Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1284/12.7TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ARRENDAMENTO COMERCIAL
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
DEVERES LATERAIS OU ACESSÓRIOS
BOA FÉ CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / RESOLUÇÃO DO CONTRATO / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO.
Sumário :
I. Resultando da matéria de facto que o locador garantiu ao locatário que existia licença de utilização, válida e actual, para o único fim que consentia ao locatário – criando-lhe, deste modo, a fundada confiança de que se não defrontaria com obstáculos de natureza legal ou regulamentar no início da actividade empresarial perspectivada que pudessem decorrer da falta, invalidade ou insuficiência da referida licença para actividade de prestação de serviços, não pode, sob pena de lesão da boa fé, vir sustentar-se que, afinal, incumbiria ao locatário providenciar pela obtenção da licença de utilização que lhe foi garantido que existia e estava plenamente operativa no momento em que o contrato de arrendamento foi celebrado.

II. O incumprimento contratual pela entidade locadora do dever lateral ou acessório de se assegurar de modo categórico que existia; à data do contrato, licença de utilização firme e actual para o exercício da única actividade empresarial consentida à locatária tem - ao envolver violação da confiança justificadamente depositada na garantia prestada de que a licença necessária existia efectivamente, inviabilizando qualquer utilização lícita do locado enquanto tal licença não fosse obtida - gravidade suficiente para justificar a resolução do negócio.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA construções, Lda., intentou acção declarativa contra BB Unipessoal, Lda., e CC pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe €69.600,00.

Alegou, em síntese, que celebrou, em 29 de Março de 2012, com as rés, nas qualidades de arrendatária e fiadora, um arrendamento comercial sobre uma fracção urbana sita na rua …, sendo o prazo acordado do arrendamento de 5 anos, com início a 1 de Abril de 2012. O locado foi entregue à arrendatária, na pessoa da 2ª ré, sua sócia gerente. Por carta datada de 8 de maio de 2012, a ré resolveu o aludido contrato, o que voltou a fazer por carta datada de 18 de maio de 2012: a autora não aceitou a resolução, tendo enviado, em 24 de Julho de 2012, uma interpelação para pagamento das rendas em atraso, acrescidas de uma indemnização de 50%. Por carta datada de 6 de Setembro de 2012, a ré arrendatária procedeu à entrega das chaves do locado, considerando que o contrato havia cessado: ora, tendo sido acordado entre as partes que estas só poderiam pôr termo ao mesmo através da oposição à sua renovação, a arrendatária encontra-se vinculada ao pagamento das rendas até ao termo do prazo inicial do arrendamento – sendo, assim, devedora de €69.600,00 que a 2ª ré também se obrigou a pagar, enquanto fiadora. 


As rés contestaram, alegando, em síntese, que a ré CC interveio nos autos apenas na qualidade de gerente da ré BB, não se tendo constituído como fiadora. Acresce que, aquando das negociações que precederam a celebração do contrato, a autora assegurou que o local a arrendar possuía uma licença de utilização válida e eficaz que permitia que nele fossem efectuadas as obras necessárias para instalar um estabelecimento de prestação de tratamentos de estética e de saúde. A autora assegurou que a licença de utilização permitiria obter junto das autoridades competentes a autorização para que fossem efectuadas no local arrendado as obras necessárias para nele instalar e licenciar um estabelecimento para aquela actividade económica específica, tendo a ré BB verificado que a legalização demoraria no mínimo 2 a 3 meses. O incumprimento por parte da autora legitimou a resolução do contrato, sendo certo que a ré nunca exerceu qualquer actividade no locado.

Deduziu ainda pedido reconvencional em que peticiona:

a) que seja reconhecida como válida a resolução do contrato de arrendamento formulada pela Ré “BB Unipessoal, Lda.”, com efeitos à data de 29-03-2012;

b) a condenação da Autora a restituir à Ré “BB, Unipessoal, Lda.” a quantia de €2.400,00, pagos a título de rendas, acrescida de juros às taxas comerciais.


A autora replicou , alegando, em síntese, que a ré CC se constituiu como fiadora.

Conforme consta da informação da Câmara Municipal do …, enviada em 9 de maio de 2012, todos os alvarás com data anterior a 2006 que contemplem a actividade de comércio abrangem ainda a actividade de prestação de serviços, na medida em que apenas após aquela data o município passou a autonomizar essa categoria: assim,  tendo sido emitido o alvará, a licença de utilização é eficaz, sendo ainda válida, peticionando, em consequência,  a improcedência do pedido reconvencional.  


Saneado o processo, prosseguiram os autos para julgamento, vindo a ser proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:

Pelo exposto, considero parcialmente procedente a presente ação e condeno solidariamente as rés a pagarem à autora a quantia até hoje vencida de €37.600,00 (trinta e sete mil e seiscentos euros) acrescidos de juros à taxa supletiva legal, contados desde a citação até efetivo pagamento quanto às rendas vencidas até esse momento, e acrescidas de juros à taxa supletiva legal desde o vencimento de cada uma das rendas parciais vencidas (ou da parte delas) após a citação até ao presente, até efetivo pagamento;

Condeno ainda as rés a pagarem solidariamente à autora a quantia de €400 (quatrocentos) mensais até Maio de 2016 e a quantia de €200 (duzentos) mensais após esta data e até à renda referente a Março de 2017.

Considero improcedente o pedido reconvencional deduzido e dele absolvo a autora.


2. Inconformadas, as RR. apelaram, tendo a Relação começado por enunciar a matéria de facto fixada:


Com data de 29 de março de 2012 foi celebrado um contrato de arrendamento, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 160 a 163 dos autos. 

A) Com data de 8 de maio de 2012, ré BB, Lda., enviou à autora uma carta com a epígrafe “Rescisão de contrato de arrendamento”, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 14 e 15.

B) Por carta datada de 11 de maio de 2012, a autora respondeu à carta referida em B), nos termos e com o conteúdo constante a fls. 16 e 17 dos autos. 

C) Com data de 18 de maio de 2012, a ré CC enviou um mail nos termos e com o conteúdo constante de fls. 19 a 21. 

D) Por carta datada de 21 de maio de 2012, a autora, por intermédio de advogado, respondeu ao mail referido em D), nos termos e com o conteúdo constante a fls. 22 e 23. 

E) Em 24 de julho de 2012 a autora procedeu ao envio de uma interpelação para pagamento de rendas, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 28.

F) Por carta datada de 6 de setembro de 2012, a ré BB procedeu à entrega das chaves do locado, nos termos constantes da carta junta a fls. 29. 

G) Na sequência de um contacto com o Gabinete do Munícipe da Câmara Municipal do …, datado de 6 de agosto de 2012 e nos termos e com o conteúdo constante a fls. 57 e 58, o engenheiro civil encarregado pela ré de efetuar as obras recebeu a resposta constante a fls. 57, onde é referido nomeadamente que “os pressupostos que levaram à emissão do referido alvará de utilização (94/2004) já não se verificam, por consequência das alterações ao projeto aprovado, pelo que o mesmo perdeu a sua eficácia e no término do processo de licenciamento de obras terá que ser solicitada a emissão de novo alvará de utilização que visa verificar a conclusão da operação urbanística e a conformidade com o projeto aprovado”.

H) Com data de 4 de maio de 2012 foi solicitado ao Gabinete do Munícipe da Câmara Municipal do … que esclarecesse, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 86 e 87, se o alvará de utilização nº 94, de 12 de maio de 2004, contempla a utilização do imóvel para a atividade de tratamentos de estética e saúde, pedindo a confirmação da exatidão da informação prestada por telefone de que a autorização para fins de comércio, sendo anterior a 2006, abrange ainda a prestação de serviços, categoria que só ulteriormente se autonomizou, tendo o Gabinete do Munícipe, por comunicação de 9 de maio de 2012, reiterado a informação prestada pelo serviço de atendimento telefónico, nos termos constantes a fls. 86.

I) Por esclarecimento datado de 14 de outubro de 2013, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 145 a 147, o Departamento Municipal de Jurídico e Contencioso concluiu, além do mais que “Para efeitos de verificação da legitimidade (isto é, para efeitos da análise sobre se uma alteração de uso consubstancia uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal) considera- -se que as frações que possuam alvará emitido para a atividade genérica de comércio até fevereiro de 2006 podem ser utilizadas para restauração ou bebidas, bem como para outras atividades de serviços, sem que seja necessário alterar o título constitutivo da propriedade horizontal. 2 – Sem prejuízo do referido no ponto anterior, uma vez que são distintos os parâmetros urbanísticos definidos no Plano Diretor Municipal do … para os estabelecimentos de comércio e para os estabelecimentos de serviços, os alvarás de utilização com data anterior a 2006 que contemplem a atividade de comércio não abrangem, do ponto de vista urbanístico, a atividade de prestação de serviços, pelo que para que atualmente um determinado espaço possa ser validamente utilizado para este fim, impõe-se a prévia apresentação, no Município, de um pedido de autorização de alteração de utilização. 3 – O critério para aferir sobre a necessidade de submeter uma nova utilização a prévia autorização de utilização é o de verificar se a nova utilização implica ou não a verificação de novos parâmetros urbanísticos.”.

J) Por informação datada de 16 de janeiro de 2014, na sequência de pedido deste Tribunal solicitando informação sobre se o imóvel sito na Rua …, 3…, fração D, possuía alvará de utilização que permitisse a atividade de tratamentos de estética, foi respondido pelo Departamento Municipal de Gestão Urbanística, nos termos constantes a fls.174 que “face à consulta dos antecedentes e sistema informático, é possível informar que o imóvel em questão foi edificado ao abrigo da licença de obras 37 de 1988, tendo sido emitido alvará de autorização de utilização nº 94/2004, para a fração D, sendo a utilização permitida a de comércio. Não foi detetado nenhum outro processo, com vista a obter uma nova autorização de utilização específica para estética, pelo que somos levados a concluir que o imóvel não possuía utilização para esse fim.”.

K) Na sequência de pedido de informação deste Tribunal solicitando informação sobre se o imóvel sito na Rua de …, 3…, fracção D, possuía alvará de utilização que permitisse a atividade de tratamentos de estética e, em caso negativo, quais os procedimentos a efetuar pela eventual arrendatária em 29 de março de 2012 para a obtenção de licenciamento para a atividade de tratamento de estética e saúde, com relação àquela fração, o Departamento Municipal de Gestão Urbanística da Câmara Municipal do … respondeu em 24 de fevereiro de 2014, nos termos constantes a fls. 190, que “Conforme mencionado na informação I/143103/13/CMP, face à consulta dos antecedentes e sistema informático, é possível informar que o imóvel em questão foi edificado ao abrigo da licença de obras 37 de 1998, tendo sido emitido alvará de autorização de utilização nº 94/2004, para a fracção D, sendo a utilização permitida a de comércio. Não foi detetado nenhum outro processo, com vista a obter uma nova autorização de utilização específica para estética, pelo que somos levados a concluir que o imóvel não possuía utilização para esse fim. À data referida, 29 de março de 2012, encontrava-se ainda em vigor o Decreto-Lei nº 259/2007, de 17 de julho, pelo que para licenciar a atividade pretendida, o requerente deveria ter apresentado a declaração prévia prevista no artigo 4º do Decreto-Lei nº 259/2007, de 17 de julho. O referido decreto-lei manteve-se válido até 3 de junho de 2013, altura em que entrou em vigor o Balcão do Empreendedor, e que permitiu operacionalizar o Decreto-Lei nº 48/2011, de 1 de Abril (Licenciamento Zero). Mais se informa que atualmente, a referida atividade enquadra-se no CAE 96022 (Institutos de Beleza), devendo o seu licenciamento ser efetuado ao abrigo do Decreto-Lei nº 48/2011, de 1 de Abril (Licenciamento Zero).”.

L) O mediador imobiliário DD garantiu à ré, na fase das negociações do contrato, que o locado dispunha de licença de utilização para serviços.

M) Na sequência do contrato celebrado entre as partes a ré pagou à autora €2.400,00.

N) Em 2 de maio de 2014 a autora celebrou com “EE Unipessoal, Lda.” um contrato de arrendamento nos termos e com o conteúdo constante de fls. 457 a 459 verso, relativo ao mesmo locado referido em A), onde, além do mais, foi estipulado na cláusula 5ª que durante o primeiro ano, até ao mês de maio de 2015, a renda mensal será de €600; durante o segundo ano, até ao mês de maio de 2016, a renda mensal será de €800; durante o terceiro ano, até ao mês de maio de 2017, a renda mensal será de €1.000.


*


Foram considerados não provados, dos factos alegados com relevância para a decisão da causa: os demais alegados, designadamente que estejam em contradição com os dados como provados, nomeadamente 

O) Que a autora tenha assegurado à ré que o estabelecimento poderia abrir em 5 semanas;

 Que a ré tivesse a intenção de abrir o estabelecimento no prazo máximo de 5 semanas.  


3. Passando a apreciar as questões que integravam o objecto do recurso – e após ter entendido que se não verificava a nulidade do contrato invocada pela recorrente e que a 2ª R. detinha legitimidade, na veste de fiadora - considerou-se no acórdão recorrido:

O nº 1 do artigo 1070º do C. Civil dispõe que o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestado pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.

 A necessidade da licença de utilização para o fim pretendido no contrato surge reiterada no nº 1 do art. 5º do DL nº 160/2006, de 08-08 – diploma que regula os elementos do contrato de arrendamento e os requisitos a que obedece a sua celebração. O nº 4 do mesmo artigo 5º estatui que a mudança de finalidade deve ser previamente autorizada pela Câmara Municipal. A inexistência daquela licença de utilização, por causa imputável ao senhorio, acarreta a prática de uma contra- ordenação (n.º 5) e faculta ao arrendatário a possibilidade de resolver o contrato (nº 7 do mesmo artigo 5º).

O termo “rescisão”, usado na comunicação de 08-05-2012 por “BB Unipessoal, Lda.” equivale a resolução do contrato (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª ed., 2002, p. 381).

Na carta em que respondeu àquela em que lhe tinha sido comunicada a “rescisão” do contrato (facto C), alegava a Autora que não existindo incumprimento da sua parte o contrato não podia ser resolvido unilateralmente. Na carta de 21 de Maio de 2012 (facto E) a Autora novamente sustentava que o contrato não podia ser resolvido unilateralmente por não existir qualquer fundamento válido.

A resolução analisa-se na destruição da relação contratual operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato (Antunes Varela, Obrigações, II, 5.ª ed. 1992, p. 273). Como acto unilateral receptício tornou-se eficaz logo que chegou ao conhecimento da locadora (artigos 436º, n.º 1 e 224º, nº 1, do C. Civil) não carecendo do consentimento desta para produzir efeitos.

A sociedade arrendatária tinha fundamento legal para resolver o contrato, porquanto o local arrendado se destinava ao exercício de uma actividade económica no sector dos serviços – o que era do conhecimento da locadora, pois tal finalidade ficou clausulada no contrato - sem que a licença de utilização existente o permitisse.

O pedido da Autora, referente ao pagamento das rendas correspondentes aos cinco anos previstos para a duração do contrato, tinha subjacente a falta de fundamento para a resolução e a manutenção do arrendamento por aquele período. Considerando-se cessada a relação locatícia por efeito da resolução, aquele pedido terá que improceder, na parte que excede as rendas respeitantes ao período em que a locatária teve o gozo do locado.


Em reconvenção peticionava a Ré “BB, Unipessoal, Lda.” a condenação da Autora a restituir àquela demandada a quantia de €2.400,00 – correspondente ao valor que entregou à locadora a título de rendas – acrescida de juros, contados desde 08-05-2012, às taxas comerciais.

O contrato de arrendamento é de execução continuada, pelo que a resolução não abrange as prestações já efectuadas (art. 434º, nº 2, do C. Civil), não se justificando que o senhorio não receba as rendas correspondentes ao período em que o arrendatário teve o gozo do prédio (neste sentido: Prof. Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 4.ª ed., 2010, pp. 147/148). Assim, o pedido reconvencional improcede, consoante o decidido na sentença recorrida.

As chaves do locado foram remetidas através da carta datada de 6 de Setembro de 2012 (facto G). Até essa data a locatária teve o gozo do locado, devendo pagar a renda correspondente (cinco meses e 6 dias), no valor de €6.240,00. Como pagou €2.400,00 (facto N), encontra-se ainda devedora da quantia de €3.840,00.


Pelos fundamentos expostos, na parcial procedência da apelação, condenam-se as Rés a pagarem solidariamente à Autora a quantia de €3.840,00 (três mil oitocentos e quarenta euros), acrescidos de juros, à taxa legal, contados desde a citação até ao pagamento.


4. Inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

I. As partes celebraram um contrato de arrendamento comercial, válido por um período de 5 anos.

II. O contrato acima referido versa sobre uma fracção autónoma que corresponde a um estabelecimento comercial, no rés-do-chão de um prédio em regime de propriedade horizontal, com alvará de autorização de utilização n.º 9…/2004.

III. Tal alvará contempla a actividade genérica de comércio e foi validamente emitido em 2004.

IV. Uma vez que apenas posteriormente a 2006 é que o Município de … passou a autonomizar a categoria específica de serviços, a licença acima referida abrange, ainda, a actividade de prestação de serviços, conforme decorre inclusive do Código Regulamentar do ….

V. O senhorio apenas tem o dever de obter licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (como sejam as de comércio ou de habitação),

VI. sendo a obtenção das licenças de utilização para o exercício de uma espécie de actividade daquele género (como sejam os tratamentos de estética ou a restauração) - que podem impor a realização de obras para o efeito - uma obrigação do arrendatário que pretende exercer a actividade específica.

VII. A parte que pretende exercer o direito de resolução do contrato de arrendamento urbano, previsto no artigo 1083.º do CC, deve alegar e provar o fundamento que, "pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento", no termos do disposto no n.º 2 da mencionada disposição legal.

VIII. Da factualidade dada como provada não resultam circunstâncias susceptíveis de preencher qualquer um dos conceitos supra citados.

IX. Do conteúdo do contrato sub judice resulta que as Recorridas sabiam que seria da sua responsabilidade diligenciar no sentido de obter também outros licenciamentos camarários específicos para a actividade que pretendem desenvolver no imóvel,

X. Desta feita, as Recorridas não tinham, nem têm, fundamento legal para resolver o contrato de arrendamento urbano sub judice.

XI. Assim, caberá ao Supremo Tribunal de Justiça corrigir as incorrectas subsunção dos factos e aplicação das regras de direito, levada a cabo no acórdão recorrido,

XII. Porquanto, concluiu pela existência de fundamento para a resolução do contrato quando, na verdade, este não se verifica,

XIII. violando, por conseguinte, os artigos 1070.º n.º 1, e 1083.º, n.º 2, ambos do CC, e 5.º do DL n.º 160/2006 de 8 de Agosto, bem como o artigo B/1-3º do Código Regulamentar do ….

XIV. Por tudo quanto exposto supra, é convicção da Recorrente que o sábio enquadramento jurídico pugnado pelo Mmo. Juiz de Direito, em sede de 1.ª instância, é aquele que se mostra juridicamente adequado à realidade fáctica constante dos autos.

XV. Pelo exposto, deverá a presente revista ser considerada procedente, revogando-se o acórdão ora recorrido, em detrimento da manutenção do sentido decisório sustentado na sentença proferida pela 1.ª instância.

Nestes termos, e nos melhores de direito, se requer a V. Exas. se dignem conceder provimento ao presente recurso, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e, consequente, represtinação da decisão proferida em sede de lª instância nos termos expostos, assim se fazendo a costumada

JUSTIÇA!


As recorridas contra alegaram, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:

1ª- Recorrente e Recorridas celebraram, no dia 29 de Março de 2012, um contrato de arrendamento, tendo, entre outros, convencionado na Cláusula 4ª que o local arrendado se destinava "...exclusivamente ao exercício da actividade de tratamentos de estética e saúde...".

2ª- O mediador imobiliário DD, que interveio na fase das negociações, garantiu à Recorrida BB que o locado dispunha de licença de utilização para serviços.

3ª- A actividade que a Recorrida BB pretendia exercer no locado engloba-se no sector dos serviços, enquadrando-se na Classificação de Actividade Económica (CAE) 96022.

4ª- A Câmara Municipal do … emitido, para o locado, o alvará de utilização n.º 9…/2004, sendo a utilização permitida a de comércio.

5ª- Os pressupostos que levaram à emissão do sobredito alvará não ser verificavam à data da celebração do contrato de arrendamento, em consequência das alteações do projecto aprovado, nomeadamente ao nível da fachada, pelo que o mesmo perdeu a sua eficácia.

6ª- Após conclusão do processo de licenciamento de obras, terá que ser solicitado à autarquia competente a emissão de novo alvará de utilização, com vista a verificar a conclusão da operação urbanística e a conformidade com o projecto aprovado.

7ª- Os alvarás de utilização com data anterior a 2006 que contemplem a actividade de comércio não abrangem, do ponto de vista urbanístico, a actividade de prestação de serviços, impondo-se, para o exercício desta, a prévia apresentação, no Município, de um pedido de autorização de alteração de utilização.

8ª- Nos termos do artigo 1070, n.º 1, do CC, "O arrendamento urbano só pode recair sobre os locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestado pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível".

9ª- Constitui conteúdo obrigatório do contrato de arrendamento, ao abrigo do artigo 2º, alínea e), do RCCAU, "A existência de licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente (...)".

10ª- "Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização." - artigo 5º, n.º 1, do RCCAU.

11ª- A inobservância do disposto na conclusão antecedente, confere ao arrendatário (Recorrida BB) o direito potestativo de resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.

12ª- O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo - artigo 5º, n.º 8, do RCCAU.

13ª- Discutindo as partes recíprocos incumprimentos contratuais, pode e deve o contrato ser declarado nulo, se esta for a solução jurídica que resultar da aplicação das normas jurídicas aos factos jugados provados.

14ª- O locado dado de arrendamento pela Recorrente não dispunha, quer no momento da celebração do contrato de arrendamento, quer no momento da sua resolução, de alvará de utilização válido e eficaz no ordenamento jurídico, por força da desconformidade da alteração da fachada com o projecto aprovado pela Câmara Municipal do …, o que impunha, obrigatoriamente, proceder ao seu licenciamento.

15ª- A inexistência de autorização de utilização equivale a invalidade/nulidade do negócio jurídico celebrado - arrendamento comercial - , quer por força do artigo 294º do Código Civil, quer por aplicação do regime previsto no n.º 8, do artigo 5º do RCCAU, que prescreve que o ".. arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo...".

16ª- Nulidade, esta, típica, pois que permite a sua arguição por qualquer interessado, sem limite de tempo e determina o seu conhecimento oficioso pelo Tribunal.

17ª- A relação de repristinação existente entre as partes, resultante da declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrado, rege-se pelo disposto nos artigos 289º e 290º do CC.

SEM PRESCINDIR:

18ª- A Recorrente declarou afiançou que o imóvel objecto do arrendamento dispunha, especificamente, de alvará de utilização para o exercício da actividade de serviços, reconhecendo a aptidão do locado para o fim a que mesmo seria destinado pela Recorrida BB, declaração negocial, essa, que produzis os efeitos que lhe são próprios e a que a lei lhe atribui, nos termos dos artigos 217º, n.º 1 e 224º do CC.

19ª- Às datas da celebração e da resolução do contrato de arrendamento, o alvará de utilização que a Recorrente tinha na sua posse não permitia a utilização do locado para a actividade a que se destinada, facto que a mesma, atento o seu escopo social, para além de não ignorar, tinha perfeito conhecimento.

20ª- Constitui obrigação do senhorio (Recorrente) garantir ao inquilino (Recorrida BB) a existência de alvará de utilização para o exercício da actividade genérica do locado que, no caso dos autos e segundo o garantido e clausulado no contrato de arrendamento, seria a de serviços.

21ª- Em face da inexistência de qualquer acto administrativo a ordenar a emissão de alvará de utilização para a actividade de serviços, é manifesto que o locado não dispunha do mesmo, porquanto apenas contemplava a actividade de comércio.

22ª- À Recorrida BB, para poder iniciar a sua exploração, bastaria apresentar uma declaração prévia junto do Câmara Municipal do …, responsabilizando-se pelo cumprimento de todos os requisitos adequados ao exercício da actividade, no estrito e integral cumprimento do regime do artigo 4º, da providência legislativa supracitada, não recaindo, sobre ela, qualquer outra obrigação.

23ª- Tratando-se de arrendamento que não respeitou a legislação aplicável em vigor, o legislador atribuiu ao arrendatário os direitos de resolução do contrato e de indemnização, nos termos das disposições dos artigos 1083º do CC e 5º, n.º 7, do RCCAU.

24ª- É, pois, manifesto e gritante o doloso incumprimento contratual da Recorrente, porquanto a mesma, intencionalmente, omitiu uma circunstância determinante para a formação da vontade de contratar, de tal modo que, se fosse do conhecimento das Recorridas, não teriam celebrado o contrato de arrendamento objecto dos presentes autos.

25ª- A circunstância fundamental, em que se alicerçou a vontade de contratar, sofreu, por facto imputável à Recorrente, uma alteração anormal que, pelas suas gravidade e consequências, tornam imediatamente inexigível às Recorridas a manutenção do arrendamento.

26ª- O incumprimento objectivo de deveres contratuais ou legais é o primeiro ponto constitutivo do direito potestativo de resolução, o qual se presume culposo nos termos do artigo 799º do CC, consubstanciando um atentado à confiança legítima depositada pelas Recorridas na Recorrente, de gravidade resolutiva, por manifesta oposição com os valores subjacentes à vontade de celebração de um contrato de arrendamento.

27ª- Assistia à Recorrida BB o direito de resolver o contrato de arrendamento objecto dos presentes autos, por se encontrarem reunidos todos os pressupostos de facto e de direito, pelo que a alegação da Recorrente, no sentido da verificação da violação de lei, nas vertentes de errada interpretação e aplicação dos artigos 1070º, n.º 1 e 1083º, n.º 2, ambos do CC, e 5º, n.º 1, do RCCAU, é desprovida de todo e qualquer fundamento.


Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, e, decidindo em conformidade com as conclusões, manter-se a decisão recorrida, tudo com as legais consequências.


5. Considera-se que, na apreciação das questões suscitadas pelas partes, se deverá partir, em primeira linha, do quadro jurídico decorrente da iniciativa efectivamente adoptada pelos litigantes para efectivarem os seus direitos – e que, no caso, passou pelo enquadramento do litígio na temática da resolução do contrato, actuada, desde logo extrajudicialmente, pela R. – só se abordando outros possíveis enquadramentos da matéria litigiosa, designadamente no âmbito das nulidades do negócio jurídico –, se improceder a via da resolução do contrato de arrendamento, efectivamente desencadeada pelo arrendatário.

Importa caracterizar adequadamente a matéria litigiosa, começando por verificar se, perante os factos apurados, terá ocorrido incumprimento contratual pelo locador, cuja gravidade e consequências justificassem o acto resolutivo praticado pela arrendatária.

Ora – e este primeiro aspecto é de extrema relevância – decorre claramente da matéria de facto apurada que a A., como locadora, assegurou ou garantiu contratualmente à locatária que o local arrendado dispunha de alvará de utilização actualmente ( à data do negócio) válido e operativo para o exercício da específica actividade económica que se pretendia ali desenvolver – e que, constituía, aliás, nos termos contratualmente acordados , a única actividade, no campo dos serviços, que lhe era lícito desenvolver no local: o exercício da actividade de tratamentos de estética e saúde.

Desde logo, no plano pré contratual, o mediador imobiliário que interveio na negociação garantiu à R., na fase das negociações, que o locado dispunha de licença de utilização para serviços.

Por outro lado, ao celebrar o arrendamento, inseriram as partes no negócio cláusula segundo a qual o locado se destinava exclusivamente ao exercício da actividade de tratamentos de estética e saúde, com exclusão expressa de qualquer outra actividade, sem o prévio consentimento escrito da senhoria.

Esta cláusula, interpretada à luz do critério da impressão do destinatário e de acordo com as exigências da boa fé, não pode deixar de significar que o locador garantia ao locatário a existência de licença válida de utilização para a única actividade empresarial, no domínio da prestação de serviços de estética e saúde, que consentia que fosse exercida licitamente no estabelecimento.

Ou seja: destes factos interligados e devidamente valorados tem de se concluir que, no caso, o locador garantiu ao locatário que existia a referida licença de utilização, válida e actual, para o único fim que consentia ao locatário – criando-lhe, deste modo, a fundada confiança de que se não defrontaria com obstáculos de natureza legal ou regulamentar ao início da actividade empresarial perspectivada, que pudessem decorrer da falta, invalidade ou insuficiência da referida licença para a actividade de prestação de serviços.


Não pode, pois, perante este quadro negocial e face à legítima confiança do locatário, vir sustentar-se – sob pena de lesão da boa fé, na vertente do venire contra factum proprium, - que, afinal, incumbiria àquele providenciar pela obtenção da licença de utilização que lhe foi garantido que existia e estava plenamente operativa no momento em que o contrato de arrendamento foi celebrado.

E existia ou não a dita licença de utilização válida para o exercício da actividade empresarial prevista na cl. 4ª do contrato de arrendamento?

Perante a matéria de facto fixada – e, muito em particular, face à posição expressamente tomada pelos serviços municipais, nomeadamente na sequência da interpelação que expressamente lhes foi feita pelo Tribunal – não pode deixar de se concluir, como faz o acórdão recorrido, que era entendimento daqueles serviços que o alvará 9…/2004, ao permitir a actividade de comércio, não consentia – a partir de 2006 – o exercício no local de actividades de prestação de serviços do tipo dos contratualmente previstos pelas partes – concluindo-se categoricamente que o imóvel, à data da celebração do arrendamento, não possuía licença de utilização para esse fim (prestação de serviços no domínio da saúde e estética).

É certo que a entidade recorrente questiona esse entendimento sustentado pelos serviços camarários, alegando que decorreria do Código Regulamentar do Município do Porto que os alvarás emitidos para actividade genérica de comércio até Fevereiro de 2006 continuariam a incluir a possibilidade de utilização dos locais para outras actividades de prestação de serviços: ou seja, e em termos substanciais, questiona a recorrente a legalidade do entendimento expressado nos autos pelos serviços municipais, segundo o qual os alvarás de utilização para comércio, concedidos antes de 2006, teriam visto precludida, nessa data, a sua eficácia legitimadora para o exercício de actividades empresariais de prestação de serviços.

Considera-se, porém, que – para solucionar adequadamente o presente litígio cível – não é necessário resolver nos presentes autos essa questão , situada no estrito plano da legalidade  administrativa: é que, mesmo que se admitisse que o entendimento claramente adoptado pelos serviços municipais padecia da invocada ilegalidade, decorrente de violação do citado regulamento, o que é facto é que se iria impor à locatária um ónus claramente excessivo e desproporcional, claramente colidente com a legítima confiança que ela havia depositado na garantia do locador de que essa licença de utilização para actividades de prestação de serviços existia e era plenamente válida e operativa.

Na verdade, confrontada com esse entendimento firme dos serviços municipais sobre o âmbito do licenciamento em vigor para o locado, restaria à locatária:

- ou impugnar no foro competente o acto administrativo que, suportado no entendimento plasmado nos pontos H/L da matéria de facto, confirmasse a inexistência de licença de utilização válida para actividades de prestação de serviços;

- ou obter ela própria, por sua iniciativa e a seu custo, a dita licença de utilização que a contraparte lhe garantira contratualmente que era válida e perfeitamente operativa, suportando, em ambos os casos, a morosidade inevitavelmente associada a qualquer destas vias.

Note-se que, numa situação em que está contratualmente estipulado que a única actividade que é possível desenvolver no locado é precisamente a da prestação de serviços estéticos e de saúde, as fundadas dúvidas sobre a actualidade do alvará 94/2004, no que concerne à legitimação para o exercício dessa actividade específica, implicariam, ou que, durante tal pendência, a locadora exercesse clandestinamente tal actividade, com todos os riscos e inconvenientes inerentes; ou que ficasse, na prática, privada de qualquer utilização económica efectiva do imóvel que havia arrendado na firme e fundada convicção de que lhe estava garantida pela contraparte a existência e actualidade da licença que permitia o exercício da actividade que constituía fim exclusivo do arrendamento.

Considera-se que esta situação – envolvendo incumprimento contratual pela entidade locadora do dever lateral ou acessório de se ter assegurado de modo categórico que existia; à data do contrato, licença de utilização firme e actual para o exercício da única actividade empresarial consentida à locatária - tem, pelas razões apontadas, - maxime ao implicar violação da confiança justificadamente depositada na garantia prestada de que a referida e indispensável licença existia efectivamente - gravidade suficiente para justificar o acto resolutivo praticado.

Na verdade, por um lado – e no plano ético jurídico – o comportamento da A. envolve lesão do princípio da confiança, decorrente da fundamental cláusula geral da boa fé; por outro lado – e agora no plano das consequências práticas do incumprimento desse dever lateral ou acessório – priva, em absoluto, o locatário de exercer no locado qualquer actividade de prestação de serviços, enquanto não conseguir pôr termo ao imbróglio gerado pela insuficiência da licença de utilização existente.

Confirma-se, pois, o sentido decisório adoptado no acórdão recorrido acerca da suficiência dos fundamentos da resolução, concordando-se inteiramente com o decidido acerca das consequências do acto resolutivo.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando inteiramente o decidido no acórdão recorrido.


Lisboa, 17 de Maio de 2017

Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor

António Piçarra