A. que não apresentasse a pagamento o cheque nº …, sacado sobre o “II”, no montante de € 17.346,48, e os cheques nºs …, … e …, sacados sobre o “Banco JJ”, no montante, cada um, de €17.346,46, que tinham sido emitidos e entregues pela identificada sociedade para crédito da sua conta.

11. Os referidos cheques tinham sido emitidos pré-datados, aquando do recebimento de fornecimentos, e destinavam-se ao pagamento destes.

12. As solicitações de não apresentação a pagamento efectuadas pelo 1. ° R. marido, foram efectuadas enquanto gerente da sociedade “HH”, e tiveram como argumento pelo menos a promessa de que os valores constantes dos cheques seriam regularizados num curto espaço de tempo;

13. Em finais de Maio de 2004, a sociedade “HH” não tinha ainda regularizado os referidos cheques, tendo entregue novos cheques de substituição dos anteriores com datas de emissão compreendidas entre 30/06/2004 e 30/08/2005.

14. Para além dos referidos cheques, em 27/02/2004 a sociedade “HH” entregou à A. o cheque nº … emitido para 30/04/2004, sacado sobre o “II”, no montante de € 3.900,00, para pagamento das facturas nº … de 20/01/2004; nº … de 20/01/2004; nº 40117 de 23/01/2004; nº … de 30/01/2004; nº … de 31/12/2003; nº … de 13/01/2004; nº … de 14/01/2004; nº … de 20/01/2004 e, ainda, parte da "nota de débito" nº … de 01/02/2004, no montante de € 38,71, ficando ainda em atraso e relativo a este documento, o valor de € 641,61.

15. Em 29/04/2004, dia anterior à data de emissão do identificado cheque, o 1º R. marido solicitou à A. que aquele fosse apresentado a pagamento somente em 06/05/2004, pedido esse a que a A. acedeu, tendo apresentado o cheque a pagamento no dia 07/05/2004.

16. Não obstante, tal cheque apresentado a pagamento, foi devolvido pela entidade sacada com a menção no seu verso de "cheque recusado – extraviado".

17. Ainda em 27/0212004, a sociedade "HH" entregou à A. o cheque nº …, emitido para 10/05/2004, sacado sobre o "II", no montante de € 5.500,00, para pagamento das facturas nº … de 19/11/2003, nº … de 14/11/2003, nº … de 14/11/2003, nº … de 19/1112003, nº … de 19/11/2003, nº … de 19/11/2003 e, ainda, parte da factura nº … de 24/11/2003, no montante de € 4.267,04, ficando em aberto, e relativamente a esta factura, a quantia de € 4,11, relativo a "nota de crédito" nº … de 22/11/2003.

18. Apresentado a pagamento o referido cheque em 13/05/2004, o mesmo foi devolvido pela entidade sacada com a menção no seu verso de "cheque recusado – extraviado".

19. O mesmo aconteceu com o cheque nº …, também este sacado

sobre o "II", com a data de emissão de 20/05/2004, no montante de € 3.900,00, o qual, apresentado a pagamento na data do seu vencimento, foi devolvido com a menção "extraviado" aposta no seu verso.

20. Desde Abril de 2004, a A. informou a sociedade "HH" que não procederia à satisfação de novas encomendas até à regularização do débito ou, em alternativa, que lhe fossem dadas garantias que os fornecimentos seriam liquidados.

21. A sociedade e os seus sócios recusaram-se a prestar garantias aos novos fornecimentos.

22. Em Março de 2004, a A. informou o 1º R. marido que iria proceder ao preenchimento da letra que garantia o saldo dos fornecimentos efectuados no ano de 2003.

23. Face a esta informação, os 1 ° e 2º RR. maridos em 26/03/2004 remeteram à A. uma carta na qual comunicavam que não autorizavam nem nunca autorizariam o preenchimento da letra entregue pela sociedade "HH".

24. A letra em causa foi remetida à A. pela referida sociedade em 14/04/2003 e era capeada por uma carta assinada pelo 1° R. marido, a qual especificava que o título em causa, avalizado pelos sócios e cônjuges, se destinava a garantir o pagamento da conta corrente relativa a fornecimentos a efectuar no ano de 2003.

25. Como incidente prévio da acção executiva a interpor, em 28/05/2004 a A. requereu neste Tribunal uma providência cautelar de arresto contra a sociedade e os aqui 1ºs e 2°s RR., a qual correu os seus termos na Vara de Competência Mista sob o nº 4.279/04.0TBBRG.

26. Em 14/06/2004 a A. instaurou uma acção executiva contra a sociedade e os aqui 1°s e 2°s RR., para pagamento da quantia certa de € 227.614,75, a qual foi igualmente distribuída na Vara de Competência Mista deste Tribunal e autuada com o nº 4.673/04.7TBBRG.

27. No âmbito da Providencia Cautelar, foi decretado o arresto das mercadorias em stock, das máquinas e equipamentos, viaturas automóveis e créditos sobre clientes que se encontrassem nas instalações da sociedade "HH" e, da propriedade dos aqui 1°s e 2°s RR., o imóvel constituído por uma fracção autónoma correspondente à Loja de rés-do-chão, com entrada pelo nº …, da Rua …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº ….

28. Nesta providência cautelar foram efectivamente arrestados bens, quer da sociedade (mercadorias, equipamentos e 3 viaturas), quer dos 1°s e 2°s RR., (imóvel sito na Rua …, nº …, da freguesia de ..., concelho de Braga);

29. Os equipamentos resumiram-se a uma secretária, móveis, expositores e um computador, sendo que a mercadoria em stock possui um valor não superior a € 15.000,00;

30. No âmbito da execução para pagamento de quantia certa instaurado contra a sociedade "HH", a A. logo no seu requerimento inicial indicou à penhora o prédio urbano sito no Lugar de … do … ou …, correspondente a 3 pavilhões destinados a indústria, inscritos na matriz predial sob os artigos 317, 318 e 319 e descritos na Conservatória do Registo Predial sob o nº … da freguesia de ….

31. No dia 22/07/2004 teve início a diligência de arresto no estabelecimento da "HH", tendo na mesma estado presente o 1° R. marido, diligencia que se prolongou ate ao dia 02/08/2004.

32. A A. requereu nos autos de arresto que este fosse extensível ao imóvel identificado em 28º, pretensão que foi acolhida e deferida através de despacho judicial notificado à aqui A. em 19/08/2004.

33. Por escritura pública de compra e venda datada de 2 de Agosto de 2004, lavrada a fls. … do Livro … do 2° Cartório Notarial de Barcelos, os 1° e 2ºs RR. declararam vender o imóvel identificado em 30º ao 3° R. marido, pelo preço de € 71.300,00, tendo promovido o registo da propriedade do mesmo a favor deste último dois dias depois.

34. Atenta a natureza deste imóvel, a qualidade de construção, a zona de localização e os acessos, o mesmo tinha em Setembro de 2004 um valor de transacção aproximado de € 160.000,00.

35. O 3° R. marido é amigo dos 1°s e 2°s RR..

IV.

No presente recurso a Recorrente visa essencialmente a decisão sobre a matéria de facto, uma vez que o que está em causa é saber se a factualidade provada permite inferir a má fé dos réus, alienantes e adquirentes da venda impugnada do aludido imóvel.

Precisando: os factos provados não preenchem esse requisito de procedência da impugnação, como é reconhecido implicitamente no recurso; o que a Recorrente defende, reiterando a posição assumida na apelação, é que, desses factos, se pode inferir, por presunção, um facto diferente, que caracteriza e concretiza a má fé do devedor e do terceiro adquirente – a consciência do prejuízo causado ao credor (art. 612º nº 2 do CC).

Com efeito, a impugnação pauliana consiste na faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos actos válidos ou mesmo nulos celebrados pelos devedores em seu prejuízo[2] - art. 610º do CC[3].

Essa impugnação depende da verificação simultânea de vários requisitos, exigindo-se, designadamente, se se tratar de acto oneroso, que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro.

Para este efeito, entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor – art. 612º nº 2.

O ónus da prova cabe ao credor impugnante, como facto constitutivo do direito, em face do disposto no art. 342º nº 1, não contrariado pela regra especial do art. 611º.

Como tem sido reconhecido, a integração da má fé não exige uma actuação dolosa, com intenção ou propósito de causar aquele dano ao credor, mas não basta também o conhecimento da precária situação económica do devedor, sendo necessária, pelo menos, a representação da possibilidade da produção do resultado danoso, ou seja, uma actuação correspondente à negligência consciente[4].

A má fé é, pois, "a consciência de que o acto em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade"[5].

No Acórdão recorrido reconheceu-se a dificuldade, verificada nestas acções, de provar o conluio entre as partes no sentido de prejudicar o credor e, por via disso, a especial relevância que deve atribuir-se às presunções judiciais, fundadas nas regras de experiência.

E depois de se afirmar ser essencial, para a verificação do requisito da má fé, que os contraentes tivessem representado o prejuízo causado aos credores com o acto impugnado, acrescentou-se que os factos provados não permitiam inferir essa representação: "Nenhum elemento de facto permite, sequer, admitir como possível que o 3º R. tivesse conhecimento da dívida dos demais para com a A. ou da pendência da providência cautelar. Não se surpreende, na matéria em questão, qualquer indício fraudulento por parte do terceiro adquirente".


As presunções judiciais não são propriamente meios de prova, mas ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º do CC).

"Pressupõem a existência de um facto conhecido (base da presunção), cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelo meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém (…) o julgador a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida"[6].

Pois bem, a respeito desta questão, constitui jurisprudência corrente que "é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la"[7].

Ao STJ está, porém, vedado o uso de presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados[8].

Com efeito, fora dos casos previstos na lei, o Supremo apenas conhece de matéria de direito (art. 26º da LOFTJ de 1999 e actual art. 46º da LOSJ), prescrevendo o art. 682º nº 2 do CPC que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº 3 do art. 674º.

Daí que, por regra, fora das situações aí previstas – ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – o Supremo não possa sindicar o juízo efectuado pela Relação para inferir presuntivamente determinado facto.

Tem sido entendido, na verdade, que o Supremo só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados[9].

Refere-se no citado Acórdão de 08.07.2003 que, "ao firmar (ou recusar firmá-lo) um facto desconhecido por meio de ilações daquele tipo, o tribunal não faz senão julgamento da matéria de facto". Daí que a questão de saber se houve ou não erro por parte da Relação ao não usar de uma presunção judicial seja insindicável pelo Supremo[10].

Tem sido mesmo afirmado que "nesta área, o mais que o Supremo está autorizado a fazer é suprimir o facto presumido". Mas isto, como se referiu, "só no caso de haver sido violada pela 2ª instância qualquer norma legal disciplinadora do instituto"[11].

Esta orientação, que prevalece tradicionalmente na jurisprudência do Supremo, não será, actualmente, inteiramente pacífica[12].

No caso, porém, a Relação pronunciou-se expressamente sobre a questão, concluindo que não era possível inferir por presunção que os contraentes tivessem representado o prejuízo causado aos credores com o acto impugnado, por nenhum facto permitir afirmar que o réu adquirente tinha conhecimento da dívida dos demais réus para com a autora.

Não se vislumbra nesse juízo valorativo, nem foi alegado, que a Relação tenha violado ou feito errada aplicação da lei do processo.

Esse juízo comportaria, no fundo, na perspectiva da Recorrente, um erro de julgamento, cuja censura, como acima se disse, está vedada ao Supremo.

De todo o modo, importa notar que no caso das presunções judiciais as ilações ou conclusões que se tirem só são legítimas quando não alterem os factos que a prova haja fixado. Isto é, se o facto desconhecido foi objecto da prova e das respostas do julgador, o sentido destas, em relação a esse facto, não pode ser alterado[13].

No caso, a má fé pressupunha que o referido réu, terceiro adquirente, tivesse consciência do prejuízo que o acto impugnado causava ao credor, o que implicaria, necessariamente, que esse réu devesse ter conhecimento da dívida dos outros réus para com a autora.

Todavia, como resulta da decisão de facto, foi considerado não provado que o referido réu tivesse conhecimento dessa dívida – facto da al. g) da sentença, a fls. 531.

Daí que não pudesse concluir-se, por presunção, pela prova daquele facto pressuposto pela Recorrente – o conhecimento da dívida – que seria contrário a este facto não provado.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

     Lisboa, 25 DE Novembro de 2014

Pinto de Almeida (Relator)

Nuno Cameira

Sousa Leite

 

_________________________________
[1] Proc. nº 6629/04.0TBBRG.G1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 50)
Cons. Nuno Cameira; Cons. Salreta Pereira
[2] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., 857 e segs..
[3] Como todos o preceitos adiante citados sem outra menção.
[4] Cfr. Almeida Costa, Ob. Cit., 866 e 867 e RLJ 127-274 e segs; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 452 e os Acs. do STJ de 10.11.98, 11.1.2000 e de 4.5.2000, BMJ 481-449, 493-351 e 497-320, respectivamente, e de 26.01.99, 17.10.2002, 13.05.2004, 21.04.2005 e de 12.07.2007, em www.dgsi.pt.
[5] J. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., 199.
[6] Vaz Serra, RLJ 108-352. Cfr. também Antunes Varela, RLJ 122-213 e segs.
[7] Acórdão do STJ de 19.10.94, BMJ 440-381.
[8] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 326; entre outros, o Acórdão deste Tribunal de 12.02.2009, CJ STJ XVII, 1, 90 e de 30.09.2010, em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal de 08.07.2003, CJ STJ XI, 2, 151; de 09.12.2004, CJ STJ XII, 3, 144; de 09.09.2008, CJ STJ XVI, 3, 23; de 14.06.2011, CJ STJ XIX, 2, 104 e de 22.05.2012, CJ STJ XX, 2, 90.
[10] Cfr. Acórdãos do STJ de 27.05.2010 e de 12.01.2011, em www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do STJ de 09.03.95, BMJ 445-423.
[12] Cfr. Teixeira de Sousa (http:/blogippc.blogspot.pt/2014/09/presuncoes-judiciais-e-competência.html) em comentário ao acórdão deste mesmo colectivo de 09.07.2014 (proc. nº 299709/11) em que se apreciou questão idêntica. Veja-se, porém, o acórdão deste colectivo, também daquela data (proc. nº 5944/07) e acessível igualmente em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Antunes Varela, Ob. Cit., 223 e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 08.11.84 (BMJ 341-388), de 03.12.85 (BMJ 344-361), de 14.10.97 (CJ STJ V, 3, 68) e de 24.05.2005, 08.10.2009, 14.01.2010, 07.07.2010 e 14.06.2011, estes em www.dgsi.pt.