Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13706/09.OT2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
VONTADE DO TESTADOR
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LEGADO
LEGADO PIO
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL - DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / CONTEÚDO DO TESTAMENTO.
Doutrina:
- Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Português, II, p. 555.
- Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, X, 93.
- E. Betti, Teoria Geral do Negócio Jurídico, tomo II, 1969, p. 304.
- Oliveiras Ascenção, Direito das Sucessões, 1989, p. 308.
- Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol, VI, p. 439.
- Puig Brutau, Compêndio de Derecho Civil, vol. IV, 1991, p. 388.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 2187.º, 2229.º, 2280.º, 2287.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 712.º, N.º4, 722.º, N.º2, 729.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 26-03-1965, BMJ 145, P. 388 E SEGS.;
-DE 25-11-2004, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 17-04-2012, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I – Não competindo ao STJ, como tribunal de revista, apreciar o julgamento da matéria de facto, vedado lhe está censurar a actuação da Relação que, em apelação interposta de sentença proferida na sequência de anulação de anterior julgamento entendeu não alterar certos pontos da matéria de facto fixada neste último.

II – O testamento deve ser interpretado de acordo com o pensamento e vontade do testador maniestada no texto e no contexto, isto é, na decaração escrita propriamente dita e nas circunstâncias económicas, sociais, políticas, familiares, religiosas em que o mesmo foi outorgado e com o sentido e significado que o testador quis dar às palavras com que exteriorizou a sua vontade.

III – A interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir:
- questão de direito se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento; neste caso o STJ pode conhecê-la;

- questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o Supremo poder sindicar, nos termos do art° 2187° n° 2 do C. Civil, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento.

IV - A integração (ou interpretação integrativa) da declaração testamentária justifica-se apenas para assegurar a eficácia e os modos de execução da vontade manifestada, não para a substituir nem para lhe acrescentar algo que se ignora se foi ou não querido pelo testador.

V – Assim, legado um imóvel a uma instituição de beneficência sob a condição resolutiva expressa de a legatária continuar a exercer a sua actividade numa determinada localidade, não é possível interpretar o testamento no sentido de a cessação de actividade nesse imóvel e subsequente alienação do mesmo, constituírem também condições resolutivas do legado.

VI – Prevendo a testadora, para além da apontada condição resolutiva, a reversão do imóvel, em caso de dissolução da legatária, para outra instituição, “livre de interferência governativa ou de qualquer espécie” e em caso de interferência governativa  ou ameaça dela na beneficiária ou na actividade por ela prosseguida no imóvel legado, neste caso a favor do seu herdeiro ou sucessores, não é equiparável a tal interferência a notificação camarária para vistoria destinada a averiguar as obras necessárias para conservação e segurança do edifício.

VII – As interferências governativas ou de qualquer outra espécie a que alude o testamento outorgado em 1920. como causa de extinção de um legado pio, só se compreendem à luz do ambiente político-ideológico, marcadamente anticlerical e anticatólico da 1ª República.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


RELATÓRIO

O prédio urbano denominado "Casa de ..." ou “Hotel” descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n° 91909/911126, confrontando a Norte com estrada, a Sul com Caminhos dos Clérigos, a Nascente com Visconde dos ... e a Poente com Estrada da ..., foi legado em testamento outorgado em 14-02-1920 por AA, Condessa da ... e Viscondessa da ..., que veio a falecer em 17-09-1921, à Junta Nacional da Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas.

Mais consta do testamento, a propósito desse legado, que ele ficava “sujeito à condição de continuar no exercício das suas funções a Junta Local da acima referida associação, na Vila de Cintra e, sendo esta Junta Local dissolvida, reverterá este legado a favor de qualquer outra instituição de beneficência que esteja livre de qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie, instituição esta que será escolhida por sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca de acordo com o meu herdeiro ou seus sucessores. A todo o tempo se a mencionada interferência se der ou queira dar-se por parte das autoridades governativas, ou por qualquer forma, na instituição assim escolhida, ou mesmo no exercício das funções da obra caritativa no dito edifício, ou o Hotel, se acha hoje instalada, então reverterá este legado a favor do meu herdeiro ou dos seus sucessores..."

A beneficiária do legado utilizou esse imóvel até 1992 e em Novembro de 1995, através de processo de notificação n° 6.043/95 foi notificada pela Câmara Municipal de Sintra das diligências prosseguidas por esta com vista a obras nos imóveis em mau estado de conservação inseridos na Vila de Sintra, nesse se incluindo tal prédio, solicitando uma vistoria para depois ordenar as obras que resultassem necessárias

Tendo a Junta Nacional da Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina, actual designação da Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas, vendido o imóvel a U... – Construções Lda, com vista à construção de um complexo hoteleiro, intentou BB, na qualidade de sucessora da testadora, acção de processo ordinário contra AA, para que:

a) Seja declarado que se verificou a condição resolutiva determinante da reversão da propriedade do prédio denominado "Hotel", composto por casa de r/c, 1o e 2o andares e águas furtadas e terreno com jardim, sito no Arrabalde, em Sintra e descrito na 2a Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o artigo 1909 da freguesia de Santa Maria e inscrito na respectiva matriz predial urbana com o n° 653;
b) Seja declarada nula a compra e venda celebrada entre a 1a e 2a rés em 15/5/97;

c) Seja reconhecido o direito de propriedade da autora e dos restantes herdeiros da Condessa da ... sobre o imóvel identificado ema);
d) Seja condenada a 2a ré a restituir à autora e aos restantes herdeiros da Senhora Condessa da ..., o imóvel identificado, livre de pessoas e bens;

d) Seja ordenado o cancelamento do registo da aquisição da 2a ré feita através da inscrição G-2, apresentada em 28/5/97, à descrição 1909 da freguesia de Santa Maria da 2a conservatória do Registo Predial de Sintra

A acção foi contestada pelas RR, tendo a 2º Ré deduzido também reconvenção para obter a condenação da Autora a indemnizá-la pelos danos que lhe causa com a presente acção.

         Na 1ª instância, foi proferida sentença Foi proferido despacho saneador e elaborada a base instrutória.                                                                               /

Após julgamento foi proferida sentença que:
a)  Declarou verificada a condição resolutiva determinante da
reversão da propriedade do prédio descrito no art. 1
o da p. i.  em favor da autora e dos restantes herdeiros da Condessa de ... (por entender que a notificação camarária para a vistoria com vista à determinação das obras necessárias à segurança do prédio configurava uma interferência administrativa na Associação);

b) Declarou nula a compra e venda celebrada entre a 1a e 2a rés, em 15/5/97, titulada pela escritura cuja cópia se mostra junta a fls. 69;

c) Reconheceu o direito de propriedade da autora e dos restantes herdeiros da Condessa de ..., sobre o imóvel identificado no art. 1 da p .i.;
d) Condenou a 2a ré a restituir à autora e aos restantes herdeiros da Senhora Condessa da ..., o imóvel identificado, livre de pessoas e bens;
e) Ordenou o cancelamento do registo da aquisição pela 2a ré através da inscrição G-2, apresentada em 28/5/97, à descrição 1909 da freguesia de Santa Maria da 2a Conservatória do Registo predial de Sintra;

f) Absolveu a autora e demais herdeiros do pedido reconvencional;

Absolveu as rés dos pedidos de litigância de má-fé.

 
As RR recorreram, impugnando a decisão de facto e a de direito.
Com êxito, já que, depois de apreciar a impugnação da matéria de facto, a sentença recorrida foi anulada por conter uma decisão que não foi objecto de contraditório (decisão-surpresa).

Baixando os autos à 1ª instância, foi de novo proferida sentença no mesmo sentido da anteriormente proferida.

Em recursos de apelação interpostos pelas RR, a Relação de Lisboa julgou-as procedentes na parte condenatória, e deliberou substitui-la por outra que absolveu as RR dos pedidos, confirmando, todavia, a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente a reconvenção.
Novo recurso, agora de revista, interposto pela Autora, com vista à revogação de tal acórdão.
As RR contra-alegaram, em defesa da manutenção do julgado.

Remetido o processo este STJ, após a distribuição e exame preliminar, foram corridos os vistos.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
 


FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto

As instâncias apresentam-nos, como provados, os seguintes factos:

1 - Na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n° 91909/911126 mostra-se descrito um prédio urbano denominado "Casa de ...", composto de casa de R/C, 1º, 2º andares e águas furtadas e terreno com jardim, confronta a Norte com estrada, a Sul com Caminhos dos Clérigos, a Nascente com Visconde dos ... e a Poente com Estrada da ... - a)

2 - Pela Ap.03/351125 mostra-se registada a aquisição do aludido prédio a favor da Junta Nacional da Associação Católica Internacional das obras de protecção às raparigas, ora ré (Junta Nacional da Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina), por legado em testamento de AA - b)

3 - Pela Ap. 12/970528 mostra-se registada a aquisição do mencionado prédio a favor de U... - Construções Lda., ora ré, por compra - c)

4 - Antes de 17 de Setembro de 1921 que AA e seus antecessores detinham o prédio aludido em a), agindo como seus donos, sem oposição de ninguém - d)

5 - Em 17 de Setembro de 1921 faleceu AA - e)

6 - AA outorgou testamento cerrado, lacrado pelo Notário do Cartório de Oliveira de Azeméis em 14/02/1920 - f)

7 - No aludido testamento está declarado além do mais que "Lego à Junta Nacional Portuguesa da Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas o edifício que possuo no Arrabalde de Cintra, conhecido pelo nome de Hotel e com este uma porção de terreno situado nas trazeiras do edifício referido, dividido por um muro (parte do qual está agora em construção) de uma outra área de terreno situado nas trazeiras do prédio anexo (...) E este legado sujeito à condição de continuar no exercício das suas funções a Junta Local da acima referida associação, na Vila de Cintra e, sendo esta junta Local dissolvida, reverterá este legado a favor de qualquer outra instituição de beneficiência que esteja livre de qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie, instituição esta que será escolhida por sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca de acordo com o meu herdeiro ou seus sucessores. A todo o tempo se a mencionada interferência se der ou queira dar-se por parte das autoridades governativas, ou por qualquer forma, na instituição assim escolhida, ou mesmo no exercício das funções da obra caritativa no dito edifício, ou o Hotel, se acha hoje instalada, então reverterá este legado a favor do meu herdeiro ou dos seus sucessores..." - g)

8 - A primeira ré teve conhecimento do teor do testamento referido em g), antes da venda referida em c) - h)

9 - São herdeiros de AA a autora e todos os intervenientes processuais - i)

10 - Em 1992 e desde esta data não havia actividade a ser desenvolvida no edifício mencionado em a) - resposta ao facto 1.

11 - Em 1992 o edifício mencionado em a) estava sem móveis. -resposta ao facto 2.

12 - Na data em que foi vendido o prédio referido em a), era impossível a continuação no mesmo qualquer actividade humana sem fazer obras - resposta ao facto 3.

13 - ...por se encontrar muito degradado... - resposta ao facto 4.

14 - Em 1995 a autora obteve uma oferta de compra do referido prédio pelo valor de 234.000.000$00, sendo que nessa data o mesmo carecia de obras de valor superior a 300.000.000$00 - resposta ao facto 5.

15 - Por causa da situação referida em 3) e 4) a primeira ré não podia ali desenvolver a sua actividade como associação de caridade -resposta ao facto 6.

16 - A primeira ré teve que vender o imóvel para manter o objectivo fundamental da associação... - resposta ao facto 7 (esta afirmação foi considerado não escrita, como se verá infra).

17 - A 1ª ré dá apoio a todo o tipo de pessoas - resposta ao facto 8.

18 - A 1ª ré desenvolve actividade na Vila de Sintra - resposta ao facto 9

19 - A segunda ré recebeu a carta que constitui o documento de fls.73 dos autos - resposta ao facto 10.

20 - A segunda ré adquiriu o prédio referido em a) para construção futura de uma unidade hoteleira... - resposta ao facto 11.

21 -...o que levou à aquisição de outro prédio com ele confinante... -resposta ao facto 12.

22 -...com vista ao desenvolvimento das obras de reconstrução do prédio referido em a) e para ter espaço para arqueamentos futuros. -resposta ao facto 13.

23 - Para prospecção e estudo do projecto que envolve a construção da unidade hoteleira a ré U... despendeu a quantia de 1.667.000$00 mais IVA, a título de parte dos honorários a entregar à firma que o elaborou - resposta ao facto 14.

24 - Em Março de 1997, a segunda ré contratou uma equipa de arquitectos para prestação de serviços relacionados com a obra de construção do hotel referido, sendo que já lhes entregou a título de honorários a quantia de 4.934.412$00 - resposta ao facto 15.

25 - A segunda ré adquiriu o prédio confinante com o que está em causa nestes autos pelo valor de 33.000.000$00, em 17/6/97 -resposta ao facto 16.

26 - A segunda ré prometeu vender a "M... - Actividades Hoteleiras, Lda." o prédio referido em a) bem como o referido em 16), para que esta desenvolva as obras com vista à construção do complexo hoteleiro - resposta ao facto 17.

27 - A segunda ré adquiriu o prédio confinante com o que está em causa nestes autos pelo valor de 33.000.000$00, em 17/6/97, por causa da aquisição do prédio referido em a) - resposta ao facto 18.

28 - As despesas referidas em 11) a 17) foram suportadas pela 2a ré por causa da aquisição que fez do prédio referido em a)...- resposta ao facto 20.

29 - Em 1991/1992, a primeira ré foi procurada por herdeiros da Condessa da ... - resposta ao facto 22.

30 - Em 1991/1992, a primeira ré foi procurada por herdeiros da Condessa da ... - resposta ao facto 23.

31 - Na sequência dos factos referidos em 22) os herdeiros da Condessa da ... propuseram que o prédio referido em a) fosse vendido - resposta ao facto 24.

32 -...revertendo 3/4 do valor para os herdeiros - resposta ao facto 25.

33 -...e 1/4 para a primeira ré - resposta ao facto 26.

34 - Em Novembro de 1995, a Ia ré através de processo de notificação n° 6.043/95 foi notificada pela Câmara Municipal de Sintra das diligências prosseguidas por esta com vista a obras nos imóveis em mau estado de conservação inseridos na Vila de Sintra, nesse se incluindo o prédio referido em a), solicitando uma vistoria para depois ordenar as obras que resultassem necessárias – resposta ao facto 27.

35 - A primeira ré decidiu então vender o prédio referido em a) procurando o melhor valor a fim de que pudesse prosseguir a sua obra de assistência noutro local, em condições para garantir o cumprimento das suas obrigações estatutárias - resposta ao facto 28.

36 - Em 1995 a autora obteve uma oferta de compra do referido prédio pelo valor de 234.000.000$00 - resposta ao facto 29.

37 - Em 1995 o mesmo prédio carecia de obras de valor superior a 300.000.000$00 - resposta ao facto 30.

38 - A primeira ré não podia suportar os custos referidos em 30 (facto sob o n° 37) - resposta ao facto 31.

39 - A Ia ré sempre exerceu e continua a exercer a sua actividade na vila de Sintra - resposta ao facto 34.

Matéria de Direito
Importa, antes de mais, delimitar o objecto do recurso.
E, como se sabe, é a síntese conclusiva proposta pelo recorrente que define o objecto do recurso, ou seja, as questões submetidas à apreciação do tribunal ad quem.
Tais conclusões são as seguintes:

A.        Ao recusar-se a reapreciar a decisão sobre a matéria de facto, tal como solicitado pela ora Recorrente nos termos previstos no art. 712.°, n.°1, alínea a) e b) e n.° 2, do C.P.C, os Venerandos Desembargadores violaram o disposto no art. 660°, n° 2 do CPC, pela que a sua decisão é nula nos termos do art. 668, n°1, alínea d) do CPC.

B.        Não obsta a tal nulidade o facto de que o Tribunal da Relação já se havia pronunciado sobre a matéria de facto em acórdão anterior, uma vez que este acórdão anterior havia anulado, in totum, a sentença da 1ª instância, e   que   a   nova   sentença   da   primeira   instância   se   havia   de   novo pronunciado sobre a matéria de facto, em termos, aliás, dissonantes do Tribunal da Relação.

Subsidiariamente
C.        O acórdão proferido deve ser revogado, uma vez que faz uma interpretação errada do testamento da Condessa da ... que não respeita a condição resolutiva ou de reversão a que estava sujeito o legado, à 1.a Ré, de um prédio em Sintra denominado Hotel.

D.        Tal condição resolutiva ou de reversão consistia em que a junta local da 1ª Ré devia continuar o exercício das suas funções caritativas, sob pena de o legado reverter a favor do herdeiro da Condessa da ... ou dos seus sucessores se, por alguma razão, se desse ou se pretendesse vir a dar qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie na instituição ou mesmo no exercício das funções da obra caritativa instalada no referido edifício.

E.        Constituindo tal legado um legado pio, a referida cláusula de reversão é aceite pelo direito português como uma cláusula limitativa da propriedade plena sobre os bens legados, pois ao excluir a regulamentação dos legados pios da regulamentação geral dos legados constante da Secção III, do Capítulo VI do Título III ( da sucessão testamentária) , o legislador não pretendeu aplicar-lhe "os princípios gerais" da legislação civil mas, atendendo à finalidade que os caracteriza, manter o tradicional respeito pela vontade do testador, com uma excepcionalmente ampla liberdade quanto à sua instituição.

F.        Em qualquer dos casos, a condição em questão seria válida, uma vez que não é o não cumprimento de um encargo que está em causa e porque, em qualquer dos casos, tratando-se de um legado pio, o art. 2248.° do Código Civil não se aplica.

G. Tal como nos casos paralelos dos Asilo da ..., Asilo Escola ... e Asilo Agrícola Refúgio dos Desamparados, a condição a que os legados estavam sujeitos é a de que no caso de interferência governativa ou de qualquer outra espécie, a consequência é, sempre, a reversão dos bens legados para os herdeiros ou seus sucessores.

H. É manifesto em todo o testamento que a Condessa da ... apenas quis limitar a herança dos seus sucessores na medida em que os legados pios instituídos se destinassem, concretamente, fisicamente, às actividades previstas no mesmo testamento.

I. Não é admissível a interpretação do testamento segundo a qual a testadora quis atribuir à obra das raparigas um bem para que, através do seu valor patrimonial, obtido através da sua alienação a mesma prosseguisse qualquer obra caritativa.

J. A interpretação defendida pelo acórdão de que a condição a que o legado estava sujeito era a de que a 1a Ré continuasse no exercício das suas funções na vila de Sintra não é legítima, uma vez que o testamento claramente vincula o exercício da actividade ao próprio local e não indefinidamente à vila de Sintra.

K. E vincula ao exercício da actividade instalada no "Hotel" ao tempo da feitura do testamento e que era do conhecimento da Condessa da ... e que esta desejava que perdurasse.

L. Ao tempo da feitura do testamento a Condessa da ... nem sequer imaginava que a mesma pudesse ser concretizada noutro espaço em Sintra que não aquele, pois a dimensão e o investimento necessários à obra não estariam ao alcance daquele a quem a Condessa da ... legava o prédio, peio que ou exerciam a actividade em Sintra - e isso só podia significar a utilização daquele prédio - ou abandonavam o prédio,   o   mesmo   é   dizer,   no   entender   implícito   da   testadora - abandonavam Sintra.

M. Acresce que não teria qualquer sentido que se constituísse uma limitação sobre uma propriedade que não estivesse directamente ligada a essa mesma propriedade, pois se poderia chegar à situação em que a cláusula de reversão se manteria válida se o imóvel tivesse sido transmitido a terceiros e a 1ª Ré se mantivesse em actividade na vila de Sintra, mas na data em que a 1ª Ré deixasse de praticar qualquer actividade em Sintra e o imóvel devesse reverter para os herdeiros da Condessa da ..., já não pertenceria à entidade a quem esta o tinha legado.

N. Pelo que só a interpretação segundo a qual a Condessa da ... pretendeu que naquele edifício - o Hotel - se prosseguisse uma determinada obra de caridade, e que, se assim não fosse, então a propriedade do mesmo passaria para o seu herdeiro é equilibrada, razoável e se enquadra na globalidade do testamento e é consonante com a intenção de que deveria ser o seu herdeiro a beneficiar, sempre que a sua vontade não fosse respeitada.

O. A interpretação segundo a qual a intenção primária da Condessa da ... foi a de atingir uma actividade caritativa de apoio às raparigas, mais do que a de beneficiar a legatária não respeita o quadro mental, social e religioso quer da época de elaboração do testamento, quer da própria Condessa da ..., a qual pretendia que o apoio uma actividade caritativa de apoio às raparigas fosse feito através da 1a Ré e no prédio que para o efeito lhe legava.

P. Pelo que mal andou o acórdão ao decidir de modo diverso, razão pela qual deve ser revogado e, em sua substituição, proferida decisão que determine a procedência do pedido formulado pela Autora e a reversão do prédio para os herdeiros da Condessa da ...

Q. .Mesmo que se admitisse, o que não se concede, que a continuação da actividade da 1ª Ré na vila de Sintra fosse suficiente para não se verificasse a cláusula de reversão, importa interpretar o testamento no sentido de que a testadora tinha uma actividade específica em mente, que era a obra já se encontrava instalada no "Hotel", de internamento de raparigas e era esta a realidade que a Condessa da ... conhecia e pretendia que perdurasse e que competiria às Rés demonstrar que alguma identidade entre a actividade conhecida da testadora e que a mesma pretendia que fosse exercida e a actividade actualmente prestada pela 1a Ré em Sintra;

R. Não é razoável pretender que a actividade passiva de ser desenvolvida num gabinete de menos de 30 m2 em Sintra, adquirido por onze mil contos, fosse a mesma obra caritativa que estava instalada num edifício de quatro pisos, implantado num lote de terreno de 4.400 m2 e ocupando uma superfície de implantação, ao nível do rés-do-chão, de 600 m2.- o Hotel - e que foi do conhecimento da Condessa da ... e para a qual a Condessa considerava o edifício apropriado. O acórdão recorrido merece censura e deve ser revogado, uma vez que tem pressuposto uma interpretação do testamento segundo a qual é concedido à 1a Ré o direito de vender o prédio e fazer seu, para aplicação em quaisquer outras actividades meritórias ou para amealhar no banco, o valor de venda do prédio.

S. Sendo a cessação de actividades um mais relativamente a qualquer interferência externa (por parte das autoridades governativas ou de qualquer entidade terceira (...de qualquer outra espécie...), no exercício das funções), equiparável a uma interferência total, o testamento não deixa margem para dúvidas que a cessação de actividades implica a reversão do legado reverterá a favor do herdeiro da testadora ou seus sucessores, pelo que desde 1992 que o edifício reverteu para os herdeiros da Condessa da ....

T. Não obsta a tal reversão a previsão de uma eventual e intermédia reversão a favor de outra instituição de beneficência escolhida por Sua Eminência o Cardeal-Patriarca, uma vez que a venda decidida pela 1a Ré teve o acordo do Senhor Patriarca de Lisboa.

U. Nada tendo dito sobre a questão da efectiva e total cessação da actividade no "Hotel, porque fundamentado na interpretação de que a condição a que o legado pio estava sujeito era a de que a 1a Ré continuasse em actividade na vila de Sintra, importa que o acórdão recorrido seja revogado e substituído por outro que, considerando igualmente a cessação da actividade no edifício, reconheça a verificação da condição resolutiva de cessação da actividade no edifício.

V. A intervenção da Câmara Municipal de Sintra iniciada com a notificação n° 6.043/95 veio, efectivamente, despoletar uma alteração na forma como a actividade da 1a Ré era desenvolvida e determinou a venda do imóvel, assim fazendo cessar, de forma definitiva, a actividade no "Hotel", pelo que, para efeitos de interpretação do testamento, não é legítimo equipará-la a uma simples regulamentação de carácter urbanístico, antes deve ser entendida como intervenção externa justificativa da verificação da cláusula de reversão .

W. A distinção, perfilhada pelo acórdão, entre interferência na obra e interferência no edifício não é permitida pelo testamento, uma vez que a Condessa da ... é claríssima na recusa de qualquer tipo de interferências, qualquer intervenção do poder, de qualquer poder exterior, sendo do conhecimento comum que providências de carácter administrativo podem ser utilizadas como instrumentos de intervenção político-ideológica.

X. Igualmente não obsta à verificação da condição resolutiva que ainda se estivesse perante uma simples manifestação de vontade de interferência, pois com a notificação camarária está a demonstrar-se uma vontade de intervenção do poder público, traduz-se no exercício de uma autoridade pública sobre os cidadãos, o que para efeitos do testamento, é uma interferência governativa ou de qualquer outra espécie.

Y. Pelo que também as conclusões xxvi e xxvii do acórdão recorrido , merecem censura e justificam a sua revogação, e a sua substituição por outra decisão que equipare a notificação camarária à intervenção governativa prevista no testamento como determinante da verificação da cláusula de reversão.

Z. Se desde 1992 não é exercida actividade no "Hotel" e o edifício está vazio, verificou- se desde então a reversão para os herdeiros, pelo que factos posteriores não são relevantes para que a 1a Ré pudesse invocar qualquer estado de necessidade justificativo da venda.

AA.     Nem a 1 .a Ré se encontrava obrigada a exercer a sua actividade no
edifício nem foram referidas quaisquer alternativas à compra e venda foram referidas e a sua possibilidade afastada pela 1ª Ré. Assim, sem afastar a sua própria responsabilidade, ainda que eventual, no estado do edifício, sem invocar a aplicação de mais de 95% da verba recebida com a venda, sem invocar as razões da não devolução do edifício aos herdeiros da Condessa da ..., não tem qualquer sentido falar em estado de necessidade justificativo do comportamento adoptado.

BB.     Assim, a decisão da 1a Ré, com a expressa pretensão de tornear a limitação à sua propriedade que resultava da condição resolutiva que onerava o legado pio e com a consciência de uma simples venda lhe estava vedada, aplicar 11.000.000$00 (menos de um vigésimo do valor de venda do "Hotel") na aquisição de um gabinete em Sintra e de arrecadar para si 223.000.000$00, extravasa manifestamente os limites impostos pela boa-fé e constituiria um abuso do direito, nos termos previstos no art. 334° do Cód. Civil, pelo que, também por esta razão se impõe que o Tribunal conclua ter-se verificado a condição resolutiva do legado pio e determine a reversão do dito "Hotel" para os herdeiros da Condessa da ....

CC. Ao vender o imóvel legado quando já tinha procedido ao despejo dos seus móveis, quando já tinha desactivado totalmente o edifício, sem qualquer intenção de aí vir a retomar a mesma actividade, a 1a Ré vendeu quando já não era dona do mesmo e carecia de legitimidade para a sua venda, a qual foi nula, como disposto no art. 892.° do Código Civil, facto que, se não fosse do conhecimento da 2.a Ré, devia tê-lo sido, por ter recebido a carta de folhas 73 dos autos,, pelo que não faz sentido falar em prescrição dos direitos da Autora.

     Nestes termos, e nos mais de Direito, deve ser reconhecida a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, com as legais consequências.
    
     Sem prescindir e subsidiariamente, deve o acórdão proferido ser revogado e proferida decisão que ordene a reversão do edifício para os herdeiros da Condessa da ..., com todas as legais consequências.

\        Apreciação
Duas são as questões em que, grosso modo, se resumem as razões do presente recurso.
A primeira é a da nulidade do acórdão recorrido por recusa da Relação de apreciação da impugnação da matéria de facto:

Escreveu-se, a este propósito, no acórdão recorrido:
O caso julgado consiste na insusceptibilidade de impugnação - por meio de reclamação ou através de recurso ordinário - de uma decisão, decorrente do seu trânsito em julgado (art° 677 do CPC). O caso julgado traduz-se, por isso, na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão - por qualquer tribunal, mesmo, portanto, por aquele que a proferiu - por força da insusceptibilidade da sua impugnação, por reclamação ou recurso ordinário.
O caso julgado é, evidentemente, uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social. O caso julgado é, por isso, uma expressão dos valores de segurança, da certeza e da confiança que são imanentes a qualquer ordem jurídica, constituindo, aliás, um princípio constitucional implícito»
“Quando de pronunciou sobre o a decisão de facto, independentemente da ordem recursiva em que o fez o anterior Acórdão conheceu em segundo grau da matéria de facto, formando-se caso julgado sobre tal matéria, não podendo agora ser reaberta.

A partir destas considerações, a Relação – que, depois de apreciar a impugnação da matéria de facto, anulara o primeiro julgamento por este configurar uma decisão-surpresa (alicerçada em fundamento não discutido) - quando os autos lhe subiram, de novo, em recursos interpostos da sentença proferida na sequência daquela anulação, recusou reapreciar a decisão sobre a matéria de facto.
Há que concordar com esta posição, mas não com os fundamentos invocados.
Com efeito, em sede de matéria de facto não há verdadeiro caso julgado no sentido de decisão imutável e definitiva (entenda-se caso julgado formal, válido apenas no próprio processo).
Basta atentar no preceituado no art. 712º nº 4 CPC quando admite, em repetição do julgamento na 1ª instância subsequente à anulação determinada pela Relação, a pronúncia sobre pontos da matéria de facto não impugnados (se bem que apenas para evitar contradições da matéria de facto) e quando, independentemente de impugnação da matéria de facto, admite que a Relação anule o julgamento se entender que a matéria de facto enferma de deficiências, obscuridades ou contradições ou quando ordene a ampliação da mesma se a entender  indispensável para a decisão da causa.
E, se bem que a decisão sobre a matéria de facto seja, em princípio, inimpugnável perante o STJ, também decorre do art. 729º nº3 CPC nítido compromisso da natureza de caso julgado da decisão sobre a matéria de facto, quando se prescreve a possibilidade de o STJ, uma vez fixado o regime jurídico aplicável, entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada.
Logo, a decisão proferida sobre a matéria de facto não constitui caso julgado formal, impeditivo de posterior alteração.
Não significas isto, porém, que por isto e apenas por isto e se nenhuns elementos novos forem trazidos ao processo, tal decisão mereça ser desconsiderada pelo mesmo Tribunal que a proferiu.
Com efeito, relativamente ao julgamento da matéria de facto, a Relação pronunciou-se no acórdão anterior, apreciando as impugnações que contra ele foram deduzidas.
Tal julgamento não fica prejudicado pelo desfecho que a mesma Relação veio a dar, no mesmo acórdão, à questão de direito, maximé, quando entender sobrestar neste por violação do princípio do contraditório quanto ao fundamento invocado na sentença recorrida para a decisão da questão de direito e deve ser acatado, quer pela 1ª instância (por elementares razões relacionadas com a hierarquia dos tribunais) quer pela Relação, se nenhuns elementos de prova ou de facto forem entretanto aduzidos (por compreensíveis e óbvios motivos de coerência de julgamento).
Por conseguinte, ao recusar reapreciar a impugnação da matéria de facto que já fora objecto de pronúncia no acórdão anterior, a Relação não cometeu qualquer nulidade.
Note-se, contudo, que, por manifesto lapso, a matéria de facto considerada provada no acórdão recorrido inclui um facto que no anterior acórdão, a Relação havia julgado conclusivo, considerando-o por isso não escrito e logo, devendo ser desconsiderado.
É a resposta dada pela 1ª instância à questão colocada no nº7 da Base Instrutória (e que foi enunciada sob o nº 24 da matéria de facto provada): “A primeira ré teve que vender o imóvel para manter o objectivo fundamental da associação..”.
Esta afirmação, por constituir, no entender da Relação, um juízo de valor conclusivo, deve ser considerada não escrita.
Estando a decisão sobre a matéria de facto excluída do objecto do recurso de revista, não podendo o STJ alterar a que foi proferida pela Relação ou a que a Relação aceitou como tal, salvo os casos previstos no nº2 do art. 722º CPC (porque nestes está em causa um erro de direito e não um erro de facto fundado em incorrecta apreciação das provas produzidas), daí se segue que não compete ao STJ censurar o julgamento da Relação em sede de matéria de facto: a fixação dos factos materiais da causa compete à Relação e deve ser acatada pelo STJ a quem, uma vez fixados os factos, cabe fixar o regime jurídico aplicável.
Por conseguinte, improcede a arguida nulidade.

Passemos agora à questão nuclear da presente revista e que consiste em determinar se, perante um legado pio sujeito a condição resolutiva, esta se verificou e quais as respectivas consequências.
Antes de mais, importa salientar que o preceituado no art. 2280º CC que remete a regulação dos legados pios para legislação especial, pouca valia traz ao caso sub Júdice, salvo quanto à delimitação conceitual do que sejam legados pios.
Com efeito, só em 1953, com os DLs nº 39449 e 39450 de 24-11-1953 é que surgiram os primeiros diplomas sobre legados pios, muito embora o respectivo recorte conceitual já estivesse doutrinalmente elaborado com inequívoca origem religiosa, visando conciliar disposições patrimoniais com actos de piedade cristã.
Assim, Coelho da Rocha classificava como legados pios todos aqueles em que o testador teve em vista expressar a sua devoção ou piedade, como os sufrágios por sua alma ou pela de outra pessoa, deixas a igrejas ou a estabelecimentos de instrução on beneficência (cfr. Instituições de Direito Civil Português, II, p. 555).

O Código Civil de 1867 também não definiu o conceito, muito embora no seu art. art. 1775° aludisse a deixas para sufrágio per alma e no art. 1886.° a legado para obras pias.
E Cunha Gonçalves, a propósito deste art. 1886°, referia a dupla natureza, simultaneamente laica e religiosa, que resultava da beneficência (filantropia) e da caridade cristã (virtude teologal) que se confundiam no legado pio (cfr. Tratado de Direito Civil, X, 93).

O DL nº 39449 citado procurou consagrar normativamente essa dupla finalidade dos legados pios; assim, no seu art. 1º define legados pios como “todos aqueles em que o testador tenha manifestado a sua devoção destinando-os a fins religiosos ou à criação, manutenção ou desenvolvimento de obras de assistência, previdência e educação on a fins análogos, bem como os encargos de natureza idêntica instituídos em qualquer instrumento público”.

Por sua vez, o DL nº 43209 de 10-10-1960, veio alterar a redacção de algumas disposições daquele diploma, a começar pelo art. 1º (definição de cegados pios) por entender, quanto a este, como se lê no respectivo preâmbulo, “conveniente adoptar definição de «legados pios» mais ampla, de modo a abranger, inequivocamente, todas as deixas com qualquer das finalidades nele referidas”.

Assim, segundo o art. 1º na nova redacção, “consideram-se legados pios todas as deixas destinadas a fins religiosos ou à criação, manutenção ou desenvolvimento de obras de assistência, previdência e educação ou a fins análogos, bem como os encargos de natureza idêntica, instituídos em qualquer instrumento público”.

Trata-se de matéria permeável à evolução das concepções políticas, sociais, religiosas e morais e que, por isso, se remete para legislação especial (cfr. Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol, VI, p. 439).

         Mas, como observa o Prof. Oliveira Ascensão no parecer junto aos autos, “os legados pios não deixam, por essa qualificação, de estar sujeitos ao Código Civil. Aplicam-se os preceitos do Código em tudo o que não estiver diferentemente regulado na «legislação especial»”.
Ora, sabendo-se que o legado pode ser sujeito a condição resolutiva (art. 2229º CC), é, na verdade, a esta questão que se reconduz o litígio no presente pleito, ou seja, saber se se verificou o evento de que dependia a cessação dos efeitos do legado:
- a Autora e ora recorrente entende que, com a cessação da actividade que a 1ª Ré vinha prosseguindo no imóvel legado e subsequente alienação deste, se verificou a condição resolutiva aposta ao legado, devendo o imóvel reverter para os sucessores da testadora;
- as RR, por sua vez, no que foram acompanhados pelo acórdão recorrido, defendem que a condição resolutiva era, não a cessação da actividade no prédio, mas a cessação da actividade da legatária na vila de “Cintra”, facto este que não ocorreu.
A decisão do problema normativo assim colocado pressupõe a prévia interpretação do testamento.
Prescreve o art. 2187º CC no seu nº1, que “na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-.à o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento” acrescentando o nº2 que “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”.
A interpretação do testamento assenta, portanto, numa perspectiva subjectivista, ao invés da objectivista que preside à dos negócios inter vivos (art. 236º nº1 CC).
Compreende-se:
Nestes últimos estamos perante, pelo menos, duas partes e as respectivas declarações negociais, sendo bilaterais, são também receptícias; logo, há que atender aos interesses dos destinatários e à interpretação que estes fazem daquelas; assim, vale a vontade manifestada tal como é justificadamente compreendida e interpretada pelo destinatário (teoria da impressão do destinatário).
Tal não acontece no testamento em que a declaração é unilateral; aqui não há destinatário directo e imediato cujo interesse deva ser protegido; a declaração deve valer de acordo com a vontade do testador.
Dito de outro modo: enquanto ali estamos perante, pelo menos, duas partes em conflito de interesses, propugnando cada uma delas interpretações contraditórias ou divergentes das declarações negociais de que são reciprocamente declarantes e destinatários, no caso do testamento, sendo a declaração sempre unilateral, importa averiguar o entendimento e, por via deste, a vontade do respectivo autor.
Significa isto que não há conflito entre os sujeitos da relação sucessória, a saber, entre o de cujus, por um lado, e o herdeiro ou legatário, por outro (sem prejuízo, porém, de tal conflito vir a deflagrar entre os herdeiros ou entre os herdeiros e os legatários).
Nas palavras de E. Betti, a propósito de testamentos, “a meta principal da interpretação é, aqui, o pensamento do disponente, ainda que não se encontre exprimido de maneira adequada na declaração, desde que coincida, univocamente, com ela, e resulte de circunstâncias exteriormente reconhecíveis, no círculo social do disponente, mercê de ilações tiradas da experiência comum” (cfr. Teoria Geral do Negócio Jurídico, tomo II, 1969, p. 304).
Todavia, tratando-se o testamento de um acto formal, solene, objectivado num texto, não pode a interpretação prescindir deste elemento objectivo que funciona como seu ponto de partida.
Relevam, para apurar e reconstituir a vontade do autor do testamento, não só o respectivo texto, mas também quando se entenda que ele não manifesta correcta ou integralmente a sua vontade (e para que estes vícios sejam eliminados) o respectivo contexto à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, ou seja, começando pelo significado que ele atribuía às designações e expressões utilizadas e continuando pela sua maneira pessoal de ver e de encarar os problemas (as deixas testamentárias procuravam sempre solucionar problemas…), as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e religiosos), em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento, para concluir por “descobrir” a vontade expressa do testador.
Ou, como entendeu o STJ em acórdão de 17-04-2012 Cons Alves Velho, acessível através de http://www.dgsi.pt e acedido em 05-04-2013), a interpretação do testamento “de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura.
São estes os factos susceptíveis de prova complementar, relevantes para esclarecer o contexto do testamento a que se refere o nº2 do art. 2287º CC.    
É nisto que consiste a interpretação do testamento.
Portanto, há que atender à intenção do testador manifestada no texto e no contexto do testamento, porque, como refere o Prof. Oliveira Ascenção, o testamento não é apenas o seu texto, é também o contexto; e estando o texto objectivado no instrumento escrito que só por si constitui prova, já para a averiguação daquela e deste último é lícito recorrer a meios extrínsecos e complementares de prova que não colidam frontalmente com o texto.
Aqui chegados, a interpretação da vontade real do testador converte-se numa:
- questão de direito se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, é uma questão de direito de que o STJ pode conhecer;
- questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, sem prejuízo, contudo, do Supremo poder sindicar, nos termos do art° 2187° n° 2 do C. Civil, da correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento (cfr. Ac STJ de 25-11-2004, Rel. Bettencourt de Faria), disponível através de http://www.dgsi.pt).
No caso em apreço, a declaração testamentária controvertida é do seguinte teor:
"Lego à Junta Nacional Portuguesa da Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas o edifício que possuo no Arrabalde de Cintra, conhecido pelo nome de Hotel e com este uma porção de terreno situado nas trazeiras do edifício referido, dividido por um muro (parte do qual está agora em construção) de uma outra área de terreno situado nas trazeiras do prédio anexo (...) E este legado sujeito à condição de continuar no exercício das suas funções a Junta Local da acima referida associação, na Vila de Cintra e, sendo esta Junta Local dissolvida, reverterá este legado a favor de qualquer outra instituição de beneficência que esteja livre de qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie, instituição esta que será escolhida por sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca de acordo com o meu herdeiro ou seus sucessores. A todo o tempo se a mencionada interferência se der ou queira dar-se por parte das autoridades governativas, ou por qualquer forma, na instituição assim escolhida, ou mesmo no exercício das funções da obra caritativa no dito edifício, ou o Hotel, se acha hoje instalada, então reverterá este legado a favor do meu herdeiro ou dos seus sucessores..."

A testadora manifestou claramente a sua vontade de fazer suceder, por sua morte, na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em causa a Junta Nacional Portuguesa da Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas.
Mas sujeitou essa sucessão a uma condição: a de a Junta Local de Sintra daquela Associação Católica Internacional das Obras de Protecção às Raparigas continuar no exercício das suas funções na “vila de Cintra”; portanto, se a condição era a continuação da Junta Local no exercício das suas funções na vila de Sintra, deve entender-se que, à data da outorga do testamento, essa Junta Local já exercia actividade em Sintra, quiçá no imóvel legado.
Note-se: na vila de “Cintra” e não no imóvel legado…
Previu a testadora ainda duas hipóteses:
* a dissolução da referida Junta Local: neste caso, “reverterá este legado a favor de qualquer outra instituição de beneficência que esteja livre de qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie, instituição esta que será escolhida por sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca de acordo com o meu herdeiro ou seus sucessores”;
* a interferência efectiva ou potencial das autoridades governativas por qualquer forma na instituição escolhida na sequência da dissolução da Junta Local ou  na obra caritativa prosseguida no edifício: neste caso, “reverterá este legado a favor do meu herdeiro ou dos seus sucessores”..

Não previu a testadora a cessação da actividade no imóvel nem a alienação deste pela beneficiária do legado.
Ou seja, a vontade expressamente manifestada pela testadora no instrumento notarial não contemplou esta hipótese.
E não consta da matéria de facto provada – cujo ónus competia à Autora e recorrente - qualquer facto que, complementar e extrinsecamente, aponte nesse sentido de, de acordo com a vontade da testadora, relevar a cessação da actividade no edifício legado e a alienação deste por parte da beneficiária do legado.
À luz da vontade expressa, manifestada no testamento, a testadora não “quis” a reversão do imóvel para os seus sucessores nem para qualquer outra instituição de beneficência nesse caso de cessação da actividade no imóvel e de alienação deste pela beneficiária do legado.
É legítima a interpretação de que a cessação de actividade no imóvel e a alienação deste funcionavam como condições resolutivas tácitas do legado, pois a sua disposição a favor de uma instituição de beneficência só é, em regra, compreensível para afectação aos fins desta.
E, de facto, o imóvel esteve afecto pela legatária à prossecução dos seus fins até 1992, cerca de 70 anos, pelo menos.
Ora, a testadora não podia ignorar que os prédios carecem periodicamente de obras de conservação cujo valor pode ser muito superior ao valor do próprio prédio; logo que, a prazo mais ou menos longo, a legatária poderia ser confrontada com tal problema e concluir que, nesse caso, mais lhe valia vender o prédio e aplicar o produto do respectivo preço na sua actividade.
Todavia, não deu a conhecer, manifestando expressamente, a sua vontade ou seja, a sorte do legado nesta hipótese: para ela era decisivo e determinante para a subsistência incólume do legado que a Junta Local da entidade beneficiária prosseguisse a sua actividade “na vila de Cintra” não necessariamente no prédio em causa…
Logo, quanto a nós, aquela condição resolutiva tácita cuja aceitação pelo STJ – a quem está vedado interferir na matéria de facto - é discutível por assentar em presunções de facto (a que o STJ não pode, por via de regra, recorrer), a ser considerada, sê-lo-à apenas no curto prazo (após o decesso da testadora), nunca num prazo de cerca de 70 anos…
Pelo que, sem necessidade de mais delongas interpretativas – in claris non fiat interpretatio – podemos concluir, face à referida vontade expressa manifestada, pela inverificação da condição resolutiva de que dependia a cessação de efeitos do legado.
Previu a testadora também, é certo, a reversão do prédio legado no caso de interferência ou possibilidade de interferência da autoridade governamental e administrativa na actividade ou na Associação beneficiária.
E a Autora e recorrente equipararam a essa interferência ou ameaça de interferência a intervenção da Câmara Municipal de Sintra iniciada com a notificação n° 6.043/95, ou seja, as diligências prosseguidas com vista a obras nos imóveis em mau estado de conservação inseridos na Vila de Sintra, entre os quais se incluía o prédio em causa, solicitando uma vistoria, para depois ordenar as obras que resultassem necessárias.
Consequentemente, insiste a recorrente que essa actuação da Câmara Municipal configurava uma interferência ou ameaça de interferência na vida e na actividade da Associação, como já foi entendido pela sentença de 1ª instância.
Não lhe assiste, porém, qualquer razão.
Sobre esta questão, louvamo-nos nas seguintes considerações expendidas no acórdão recorrido:

“xxiv) O primeiro grau entendeu, a propósito, que constitui interferência relevante, para efeitos de reversão do legado, a notificação feita à Ré através do processo de notificação n.° 6.043/95 da CMS das diligências prosseguidas por aquela com vista a obras nos imóveis em mau estado de conservação inseridos na Vila de Cintra , nesse se incluindo o «Hotel» , solicitando uma vistoria para depois ordenar as obras que resultassem necessárias.
xxv) Ora, não se pode falar em interferência relevante, pelo menos com o sentido que parece resultar do testamento.
xxvi) Como afirma Oliveira Ascensão, no parecer junto aos autos «no caso não há «interferência» na obra. Que é o objecto da cláusula. Há interferência no prédio. É completamente diferente. Como vimos, a cláusula tem em vista a independência da obra. Aqui, não há nada que traduza da parte da Câmara Municipal de Sintra interferência ou intenção de interferência na actividade da Associação.
E além disso desfigura-se completamente o sentido da cláusula. Vimos, e não poderia deixar de ser, que a cláusula tem em vista prevenir interferências político - ideológicas, que ao tempo havia todos os motivos para recear.
Confundir isso com uma providência administrativa normal, sem nenhum cariz ideológico porque compatível com todos os regimes, representa um jogo de imaginação que o direito não pode tolerar.
E estava em causa o mero exercício das funções correntes das autarquias locais, nomeadamente no que respeita à conservação dos imóveis.
Nem o texto, em o contexto, nem o circunstancialismo histórico do testamento, nem a intenção da testadora que de tudo ressalta, são minimamente respeitados com semelhante conclusão.
Pelo que somos de parecer que esta decisão é gravemente contra-direito» (fls 1168).
xxvii) Entendemos , pois, que inexiste qualquer razão para a reversão do legado (com consequente improcedência da acção)”.

Concordamos.
A cláusula de reversão fundada em interferência governamental ou administrativa deve ser interpretada e compreendida à luz do clima político-ideológico dominante no tempo da feitura do testamento, marcadamente anti-clerical e hostil à Igreja Católica e às suas actividades e organizações de beneficência (nas quais se incluíam a obra assistencial e caritativa da legatária); em suma, para cabal entendimento da cláusula de reversão o intérprete deve atender ao contexto político, social e religioso em que foi outorgado o testamento, contexto esse activamente criado e fomentado pelo poder político então vigente, mas há muito ultrapassado na sociedade portuguesa.
Logo, a cláusula de reversão fundada em interferência político-governativa perdeu, em grande parte, a sua força e relevância, por cessação dos pressupostos que a determinaram; não obstante a expressão “qualquer interferência governativa ou de qualquer outra espécie” não legitimar, aparentemente, interpretação restritiva, é óbvio que a testadora tem em mente as interferências de natureza político-ideológica do Estado ou da Administração Pública (quando não mesmo de perseguição) na actividade das associações privadas de natureza religiosa, sobretudo as ligadas à Igreja Católica, tão frequentes na 1ª República e que legitimavam uma activa desconfiança e mesmo hostilidade das pessoas e sectores religiosos.
Aliás, tendo em conta as competências legalmente atribuídas aos Municípios, designadamente em matéria urbanística e de polícia das edificações, é discutível a legalidade de tal cláusula na interpretação preconizada pela recorrente (cfr., por exemplo, os artigos 89º e segs do DL nº555/99 de 16 de Dezembro sobre a obrigatoriedade de obras de conservação de edifícios e a sua imposição camarária).
Os interesses prosseguidos pelo Município de Sintra com a actuação desenvolvida relativamente ao prédio relacionavam-se com a segurança deste e nada têm a ver com a actividade que nele é (era) desenvolvida; a actuação do Município não pode ser equiparada à do “mata-frades” da 1ª República (para utilizar a terminóloga feliz do Prof. Oliveira Ascensão)...
Por outro lado, esta actividade caritativa e de beneficência, apesar de prosseguida por entidade ligada à Igreja Católica, não excluía uma supervisão administrativa mais ou menos vincada por parte da Administração e, como escreveu o Prof. Oliveira Ascenção no parecer junto aos autos “a testadora nunca teve pretensão de estar isenta da supervisão administrativa” tal como “nunca considerou interferência os gravames administrativos normais que recaem sobre os imóveis”.
A interferência camarária seria relevante, como sustenta a recorrente, se, porventura, esta demonstrasse a ausência de fundamento da mesma; por outras palavras, que a mesma não passava de um pretexto para atingir a legatária.
Tal, porém, nem de perto nem de longe resulta dos factos provados.
Assim, não se confundindo a interferência no prédio com a interferência na actividade nele prosseguida, não há que atender a esta cláusula de reversão.
Por conseguinte, face ao teor do testamento, se, como vimos, a cessação da actividade que a legatária prosseguia no edifico e a alienação deste já não preenchiam a condição resolutiva aposta ao legado (porque a Junta Local daquela legatária continua a prosseguir a sua actividade em Sintra), também a notificação camarária para a vistoria do edifício destinada a determinar as obras indispensáveis à sua segurança não pode considerar-se uma interferência político-ideológica na actividade da referida Associação, logo, também não configura a condição resolutiva aposta ao legado.
Aqui chegados, cumpre indagar se, não obstante o texto do testamento não contemplar expressamente, como vimos, a cessação de actividade da legatária no prédio e a alienação deste como condição resolutiva querida pela testadora, é, todavia, possível presumir que, se neles tivesse pensado, a testadora tê-los-ia incluído como condição resolutiva, determinando a reversão do imóvel para os sucessores daquela ou para outra instituição de beneficência a escolher por acordo entre o Patriarcado de Lisboa e os sucessores da testadora; por outras palavras, se, perante esta lacuna de previsão da testadora, é possível colmatá-la, por via da integração do testamento ou, como outros dizem, por via da interpretação integrativa.
Portanto, a questão é a seguinte: Será que se a testadora tivesse previsto a cessação de actividade da legatária no edifício e a posterior decisão de alienação deste teria previsto tais factos como condição resolutiva do legado?
Constitui a omissão de tais factos no testamento uma lacuna?
Parece-nos que não.
Vejamos:
Excluindo as hipóteses de dissolução da legatária e de interferência na sua actividade, a testadora teve o cuidado de expressamente, condicionar a eficácia do legado à continuação da actividade da legatária na “vila de Cintra” e não necessariamente no edifício.
Não é verosímil que, destinando no testamento património imobiliário a favor de instituições de beneficência, não lhe tivesse ocorrido a eventualidade de os beneficiários deixarem (ou terem de deixar) de o utilizar, por qualquer razão atendível (falta de condições de segurança, necessidade de obras de custo elevado, expropriação, etc) e decidirem aliená-lo, gratuita ou onerosamente.
Sobretudo, tendo em conta o pormenor com que regulou algumas das disposições testamentárias e que a revelam como pessoa cuidada e previdente.
Não obstante, nada declarou nestas hipóteses.
E temos para nós não ser possível demonstrar que fosse sua intenção relevar, como condição resolutiva, a referida cessação de utilização e alienação, através do recurso à prova complementar, necessariamente extrínseca ao testamento, a que se refere o nº2 do art. 2187º CC, face ao preceituado na 2ª parte deste preceito: “…não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”.
A testadora indicou, expressamente, as limitações do legado, ou seja, do direito de propriedade que transmitiu, por via sucessória.
Entre estas não incluiu a cessação de actividade no prédio e a alienação deste como condição resolutiva determinante da reversão.
Logo, ainda que, porventura, viesse a ser demonstrada através de prova complementar que na mente da testadora estes factos determinariam a ineficácia do legado e a reversão do imóvel, tais condições não tinham no contexto do testamento qualquer correspondência e, por isso, aquela prova seria ineficaz.
Compreende-se que assim seja, pois não cabe ao intérprete nem ao aplicador “criar”, ainda que por via interpretativa e/ou integrativa, condições resolutivas da sucessão testamentária que o testador silenciou.
E só por via interpretativa do testamento se poderia integrar a lacuna de previsão daquelas condições resolutivas; esta interpretação integrativa do testamento poderia estribar-se no art. 2187º CC, por analogia, nos casos em que a integração fosse possível por verificação do “mínimo de correspondência” no contexto do testamento.
E sendo a vontade expressa no testamento manifesta relativamente a certas condições e omissa relativamente a outras, o silêncio destas não pode ser suprido por via de interpretação integrativa; assim entendeu o STJ, em acórdão de 26-03-1965 (BMJ 145, p. 388 e segs), quando doutrinou que “não pode suprir-se uma declaração de vontade omissa, com fundamento em interpretação do testamento”.
A entender-se diversamente, em breve estaríamos perante disposições testamentárias, umas ditadas pelo testador e outras - se bem que louvando-se na vontade deste – supridas pelo…tribunal, estas, porém, sem a forma legal adequada ….
Ora, o testamento é um acto pessoal ou pessoalíssimo quer quanto à vontade, quer quanto à declaração.
Por conseguinte, está vedado ao tribunal, em sede de interpretação de um testamento – que é um acto formal – integrá-lo com disposições que, ainda que conformes com a vontade do testador, conformidade esta apurada por via presuntiva ou através de prova complementar, não têm qualquer correspondência no contexto do testamento por o testador as haver aí silenciado.
A vontade do testador tem um limite formal intransponível: a correspondência mínima com o contexto; como entendeu este STJ em acórdão de 17-12-2012: “Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal
Na ausência de prova complementar, a determinação da vontade real do testador passa pela interpretação do testamento e constitui uma questão de direito, susceptível de ser apreciada em recurso de revista pelo STJ.
E neste caso se o testador estipulou certos factos como condições resolutivas e não outros, não pode o tribunal, maxime o STJ, integrar, isto é, completar, por via interpretativa, o testamento por forma a “alargar” essas condições a outros factos não expressamente previstos (ainda que, porventura, reconheça a verosimilhança da conformidade destes com a vontade do testador).
A natureza formal e eminentemente pessoal do testamento constitui um obstáculo intransponível a que o intérprete ou aplicador do Direito adicione ou complete o conteúdo do testamento; logo, não é lícito ao tribunal, a pretexto da interpretação e integração do testamento, suprir essas lacunas de previsão, presumindo ou forjando uma intenção testamentária não expressamente exteriorizada com elementos estranhos à declaração do testador,
A integração (ou interpretação integrativa) da declaração testamentária justificar-se-à apenas para assegurar a eficácia e os modos de execução da vontade manifestada, não para a substituir nem para lhe acrescentar algo que se ignora se foi ou não querido pelo testador (cfr. Oliveiras Ascenção, Direito das Sucessões, 1989, p. 308; Puig Brutau, Compêndio de Derecho Civil, vol. IV, 1991, p. 388).
A interpretação testamentária deve nortear-se pela intenção do testador, mas em conformidade com os termos do testamento; o art. 2187º não preceitua que deva presumir-se no testador uma vontade que ele não manifestou, maxime uma condição que o testador não manifestou querer e, por isso, não contemplou.
O já citado acórdão deste STJ de 1\7-04-2012 entendeu, a este propósito, que “esgotado o processo interpretativo, as declarações negociais do testador não podem ser objecto de integração, por ampliação, se a cláusula não prevista corresponder a uma adição de previsão factual que não encontra correspondência na vontade expressa no contexto do testamento.

Por conseguinte, nem da letra nem do espírito do testamento se retira que a cessação de actividade prosseguida pela legatária no edifício legado e a decisão de alienar este constituam condições resolutivas do legado.
Pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido.

ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
         Custas pela recorrente.
        Lisboa e STJ,08-05-2013
        Os Conselheiros

Fernando Bento (Relator)
João Trindade
Tavares de Paiva