Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
355/14.0JELSB-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA DE BRITO (RELATORA DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
ACÓRDÃO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
COARGUIDO
NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO
REVOGAÇÃO
MANDATO FORENSE
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
CUMPRIMENTO DE PENA
PRISÃO ILEGAL
Data do Acordão: 07/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Não se encontrando o arguido não recorrente notificado do acórdão da Relação que, decidindo recurso interposto por um co-arguido, se pronunciou expressamente sobre a sua condenação (do arguido não recorrente), alterando a matéria de facto a ele referente e pronunciando-se sobre a medida da sua pena de prisão, não ocorreu quanto a ele o trânsito em julgado da decisão condenatória e não podia assim ter-se iniciado o cumprimento da sua pena de prisão.
Decisão Texto Integral:

1. Relatório


1.1. No processo n.º 355/14….,  do Tribunal Judicial da Comarca ..., o arguido AA, em situação de cumprimento de pena de sete anos de prisão, veio apresentar pedido de habeas corpus ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP.

Para tanto, alegou:

“1º Por sentença proferida a 11 de Abril de 2019, veio o aqui requerente a ser condenado a uma pena de prisão efectiva de sete anos.

2º Nessa data reuniu com o seu, então, mandatário tendo aquele referido que havia fundamento e matéria para recorrer do acórdão proferido.

3º O aqui requerente, acordou então com o seu mandatário no sentido de aquele intrepor recurso da decisão, tendo de imediato pago os honorários que lhe foram solicitados.

4° Na primeira quinzena de Março de 2020, o aqui requerente foi informado por co-arguidos que a decisão do Recurso já havia sido proferida, tendo nessa data questionado o mandatário acerca do resultado do mesmo.

5º Após diversos recuos e avanços, ante a insistência do aqui requerente, veio o mandatário a comunicar que o recurso por si intentado não havia sido apreciado, porque fora recusado por extemporaneidade.

6º O Requerente, em desespero, procurou então solução, vindo a aqui signatária a indicar que no limite poder-se-ia apresentar exposição ao tribunal de primeira instância com vista a obter deferimento para a entrega de novo requerimento de interposição de recurso e respectivas motivações, juntando ao mesmo cópia de participação á Ordem dos Advogados da actuação negligente do anterior mandatário.

7º Nessa sequência, vem a aqui signatária ( a 16 de Março de 2020 ) a dar entrada no tribunal de primeira instância de um requerimento onde se expunha a grave situação de negligência do, à data, ainda seu mandatário, requerendo ainda a junção aos autos de revogação do mandato conferido ao Advogado, uma procuração outorgada a favor da aqui signatária, requerendo ainda a apreciação de violação do direito ao recurso, pugnando-se, a final, pelo deferimento do requerido e reposição do direito a interpor recurso;

8° Com conclusão a 20 de Abril de 2020, vem o douto tribunal a responder ao requerido, indeferindo a pretensão do arguido, no que á apresentação de recurso concerne, mandando todavia que, citamos - sublinhado nosso “se tome em consideração os instrumentos de representação forense quer de constituição, quer de cessação de mandato.”

9º Sucede que desde tal data não veio a aqui signatária, e nessa sequência o arguido, a ser notificada (o) de qualquer ato, desconhecendo, até á presente data todo e qualquer ato e/ou desenrolar processual.

10° A 16 de Julho de 2021, veio o aqui requerente a ser contactado por co-arguido que o informou que haviam sido emitidos mandados de captura para cumprimento de pena.

11° O aqui requerente, uma vez mais, vê frustradas as legitimas e legais expectativas depositadas no sucesso do recurso apresentado por co-arguidos, cuja posição processual se mostrou idêntica á sua, podendo então, caso tal se viesse a verificar e reunidas que estivessem os legais pressupostos, exercer o direito ao recurso que lhe fora negado;

12° Após comunicar à aqui signatária a emissão de mandados, questionando-a sobre a ausência de informação sobre o andamento do processo / recursos, vem a mesma a consultar os autos, tendo verificado o seguinte;

13º Após prolação de acórdão do Tribunal da Relação, o co-arguido viu deferido parte do alegado no recurso apresentado, sendo certo que foi determinada a alteração da matéria de facto dada como provada, nos pontos 1 a 167, factualidade essa que reduz para duas as participações do aí recorrente BB mas também do aqui requerente AA.

14º Tal alteração, como aliás se discrimina no ponto 6 do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 88 “in fine” respeita ao co-arguido AA, por força do disposto no Art 402 N.º 1 e N.º 2 aln a) do Código de Processo Penal.

15º Sucede que o douto acórdão do Tribunal da Relação, ainda que determinando a alteração da matéria de facto provada, não procede á alteração, vindo o co-arguido BB a reclamar do douto acórdão, reclamação que dá entrada nos autos a 15 de Março de 2020.

16º Da dita reclamação não veio o aqui requerente a tomar conhecimento, vindo todas as notificações a ser realizadas, por grosseiro e manifesto erro, ao mandatário cujo mandato havia sido revogado com base aliás como supra se expôs em negligência grave de conduta.

17º A reclamação foi à conferência a 01 de Abril de 2020 e em 02 de Abril de 2020 é notificada aos mandatários dos restantes co-arguidos e a 03 de Abril de 2020 ao Digno magistrado do Ministério Público, reclamação que veio a obter provimento, tendo o douto tribunal determinando a alteração da matéria de facto nos moldes e termos do teor do acórdão proferido.

18° A matéria apreciada na reclamação concerne e respeita diretamente ao aqui requerente, aplicando-se nos termos e para os efeitos do disposto no Artigo 402 N.º1 e N.º2 aln a) do Código de Processo Penal.

19° Aliás na resposta à reclamação, datada de 02 de Abril de 2020 o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sublinha no próprio texto, a Fls 88 “in finf - que só se tem por provada a actuação do aqui requerente (e co-arguido BB) nas duas últimas operações de transporte de droga por via aérea, e citamos “... o que por sua vez reduz a gravidade da ilicitude e da culpa ...”

20° Na dita reclamação foi requerida a apreciação das seguintes matérias;

1. Existência de lapso na reformulação dos pontos da matéria de facto dada como provada, de 1 a 167, por não ter contemplado as alterações enunciadas a propósito da reapreciação realizada;

2. A Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à fundamentação da distinção entre as penas aplicadas ao reclamante e ao arguido AA.

21° Ou seja, o aqui requerente e bem assim a sua mandatária, não foram notificados de nenhum dos atos processuais ocorridos após a revogação de mandato ao anterior mandatário e constituição de nova mandatária, a aqui signatária, apesar do douto despacho do tribunal de primeira instância assim o determinar.

22º O que impediu que tomasse conhecimento de alterações decretadas pelo Tribunal de Recurso, que, como o próprio texto refere implicam a alteração e diminuição da participação do aqui requerente na factualidade em apreço, e bem assim uma apreciação acerca da medida da pena que lhe foi aplicada, não tendo todavia tido oportunidade de sobre tal matéria vir a pronunciar-se.

23º A 19 de Julho de 2021, a aqui signatária dá entrada de requerimento, onde com base no supra relatado, descreve e a ausência de notificação do arguido sobre matérias que á sua defesa e direito fundamental ao recurso concerne, nomeadamente quanto á alteração e correcção da matéria de facto a si concernente, que diminui a sua intervenção, dolo e culpa, e bem assim quanto á apreciação da medida da pena, por comparação ao co-arguido reclamante, que nesse sentido também se pronunciou.

24º A 20 de Julho de 2021, o arguido e aqui requerente é detido e preso, vindo na mesma data a pronunciar-se o Dignissimo Senhor procurador adjunto, no sentido de entender que o requerido não merece provimento, já que, citamos -“ … a pretensão do arguido AA – formulada através da sua actual Ilustre Mandatária – já tinha sido indeferida…” e “ … os actos praticados no processo foram, sempre que disso foi caso, regularmente notificados ao Mandatário constituído pelo arguido…” entendendo por isso que “ … salvo melhor opinião, parece nada mais haver a decidir quanto a tal questão.”

25° Proferindo no mesmo dia a Excelentísma Senhora Juíza despacho, nos moldes defendidos pelo Dignissimo Procurador Adjunto, ou seja, que á data, estava o requerente representado por, citamos “...Exmo. Senhor Advogado CC tendo sido, na pessoa deste e no que ora releva, notificado da rejeição do seu recurso, da interposição dos demais recursos e despacho que os admitiu, do acórdão proferido pelo TRL de 4 de Março de 2020...” sublinhado nosso.

26° Mais refere entender que, citamos “... O acórdão transitou em julgado quanto ao mesmo, em 9 de Dezembro de 2019, já que dele não interpôs recurso... ”sublinhado nosso.

27° Adianta ainda o despacho da Meritíssima Juíza que “Da tramitação vinda de descrever resulta inexistir qualquer vício processual que importe sanar já que o arguido foi sucessivamente notificado dos actos processuais quanto a si relevantes na pessoa de quem, à data dos mesmos, validamente o representava.” Indeferindo o requerido uma vez que, citamos “inexistir qualquer vício processual que importe sanar já que o arguido foi sucessivamente notificado dos actos processuais quanto a si relevantes na pessoa de quem, à data dos mesmos, validamente o representava”

28° E, aderindo á fundamentação do Ministério Público refere “a pretensão do arguido AA, formulada através da sua actual Ilustre Mandatária, e traduzida, a prática, em ver admitido o recurso do acórdão proferido em 1.ª instância, já tinha sido indeferida encontrando-se esgotado o poder jurisdicional sobre tal matéria”

29° Ora, com o devido respeito, que alias é muito e bem merecido, laboram em erro ambos os Ilustres magistrados, porquanto não só a pretensão do arguido não é ( como se entende resultar claro do texto do requerimento da aqui signatária ), recorrer da decisão de primeira instância, mas pronunciar-se e recorrer de decisão que decorre de reclamação apresentada por co-arguido, que altera a matéria de facto sobre factualidade imputada ao aqui recorrente, (o que aliás é reconhecido no próprio acórdão que altera a matéria de facto, como supra se descreve em Art. 19º e 20º do presente requerimento.

30º Mais pretendendo o aqui requerente exercer o seu direito a pronunciar-se e recorrer se caso disso for, da fundamentação que altera a matéria de facto, reduz a ilicitude e a culpa do aqui recorrente mas mantém a medida da pena, direito ao recurso que se viu impedido de exercer ante a falta de notificação do teor da reclamação e decisão que sobre a mesma veio ser proferida, e sobre essa pretensão em concreto, não veio o tribunal de primeira instância a pronunciar-se senão agora, não estando naturalmente quanto a essa matéria esgotado o seu poder jurisdicional!

31º Aliás, contrariamente ao que é dito, certamente por lapso no despacho da Meritissima Juiza de 20/07/21 a sentença não transitou em julgado, quanto ao aqui requerente, a 9 de Dezembro de 2019, uma vez que por todo o supra exposto, o acórdão do tribunal da relação, e subsequente reclamação e resposta á mesma, contém alterações que implicam e modificam a factualidade e apreciação da culpa do requerente, as quais não lhe foram comunicadas nem dadas a conhecer, vindo a ser inaceitável e inconstitucionalmente tolhido o seu direito a conhecer de todas as decisões que lhe digam respeito, o direito á defesa e o direito a ver reapreciadas tais decisões, ou seja o direito ao recurso.

32º Em face ao exposto, o requerente deve ser notificado da reclamação apresentada pelo co-arguido, da decisão que sobre aquela recaiu, regredindo o processo a tal momento, estando o requerente em prazo, para, querendo, exercer os direitos de defesa constitucionalmente consagrados, nomeadamente recorrer da decisão que altera a matéria de facto, e bem assim da medida da pena para Esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça!! Apenas assim se fazendo jus ao Estado de Direito Democrático e ao egrégio texto constitucional, que é, ainda hoje, um dos mais avançados do mundo.

33° Nestes termos, e salvo e melhor e mais douto entendimento de Vossa Excelências, não só a pretensão do aqui requerente difere da que entendem ser os Digníssimos Senhores Magistrados, (ou seja ver-lhe concedido o direito a recorrer da decisão de primeira instância) mas antes a de conhecer e ser notificado por via da única mandatária validamente constituída nos autos á data da reclamação e decisão sobre a mesma, do teor daquelas e nessa sequência exercer, caso o entenda o seu direito de defesa.

34° Em súmula, a ausência de notificação da reclamação e resposta àquela, constitui no entender do requerente nulidade insanável, uma vez que viola os mais basilares direitos de defesa do arguido, violando em concreto o disposto nos Artigos 32°. n.°s 3 e 10 e artigo 18° da Constituição da República Portuguesa, e os artigos 63° N.° 1 e 113° N.° 9 ambos do Código do Processo Penal.

35° Mas ainda que se não entenda verificada a nulidade supra arguida, sempre se dirá que a lei exige que seja o Tribunal a notificar o arguido e que o seja através do defensor. Na ausência de notificação efetuada nos termos prescritos na lei, é de considerar que o procedimento adotado configura irregularidade e, mais, que a notificação não se fez.

36° A mandatária do requerente não foi notificada, da interposição de reclamação, do parecer/resposta do Ministério Público, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que na sequência daquela altera o acórdão inicial a factualidade e responsabilidade do requerente. Tão pouco o foi de todas as movimentações processuais relevantes praticadas e decididas após decisão sobre a reclamação.

37° Como crê ter-se deixado provado, os actos processuais e decisões supra descritas, continham decisões e apreciações sobre matérias de facto e de direito que aproveitavam ao aqui requerente, e mais, aquele diziam diretamente respeito, sobre as quais não teve oportunidade de se pronunciar.

38° Sendo certo que, caso tivesse sido notificada, a mandatária teria tido oportunidade de apreciar e, caso assim entendesse actuar quanto a tais matérias, o que não ocorreu.

39° Omissão esta que resulta numa preterição do pleno e cabal exercício dos direitos que assistem aos arguidos em processo penal no âmbito das suas garantias de defesa, nulidade na optica da defesa, ou irregularidade (caso v.Exas assim o entendam) que expressamente se invoca.

40° Outra interpretação destes preceitos legais, como a que terá sido feita nos autos, é inconstitucional por violar o disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, pois que tal falta de notificação ao defensor afecta a decisão da causa, donde resulta uma preterição do pleno e cabal exercício dos direitos que assistem aos arguidos em processo penal no âmbito das suas garantias de defesa.

41° A este respeito cabe aqui deixar nota da posição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no que a esta matéria concerne, mais concretamente do vertido no processo “AFFAIRE MEGGI CALA c. PORTUGAL” em que veio o estado Português a ser condenado por omissão de notificação de arguido (no caso do mandatário do arguido) Processo (no 24086/11.

42° De todo o supra exposto resulta clara a obrigatoriedade de reparar a (nulidade ou irregularidade cometida - conforme seja o entendimento de V.Exas), procedendo-se á notificação de tudo quanto não foi notificado ao arguido, que deve ocorre através da sua mandatária, anulando-se o processado posterior, seguindo então o processo os legais termos.

43° A prisão do arguido é ilegal, chocante e gravemente violadora não só dos princípios do Estado de Direito Democrático, como da Constituição Da República Portuguesa, Artigo 32.2, e Artigo 492 N. 2 do Código Penal e bem assim todas as regras de cidadania e respeito pela liberdade».

44° O arguido tinha de ser notificado da reclamação apresentada por co-arguido, (sendo certo que tal notificação seguiu para mandatário a quem muito antes havia sido legitimamente revogado mandato), o que não ocorreu.

45º Tinha igualmente que ser-lhe comunicada a decisão do Tribunal da Relação, datada de 02 de Abril de 2020, que defere parcialmente (na parte referente á factualidade imputada ao aqui requerente, bem como na apreciação que tece á medida da pena que lhe foi aplicada, mantendo-a) notificação que igualmente não ocorreu (tendo uma vez mais sido remetida ao mandatário cujo mandato se encontrava revogado).

46º A decisão corporizada no acórdão de 02/04/2020, que defere as pretensões levadas à apreciação do TRL, em sede de reclamação, é recorrível nos termos e para os efeitos previstos no Artigo 399.º do CPP.

47º A Constituição da República assume - artigo 32.º, n.º 1- o direito ao recurso do arguido como integrando o núcleo essencial das suas garantias de defesa.

48º Como refere FIGUEIREDO DIAS, a consagração constitucional do direito ao recurso entre as garantias de defesa do arguido «significa que o direito a um recurso e manifesta ao jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia pessoal da defesa. Ela não pode ser pasta em causa em hipotese alguma, mesmo sob a alega ao de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei e materialmente inconstitucional e não pode, como tal, ser aplicada»

49º Por outro lado, confrontado com o requerimento de 19/07/21 do aqui arguido, e ante a verificação da falta de notificação ao mesmo de uma decisão que comporta um facto novo, traduzido na decisão que altera a matéria de facto imputada ao recorrente, e a rescreve, bem como interpreta e decide da medida da pena que lhe foi aplicada (Acórdão de 02/04/2020 Fls. 88 in fine), sendo aquela recorrível, estado em prazo o recurso por todo   exposto, seria de considera-se que a emissão dos mandados de detenção foi intempestiva, sendo, por isso, ilegal.

50º O Tribunal deveria notificar o arguido, por via da sua mandatária da reclamação e acórdão que sobre aquela foi proferido, e aguardar pelo transito em julgado da decisão proferida a 02/04/2020 e subsequentes.”

 1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP foi a seguinte:

“Consigna-se, para os efeitos do disposto no artº 223/1 do Cód de Proc. Penal, que:

O arguido AA foi condenado por acórdão proferido em 7.11.2019 numa pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado (fls. 9199);

O arguido apresentou recurso do acórdão em 19.12.2019 (fls. 9408);

Em 20.12.2019 foi proferido despacho solicitando esclarecimentos ao exmo mandatário do arguido AA e consignando a intempestividade do recurso (fls. 9457);

Por despacho de 6.02.2020 foi ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação dos recursos interpostos por outros arguidos (fls. 9479);

Em 4.03.2020 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Este acórdão alterou parcialmente a matéria de facto e baixou a pena do arguido recorrente BB para seis anos de prisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa em 30.04.2020 e, em 16.07.2020, notificou o arguido AA do acórdão e da resposta à reclamação apresentada pelo arguido BB, na pessoa do sr. advogado (Dr. CC) (fls. 9661 e 9700);

Em 16.03.2020 o arguido apresentou requerimento, subscrito pela exma sra. advogada DD (subscritora do presente habeas corpus), acompanhado de procuração emitida pelo arguido a seu favor e de revogação da procuração anterior emitida a favor do exmo dr. CC e de cópia de participação apresentada ao Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, solicitando que fosse admitido o recurso interposto pelo arguido (fls. 355 a 363 do traslado);

Em 20.04.2020 foi proferido despacho indeferindo o requerido por falta de fundamento legal e por se encontrar esgotado o poder jurisdicional (fls. 372)

Em 15.04.2021 o STJ proferiu acórdão de recurso interposto por uma arguida - … - e os autos foram remetidos à primeira instância;

Em 15.07.2021 foi certificado o trânsito do acórdão relativamente ao arguido AA com data de 9.12.2019 (fls. 9781);

Em 15.07.2021 foram emitidos mandados de detenção e condução do arguido AA ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de 7 anos de prisão (fls. 9782);

Em 19.07. 2021 a Exma. sra. mandatária do arguido requereu a imediata suspensão do cumprimento dos mandados com os fundamentos constantes do requerimento de fls. 9791.

O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes de fls. 9796 e considerou que nada havia a decidir sobre a questão suscitada pelo arguido por se encontrar esgotado o poder jurisdicional relativamente a tal matéria;

Por despacho de 20.07.2021 foi indeferida a pretensão do arguido por falta de fundamento legal e foi decidido manter válidos os mandados então emitidos (fls. 9798);

Em 20.07.2021 foi dado cumprimento aos mandados e o arguido AA deu entrada no estabelecimento prisional de Lisboa ( fls. 9804);.

1.3. Notificados o Ministério Público e a defensora do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.


2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos taxativamente previstos no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José Lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a afirmação da excepcionalidade da providência e da sua distanciação da figura dos recursos.

Assim se decidiu designadamente no acórdão de16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” -

Preceitua então o art. 222.º, n.º 1, do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa.

E por força do n.º 2 da mesma norma, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. b) – “ser motivada por facto pelo qual a lei não o permite”, pretendendo a aplicação da norma no seu sentido de “facto processual”. E da leitura da providência, na argumentação que desenvolve, resulta que a situação descrita se pode efectivamente enquadrar na alínea à luz da qual a providência é apresentada.

O “punctum” da sua argumentação centra-se na seguinte passagem: “a pretensão do arguido não é recorrer da decisão de primeira instância, mas pronunciar-se e recorrer de decisão que decorre de reclamação apresentada por co-arguido, que altera a matéria de facto sobre factualidade imputada ao aqui recorrente, (…) pretende exercer o seu direito a pronunciar-se e recorrer se caso disso for, da fundamentação que altera a matéria de facto, reduz a ilicitude e a culpa do aqui recorrente mas mantém a medida da pena, (…) a sentença não transitou em julgado, quanto ao aqui requerente, a 9 de Dezembro de 2019, uma vez que o acórdão do tribunal da relação, e subsequente reclamação e resposta á mesma, contém alterações que implicam e modificam a factualidade e apreciação da culpa do requerente, as quais não lhe foram comunicadas nem dadas a conhecer, vindo a ser inaceitável e inconstitucionalmente tolhido o seu direito a conhecer de todas as decisões que lhe digam respeito, o direito á defesa e o direito a ver reapreciadas tais decisões, ou seja o direito ao recurso.”

Na verdade, o recorrente encontra-se detido em cumprimento de pena de prisão. E o cumprimento de pena de prisão pressupõe sempre o trânsito em julgado da decisão que a aplicou e determinou.

É com o trânsito em julgado que a decisão condenatória se torna exequível (art. 467.º, n.º 1, do CPP). E independentemente do resultado a que, em concreto, possam vir a conduzir as normas que disciplinam em matéria de recursos, independentemente da decisão (posterior) sobre a recorribilidade de determinado acórdão, o trânsito em julgado do acórdão condenatório pressupõe sempre a sua prévia notificação (ao que ora interessa) ao arguido condenado.

Concretamente no que respeita à notificação ao arguido de acórdão da Relação que decide recurso interposto de decisão condenatória de primeira instância, notificação obrigatória (art. 425.º, n.º 6 do CPP), esta faz-se na pessoa do defensor ou advogado do arguido (art. 113.º, n.º 10, do CPP).

E tem de proceder-se a notificação do acórdão mesmo ao arguido não recorrente quando, em casos de comparticipação criminosa, a Relação, por via de recurso interposto por um co-arguido, altera a matéria de facto também na parte relativa ao não recorrente e (re)pondera expressamente a sua pena.

No caso presente, a notificação do arguido, a realizar sempre na pessoa do defensor, como se disse, teria de ter sido feita à mandatária que o arguido constituíra no processo.

Da petição ora apresentada, em consonância com a informação dada pelo tribunal de primeira instância, resulta que o acórdão da Relação foi notificado, não à mandatária do arguido, mas ao advogado que, à data da notificação, já não o representava no processo.

Releia-se a seguinte passagem da informação prestada nos termos do art. 223.º, n.º 1 do CPP:

“Em 4.03.2020 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Este acórdão alterou parcialmente a matéria de facto e baixou a pena do arguido recorrente BB para seis anos de prisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa em 30.04.2020 e, em 16.07.2020, notificou o arguido AA do acórdão e da resposta à reclamação apresentada pelo arguido BB, na pessoa do sr. advogado (Dr. CC) (fls. 9661 e 9700);

Em 16.03.2020 o arguido apresentou requerimento, subscrito pela exma sra. advogada DD (subscritora do presente habeas corpus), acompanhado de procuração emitida pelo arguido a seu favor e de revogação da procuração anterior emitida a favor do exmo dr. CC

Ou seja, a 30.04.2020 e a 16.07.2020, a Relação diligenciou pela notificação do arguido, mas na pessoa de um advogado que já não o representava desde 16.03.2020.

E a acrescer à informação prestada pela Senhora Juíza nos termos do art. 223.º, n.º 1, do CPP, da consulta do processo resulta ainda o seguinte:

1.º O requerimento subscrito pela senhora advogada DD, acompanhado da procuração emitida pelo arguido a seu favor e da revogação da procuração anterior, merecera o seguinte despacho judicial: “Tomem-se em consideração os instrumentos de representação forense, quer de constituição, quer de cessação do mandato.” E este despacho fora comunicado à senhora advogada, que confiou naturalmente na regularidade das notificações do seu representado.

2.º O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (que decidiu a reclamação apresentada pelo arguido BB) alterou parcialmente a matéria de facto também na parte relativa ao requerente, e além de baixar a pena do co-arguido recorrente BB, pronunciou-se também sobre a pena do requerente, mantendo-a (por aplicação do art. 403.º, n.º 3, do CPP).

Adite-se que, mesmo que a notificação do primeiro acórdão da Relação possa ter sido efectuada na pessoa do anterior advogado do arguido ainda antes da revogação da procuração (contrariamente ao mencionado na informação prestada nos termos do art. 223.º, n.º 1, do CPP), o certo é o processo inequivocamente demonstra que não o foi seguramente o acórdão da Relação que decidiu a reclamação e a atendeu na parte relevante para o requerente. E a notificação do primeiro acórdão da Relação, mesmo a ter-se verificado correctamente, perde valia face à decisão posterior de atendimento da reclamação, nos termos expostos.

Mais se constata do processo que a mandatária do arguido reagiu processualmente logo que teve conhecimento das ilegalidades cometidas. Arguindo-as tempestivamente junto do tribunal competente e requerendo a sanação. Ou seja, a (repetição da notificação do arguido, na pessoa da advogada, dos acórdãos da Relação e das decisões posteriores indevidamente efectuadas em advogado que já não tinha poderes de representação do arguido no processo e já não exercia a sua defesa. Pediu também a sustação dos mandados de captura, alegando a ausência de trânsito em julgado da decisão condenatória relativamente ao requerente.

Constata-se, assim, uma evidente desconformidade legal que, não configurando embora nulidade processual, não poderá deixar de ter as consequências pretendidas pelo requerente.

As ilegalidades processuais, a inobservância das disposições da lei de processo, determinam a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (arts. 118º, nº 1 do CPP). Quando a lei não cominar a nulidade – o que sucede no caso presente - o acto ilegal será irregular (art. 118º, nº2 do CPP), vício sujeito ao regime do art. 123º do CPP. 

O requerente reagiu processualmente no processo no tempo previsto no art. 123º, invocou o vício perante o tribunal que o cometeu, requereu a reparação, explicou em que medida tal vício comprometeu a decisão de privação de liberdade que veio a ser proferida.

Concretamente, a irregularidade detectada resultou da inobservância do disposto no art. 113º do CPP, que trata das regras gerais sobre notificações. A lei exige que o tribunal notifique o arguido através do defensor, que no caso era a advogada constituída no processo. Na ausência de notificação efectuada nos termos prescritos na lei, é de considerar que o procedimento adoptado, de notificação em advogado cuja procuração se encontrava revogada ao tempo da notificação, configura irregularidade. E mais, nas descritas circunstâncias é de considerar que a notificação não se fez.

Por tudo, a irregularidade cometida não pode considerar-se sanada e admite reparação, que passará pela repetição da notificação das decisões na pessoa da advogada do arguido.

Em suma, não se encontrando o requerente notificado do acórdão da Relação que se pronunciou expressamente sobre a sua condenação – alterando a matéria de facto a si referente e pronunciando-se sobre a medida da sua pena de prisão – tem de concluir-se que não ocorreu ainda o trânsito em julgado da decisão condenatória no que ao ora requerente se refere. E assim, não podia ter-se iniciado o cumprimento da pena de prisão.

A violação evidente das regras processuais assinaladas, com repercussão drástica na liberdade do arguido, consubstancia uma situação de ilegalidade da prisão e é fundamento de habeas corpus à luz da invocada al. b), do n.º 2, do art. 222.º, do CPP.


3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça deferir o pedido de habeas corpus, determinando a imediata libertação do requerente.

Sem tributação.


Passe mandado de libertação.

                                                          

Lisboa, 30.07.2021


Ana Barata Brito (relatora)

António Clemente Lima

Manuel Tomé Soares Gomes