Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
35/15.9PESTB.1.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
PENA DE PRISÃO E MULTA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 05/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Ao contrário dos sistemas em que vigora a acumulação material, o nosso sistema, de cúmulo jurídico (nas suas diferentes vertentes), procura aproximar-se da pessoa do agente, adequar-se à sua culpa global, com rigoroso cumprimento do princípio da proporcionalidade e não renunciando ao ideal ressocializador, enquadrando-se numa perspetiva humanista do Direito Penal.

II. Uma síntese porventura mais evidente da posição prevalecente neste STJ será a de que “de acordo com o artº 77º nº 3 do C. Penal pode fazer-se o cúmulo de penas de prisão e multa se os crimes estiverem numa relação de concurso mas a diferente natureza dessas penas mantém-se na pena única que se determine. (…) Assim, se houver concurso de crimes nesses termos cumulam-se as penas de prisão entre si e, separadamente, cumulam-se as penas de multa também entre si. O resultado será a fixação de uma pena única de prisão e de uma pena única de multa que desse modo manterão a sua diferente natureza.», (Acórdão do STJ de 07.01.2016, proferido no Processo n.º 1959/12.0 PBCBR.S  - Sumários de Acs. 2016).

Há profusa jurisprudência do STJ no sentido de que as penas de multa “só poderão cumular-se entre si”.

III. A situação de concurso superveniente é prevista no art. 78 do CP, que remete no seu n.º 1 para o art. 77 do CP. Importa salientar que na medida da pena são tidos em conta os factos e a personalidade do agente. Assim, esta injunção judicativa consta do art. 77 n.º 1, in fine, do Código Penal:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

IV. A moldura penal abstrata do cúmulo em causa situa-se entre o limite mínimo de 7 anos de prisão e o limite máximo de 7 anos e 6 meses de prisão. Para além da pena de multa de 140 dias à razão diária de €6,00, aplicada no processo 878/15.3PAPTM, contudo já declarada extinta.

V. Apesar de, no percurso de vida do arguido, já ter havido outras condenações, além das já referidas, o Acórdão recorrido demonstra a sensibilidade do Tribunal a quo à possibilidade de ressocialização do Recorrente, e o facto de o Ministério Público no Tribunal a quo e neste STJ expressamente admitirem, ambos, diminuição da pena de prisão, não podem passar despercebidos.

VI. Analisando, na sua globalidade, os entre si diversos (e de diferente gravidade) factos em apreço nas sentenças que aplicaram as penas parcelares, interagindo com a ideia que, dos autos, se forma da personalidade do arguido, também não repugna uma diminuição da pena de prisão em 3 (três) meses de prisão. Esperando que o tempo de reclusão esteja a surtir no Recorrente um efeito de revisão da sua vida e propósitos de conformação futura com o Direito e as regras básicas de vida em sociedade.

VII. Assim, julga-se adequada a pena única de 7 (sete) anos de prisão e 140 dias de multa, pena esta, contudo, já extinta.

Sendo que as penas já cumpridas terão de ser descontadas no cumprimento de tal nova pena única, nos termos do art. 78,  n.º1 do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I

Relatório



1. AA, mais detidamente identificado nos autos, foi condenado em cúmulo jurídico por penas decididas em três processos:

- 35/15…… com uma pena de 7 (sete) anos de prisão;

- 77/10....... com uma pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva já extinta por cumprimento;

- 878/15....... com uma pena de multa de 140 dias à taxa diária de €6,00 já extinta por cumprimento.

O acórdão de cúmulo jurídico, datado de 19.10.2020, condenou o Recorrente na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão, em cúmulo material com a pena de multa 140 dias à taxa diária de 6 euros.


2. Inconformado, interpôs recurso, em 18.11.2020, para o Tribunal da Relação, o qual, nos termos do art. 432, n. º 1 al. c) e n.º 2 do CPP, determinou a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


3. No referido recurso, foram as seguintes as suas Conclusões:

“1. Efectuado o cúmulo jurídico entre as penas neste processo cumuláveis, conclui-se que estariam em causa 3 (três) processos.

2. Dos 3 (três), duas penas de prisão e uma pena de multa.

3. Entendeu o Tribunal que as penas não são cumuláveis, devendo manter a pena de multa a sua autonomia.

4. Entendemos, porém, que a pena de multa deveria sempre integrar o cúmulo juntamente com as penas de prisão, e não operar o cúmulo material, na medida de 1/3 dos 140 dias, aplicando um princípio de desconto equitativo quanto ao cumprimento.

5. Por não se poder integrar essa pena por respeito ao princípio da reformatio in pejus, deverá apenas operar o respectivo desconto, sem acréscimo da moldura penal.

6. Efectuado o cúmulo entre as penas neste processo cumuláveis, resultou uma moldura penal que oscila entre o mínimo de 7 (sete) anos e o máximo de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

7. Ao se aplicar a pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão foi efectuada uma taxa de compressão de ½.

8. O Tribunal sobrepesou as 3 (três) decisões judiciais, o CRC do arguido e o seu Relatório Social.

9. O arguido foi dispensado de estar presente na audiência de cúmulo sendo que, por isso, não foi ouvido em relação às suas condições pessoais e sociais.

10. Por outro lado, o Relatório Social que foi junto aos autos não foi feito por entrevista directa com o arguido mas com base em elementos que já existiam, desconhecendo-se a actualidade das informações, da data e das circunstâncias em que foram obtidas.

11. Assentar a decisão, quanto às condições do arguido apenas nesse relatório, poderá ser faccioso.

12. Mais importante que a reclusão de um arguido, é a sua reintegração na sociedade e, de facto, quanto mais cedo a mesma se fizer, atendendo a sua idade, mais proveitosa e com sucesso se revela.

13. O arguido tem total apoio familiar, cumpre escrupulosamente as medidas em meio prisional, tem planos de vida no exterior bem sucedidos.

14. Dever-se-ia ter em conta a discrepância de gravidade dos crimes em questão, bem como as próprias molduras penais e os bens jurídicos em causa.

15. Aquando da sua condenação, operou-se, sensivelmente, a 1/4 em relação ao crime de condução de veículo sem habilitação legal e a 1/3 em relação ao Tráfico de Estupefacientes.

16. Ao se operar em cúmulo jurídico em 1/2, entendemos que está manifestamente a ser prejudicial ao arguido a pena ora aplicada.

17. Entendemos que a pena única aplicada ao arguido deverá ser mais próxima do mínimo legal, justificando-se a sua determinação nos 7 (sete) anos de prisão, nos termos dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal.


IV – Normas Violadas

Violaram-se as disposições legais que ao longo da motivação de recurso foram sendo citadas.


Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e:

a) Ser descontada no cúmulo a pena de multa já cumprida, segundo princípios equitativos; e

b) Ser aplicada uma pena única de 7 (sete) anos.”


4. O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo pronunciou-se, tendo apresentado as seguintes Conclusões:

1 - O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt, Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2 - “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

3 - São as conclusões, que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal.

4 - Possui o arguido um não negligenciável passado criminal.

5 - Foram ponderadas no Douto Acórdão as condições de vida e a personalidade da recorrente, como se infere de fls. e seguintes, onde se descrevem as circunstâncias de vida do AA as quais influenciaram a medida da pena, negativa e positivamente.

6 - Somos de opinião de que salvo em raras excepções, as pessoas são recuperáveis, devendo o aparelho preventivo-repressivo e reintegrador da Justiça e da Sociedade em geral, investir no arguido, sem esquecer o papel importante que cabe ao próprio recorrente.

7 - Questiona o arguido a medida da pena e como se diz no Douto Acórdão: “A moldura penal abstracta do cúmulo nos autos presentes vai do limite mínimo de 7 anos de prisão ao limite máximo de 7 anos e 6 meses de prisão. Ao que acresce a pena de multa de 140 dias à razão diária de €6,00, aplicada no processo 878/15......., já declarada extinta a qual mantém a sua natureza”.

8 - Sopesado o Douto Acórdão extrai-se que foram ponderadas todas as circunstâncias do arguido favoráveis e desfavoráveis, tais como a medida da culpa, antecedentes criminais e outros factores a ter em atenção, estando a pena em sintonia com a Lei e também com a Doutrina e a Jurisprudência dominantes.

9 - A pena a que o arguido foi condenado em 1ª instância é adequada às circunstâncias que abonam a favor e contra o arguido, e, em sintonia com a respectiva culpa, todavia entre os 7 anos e 3 meses de prisão e aquilo que o arguido reivindica, ainda há margem de manobra.

10 - A pena de multa cumula-se materialmente com a pena de prisão, ao contrário do que afirma o recorrente.

11 - Não foi violado nenhum dispositivo legal daqueles o arguido menciona na sua motivação.

12 - Deve persistir o Douto Acórdão com a eventual diminuição da pena de prisão.

Concedendo provimento parcial ao recurso”.


5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta igualmente se pronunciou, tendo concluído que “não repugnaria que a pena única seja fixada em 7 anos de prisão em cúmulo material com a pena de multa de 140 dias, sendo que as penas já cumpridas terão de ser descontadas no cumprimento de tal pena única, nos termos do art. 78º nº 1 do CP.”


6. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, tendo o recorrente mantido a posição assumida acerca da fixação da pena no limite mínimo de 7 (sete) anos, com desconto das penas já cumpridas. E assim entendendo que o recurso deveria merecer provimento.


Sem vistos, dada a presente situação pandémica, na vigência da situação de calamidade, cumpre apreciar e decidir em conferência.



II

Do Acórdão recorrido



Particularmente relevantes se afigura o seguinte segmento fáctico-decisório do Acórdão recorrido, sem prejuízo, como é óbvio, da atenção que merece a integralidade do mesmo:

“(…) 1. FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos provados, com relevância para a decisão a proferir:

A. Nos presentes autos (35/15……) foi o arguido julgado e condenado por decisão datada de 05.06.2018 e transitada em 25.11.2019 pela prática de um crime de trafico de estupefacientes, na pena de 7 anos de prisão.

B - O arguido praticou ainda os crimes abaixo discriminados e sofreu as seguintes condenações relevantes para este cúmulo:

1.   No âmbito do processo n.º 77/17......., por decisão transitada em julgado 07.11.2018, foi o arguido condenado, pela prática em 07.02.2017, de um crime condução de veículo sem habilitação legal, na pena de seis meses de prisão. Esta pena já foi declarada extinta a 24.02.2020.

2.   no âmbito do processo n.º 878/15....... da Comarca ……, por decisão transitada em julgado em 29.05.2017, foi o arguido condenado pela prática, em 10.07.2015, de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal na pena de 140 dias de multa à razão diária €6,00. Esta pena já foi declarada extinta por decisão de 09.10.2018.

C - O arguido sofreu ainda outras condenações:

a) No âmbito do processo n.º 681/05......., por Decisão proferida em 13.06.2007, transitada em julgado em 12.12.2016, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .05.2005, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, um crime de injúrias e um crime de ofensas à integridade física qualificada, na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa na sua execução e bem assim 50 dias de multa à razão diária de €5,00.

b) No âmbito do processo n.º 562/06......., por Decisão proferida em 21.12.2007, transitada em julgado em 13.03.2017, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .07.2006, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução e bem assim 180 dias de multa à razão diária de €5,00.

c) No âmbito do processo n.º 242/08......., por Decisão proferida em 14.07.2011, transitada em julgado em 20.09.2011, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .09.2008, de um crime de detenção de arma proibida, um crime de consumo de estupefacientes, um crime de corrupção activa e um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão suspensa na sua execução.

d) No âmbito do processo n.º 333/08......., por Decisão proferida em 28.09.2011, transitada em julgado em 28.02.2013, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .03.2008, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 2 anos de prisão.

e) No âmbito do processo n.º 92/10......., por Decisão proferida em 24.06.2016, transitada em julgado em 30.11.2017, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .04.2010, … .09.2009 e … .02.2010, de um crime de ofensa à integridade física, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 4 anos de prisão.

f) No âmbito do processo n.º 3443/07......., por Decisão proferida em 05.11.2013, transitada em julgado em 05.12.2013, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .01.2004, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, um crime de detenção ilegal de arma, na pena única de 15 meses de prisão suspensa na sua execução.

g) No âmbito do processo n.º 27/09......., por Decisão proferida em 07.01.2014, transitada em julgado em 06.02.2014, foi o arguido AA condenado pela prática, em 14.05.2009, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena 14 meses de prisão suspensa na sua execução.

h) No âmbito do processo n.º 472/06......., por Decisão proferida em 30.06.2015, transitada em julgado em 15.09.2015, foi o arguido AA condenado pela prática, em … .08.2006, de três crimes de ameaça, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução.

2 - São os seguintes os factos considerados provados nas sentenças que integram o cúmulo jurídico:

Nos presentes autos (35/15……).

Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o Verão de 2016 e até à data da sua detenção em 7 de Fevereiro de 2017, o arguido AA vem-se dedicando à venda de resina de canábis e cocaína;

O arguido adquiria o estupefaciente a um indivíduo em ... que não foi possível identificar, e que apenas se sabe atender pelo nome “BB”, sendo que em regra o mesmo era-lhe trazido a Portugal;

Quando assim não era, o arguido AA recorria a terceiros para se deslocarem a .... a fim de recolherem o estupefaciente, designadamente, ao arguido CC;

O arguido não vendia o estupefaciente directamente aos consumidores, mas sim a pessoas que depois o distribuíam por esses consumidores;

Entre essas pessoas conta-se, como já em cima foi dito, o arguido DD;

AA não mantinha o estupefaciente consigo, entregando-o imediatamente ao destinatário ou socorrendo-se de terceiros para o armazenarem, designadamente o arguido EE (sessões 1465 e 1466 do alvo 87402040);

O arguido AA organizava os encontros para receber o estupefaciente por meio de contactos telefónicos, tendo alterado o número de contacto por diversas vezes no período temporal mencionado, no decurso do qual utilizou pelo menos os seguintes números:  .....9434, .....5470, .....3027, .....7027, .....9776, .....9462, .....9795, .....8032, …..8401, .....0898, .....3830, .....4269, .....8747 e .....4100;

No âmbito da mencionada actividade o arguido AA, no dia 7 de Fevereiro de 2017, organizou a aquisição de três “fardos” de resina de canábis (correspondentes a 30kg cada um), que lhe deveriam ser entregues em Portugal;

Assim, pelas 13h36m do dia 7 de Fevereiro, o arguido iniciou uma série de vários contactos com o arguido FF, que intermediava o negócio com o mencionado “BB”, destinados a combinar a entrega dos três fardos de estupefaciente (apenso de transcrição de escutas do alvo 88866040)

A essa hora já o arguido FF se encontrava a caminho de Portugal com o estupefaciente, razão pela qual não garantiu ao arguido AA que o mesmo lhe seria vendido pelo preço que este pretendia;

Depois de realizados vários contactos entre os arguidos AA e FF, tendo alguns deles tido a intervenção do próprio “BB”, pelas 19h38m, FF encontrava-se no parque de estacionamento do Centro Comercial ……………, num automóvel com a matrícula …HYX conduzido pelo arguido GG;

Dentro do automóvel encontravam-se mais dois indivíduos que não foi possível identificar e que, pelas 20h55m, depois de FF ter recebido instruções de AA, saíram do mesmo e introduziram-se no automóvel com a matrícula …BSM que se encontrava estacionada dois lugares depois do automóvel em cima mencionado;

Pelas 20h56m, ambos os veículos abandonaram o referido Centro Comercial e entraram na A22 na direcção …. da qual saiu o veículo …BSM no referido nó;

O veículo em causa efectuou então uma manobra súbita de inversão do sentido de marcha, com o objectivo de despistar o veículo policial que o seguia, voltou a entrar na A.. tomando o sentido …. saindo no respectivo nó;

Após o referido veículo percorreu várias estadas secundárias e, quando perceberam que não conseguiriam furtar-se à intercepção policial, os seus ocupantes arremessaram por uma janela três fardos de resina de canábis, contendo 896 placas, com o peso total de 90.533,620g;

O veículo prosseguiu a fuga tendo sofrido um acidente, local onde foi abandonado e os respectivos ocupantes fugiram a pé, por terrenos de mato;

Enquanto tudo isto sucedia, os ocupantes do veículo …BSM estiveram em contacto com o arguido FF e com o arguido AA, sendo que este lhes deu instruções para que não parassem assumindo a tarefa de interceptar a passagem dos veículos policiais que o perseguiam;

O arguido AA recolheu os ocupantes do veículo, cerca das 23h, e levou-os para ……(sessão 34313 do alvo 85386040)

A resina de canábis em causa destinava-se a ser entregue ao arguido AA o que só não aconteceu em virtude da intervenção policial;

No âmbito do processo n.º 77/17........

No dia 07 de Fevereiro de 2017, pelas 23:30 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel, matrícula ...-SG-..., na Rua …..., sem o respectivo título que o habilitasse para tal;

2. O arguido sabia que não era titular de carta de condução ou qualquer outro documento que legalmente o habilitasse à condução estradal, e que, por isso, lhe estava vedada a condução de veículo motorizado na via pública;

3. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e prevista por lei penal

No âmbito do processo n.º 878/15.......

No dia 10.07.2015, cerca das 09:30, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …HYT, na Av. …………, nesta cidade de ……...

2. O arguido não possuía carta de condução ou outro documento que o titulasse a exercer a condução de tal veículo, situação que ainda se verifica na presente data.

3. O arguido sabia que não possuía habilitação legal para conduzir ou qualquer outro documento que lhe permitisse exercer a condução daquele veículo, mas, ainda assim, queria, como efectivamente sucedeu, conduzi-lo na via pública.

4. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.


3. Dados relevantes do processo de socialização

AA está atualmente a cumprir uma pena de 4 anos de prisão, à ordem do processo Nº 92/10....... do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ........ – Juiz ..., pelos crimes de ofensa à integridade física simples, resistência e coação sobre funcionário, condução de veículo sem habilitação legal e detenção de arma proibida.

À data da reclusão, em fevereiro de 2017, o arguido cumpria sob acompanhamento deste serviço e no âmbito do processo Nº 472/06......., pena de prisão de 1 ano e meio por crimes de ameaça, suspensa por igual período, transitada em julgado em 15.09.2015. Neste contexto o arguido manifestou dificuldades de mudança, mantendo uma rede social frágil e pró-criminal, descentrando-se gradualmente dos objetivos delineados no âmbito do PRS, persistindo num modo de vida desfavorável às regras sociais o que culminou na sua prisão.

À data da reclusão AA residia sozinho, encontrando-se incompatibilizado com a companheira, conforme corroborado por ambos, em ……/……., em apartamento arrendado mediante uma renda de 450€.

Não tinha vínculos de trabalho nem ocupação estruturada regulada.

Em termos económicos, não aparentava dificuldades ao nível da sua subsistência, que alegadamente assegurava com base em negócios de compra e venda de automóveis, atividade que desenvolvia informalmente, manifestando resistência à regularização daquela atividade, ou outra estruturada em termos legais.

Mantinha acentuada mobilidade geográfica, alterando frequentemente de residência na zona……. entre ... e ..., mantendo a morada da bisavó, ……-…., como referência para notificações judiciais. Esta mobilidade geográfica viria a inviabilizar nomeadamente o cumprimento de um dos objetivos do plano de reinserção social que correspondia à premente necessidade de obtenção da carta de condução.

Do seu modo de vida sobressaía, então, a limitação de interesses e das ocupações, relatando um quotidiano centrado na cultura física, cumprimento obsessivo de um regime dietético, adição de produtos anabolizantes e frequência de ginásio, afirmando ter abandonado o consumo de álcool e de estupefacientes.

Mantinha um relacionamento de proximidade com amigos e conhecidos conotados com comportamentos antissociais, nomeadamente com alguns dos coarguidos.

Globalmente apresenta vínculos fracos a contextos convencionais como trabalho e mesmo com a família. Apresenta fragilidades em termos de competências pessoais e sociais, principalmente ao nível da antecipação das consequências dos seus atos e assunção de responsabilidades.

Da história de vida de AA, assinala-se a separação dos progenitores aos 7 ou 8 anos do arguido, com a subsequente mobilidade do mesmo entre vários agregados materno e paterno e a perda da capacidade dos vários agentes educativos familiares em monitorizar/conter os comportamentos disruptivos manifestos e persistentes desde aquela altura.

Pelo que foi dado perceber, as práticas educativas tendem à inconsistência, entre atitudes extremadas de negligência/permissividade e corretivos desmesurados. Na prática o arguido habituou-se demasiado cedo a orientar-se sozinho, sendo descrito como uma criança revoltada e desobediente.

No período de adolescência ainda foi tentada a colocação num colégio interno na ... por um ano.

Posteriormente a mãe levou-o para ... onde se encontrava emigrada, tendo aí continuado a escolaridade. No entanto, envolveu-se em problemas com grupos desviantes, com intervenção das autoridades, vendo-se obrigado a voltar a Portugal aos 16 anos de idade.

O percurso escolar embora marcado por problemas disciplinares, não há registo de problemas cognitivos, tendo chegado a concluir 9º ano de escolaridade.

Na altura em que voltou para Portugal, registou as primeiras experiências de trabalho por orientação da família, designadamente na hotelaria e construção civil, sem continuidade. Embora sem problemas físicos ou limitações conhecidas acabou por nunca aderir a um emprego certo, vivendo de expedientes pouco claros.

A partir dos 17 anos de idade adotou um estilo de vida delinquencial, referenciado então como figura proeminente de um gang formado na zona de ……. entre 2003 e 2004. No meio era temido pelo seu temperamento impulsivo e violento, conhecido pelo uso de armas e desafiador das autoridades fazendo-se conduzir em veículos de elevada cilindrada, ainda que inabilitado. Mais era conhecido o seu envolvimento em tráfico de produtos estupefacientes, amplificando-se o seu temperamento temerário sob efeito de substâncias como o álcool ou a cocaína de que era consumidor regular.

Foi sendo constituído arguido em vários processos de natureza diversa, alguns dos quais absolvido por falta de provas, outros resolvidos só mais tarde depois de ter sido preso em ... em abril de 2010.

Em ... cumpriu na íntegra, pena privativa de liberdade de quatro anos e meio, no Centro Penitenciário ...…, por tráfico de estupefacientes e posse ilegal de armas. Em meio prisional registou comportamento irregular.

Até ser preso em ... o arguido alterava então o paradeiro entre Portugal e sul de ..., tendo designadamente encetado relação marital e posteriormente de matrimónio com jovem ..., da qual se terá divorciado e de cujo relacionamento tem uma filha atualmente com cerca de 9 anos de idade, entregue à respetiva família materna.

Neste período por várias vezes veio conduzido aos Tribunais portugueses para responder a múltiplos processos que tinha pendentes, todos resolvidos em penas de prisão suspensas na sua execução, cujo período suspensivo decorreu durante o período de prisão em .... .

Após ter saído em liberdade (setembro de 2014) ainda viveu algum tempo em …… com a mulher e a filha, na …………, vindo a separar-se cinco meses depois.

Em fevereiro de 2015 voltou ao meio de origem entre a zona …. /…………../……..

Refez a vida marital com uma cidadã brasileira, que o visita no Estabelecimento Prisional.

Em meio prisional, regista um comportamento ajustado às normas institucionais; está a trabalhar como faxina (substituto) desde 30-06-2020. Permanece em regime comum, não tendo ainda beneficiado de medidas de flexibilização da pena.


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FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou qualquer outro facto, com relevância para a decisão a proferir.


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3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

Baseou-se o Tribunal para dar como provados os factos supra referidos, no teor da Decisão proferida nos autos, bem como, no certificado de registo criminal do arguido e no teor das certidões judiciais juntas, tudo documentos autênticos judicialmente certificados.

O Tribunal teve igualmente em consideração o Relatório Social do arguido.


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4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Dispõe o artigo 78º, nº 1 do C.P. que, “se depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já estiver cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”. Tal norma “só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado” (cfr. nº 2 do mesmo artigo).

Considerando que a sentença proferida no âmbito do processo n.º 878/15....... transitou em julgado em 29.05.2017 e que os factos e crimes pelos quais foi julgado e condenado neste processo (07.02.2017) e no processo 77/17....... (07.02.2017), são anteriores à referida data conclui-se que o crime por que o arguido foi julgado e condenado nestes autos e nos processos supra referidos encontram-se em relação de concurso havendo, assim, que proceder ao cúmulo das penas aplicadas ao mesmo em tais processos, sendo competente para tal este processo por ser o da última condenação, ou seja, 05.06.2018 (art.° 471.°, n.º 2 do Cód. Proc. Penal).

A moldura penal do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo, em qualquer caso, ser ultrapassado o limite máximo de 25 anos tratando-se de pena de prisão e de 900 dias tratando-se de pena de multa e tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.° 77. °, n.º 2 do Cód. Penal).

Atento o que dispõe a citada norma legal a moldura penal abstracta do cúmulo situa-se entre o limite mínimo de 7 anos de prisão e o limite máximo de 7 anos e 6 meses de prisão. Ao que acresce a pena de multa de 140 dias à razão diária de €6,00, aplicada no processo 878/15.... e já declarada extinta, mas que mantem a mesma natureza.

Aqui chegados, atendendo à prática dos crimes, ao período temporal que mediou, o tipo de crimes ao valor dos mesmos e, acima de tudo ao percurso de vida do arguido.

Acresce o impacto positivo que a privação da liberdade tem vindo a provocar no arguido e que se traduz na sua motivação para a aquisição de competências pessoais e sociais a vários níveis.

Assim, o presente contexto prisional pode dar-lhe oportunidade de consolidação destes aspetos e de outros, minimizando os fatores de risco de modo a poder equacionar um futuro mais responsável e juridicamente aceite.

Desta forma, ponderando na sua globalidade os factos constantes das sentenças que aplicaram as penas parcelares bem como a personalidade do arguido, julga-se adequada a pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão e bem assim 140 dias de multa, pena esta já extinta.

(…)”



III

Fundamentação

A

Questões Processuais Prévias



1. Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso por este Supremo Tribunal de Justiça.

2. É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).

3. O thema decidendum no presente recurso é meramente a reapreciação do cúmulo jurídico, designadamente considerando, inter alia, a situação de a multa já haver sido cumprida.



B

Do Direito



1. Ao contrário dos sistemas em que vigora a acumulação material, que por vezes redunda em prisão perpétua (na prática) e até penas finais de duração impossível de cumprir pelos dados estatísticos da longevidade humana (com o risco de ultrapassarem a culpa do agente, as necessidades preventivas e tornarem impossível ou muito difícil qualquer aspiração preventiva), o nosso sistema, de cúmulo jurídico (nas suas diferentes vertentes), procura aproximar-se da pessoa do agente, adequar-se à sua culpa global, com rigoroso cumprimento do princípio da proporcionalidade e não renunciando ao ideal ressocializador,  enquadrando-se numa perspetiva humanista do Direito Penal (cf., v.g., Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, reimp., Coimbra, Almedina, 2018, p. 58; Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico Superveniente. Noções Fundamentais, reimp., Coimbra, Almedina, 2020, p. 8 ss.).

2. O Recorrente invoca, a dado passo das suas Alegações, o Acórdão do STJ de 13.02.2019, proferido no processo 1205/15.5T9VIS.S1 (Relator: Conselheiro Lopes da Mota):

“Tendo o arguido sido condenado numa pena de 240 dias de multa, e tendo em conta que a esta pena correspondem 160 dias de prisão (tempo correspondente reduzido a dois terços), deve esta pena de prisão ser incluída nas operações de cúmulo jurídico das penas dos crimes em concurso. Pelo que o limite máximo da pena aplicável passaria a ser de 21 anos, 5 meses e 10 dias de prisão. Este acréscimo é, porém, irrelevante na determinação da pena única (supra, 19), a qual, de qualquer forma, não poderia ser agravada por a isso se opor o princípio da proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º do CPP).

Uma vez que essa pena já se encontra cumprida, deve o tribunal com competência para a execução proceder ao desconto que parecer equitativo no cumprimento da pena única de prisão, nos termos dos artigos 78.º, n.º 1, e 81.º, n.º 2, do Código Penal.

Segue-se, assim, o preconizado por Maria João Antunes, que, na linha do que vem defendendo desde 2000, escreve na Revista de Legislação e Jurisprudência (ano 144, n.º 3992, 2015, p. 410-416): “Em suma, o artigo 77.º, n.º 3, do Código Penal não consagra o sistema de acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e a multa. Consagra antes o sistema da pena única conjunta, a determinar segundo um princípio de cúmulo jurídico, nos termos do qual há: (...) a conversão dos dias de multa em prisão subsidiária, segundo as regras do artigo 49.º, n.º 1; a construção da moldura penal do concurso, com um limite máximo correspondente à soma do tempo de pena de prisão concretamente aplicada a cada um dos crimes com o tempo de prisão subsidiária relativo ao outro crime (...)”.

O douto aresto em causa, embora com solução não consensual, é muito rico nos elementos que carreia para a fundamentação, nomeadamente:

“No sentido da acumulação material das penas de prisão e multa pode ver-se, nomeadamente, Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Católica Editora, p. 378), que defende que «as penas de multa são sempre cumuladas materialmente com a de prisão e, quando não seja paga a pena de multa, a execução da prisão em que venha a ser convertida seguir-se-á à execução da prisão directamente aplicada» (no mesmo sentido, pode ver-se a jurisprudência e doutrina aí citada). Em idêntico sentido considerou-se no acórdão de 17.05.2012 (proc. 471/06.1GALSD.P1.S1, rel Cons. Arménio Sottomayor, em www.dgsi.pt): “No Projecto de Revisão do Código Penal elaborado pela respectiva Comissão, previamente à Reforma do Código Penal em 1995, era proposto que havendo que cumular penas de prisão e penas de multa, estas seriam convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços. Abandonada essa solução o cúmulo far-se-á, na opinião do Conselheiro Maia Gonçalves, «entre as diversas espécies de penas, sendo a pena final uma pena compósita, composta por penas parcelares de espécies diferentes» (Código Penal Português 18, pág. 294/295). E no mesmo sentido se pronuncia o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal 2, pág.284): «Em caso de crimes punidos com penas de natureza diversa, a diferente natureza das mesmas mantém-se na pena conjunta. Assim, havendo concurso de crimes punidos com pena de prisão e crimes punidos com pena de multa [...] verifica-se uma verdadeira cumulação material das penas, mantendo-se autonomamente as penas de multa, o que tem relevância prática para efeitos da extinção da pena de multa pelo pagamento». Todavia, para a Prof.ª Maria João Antunes a norma do art. 77º nº 3 «não consagra o sistema da acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e multa. Do conteúdo desta norma resulta, por um lado, a reafirmação do sistema da pena única e, por outro, a possibilidade que o condenado tem de optar pela acumulação. Ou seja, quando se dispõe que «a diferente natureza destas mantém-se na pena única», quer isto significar somente que o condenado pode sempre pagar a multa, evitando assim que a pena única seja agravada» (Droga – Decisões de Tribunais de 1ª Instância - 1997 - Comentários, pág. 286)” (em sentido convergente pode ver-se também o acórdão de 14.03.2013, proc. 142/07.1PBCTB.C1.S1, rel. Cons. Maia Costa, em www.dgsi.pt).

Diferente entendimento se manifestou no acórdão de 06.03.2002 (proc. 01P4217, rel Cons. Lourenço Martins, em www.dgsi.pt), onde se lê: “… a disposição do aludido n.º 3 do artigo 77º do Código Penal não consagra o sistema da acumulação material quando as penas aplicadas aos crimes em concurso forem a prisão e multa. Do conteúdo desta norma resulta, por um lado, a reafirmação do sistema da pena única e, por outro, a possibilidade que o condenado tem de optar pela acumulação. Ou seja, quando se dispõe que «a diferente natureza destas mantém-se na pena única», quer isto significar somente que o condenado pode sempre pagar a multa, evitando assim que a pena única seja agravada. (…) Com efeito, para uma situação de concurso de penas de prisão e de multa haveria uma pena única, considerando-se a pena de multa convertida em prisão, segundo um critério que afinal era o geral (resultava também do n.º 3 do artigo 46º na versão originária do Código Penal) - dizia a CRCP. Repetindo a hipótese - concurso de penas de prisão e de multa -, o texto vigente afirma a pena única, mas com manutenção da diferente natureza de ambas. Em termos práticos: se a pena de multa for convertida em pena de prisão para efeito do cúmulo jurídico, mas mantiver a sua autonomia como pena parcelar, haverá algum obstáculo a que o condenado possa vir a efectuar o seu pagamento em qualquer momento que o deseje? Parece que não, uma vez que a pena foi concretamente discriminada antes da elaboração do cúmulo” (cita-se, neste sentido, Maria João Antunes, Droga - Decisões de Tribunais de 1.ª Instância, IPDT, 2000, pp. 286/87).”


3. Não se pode, sem embargo, olvidar que a síntese porventura mais evidente da posição prevalecente neste STJ será a de que “de acordo com o artº 77º nº 3 do C. Penal pode fazer-se o cúmulo de penas de prisão e multa se os crimes estiverem numa relação de concurso mas a diferente natureza dessas penas mantém-se na pena única que se determine. (…) Assim, se houver concurso de crimes nesses termos cumulam-se as penas de prisão entre si e, separadamente, cumulam-se as penas de multa também entre si. O resultado será a fixação de uma pena única de prisão e de uma pena única de multa que desse modo manterão a sua diferente natureza.», (Acórdão do STJ de de 07.01.2016, proferido no Processo n.º 1959/12.0 PBCBR.S (Sumários de Acs. 2016).

E ainda, no sentido de que as penas de multa “só poderão cumular-se entre si”, cf. os acórdãos do STJ de 07.12.2011, processo nº 93/10.2 TCPRT.S2, 5.ª S;  17.05.2012, processo 471/06.1 GALSD.P1.S1, 5.ª S (dgsi.pt); 10.01.2013, processo 218/06.2 PEPDL.L3.S1, 5.ª S (dgsi.pt); 14.02.2013, processo nº 241/99.1 PBVNO-A.S1,5ª S; 07.07.2016, processo nº 269/11.5 JABRG.G3.S.1, 5.ª S (Sumários Acs); 07.12.2016, processo nº 1216/15.0 T8EVR.E1.S1, 5.ª S (Sumários Acs); 19.01.2017, processo nº 673/13.4PLSNT.L1.S1, 5.ª S (dgsi.pt); 23.11.2017, Processo nº 32/15.4 GBABF.S3 , 5.ª S (Sumários Acs);          07.06.2018, processo nº 8662/09.7 TDPRT.S1, 5.ª S (Sumários Acs); 25.05.2015, proc. 173/08.4PFSNT.C1.S1, 3.ª S; 07.07.2016, processo nº 541/09.4PDLRS-A.L1.S1, 3.ª S (dgsi.pt); 26.10.2016, processo nº1604/09.1JAPRT.S1, 3.ª S (dgsi.pt); 02.10.2019, processo nº 1379/19.6 T8SNT.L1.S1, 3.ª S; 02.10.2109,proc. 1379/19.6T8SNT.L1.S1, 06.01.2021, proc. 634/15.9PAOLH.S2 (ambos em dgsi.pt), como é aliás assinalado no parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.


4. A situação de concurso superveniente é prevista no art. 78 do CP, que remete no seu n.º 1 para o art. 77 do CP. Importa salientar que na medida da pena são tidos em conta os factos e a personalidade do agente. Assim, esta injunção judicativa consta do art. 77 n.º 1, in fine, do Código Penal:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”


E recorde-se a síntese do nosso sistema de penas no caso de pluralidade de infrações constante do Acórdão deste STJ de 11-03-2020, proferido no Proc. n.º 996/14.5GAVNG-K.S1 - 3.ª Secção (Relatora: Conselheira Teresa Féria):

“I - Em caso de pluralidade de infrações a lei penal vigente – art. 77.º do CP - aderiu à fixação de uma pena conjunta em função de um princípio de cumulação normativa de várias penas parcelares, de molde a aplicar uma única pena pela prática de vários crimes.

II - A determinação da medida concreta de uma pena única em função do referido método de cumulação normativa desenrola-se em duas fases, numa primeira há que estabelecer a moldura penal aplicável “in casu”, a qual tem como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares e como limite máximo a soma aritmética dessas mesmas penas – art. 77.º, n.º 2,CP. Estabelecida a moldura penal haverá que, numa segunda fase, proceder a uma valoração conjunta de todos os factos e da personalidade do/a agente dos crimes – art. 77.º, n.º 1, do CP.

III – (…) De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização».

Veja-se ainda o Sumário do Acórdão deste STJ de 11-03-2020, proferido no Proc. n.º 8832/19.0T8LRS.S1 - 3.ª Secção (relator: Conselheiro Gabriel Catarino):

“I - A operação/formação da pena conjunta constitui-se, malgrado as tentativas de encontrar uma formulação minimamente arrimada a factores de estabilização (de feição e pendor aritmético) das variantes intervenientes no equilíbrio legal-funcional da determinação judicial das penas, um crisol de apriorismos lógico-racionais que se cristalizaram na prática judiciária e que vão ditando o ajuizamento de um ensejo e procura de justiça material que se pretende e almeja, com este instituto jurídico-penal.

II - Não concitando a possibilidade de encontrar para a composição da pena conjunta soluções de acomodamento aritmético e de operações lógico-categoriais num campo (escorregadio, volúvel e dúctil) como é aquele que está estabelecido para a determinação da pena (parcelar) e com mais acutilância e vinco conceptual na construção da pena conjunta, deverão fazer-se intervir factores de ponderação prudencial, razoabilidade e mundividência equânime, pragmatismo, sensibilidade e senso sociocultural e pessoal que possibilitarão/fornecerão os vectores de razoamento que permitirão constituir, parametrizar e sedimentar o acrisolamento lógico-conceptual de uma pena compósita e em que, por vezes, integram diversos tipos de ilícito.

Não parecem colher, ponderadamente, nem sequer eventuais regularidades que viessem a encontrar-se através de uma rigorosa sociometria jurisprudencial neste âmbito. Cada caso é um caso, e a gravidade deste necessita de um tratamento a ela adequado.”


C

Do Caso em Apreço



1. Deve recordar-se que a referida pena única de 7 anos e 3 meses de prisão em cúmulo material com a pena de multa 140 dias à taxa diária de 6 euros decorreu do cúmulo jurídico efetuado entre as penas:

- de 7 anos de prisão aplicada no processo 35/15……. (crime de tráfico de estupefacientes);

- de 6 meses de prisão, já declarada extinta, no processo 77/17....... (crime de condução sem habilitação legal);

- de 140 dias de multa à razão diária €6,00, já foi declarada extinta pelo cumprimento (crime de condução sem habilitação legal, no processo 878/15.......).

2. Uma vez declarada extinta, pelo cumprimento, a pena de multa aplicada no Processo n.º 878/15......., não se poderá senão deduzir que houve pagamento integral da pena de multa aplicada, no total de 840 euros, e assim não terá ocorrido aplicação de pena subsidiária de prisão.

3. A moldura penal abstrata do cúmulo em causa situa-se entre o limite mínimo de 7 anos de prisão e o limite máximo de 7 anos e 6 meses de prisão. Para além da pena de multa de 140 dias à razão diária de €6,00, aplicada no processo 878/15......., contudo já declarada extinta.

Apesar de, no percurso de vida do arguido, já ter havido outras condenações, além das já referidas, o Acórdão recorrido conclui, em seu abono, que

“Acresce o impacto positivo que a privação da liberdade tem vindo a provocar no arguido e que se traduz na sua motivação para a aquisição de competências pessoais e sociais a vários níveis.

Assim, o presente contexto prisional pode dar-lhe oportunidade de consolidação destes aspetos e de outros, minimizando os fatores de risco de modo a poder equacionar um futuro mais responsável e juridicamente aceite.”

E daí haver determinado a pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão e bem assim 140 dias de multa, pena esta já extinta, depois de ponderar os vários fatores que a lei impõe ter em consideração.


4. A própria sensibilidade do Tribunal recorrido à possibilidade de ressocialização do Recorrente, patente na transcrição supra, e o facto de o Ministério Público no Tribunal a quo e neste STJ expressamente admitirem, ambos, diminuição da pena de prisão, não podem passar despercebidos.

Com efeito, agora autonomamente analisando, na sua globalidade, como se de uma só conduta se tratassem, os entre si tão diversos (e de diferente gravidade) factos em apreço nas sentenças que aplicaram as penas parcelares, interagindo com a ideia que, dos autos, se forma da personalidade do arguido, também não repugna uma diminuição da pena de prisão em 3 (três) meses de prisão. Esperando que, efetivamente, o tempo de reclusão esteja a surtir um efeito de revisão da sua vida e propósitos de conformação futura com o Direito e as regras básicas de vida em sociedade.

Assim, julga-se adequada a pena única de 7 (sete) anos de prisão assim como 140 dias de multa, pena esta, contudo, já extinta.

Sendo que as penas já cumpridas terão de ser descontadas no cumprimento de tal nova pena única, nos termos do art. 78, n.º 1 do CP.


IV

Dispositivo



Termos em que, decidindo em conferência, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acorda em, nos termos do disposto nos art. 78 e 77 n.º 1 do CP, dar provimento ao recurso, decidindo:

a) Determinar a pena única de 7 (sete) anos de prisão, assim como 140 dias de multa, pena esta, contudo, já extinta.

b) Determinar o desconto do já cumprido no cumprimento da pena única agora decidida.

Sem custas         


Supremo Tribunal de Justiça, 12 de maio de 2021

Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)