Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
995/13.4TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE PROVA TESTEMUNHAL
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CONTRATO DE MÚTUO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
RECURSO DA REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
EMPRÉSTIMO MERCANTIL
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra, p. 248 e 249.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.ºS 1 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-07-2016, PROCESSO N.º 487/14, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - O STJ é um Tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias (nº 1 do art. 674.º do CPC), sendo a estas que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

II- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº 3 do art. 674.º do CPC, i.e quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

III- Não viola as normas do direito probatório a decisão do tribunal da Relação que, na reapreciação da decisão da matéria de facto, em cumprimento do dever de avaliação/valoração/interpretação/apreciação ou fixação da prova, lançou mão da prova testemunhal para interpretação do conteúdo de contrato de mútuo celebrado através de documento particular.

Decisão Texto Integral:

          Acordam no Supremo Tribunal de Justiça       

 

        

          I- Relatório:

1. AA, SA

Instaurou acção declarativa de condenação contra:

BB. e

CC

Pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe o valor de 559.524,41, acrescida de juros de mora vincendos à taxa de 13% sobre a quantia de € 347.600 e à taxa para dívidas comerciais sobre a quantia de € 49.000, até integral e efectivo pagamento.

Citados os réus, sendo que a ré o foi editalmente, contestou o réu, arguindo a nulidade do contrato de mútuo por falta de forma, invocando que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, e arguindo, também a nulidade da cláusula penal por ser excessiva ou, subsidiariamente, devendo ser reduzida.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou "a Ré BB. a pagar à Autora a quantia de € 342.800, acrescida de juros à taxa de 4% desde 8.3.2013 até integral pagamento.”

2. Não se conformando com aquela sentença, dela recorreu a autora, que nas suas alegações de recurso formulou as seguintes CONCLUSÕES:

“1ª –A sentença julgou nulo o contrato sub judice por inobservância da forma legal prescrita para os mútuos civis superiores a € 25.000,00 (escritura pública).

2ª - Consequentemente, a sentença recorrida julgou nula a fiança concedida pelo 2º Réu, por a considerar acessória do mútuo.

I – IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

3ª - A sentença considerou como não provado o facto alegado na parte final do artigo 11.º da resposta às exceções (“O contrato sub judice é, sem qualquer margem para dúvidas, um contrato de empréstimo mercantil, destinando-se o mútuo ao investimento em equipamentos para o estabelecimento comercial da Sociedade Ré.”) [sublinhado nosso] – vide Resposta às exceções e “FACTUALIDADE NÃO PROVADA” constante da douta sentença sub judice.

4ª - O douto Tribunal a quo referiu, a propósito deste artigo 11.º e sua prova, que “as testemunhas da Autora foram expressamente questionadas sobre o destino dado pela Ré ao dinheiro, afirmando desconhece-lo, apesar de uma presumir que se destinasse a obras no estabelecimento mas que desconhece.” – vide último parágrafo da fundamentação da DECISÃO DE FACTO.

5ª - Não foi isso que resultou dos depoimentos das testemunhas (da Autora e do Réu).

6ª - Considerou o douto Tribunal a quo que “a Autora não logrou provar a que se destinou a quantia mutuada nem tal destino ficou consignado no contrato (…)” – vide decisão sobre a matéria de “DIREITO” constante da sentença sub judice.

7ª - É este concreto ponto de facto que a Recorrente considera incorretamente julgado.

(…)

II- RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO

(…)

Y- Pelo que se requer a reforma parcial da sentença, na parte que em que julgou nulo o contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito, por falta de forma e que, consequentemente, absolveu o Réu fiador, por outra que julgue válido o contrato e a fiança e assim a acção totalmente procedente por provada, com a condenação dos Réus no pedido formulado pela Autora na petição inicial.”

3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 5 de Julho de 2018, alterou a decisão quanto à matéria de facto, aditando o seguinte ponto:

21)   O dinheiro emprestado pela autora destinou-se a ser investido no estabelecimento comercial da sociedade ré.

No mais alegado no artigo onze do mesmo articulado se considera como não provado.”

 E, face desta alteração, acordou em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, e, em consequência, julgou a acção totalmente procedente e condenou os réus BB, Lda. e CC a pagarem à autora o seguinte:
1- A quantia de € 347.600,00, a título de capital mutuado;
2- A quantia de € 49.000,00, a título de indemnização;

3- Juros de mora sobre a quantia referida em 1 desde 13-10-2009, calculados às taxas legais sucessivamente aplicáveis e até integral pagamento.

4. Deste acórdão vem o réu CC interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

“a) A autora recorrida recorreu da douta sentença da 1.ª instância, para o Venerando Tribunal da Relação.

b) Nas suas alegações de recurso a recorrida considera que o facto constante do artigo 11.º do articulado de fls 144 no qual refere que "O contrato sub judice é, sem qualquer margem para dúvidas, um contrato de empréstimo mercantil, destinando-se o mútuo ao investimento em equipamentos para o estabelecimento comercial da Sociedade Ré", foi incorrectamente julgado.

c) E, afirma a autora recorrida nas suas alegações que "Ficando provado este facto, a decisão sobre a matéria de direito seria necessariamente diferente, pois que se decidiria pela mesma subsunção referida no artigo 11.º da resposta às excepções, ou seja: que o contrato sub judice é, sem qualquer margem para dúvida, um contrato de empréstimo de natureza mercantil. E, qualificado o contrato como mercantil, a acção seria julgada totalmente procedente por provada, condenando-se os Recorridos tal qual como peticionado pela Recorrente na sua petição inicial".

d) Foi proferido acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação o qual alterou a decisão quanto à matéria de facto assente pelo Tribunal da l.ª Instância, aditando aos factos provados, o facto 21) nos termos do qual "O dinheiro emprestado à autora destinou-se a ser investido no estabelecimento comercial da sociedade ré".

e) Em face de tal aditamento, o Venerando Tribunal da Relação julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida, e em consequência, julgou a acção totalmente procedente, condenando os réus BB, Lda. e CC a pagarem à autora o seguinte: 1- A quantia de € 347.600,00 a título de capital mutuado; 2- A quantia de € 49.000,00 a título de indemnização; 3- Juros de mora sobre a quantia referida em 1 desde 13-10-2009, calculados às taxas legais sucessivamente aplicáveis e até integral pagamento".

f) É este o acórdão objecto do presente recurso.

 

Dos poderes de apreciação do Supremo Tribunal de Justiça

g) O recorrente não concorda, de todo, com a posição assumida no douto acórdão recorrido, o qual decidiu pelo aditamento de mais um facto à matéria de facto dada como provada, (alínea 21)) e em consequência, concluir pela natureza mercantil do mútuo aqui em causa, daí a razão do presente recurso.

h) É jurisprudência uniforme e constante do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de que não pode este Venerando tribunal de revista pronunciar-se sobre questões relativas a eventuais contradições, obscuridades ou deficiência da matéria de facto, que lhe não compete averiguar, por imperativo do disposto nos arts. 671º e 674.º-2, salvo nos casos excepcionais previstos nesta última norma e nos n.ºs 2 e 3 do art.º 682º.

i) Consequentemente, pelas razões referidas, está vedada ao Venerando STJ a intromissão na fixação dos factos, matéria da exclusiva competência das instâncias, fora dos mencionados casos excepcionais (arts. 674º-2, 2ª parte e 682º-3).

j) No caso sub judice entendemos que tal intervenção do STJ é legalmente admissível, atendendo que, em nosso ver, está em causa direito probatório material, levantando-se, como adiante se demonstrará um problema da força probatória do contrato denominado pelas partes de Contrato de compra exclusiva, com mútuo gratuito e fiança - documento particular - apresentado pela autora/recorrida, na sua p.i., para prova do mútuo aqui em causa.

k) Tal contrato foi expressamente aceite pela autora/recorrida, tanto assim que foi quem juntou o contrato aos autos.

I) E não foi impugnado pelo réu/recorrente.

m) Cabe, pois, o objecto do recurso na previsão de excepcionalidade do citado n.º 3 do art. 674.º CPC.

n) Se a parte contra quem é apresentado o documento nada diz, considera-se aceite a autenticidade.

o) Reconhecida a assinatura do documento particular, faz fé, como se de documento autêntico se tratasse, até prova da sua falsidade, nos termos previstos no art.º 376º-1.

p) Tal acontece e justifica-se porque o documento tem-se como reconhecido por decisão judicial, com a autoridade própria do caso julgado, não sendo mais possível impugnar no processo a decisão recognitiva, a não ser através da falsidade.

q) Tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, que se encontra fixada no art. 376º-1 C. Civil ao estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações, dele, constantes, se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.

r) O documento prova, pois, plenamente o seu conteúdo, ou seja, que a pessoa a quem é atribuída a autoria fez as declarações nele incorporadas, como corolário lógico do pressuposto de estar assente provir o documento dessa pessoa.

s) Do ponto de vista da formação da convicção do julgamento e fixação da matéria de facto, quando se trate de documentos — autênticos ou particulares — que satisfaçam todos os "requisitos exigidos na lei", vigora o princípio da prova legal.

t) Vale isto por dizer que, perante documentos, com força probatória legal, o julgador está vinculado ao valor e força que a lei fixa, que tem de se respeitar, não podendo deixar de admitir como provados os factos nos exactos termos em que emergem dos documentos.

u) Da circunstância de a prova documental ter valor legalmente fixado, subtraído à livre apreciação, decorre, do ponto de vista processual, estar vedado ao julgador responder a pontos da base instrutória que contenham factos que só possam provar- se por documentos ou que através deles estejam plenamente provados.

v) Entende o recorrente que o Tribunal da Relação, salvo o devido respeito por opinião contrária, violou normas jurídicas sobre a interpretação negocial, desvalorizando por completo a vontade das partes expressa no contrato sub judice, além de que valorou prova testemunhal, designadamente os artigos 394.º e 395.º do Código Civil.

w) Ocorrendo erro na apreciação das provas e no aditamento da matéria de facto efectuado pelo douto Tribunal da Relação, com ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de uma determinado meio de prova, existe fundamento para a intervenção deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

Da vontade das partes expressa no contrato sub iudice. Da interpretação das declarações negociais.

x) O Tribunal da Relação, salvo o devido respeito, ignorou por completo prova documental junta aos autos, designadamente o doc. n.º 1 junto à p.i pela autora/recorrida, que consubstancia o contrato que as partes intitularam expressamente como "Contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito e fiança pessoal", sublinhado nosso.

y) As partes reduziram a escrito o contrato em causa, o qual foi junto aos autos pela própria autora/recorrida.

z) Não foi impugnada a matéria de facto fixada pelo Tribunal da 1.a Instância no que respeita à existência do contrato em causa, nem no que respeita às cláusulas do mesmo, que foram reproduzidas na matéria de facto dada como provada.

aa) Não se pode ignorar a cláusula 7.ª do presente contrato (dada como matéria assente) nos termos da qual as partes estipularam que "1- Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor, o fornecedor empresta ao revendedor, sem juros, (sublinhado nosso) a quantia de € 490.000,00. 2 — A obrigação de entrega da quantia mutuada é satisfeita, parcialmente, pela compensação com o crédito que o fornecedor detém sobre o revendedor, no valor de 190.000,00, descrito no considerando d), pelo que, o fornecedor apenas entrega ao revendedor, no presente acto, a quantia de € 300.000,00".

bb) Tal significa que, se as partes, designadamente a autora/recorrida, quisesse, teria mencionado expressamente na cláusula em causa o destino do dinheiro que emprestou à sociedade ré.

cc)    O que na realidade não fez.

dd)  É entendimento unânime na jurisprudência que, não basta assim, para que o empréstimo seja mercantil, que alguma ou ambas as partes sejam comerciantes, pois é necessário que a coisa cedida seja destinada a operação mercantil.

ee) E aqui, não podemos ignorar o disposto no art. 236º do CC segundo o qual 1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

ff) Assim como, o preceituado no art. 238º do mesmo diploma, o qual dispõe que 1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. 2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

gg) Nessa primeira disposição legal consagra-se a doutrina da impressão do destinatário: releva o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real e conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias.

hh) O sentido assim apurado sofre, contudo, nos negócios formais, de uma limitação de índole objectiva: esse sentido não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do documento.

ii) Nos negócios formais, a letra do negócio constitui o primeiro elemento com que o interprete se confronta.

J) No caso, está essencialmente em causa a interpretação da cláusula 7.ª do contrato em causa.

kk) Esta cláusula é clara e inequívoca: O empréstimo destinou-se tout court "Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor... ".

II)  Essa foi a vontade das partes, bem expressa no contrato.

mm)   Se a autora quisesse ali colocar que o capital mutuado se destinava a investimentos da sociedade ré, tê-lo-ia feito. Mas não o fez.

nn)    Logo, a consequência deveria ter sido a sua não prova e não a prova da existência de um contrato mercantil, por referência a documento que claramente demonstra a intenção inequívoca das partes.

00)  E mais dispõe o art.º 395.º do C. Comercial sob a epígrafe Retribuição que o "O empréstimo mercantil é sempre retribuído. S único. A retribuição será, na falta de convenção, a taxa legal do juro calculado sobre o valor da cousa cedida.

pp)    Extrai-se, desde logo, do nomen juris dado ao documento que as partes aceitaram, expressis verbis, que o referido contrato fosse efectivamente qualificado como "Contrato de compra exclusiva com Mútuo Gratuito, (sublinhado nosso), e Fiança Pessoal".

qq) Estamos perante o Mútuo Gratuito quando o mutuante tem apenas um sacrifício patrimonial, o de emprestar dinheiro ou outra coisa fungível, sem receber em contraprestação qualquer compensação para além do que emprestou.

rr) É gratuito o contrato de mútuo, aquele no qual um dos sujeitos proporcionou uma vantagem patrimonial ou outro, sem qualquer correspetivo ou contraprestação acrescida para além da restituição de coisa, de género e qualidade igual, em igual quantidade.

ss) Neste tipo de contrato apenas o mutuário teve um benefício patrimonial.

tt) Este é outro indício inequívoco de que as partes não quiseram atribuir a natureza mercantil ao respectivo mútuo.

uu) No caso vertente é por demais evidente que as partes não quiseram atribuir onerosidade ao mútuo.

vv) Se o quisessem tê-lo-iam feito. Mas não o fizeram.

ww) É que, além do título que as partes atribuíram ao contrato, a verdade é que, em nenhuma cláusula do contrato consta a sua onerosidade.

xx) Pelo contrário as partes referem expressamente no número um da claúsula sétima que " Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor, o fornecedor empresta ao revendedor, sem juros, (sublinhado nosso) a quantia de € 490.000,00.

yy) Daí tratar-se de um dos indícios claros de que as partes não quiseram atribuir onerosidade ao mútuo, e em consequência, a natureza comercial ao mútuo aqui em causa.

zz) E não fica por aqui.

aaa)  Da leitura do contrato aqui em causa não se extrai, em momento algum, i.e em nenhuma cláusula, a expressão mercantil.

bbb)  O mesmo sucede em relação à petição inicial da autora/recorrida.

ccc)   Da leitura da p.i resulta que em momento algum a autora/recorrida se refere ao presente contrato como sendo de mútuo mercantil.

ddd)  A recorrida não invocou na p.i, nem na causa de pedir, nem no pedido, a existência de um qualquer contrato de empréstimo mercantil.

eee)   Tal questão apenas surge na sequência da contestação do réu/recorrente, quando este invoca a nulidade do contrato por falta de forma.

fff)    E, é na resposta à contestação do réu/recorrente, designadamente no articulado constante de fls. 144, que a recorrida vem alegar a natureza mercantil do mútuo como oposição à sua invocada nulidade.

ggg)  Estamos em face de um negócio formal por convenção das partes.

hhh)  Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário, e não deve por isso ser-lhe imposto (Acórdão do STJ de 21/09/93, Processo nº 83787).

iii)     Neste caso, há que optar-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem (Acórdão do STJ de 22/10/98, Processo no 429198).

jjj)     É jurisprudência pacífica do STJ que a interpretação da declaração negocial constitui matéria de direito. (vide Acórdãos do STJ, cujos sumários são acessíveis na base de dados da DGS', através do endereço www.dgsi.pt.: de 06105/86, Processo nº 72938; de 05/07/90, Processo no 78604; de 21/09/93, Processo no 83787; e de 22/10/97, Processo no 429/98).

kkk)   Escreve-se no Acórdão do STJ de 16 de Maio de 1989, Processo no 78604 que: "A determinação da vontade real dos outorgantes é uma pura questão de facto; mas a fixação do sentido da declaração negocial, quando não seja conhecida a vontade real dos outorgantes, envolve já um juízo sobre matéria de direito, o qual pode ser objecto de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista".

III) Ignorando o facto do contrato aqui em causa ser completamente omisso quanto à sua qualificação como contrato de mútuo civil ou comercial, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa alegadas afirmações de testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento e entendeu assim aditar um novo facto aos factos provados facto 21) segundo o qual "O dinheiro emprestado pela autora destinou-se a ser investido no estabelecimento comercial da sociedade ré".

mmm) Ignorando a vontade das partes, o Tribunal da Relação concluiu assim que estamos em face de um contrato de natureza mercantil, porque o dinheiro emprestado, segundo as alegadas afirmações das testemunhas, se destinaram a ser investido no estabelecimento comercial da sociedade ré.

nnn)  Não se acompanha, salvo o devido respeito, o entendimento do Tribunal da Relação quanto à questão da qualificação do contrato de mútuo aqui em causa como sendo um contrato de mútuo mercantil, pelas sobreditas razões quanto ao estipulado pelas partes, e quanto à completa omissão de cláusulas relativas à natureza mercantil do contrato.

ooo) As partes intitularam o contrato como contrato de mútuo gratuito; inexiste cláusula no contrato quanto à sua onerosidade, antes pelo contrário existe cláusula que dispõe de forma expressa sobre a sua não onerosidade; as partes não fazem qualquer menção no contrato quanto à sua natureza mercantil; as partes estipularam expressamente que o mútuo foi concedido "Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor, o fornecedor empresta ao revendedor, sem juros, a quantia de € 490.000,00" (vide n.º 1 da cláusula 7P); a autora na petição inicial não faz menção à natureza mercantil do contrato, nem na causa de pedir, nem no pedido.

ppp)  Conjugada tal factualidade, é evidente que não estamos perante a figura do mútuo mercantil.

qqq)  Em consequência, não pode ser posta em causa que as partes, através do contrato que qualificaram como contrato de "contrato de compra exclusiva, com mútuo gratuito e fiança pessoal" celebraram um verdadeiro contrato de mútuo civil e não qualquer outro.

rrr)    Tal seria defraudar a vontade real das partes insertas no aludido contrato, fazendo dele tábua rasa.

sss)   Em face do contrato subscrito pelas partes, aqui autora/recorrida e réu/recorrente desconhece-se, portanto, que tipo de encargos foram satisfeitos com o dinheiro que a autora emprestou à sociedade ré.

ttt)     Logo, não pode a situação dos autos configurar um contrato de mútuo mercantil.

uuu)  Resta-nos, portanto, apreciar se estamos perante contrato de mútuo civil.

vvv)   Estabelece o artigo 11420 do Código Civil que "Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade".

www) Por seu lado, o artigo 1143º do mesmo Código, na redacção então em vigor, prescreve que "O contrato de mútuo de valor superior a 20.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2.000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário".

xxx)   Estando em causa um mútuo no valor de € 347.600,00 e que está formalizado por escrito, temos forçosamente de concluir que tal factualidade integra contrato de mútuo celebrado entre o autora e a sociedade ré, contrato esse que é nulo por vício de forma (cfr. artigo 220º do Código Civil).

yyy)   Como consequência legal da declaração de nulidade de tal negócio jurídico, decorre a obrigação por parte da sociedade ré restituir tudo o que tiver sido prestado

— artigo 289º nº 1, do mesmo Código.

zzz)    Todavia, a fiança pessoal prestada pelo recorrente não pode subsistir pois está dependente da validade do negócio principal.

aaaa)          Devendo o réu/recorrente ser absolvido do pedido.

Ainda sem prescindir/Da proibicão da valoracão de prova testemunhal em detrimento da prova documental/Da violacão dos artigos 394.º e 395.º do Código Civil.

 bbbb) Nos considerandos do "contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito e fiança pessoal", e aqui em causa, as partes estipularam, além do mais, o seguinte: b) entre o fornecedor e o revendedor foi celebrado, em 16 de Janeiro de 2008, um contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito relativo ao estabelecimento "EE"; c) conforme previsto na cláusula 8.ª do contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito referido no considerando antecedente, o revendedor deveria reembolsar ao fornecedor o valor do capital em divida, resultante do mútuo gratuito de € 300.000,00  que este lhe concedeu, em 30 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 10.000,00 cada, vencendo-se a primeira em 5 de Fevereiro de 2008 e as restantes no dia 5 dos meses subsequentes; d) o revendedor procedeu ao pagamento das primeiras prestações referidas no considerando antecedente, pelo que reconhece dever ainda ao fornecedor a quantia de € 190.000,00; e) o revendedor manifestou interesse em renegociar o contrato referido no considerando b) mediante a celebração de um novo contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito e fiança, sendo a entrega da quantia mutuada satisfeita parcialmente mediante a compensação com a divida do revendedor ao fornecedor referida no considerando d); f) o fornecedor aceita celebrar com o revendedor um novo contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito e fiança e efectivar a compensação referida no considerando antecedente;

 cccc) Na sequência dos supra mencionados considerandos, as partes estipularam o seguinte na cláusula 7.ª do contrato aqui em causa: "1-Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor, o fornecedor empresta ao revendedor, sem juros, a quantia de € 490.000,00. 2- A obrigação de entrega da quantia mutuada é satisfeita, parcialmente, pela compensação com o crédito que o fornecedor detém sobre o revendedor, no valor de € 190.000,00 descrito no considerando d), pelo que o fomecedor apenas entrega ao revendedor, no presente acto, a quantia de € 300.000,00".

dddd)        Dúvidas inexistem de que o contrato sub judice veio substituir um anterior contrato celebrado entre as partes.

eeee)  Com a celebração de um novo contrato entre as partes, nos termos sobreditos, estamos em face da figura da novação, que consiste na extinção de uma obrigação em virtude da constituição de uma nova que a substitui.

ffff)    A razão determinante da extinção da primitiva obrigação é a constituição de um novo vínculo que, embora se identifique economicamente com a obrigação extinta tem uma fonte jurídica diferente, dizendo-se a novação objectiva sempre que a nova obrigação se constitua entre os mesmos credor e devedor da obrigação antiga e subjectiva sempre que se verifique mudança de algum dos sujeitos (arts. 857.º e 858º do Código Civil (CC)).

gggg) A novação resultará de «um negócio jurídico complexo através do qual se procede à substituição de um vínculo obrigacional mediante a sua prévia extinção e constituição de um novo vínculo entre as mesmas partes ou com alteração de uma delas».

hhhh)          Acresce que segundo o artº. 859.º do CC a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada — só haverá novação se as partes exteriorizarem directamente a intenção de novar.

iiii)    Esta intenção vem bem expressa no contrato sub judice celebrado entre as partes, quer nos considerandos, que na cláusula 7.ª do contrato.

jjj) Dispõe o nº 1 do art.º 394.º do Código Civil que: «É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ... quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores».

kkkk) Referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado», vol. l, pag. 343-342.) que o artigo se aplica, apenas, às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes não têm força probatória plena e às convenções adicionais ou acessórias, como lhes chama o art.º 221.º do CC, já que a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, na parte em que estes têm força probatória plena, resulta dos arts. 371.º e 372.º (no que respeita aos documentos autênticos).

llll) O objectivo será o de afastar os perigos que a admissibiliadade da prova testemunhal seria susceptível de originar - quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia socorrer-se de testemunhas, destruindo mediante uma prova extremamente insegura a eficácia do documento.

mmmm) Nas palavras do Prof.º Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil», pags. 343-344) assim «se defende o conteúdo dos documentos (o seu carácter verdadeiro e integral) contra os perigos da precária prova testemunhal, em conformidade com a máxima "lettres passent témoins".

nnnn)         O art.º 395.º do CC preceitua que as disposições dos arts. 393.º e 394.º do CC são aplicáveis ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional, mas não aos factos extintivos da obrigação, quando invocados por terceiro.

oooo) No caso sub judice a novação invocada corresponde a um facto extintivo da obrigação decorrente no âmbito do primitivo contrato de mútuo, o que significa que a prova testemunhal estaria igualmente afastada nos mesmos termos antes referidos.

pppp)          O que também sucederia se considerarmos que estamos em face de uma mera compensação de créditos. (vide art.º 395.º do CC).

qqqq)         Como refere o Prof.º Vaz Serra (Anotação publicada na Rev. Leg. Jurisp., ano 103º, pag. 12.) resulta do art.º 395º, em conjugação com o art.º 394.º que «se um contrato celebrado por documento for extinto por outro contrato, a prova deste não pode ser feita por testemunhas, nem pelos meios probatórios assimilados à prova testemunhal (presunções judiciais, art.º 351.º ; confissão extrajudicial verbal, art.º 358. º, nº 3) só podendo sê-lo com meios de prova de força probatória superior» (sublinhado nosso).

rrrr)   No que respeita ao caso que nos ocupa, entendemos que, quando foi celebrado o segundo contrato — o contrato de mútuo documentado e junto aos autos — as partes poderiam ter reduzido a escrito as cláusulas cuja prova pretendiam fazer por testemunhas, não subscrevendo a recorrida aquele contrato se assim não sucedesse.

ssss)   Existirá nos autos e no que a esta matéria concerne um começo, ou princípio, de prova por escrito?

tttt) Do contrato de mútuo junto aos autos não se retiram quaisquer elementos valoráveis no que respeita à resposta positiva ao facto contido no art.º 11.º da Resposta à Contestação do réu, que o Tribunal a quo deu como facto não provado, e que o douto Tribunal da Relação aditou como facto provado, nem decorre, igualmente, a existência do pretendido princípio de prova escrita no que respeita à matéria de facto assinalada.

uuuu) Aquele princípio de prova escrita terá de ter alguma consistência e um mínimo de clareza com respeito aos factos que através dele se pretendem provar.

vvv) A prova testemunhal que, naquelas circunstâncias, será permitida complementará o documento, mas este terá de se revestir de alguma relevância, sem o que se subverteria, por inteiro, o que o legislador pretendeu salvaguardar nos arts. 394.º e 395.º do CC.

 

wwww) Não ocorrendo tal nos autos a prova testemunhal produzida não é admissível.

xxxx)  Não sendo admissível a prova testemunhal produzida não poderá, pois, subsistir o aditamento da alínea 21) à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da l.ª Instância tendo por base os depoimentos testemunhais prestados.

yyyy)  Como por nenhum outro meio de prova — designadamente por documento — aquele facto se encontra demonstrado, teremos de concluir no sentido da modificação das respostas à matéria de facto provada, deixando de subsistir como integrando a matéria de facto provada a alínea 21) (introduzida pelo Tribunal da Relação) da fundamentação de facto da sentença recorrida.

zzzz) Não subsistindo como facto provado aquele facto aditado pelo Tribunal da Relação, não temos elementos que permitam concluir pela natureza mercantil do contrato de mútuo sub judice.

aaaaa) Neste contexto não subsiste, igualmente, a condenação do recorrente no respectivo pedido, atendendo que, sendo o mútuo civil, e em consequência nulo por falta de forma, falece a fiança.”

A autora DD, SA, respondeu à alegação do réu.

II- Apreciação do Recurso

1. Objecto do recurso:

O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação do recorrente, pelo que as questões que cabe conhecer são as seguintes:

O recurso restringe-se à apreciação e fixação da matéria de facto feita pelo acórdão recorrido, concretamente ao aditamento constante do artigo 21º do probatório.

Alega o recorrente que deve ser revogado o acórdão recorrido por por violação de disposições legais sobre interpretação da vontade negocial das partes, inserta no contrato de mútuo aqui em causa, assim como por violação do disposto nos artigos 394º e 395° do código civil.

Requerendo a intervenção do STJ, ao abrigo do nº 3 do artº 674º do CPC, por ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

2. Fundamentaçao

Da matéria de facto          

Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:

“1)     Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização, distribuição e venda de bebidas.

2)      A 1ª Ré é uma sociedade comercial que explora o estabelecimento de venda a retalho de bebidas destinadas a serem consumidas no local, denominado "EE", sito na ..., loja ..., … Lisboa.

3)      No exercício das respetivas atividades comerciais, a Autora e a 1ª Ré celebraram, em 8.10.2009, um "Contrato de compra exclusiva, com mútuo gratuito e fiança pessoal" (documento de fls. 11 a 15);

4)     Nos termos do acordo referido em 3, a Autora obrigou-se a fornecer à 1ª Ré os produtos objeto da sua atividade comercial.

5)      A 1ª Ré, por seu turno, obrigou-se a comprar os produtos objeto da atividade comercial da Autora de forma ininterrupta, durante a vigência do contrato, com a duração mínima de quatro anos e máxima de cinco anos, propondo-se alcançar, no mínimo, 350.000 litros dos produtos comercializados pela Autora.

6)      Foi convencionado no contrato que este vigoraria até que a 1ª Ré lograsse adquirir, pelo menos, 350.000 litros dos produtos comercializados pela Autora, não podendo - contudo - a vigência do contrato ser superior a cinco anos.

7)      A 1ª Ré obrigou-se, ainda, a não vender no estabelecimento comercial cervejas em barril, em garrafa e águas lisas e com gás de marcas não comercializadas pela Autora.

8)     A Autora, como contrapartida da exclusividade da 1ª Ré, emprestou à Ré a quantia de € 490.000, sem juros, quantia que a Ré efetivamente recebeu, sendo que € 190.000 já eram anteriormente devidos.

9)      Quantia que a 1ª Ré se obrigou a restituir em 48 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 10.600 e as restantes 47 prestações no valor de € 10.200 cada uma, vencendo-se a primeira no dia 4.12.2009 e as restantes no dia 4 dos meses subsequentes.

10)    Ficou ainda convencionado que a restituição da quantia mutuada constitui uma só obrigação fundamental, não obstante o seu pagamento ser fracionado em prestações.

11)   A 1ª Ré apenas pagou 13 das 48 prestações mensais de restituição da quantia emprestada (até à prestação que se venceu no dia 4.12.2010), tendo ainda pago a quantia de € 9.400, abatendo parcialmente a prestação nº 14, no valor de € 10.200, vencida no dia 4.1.2011.

12)    Nos termos da Cláusula 9ª, o não pagamento de qualquer das prestação na data do seu vencimento importa o vencimento imediato de todas as restantes prestações.

13)    A Autora interpelou a Ré, oralmente e por escrito, por diversas vezes, no sentido de esta retomar o pagamento das quantias em dívida.

14)    Autora remeteu à 1ª Ré e ao 2º Réu cartas registadas com aviso de receção, datadas de 5.3.2013, a interpelar para o cumprimento do contrato no prazo de 15 dias, considerando o contrato resolvido, sem necessidade de nova interpelação, caso a 1ª Ré não pagasse as prestações em dívida.

15)    As cartas vieram devolvidas.

16)    Nos termos da Cláusula 10ª, nº 3, «O incumprimento dará lugar ao pagamento, pelo contraente faltoso, de uma indemnização que por acordo se fixa em 49.000.»

17)    Nos termos da Cláusula 10ª, nº 4, «Para além da indemnização prevista no número anterior, o incumprimento, por parte do Revendedor, determina o vencimento imediato de todas as prestações em dívida e o pagamento de juros calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos artigos 559º, 559º-A e 1146º, nº 2, do Código Civil e computados, desde a data da entrega da quantia mutuada e a data do efeito pagamento daquelas prestações.»

18)   O Réu subscreveu o contrato referido em 3 na qualidade de "Fiador" sendo que, nos termos da cláusula 13ª, «O fiador responsabiliza-se solidariamente com o revendedor pelo cumprimento de todas as obrigações que se encontram previstas no presente contrato, bem como pelas consequências do não cumprimento dessas obrigações, renunciando ao benefício da prévia excussão.»

19)    O negócio da Ré sofreu uma redução a nível de comercialização de bebidas, que se acentuou de forma abrupta a partir de 2011, sendo essa redução conhecida da Autora à medida que ocorreu.

20)    A cláusula referida em 16 foi fixada, tendo por critério dez por cento calculados sobre o valor total referido em 8 (€ 490.000).”

 

Factos não provados:

1.      Artigos 2º, 4º, 5º e 13º da contestação de fls. 95-96.

2.      Artigo 11º do articulado de fls. 144.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 5 de Julho de 2018, alterou a decisão quanto à matéria de facto, aditando o seguinte ponto:

21)  O dinheiro emprestado pela autora destinou-se a ser investido no estabelecimento comercial da sociedade ré.

No mais alegado no artigo onze do mesmo articulado se considera como não provado.”

 III-  Direito

1. A Autora suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso por, em seu entender, a impugnação do Réu se cingir à reapreciação da matéria de facto feita pelo acórdão da Relação.

No entanto, o Réu alega que o acórdão da Relação violou disposições legais sobre a interpretação da vontade negocial das partes, preenchendo os requisitos previstos na parte final do nº 3 do artº 674º, sendo, por isso, sindicável pelo STJ.

Assim, importa apurar se, efectivamente, a alteração da matéria de facto feita pela Relação preencheu tais requisitos.

Deste modo, admite-se a revista.

2. O fundamento da revista incide sobre o aditamento da matéria de facto (artigo 21) feita pelo acórdão recorrido.

O Recorrente entende que o Tribunal da Relação “violou normas jurídicas sobre a interpretação negocial, designadamente os artigos 394.º e 395.º do Código Civil, desvalorizando por completo a vontade das partes expressa no contrato sub judice, além de que valorou prova testemunhal. E não sendo esta admissível, não poderá, pois, subsistir o aditamento da alínea 21) à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da 1.ª instância tendo por base os depoimentos testemunhais prestados.” Refere ainda “que o Tribunal da Relação, (…), ignorou por completo prova documental junta aos autos, designadamente o doc. nº 1 junto à p.i. pelo autora/recorrida, que consubstancia o contrato que as partes intitularam expressamente como ‘Contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito e fiança pessoal (…) “.

Vejamos:

Dispõe o artº 674º, nº 3 do CPC que. “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”

O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue aplicável artigo 682.º, nº 1 do CPC.

Ou seja, por regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito, sendo da competência exclusiva das instâncias a apreciação e fixação da matéria de facto.

Mas esta regra cede quando exista violação do direito probatório formal ou material, designadamente, quando não tenha sido atribuído relevo a meios probatórios com força vinculada, ou tenham sido desrespeitadas regras sobre a exigibilidade de determinados meios de prova. Nestes casos, o Supremo deve alterar, mesmo oficiosamente, a decisão da matéria de facto, em conformidade com o regime substantivo aplicável, quando o acórdão recorrido seja sustentado em determinado facto cuja prova esteja dependente de documento escrito, mas que tenha sido declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial.

Será que, no caso sub judice, estamos perante uma violação do direito probatório formal ou material?

Decorre dos factos assentes que a autora e a ré celebraram um contrato, através de documento particular, tendo o réu CC dado a sua fiança pessoal. Dos termos desse contrato, salientamos:

“1)    Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização, distribuição e venda de bebidas.

2)      A 1ª Ré é uma sociedade comercial que explora o estabelecimento de venda a retalho de bebidas destinadas a serem consumidas no local, denominado "EE", sito na ..., loja ..., … Lisboa.

3)      No exercício das respetivas atividades comerciais, a Autora e a 1ª Ré celebraram, em 8.10.2009, um "Contrato de compra exclusiva, com mútuo gratuito e fiança pessoal" (documento de fls. 11 a 15);

4)      Nos termos do acordo referido em 3, a Autora obrigou-se a fornecer à 1ª Ré os produtos objeto da sua atividade comercial.

5)      A 1ª Ré, por seu turno, obrigou-se a comprar os produtos objeto da atividade comercial da Autora de forma ininterrupta, durante a vigência do contrato, com a duração mínima de quatro anos e máxima de cinco anos, propondo-se alcançar, no mínimo, 350.000 litros dos produtos comercializados pela Autora.

6)      Foi convencionado no contrato que este vigoraria até que a 1ª Ré lograsse adquirir, pelo menos, 350.000 litros dos produtos comercializados pela Autora, não podendo - contudo - a vigência do contrato ser superior a cinco anos.

7)      A 1ª Ré obrigou-se, ainda, a não vender no estabelecimento comercial cervejas em barril, em garrafa e águas lisas e com gás de marcas não comercializadas pela Autora.

8)      A Autora, como contrapartida da exclusividade da 1ª Ré, emprestou à Ré a quantia de € 490.000, sem juros, quantia que a Ré efetivamente recebeu, sendo que € 190.000 já eram anteriormente devidos.

9)      Quantia que a 1ª Ré se obrigou a restituir em 48 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 10.600 e as restantes 47 prestações no valor de € 10.200 cada uma, vencendo-se a primeira no dia 4.12.2009 e as restantes no dia 4 dos meses subsequentes.

10)    Ficou ainda convencionado que a restituição da quantia mutuada constitui uma só obrigação fundamental, não obstante o seu pagamento ser fracionado em prestações.

11) (…)”

A questão a dirimir prende-se com a apreciação da natureza civil ou comercial do contrato, já que do mesmo não consta expressamente a que finalidade se destinava a quantia mutuada.

A 1ª instância entendeu que a Autora não conseguiu demonstrar que a quantia mutuada se destinou a qualquer acto mercantil, e, deste modo, considerou estarmos perante um contrato de mútuo civil. Ao invés, a Relação, com fundamento na prova testemunhal, considerou provado que a quantia se destinou a ser investida no estabelecimento comercial da Ré (artigo 21, aditado aos factos provados).

Será que a Relação poderia ter usado este meio de prova (testemunhal) para prova deste facto? Não divisamos qualquer obstáculo.

Vejamos:

No que concerne aos documentos particulares, o artigo 374º do Código Civil prescreve o seguinte: “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”.

Quanto à sua força probatória dispõe o artigo 376° do mesmo diploma legal que “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento “ (nº 1), sendo que ‘’Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante “ (nº 2).

A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor.

Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia.

Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa.

Como refere o Professor José Lebre de Freitas: “O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito” (in “A Falsidade no Direito Probatório”, Coimbra, 248 e 249).

Deste modo, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações delas constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.

É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376° do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.

Por isso, mesmo não tendo sido impugnado o contrato junto pela Autora, nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do teor, nomeadamente através da prova testemunhal produzida, tanto mais que o contrato não refere qual o destino da quantia mutuada. E, por isso, impunha-se apurar, através dos meios de prova legalmente permitidos, se a quantia mutuada se destinou ou não à prática de actos de comércio objectivos ou subjectivos, nomeadamente no âmbito da constituição e exploração do estabelecimento comercial da Ré. E nada impedia o recurso a prova extrínseca (neste caso testemunhal) para a interpretação do documento particular (contrato).

Assim, não violou as normas do direito probatório a decisão do tribunal da Relação que, na reapreciação da decisão da matéria de facto, em cumprimento do dever de avaliação/valoração/interpretação/apreciação ou fixação da prova, lançou mão de todos os meios probatórios à sua disposição no processo para obter congruência factual com a verdade judicial e histórica do processo.

E sendo a avaliação/interpretação dos depoimentos das testemunhas da competência do tribunal da Relação, o STJ não tem que se imiscuir na avaliação a que aquele procede na formação do juízo conviccional.

Esta é a posição firmada na jurisprudência de que é exemplo o Acórdão do STJ de 7/7/16, revista 487/14, in www.dgsi.pt, no qual se escreveu:

“Ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682.°, n.° 1), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e da modificabilidade da decisão sobre tal matéria. A sua intervenção na decisão da matéria e facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674.°, n.° 3 e 682.°, n.° 3, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais. (…).

Assim, não pode este Supremo Tribunal de Justiça, exercer qualquer fiscalização sobre o facto aditado, porquanto não se vislumbra que tenha havido a violação do dispositivo legal a que alude o artigo 674º, nº3 do CPC, maxime, que o segundo grau tenha preterido alguma disposição expressa da lei que impusesse um determinado meio de prova, taxado para para o facto controvertido. Sendo certo que a reapreciação de prova que foi feita pela Relação constitui, mais do que um ónus, um poder/dever imposto pela amplitude do preceituado no artigo 662º, nº 1 e 2 do CPC, sendo de realçar que o nº 4 do apontado normativo nem sequer permite recurso autónomo das decisões de segundo grau que alterem a matéria de facto, ordenem a renovação dos meios de prova, ou a fundamentação quanto a eles produzida e/ou anulem a decisão fáctica por deficiência/obscuridade e/ou contradição.

Por outro lado, a Relação fundamentou devidamente o aditamento à matéria de facto, cumprindo a função de reponderação que sobre si impendia de harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do CPC, tendo exercido as suas plenas competências na reapreciação da materialidade factual posta em causa pela Recorrente, através de uma análise crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas.

Assim, o STJ está impedido de sindicar o julgamento que a Relação efectuou sobre a factualidade considerada provada.

IV- Decisão

Deste modo, acorda-se em negar a revista, mantendo a decisão plasmada no acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 14 de Maio de 2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo