Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DA GRAÇA TRIGO | ||
Descritores: | ÓNUS DE ALEGAÇÃO SEGURADORA SEGURADO FACTO CONSTITUTIVO FACTO IMPEDITIVO VEÍCULO AUTOMÓVEL ACIDENTE DE VIAÇÃO IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 09/15/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. De acordo com jurisprudência anterior do STJ: (i) incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC; (ii) Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam susceptíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC. II. Aplicando esta orientação ao caso dos autos, temos que à segurada cabia o ónus de provar a ocorrência da situação de “choque”, no caso, conforme por si alegado, o embate do veículo contra um corpo fixo; feita tal prova cabia à R. seguradora provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco. III. Verificando-se que a autora não logrou fazer prova de factos que preencham a situação de “choque”, nem tampouco de factos que integrem a situação de colisão, de capotamento ou de qualquer outra das hipóteses factuais cobertas pelo seguro, a cobertura não poderá funcionar, sem que seja necessário que a ré seguradora tenha alegado e/ou provado factos subsumíveis à cláusula ou cláusulas de exclusão. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. Answertoday, Lda. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Mapfre Seguros Gerais, S.A., pedindo a condenação da R. a pagar à A. a quantia de € 38.686,61, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação, até integral e efectivo pagamento e ainda a quantia que viesse a vencer, desde a data de propositura da acção até efectivo e integral pagamento, a título de paralisação e privação de uso da viatura acidentada, no valor diário de € 17,00. Alegou, em síntese, o seguinte: que é proprietária de um veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-OT-..; que esse veículo sofreu um acidente na Rua ..., ...; que nessa altura esse veículo se encontrava segurado na R., com cobertura de danos próprios; que nesse dia o veículo era conduzido por um seu funcionário; que o condutor do veículo OT circulava na referida artéria; que a referida via perfaz um cruzamento com a Rua ...; que, para quem circula nesta via, existe um sinal de Stop antes do cruzamento; que, no momento em que o veículo OT se aproximava do referido cruzamento, atento o seu sentido de marcha, deparou-se à sua direita com um motociclo que circulava na Rua ..., ... km/h, que não respeitou o referido sinal e que circulava com as luzes de cruzamento desligadas; que o condutor do veículo OT fez uma manobra evasiva, guinando completamente o volante para a esquerda, tendo conseguido evitar o embate com o motociclo, mas vindo a embater no muro da casa com o n.º 2695, que se encontrava à sua esquerda, ficando aí imobilizado; que, por força desse embate, ficou danificada a parte frontal do veículo OT; que a R. o informou que a viatura não tinha reparação; que a oficina exigiu à A. a quantia de € 2.944,62 pelo parqueamento do veículo OT até 14.03.2018; que a viatura se encontra imobilizada desde a data do acidente e que essa imobilização lhe provocou diversos transtornos pois era utilizada pelos sócios gerentes e pelos vendedores da A.. A R. apresentou contestação, alegando que o veículo OT estava sujeito a reserva de propriedade a favor do Banco 1..., S.A., encontrando-se este em situação de litisconsórcio com a A. na presente ação. Mais impugnou parcialmente a factualidade invocada e alegou, em síntese: que procedeu à reconstituição do acidente, tendo a perícia concluído que a participação é incongruente com as leis da física; que os danos verificados na viatura e na casa são incoadunáveis; que não ficaram quaisquer vestígios no pavimento; que o valor do veículo não é superior a € 24 650,00 e que o seguro não garante as coberturas de privação de uso nem de parqueamento. O tribunal admitiu a Intervenção Principal do Banco 1, S.A., para intervir nos autos no lado activo da causa. Citado, o Interveniente veio aderir à petição inicial apresentada pela A. e alegou ainda que celebrou com esta um contrato de mútuo concedendo-lhe € 24 000,00 para financiar a aquisição a crédito do veículo OT; que a A. pagou 60 mensalidades, das 96 acordadas, encontrando-se em dívida 36 mensalidades no valor total de € 14.146,56 e que acordaram constituir reserva de propriedade sobre o referido veículo a seu favor, sendo que, em caso de eventual pagamento pela R., tal valor lhe deverá ser pago, até perfazer o valor do crédito em aberto. Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 26.120,08, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde o dia seguinte à sua citação e até efectivo e integral pagamento, absolvendo a R. do mais peticionado. Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito. Por acórdão de 21 de Abril de 2022 o recurso foi julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a R. dos pedidos formulados pela A.. 2. Vem a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: «1 – O Recorrente deu entrada da presente ação, pedindo a condenação da Recorrida no pagamento da quantia global de € 38.686,61 (trinta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euros e sessenta e um cêntimos) como indemnização pelos danos resultantes do sinistro da sua viatura automóvel com a matrícula ..-OT-.., ao abrigo do contrato de seguro de danos próprios subscrito com a Recorrida. 2 – A Recorrida veio contestar, impugnando a versão dos factos, por entender que não tinha ocorrido o sinistro, tendo sido realizada a audiência de julgamento e, em consequência, sido a Recorrida condenada a pagar à Recorrente a quantia de € 26.120,08 (vinte e seis mil cento e vinte euros e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano. 3 – Na sequência daquela condenação, veio a Recorrida apresentar recurso de apelação para o Insigne Tribunal da Relação do Porto, impugnando a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da 1.ª instância, concluindo pelo pedido da sua absolvição, tendo sido proferido acórdão que alterou a decisão da primeira instância, designadamente os factos dados como provados e não provados e, em consequência, absolveu a aqui Recorrida do pedido formulado pela Recorrente. 4 – A Recorrente não concorda com a decisão vertida no douto acórdão. 5 – O Tribunal da Relação do Porto alterou a matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal de primeira instância. 6 – A Recorrente, ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatória com cobertura complementar de danos próprios causados entre outros por choque e colisão acionado esta cobertura, participou à Recorrida o sinistro descrito na sua petição inicial, do qual resultaram danos determinativos da perda total da sua viatura automóvel. 7 – De acordo com o aduzido, a primeira instância atendeu a tal pretensão, que veio a ser alterada pelo Tribunal da Relação que, após introduzir várias alterações à decisão proferida sobre a matéria de facto, julgou absolver a Recorrida. 8 – Não obstante o Tribunal da Relação do Porto não admitir o sinistro participado à Recorrida, com base na alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, assume que o veículo da Recorrente, no momento da peritagem levada a cabo pela Recorrida, encontrava-se sinistrado e em situação de perda total, pelo facto da reparação da mesma não ser economicamente viável. 9 – Ao Recorrente cabia a alegação e o ónus da prova da verificação do risco coberto, o que, in casu, o Recorrente fez com a prova da existência de danos no seu veículo em consequência de um sinistro, como quer que ele tenha sido provocado, aliás o Tribunal a quo refere-se ao veículo da Recorrente como veículo acidentado. 10 – Assim, à Recorrida cabia a alegação e o ónus da prova da verificação de uma situação excluída do risco (como facto impeditivo do direito do autor - art. 342/2 do CC) que, no caso é a de os danos terem sido "causados intencionalmente pelo tomador do seguro, segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro." (art. 41 das condições gerais do contrato de seguro)”, o que, in casu, não logrou alcançar. 11 – Neste pressuposto, se a Recorrida tem o ónus de provar que os danos sofridos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, para se livrar da responsabilidade, e se, por isso, se ela não provar que os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, isto é, se se desconhecer se os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, ela tem de responder pelos danos provados. 12 – A Recorrente, embora sem conseguir provar a sua versão do embate, conseguiu provar factos suficientes para que se possa dizer preenchida a previsão da cobertura contratada. 13 – Em suma, por não se provar que se esteja perante uma situação excluída do risco coberto, a Recorrida tem de pagar a contraprestação a que se obrigou. 14 – Deste modo, o que se discute e se pretende ver analisado nesta revista é saber como se reparte o ónus de alegação e de prova dos factos juridicamente relevantes para o reconhecimento (ou negação) do direito à indemnização do segurado fundado em cobertura facultativa de danos próprios inserta em contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, tendo em conta a impugnação pela seguradora, quer da existência do invocado acidente, quer da sua natureza fortuita. 15 – Estamos no âmbito da responsabilidade civil contratual da seguradora perante o seu segurado, face à obrigação por ela assumida de indemnizar este pelos danos na viatura causados, entre outros, por choque com qualquer corpo fixo. 16 – Na base de qualquer crédito indemnizatório emergente do contrato de seguro está, como se sabe, o sinistro. 17 – E o sinistro é a realização do risco previsto no contrato de seguro, desencadeador, pela sua própria natureza, da garantia subjacente ao seguro; não coincide necessariamente com o acidente, mas com as consequências deste. 18 – É o Tribunal da Relação do Porto que diz que a viatura automóvel OT, propriedade da Recorrente, encontrava-se sinistrada, no momento do seu transporte da Rua ..., em ..., para a oficina onde foi realizada a peritagem, bem como no momento da realização dessa peritagem. 19 – O contrato de seguro (de danos próprios) estipula-se para que a seguradora indemnize o segurado ou um terceiro – o seguro é um contrato indemnizatório - pelas consequências de um evento danoso. 20 – E daí que o risco, como possibilidade aleatória de que este evento se venha a verificar, constitua um pressuposto da causa contratual e seja elemento essencial do contrato. 21 – Podemos então concluir que o risco consiste na previsão abstrata do evento, como possível ou provável e que o sinistro é, por sua vez, a realização e concretização desse evento. 22 – No caso em apreço, depois de na Apólice se prever, como objeto das garantias do seguro, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel (seguro obrigatório), previu ainda no mesmo instrumento o alargamento das coberturas do contrato de seguro a outros riscos ou garantias (coberturas facultativas), de harmonia com as coberturas e exclusões constantes das Condições Especiais que foram contratadas. 23 – E uma dessas coberturas facultativas abrangidas pelo contrato de seguro foi a da garantia do pagamento das indemnizações, fora do âmbito do seguro obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, devidas por choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros. 24 – De comum o choque e a colisão têm, entre si, a noção de embate, mas enquanto o choque é um embate num objeto ou obstáculo fixo, a colisão é um embate entre objetos em movimento. 25 – No caso em apreço, é dado como provado que a viatura, no momento da peritagem, encontrava-se acidentada, aliás consta do próprio auto policial junto aos autos. 26 – Interpretada a matéria de facto provada, forçoso é concluir que estamos na presença de um acidente - acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação rodoviária de um veículo - para, conjugado com a cobertura facultativa de danos próprios constante da Apólice, criar na esfera jurídica da Recorrente o crédito indemnizatório contra a Recorrida pelos danos causados com o choque no veículo. 27 – Os casos de exclusão da garantia da cobertura configuram-se como factos impeditivos do direito do segurado à indemnização cujo ónus de alegação e de prova compete a quem deles se pretende aproveitar - in casu, a seguradora – por força do art. 342º nº2 CC. 28 – Daí que, perante a pretensão indemnizatória, sobre a seguradora a quem tal pretensão é apresentada, recaia o ónus de alegar todos os factos que, a serem demonstrados, impliquem a sua desoneração da obrigação de indemnizar. 29 – Ora, no caso sub judice, se bem atentarmos na contestação da Seguradora, ora recorrente, ela nunca alegou clara e expressamente que o “acidente” foi provocado pelo segurado, limitando-se a referir que o sinistro não ocorreu. 30 – Sendo assim, entendemos que inverter o ónus da prova, competindo-lhe fazer prova do que alegou, o que não logrou alcançar. 31 – E era curial que o fizesse se pretendia aproveitar da exoneração da responsabilidade contratualmente prevista e que funcionava como facto impeditivo do direito invocado pelo seu segurado. 32 – Tendo sido dado como provado que a viatura OT encontrava-se sinistrada, no momento da participação à Recorrida, entendemos que esta está obrigada a indemnizar a Recorrente, na medida do contratualmente estabelecido no contrato de seguro e sobejamente referido nos presentes autos. 33 – Deste modo, deverá ser alterado o acórdão sob análise, por não ter sido valorado, corretamente, o dano sofrido pela Recorrente com o sinistro participado, designadamente o valor da viatura que, após o sinistro, ficou num estado de perda total, 34 – Devendo a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente a quantia de € 26.120,08 (vinte e seis mil cento e vinte euros e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, de acordo com o que tinha ficado definido em primeira instância.». A R. contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido. Cumpre apreciar e decidir. 3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção do acórdão da Relação): 1 - O veículo de matrícula ..-OT-.., desde 02/07/2014, encontra-se registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome da Autora, encontrando-se aí igualmente registada a reserva de propriedade desse veículo a favor do Interveniente Banco 1, SA – cfr. doc. junto aos autos a 22/11/2019, a fls. 148, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 2 – Em 30/03/2017 o referido veículo encontrava-se segurado na Ré pela apólice ...92 – cfr. doc. nº 1, junto com a contestação, constante de fls. 28 a 30, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 3 – Essa apólice previa uma cobertura de danos próprios, entre o mais, para os casos de choque, colisão ou capotamento, até ao valor de €29 714,28, com uma franquia de 2% sobre capital seguro mínimo - €250,00. 4 - Na Rua ..., junto ao número de polícia ...95, existe um cruzamento com a Rua .... 5 - Nesse local, a referida rua apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de marcha. 6 - Imediatamente antes da chegada àquele cruzamento, existe, para quem circula na Rua ..., um sinal de paragem obrigatória - STOP. 7 – Foi chamada ao local a autoridade policial, tendo comparecido a Guarda Nacional Republicana de ..., que elaborou o respetivo auto, conforme documento junto com a petição inicial como doc. nº 1, a fls. 9 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 8 - O condutor do veículo OT foi submetido ao teste de alcoolémia, tendo tido como resultado uma TAS de 0,00. 9 - Efetuada a participação do acidente à Ré, esta não assumiu a responsabilidade pelo sinistro, não tendo indemnizado a Autora pelos danos para ela emergentes do acidente dos autos. 10 - Após a participação, o veículo OT foi objeto de uma perícia realizada pelos peritos da Ré. 11 - A Ré entendeu na peritagem realizada ao veículo OT, que a reparação não era viável 12 - Atento o estado da viatura. 13 – O veículo encontra-se segurado pelo valor de €29.714,28 (vinte e nove mil setecentos e catorze euros e vinte e oito cêntimos), estando prevista para os casos de choque, colisão ou capotamento uma franquia de €594,20. 14 - Ao veículo acidentado atribuíram a quantia de €3.000,00 (três mil euros), sendo que a franquia do seguro ascendia à quantia de €594,29 (quinhentos e noventa e quatro euros e vinte e nove cêntimos). 15 – O OT ficou imobilizado a aguardar uma decisão da Ré. 16 - A Ré, em 3 de Maio de 2017, informou a Autora que a viatura automóvel OT não tinha reparação – cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial, a fls. 11, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 17 - A Ré procedeu à peritagem da viatura automóvel OT, na sociedade M..., Lda. 18 - Tendo a viatura OT ficado imobilizada naquela oficina a aguardar uma decisão da Ré, quanto à assunção das responsabilidades. 19 - Uma vez que a Ré não assumiu as suas responsabilidades contratuais, foi exigido pela oficina acima indicada à Autora, a quantia de €2 944,62 (dois mil novecentos e quarenta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos) pelo parqueamento da viatura OT, desde o dia 7 de Abril de 2017 a 14 de Março de 2018, data da retirada da viatura da oficina, conforme documento nº ... junto com a petição inicial, junto a fls. 12, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 20 - A viatura automóvel da Autora encontra-se imobilizada. 21 - A imobilização da viatura automóvel da Autora, provocou a esta transtornos profissionais, pois era utilizada pelos seus sócios-gerentes e vendedores no exercício da atividade comercial daquela, nomeadamente para se deslocarem a fornecedores e a clientes. 22 - A atividade económica da Autora tem uma área de intervenção nacional, ou seja, tem 23 - clientes e fornecedores por todo o país. 24 - O OT era utilizado nessas deslocações mais longas, atenta as suas características. 25 - O OT é um veículo automóvel de passageiros da marca Mercedes Benz, modelo ... E AA, versão E..0 CDI Avantgarde. 26 - A primeira matrícula do OT remonta a 09/03/2010. 31 [sic] – O OT foi importado. 27 - A apólice referida em 2 teve o seu início em 16/06/2014. 28 - Em junho de 2016, essa apólice foi renovada para o período de 16/06/2016 a 06/06/2017. 29 – O veículo tinha faróis de nevoeiro xenon bidirecional. 30 - O OT foi transportado por reboque para as instalações da M..., escolhida pela Autora. 31 – O OT ostentava uma multiplicidade de danos em toda a zona frontal, com principal incidência na parte central da mesma, verificando-se deformações ao nível do capot, para-choques, faróis dianteiros e ainda interiormente o acionamento do sistema de airbags frontais, incluindo o do passageiro. 32 – No momento da averiguação, a Autora já tinha adquirido um outro veículo com vista à substituição do OT e não tinha interesse no salvado para restauração do veículo. 33 – O Interveniente Banco 1, SA, no âmbito da sua atividade de concessão de crédito acordou com a Autora, em 26/05/2014, conceder-lhe um empréstimo, conforme documentos juntos como doc 1 do articulado que juntou em 03/07/2019, que consta de fls. 109 a 111 dos autos e junto em 09/05/2019, a fls. 78 a 92, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. 34 – No âmbito desse acordo o Interveniente concedeu à Autora um empréstimo de €24 000,00. 35 - Esse montante destinou-se a financiar parte da aquisição por parte da Autora, do veículo com a matrícula ..-OT-.., com o valor de venda de €38 000,00. 36 - Por força do acordo referido em 38, a Autora acordou em pagar ao Interveniente 96 mensalidades de €392,96, vencendo-se a primeira em 05/07/2014 e as restantes, sucessivamente, em igual dia dos meses subsequentes. 37 - A Autora pagou 67 mensalidades encontrando-se por pagar as restantes. 38 - Para garantia do integral cumprimento do acordado, o Interveniente e a Autora acordaram em constituir a reserva de propriedade sobre o ..-OT-.. a favor do Interveniente. 39 - A apólice referida em 2 previa ainda a cobertura de atribuição de veículo de substituição, sem franquia. 40 – A Ré atribuiu à Autora veículo de substituição do OT de 11/04/2017 a 11/05/2017, por força do acionamento dessa cobertura da apólice. 41– Nas condições especiais da apólice referida em 2, consta no art. 2º da cláusula 02º que deve entender-se por choque, colisão ou capotamento, nos seguintes termos: “Para efeitos desta cobertura considera-se: CHOQUE: o embate do veículo contra qualquer corpo fixo ou o embate sofrido pelo veículo imobilizado, causado por outro veículo ou qualquer outro corpo em movimento. COLISÃO: o embate entre o veículo em movimento e qualquer corpo em movimento. CAPOTAMENTO: o acidente em que o veículo perca a sua posição normal e que não resulte de choque ou colisão.” 42 – E consta ainda no art.1º, nºs 1 e 2, da cláusula especial 12 que a cobertura de veículo de substituição “garante o aluguer de um veículo de substituição, caso o segurado fique privado do uso do veículo seguro por imobilização ocasionada por perda parcial ou total em consequência de sinistro garantido pelas coberturas de Choque, Colisão ou Capotamento (…) desde que contratadas” e que “esta cobertura é limitada ao máximo de 30 (trinta) dias por sinistro e anuidade” – cfr doc. junto pela Ré em 02/08/2021, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Factos dados como não provados: a) O OT circulava no interesse da Autora. b) O condutor do OT seguia pela faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha. c) O local onde ocorreu o embate, atento o sentido de marcha do veículo OT, é imediatamente anterior a uma curva acentuada para a esquerda. d) No momento em que o veículo OT se aproximava do mencionado cruzamento, atento o seu sentido de marcha, deparou-se, à sua direita, com um motociclo que circulava na Rua ..., imprimindo uma velocidade superior a 50 quilómetros horários. e) O aludido motociclo entrou na Rua ..., não respeitando o sinal de paragem obrigatória. f) O motociclo circulava com as luzes de cruzamento desligadas. g) O condutor do veículo OT fez uma manobra evasiva, no intuito de evitar a colisão com o veículo motociclo, guinando, por completo, o volante para a sua esquerda. h) O condutor do veículo OT tentou evitar o embate com o veículo motociclo com uma manobra evasiva, o que conseguiu. i) A Autora não reúne, de momento, condições económico-financeiras para adquirir uma viatura automóvel com as características da viatura acidentada. j) A Autora não possuindo outra viatura automóvel que pudesse substituir a viatura OT, foi obrigada a solicitar aos membros dos corpos gerentes viaturas emprestadas, para utilizá-las na prossecução da sua atividade económica. k) Aquando da renovação da apólice a Autora, através do seu representante legal, declarou à Ré os seguintes valores para efeitos de cobertura de danos próprios: - Valor do veículo €25 714,28; - Extras: €4 000,00 – jantes em liga leve: €2 000,00 e faróis de nevoeiro xenon bidirecional: €2 000,00. l) A rebocadora que efetuou o transporte do OT foi a S.... m) Existem relações de amizade entre o representante legal da Autora e os responsáveis da oficina M.... n) O valor patrimonial do OT é não superior a €24 650,00. o) Os peritos da Ré, quando se deslocaram àquela oficina para procederem à elaboração da peritagem à viatura aqui em crise, foram alertados que se não fosse realizada a reparação naquela oficina, seriam imputados os custos de parqueamento da viatura, que ascenderia à quantia diária de €7,00 (sete euros), acrescido de IVA. p) Se a Autora recorresse a um rent-a-car para alugar um veículo com as mesmas características, teria de desembolsar diariamente, um valor superior a €17,00 por dia. q- No dia 30 de março de 2017, cerca das 23 horas e 45 minutos, o veículo da marca Mercedes Benz, modelo ... Cdi, com a matrícula ..-OT-.., era conduzido por BB, funcionário da Autora, autorizado por esta. r – O condutor do veículo OT seguia na Rua ..., em ..., ..., no sentido ... – .... s – O condutor do OT despistou-se e veio a embater com este veículo no muro da casa com o número de polícia ...95 que se encontrava à sua esquerda. t – Por força desse embate o veículo OT ficou imobilizado na artéria onde circulava. u – E sofreu estragos na sua parte frontal. 4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso. Assim, o presente recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão: - Repartição do ónus de alegação e de prova dos factos juridicamente relevantes para o reconhecimento do direito a indemnização fundado em cobertura facultativa de danos próprios incluída em contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. 5. Recordemos que a sentença da 1.ª instância, considerando ter ficado provada a ocorrência de um acidente rodoviário, do que qual resultaram danos para o automóvel da A., coberto por cláusula do contrato de seguro celebrado com a R. seguradora, julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia de € 26.120,08, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano. Em sede de apelação, impugnou a R. a matéria de facto, designadamente os seguintes pontos relativos à ocorrência do acidente: 4 - No dia 30 de março de 2017, cerca das 23 horas e 45 minutos, o veículo da marca Mercedes Benz, modelo ... Cdi, com a matrícula ..-OT-.., era conduzido por BB, funcionário da Autora, autorizado por esta. 5 – O condutor do veículo OT seguia na Rua ..., em ..., ..., no sentido ... – .... 6 - Na Rua ..., junto ao número de polícia ...95, existe um cruzamento com a Rua .... 7 – Nesse local, a referida rua apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de marcha. 8 - Imediatamente antes da chegada àquele cruzamento, existe, para quem circula na Rua ..., um sinal de paragem obrigatória - STOP. 9 – O condutor do OT despistou-se e veio a embater com este veículo no muro da casa com o número de polícia ...95 que se encontrava à sua esquerda. 10 – Por força desse embate o veículo OT ficou imobilizado na artéria onde circulava. 11 – E sofreu estragos na sua parte frontal. 12 – Foi chamada ao local a autoridade policial, tendo comparecido a Guarda Nacional Republicana de ..., que elaborou o respetivo auto, conforme documento junto com a petição inicial como doc. nº 1, a fls. 9 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido. A Relação alterou a decisão de facto, dando como provado apenas o seguinte: 4 - Na Rua ..., junto ao número de polícia ...95, existe um cruzamento com a Rua .... 5 - Nesse local, a referida rua apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de marcha. 6 - Imediatamente antes da chegada àquele cruzamento, existe, para quem circula na Rua ..., um sinal de paragem obrigatória - STOP. 7 – Foi chamada ao local a autoridade policial, tendo comparecido a Guarda Nacional Republicana de ..., que elaborou o respetivo auto, conforme documento junto com a petição inicial como doc. nº 1, a fls. 9 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Reapreciando a decisão de direito, concluiu o tribunal a quo nos seguintes termos: «[N]a presente ação a autora tinha de provar a factualidade por si alegada na petição como causa do sinistro. O certo é que da prova produzida não resulta provado que o veículo foi efectivamente objecto de um sinistro – despiste seguido de embate na parede exterior da casa – nos moldes participados. E não estando demonstrados tais factos, daí resulta que a apelada não logrou demonstrar os pressupostos constitutivos do direito que reclama da seguradora-apelante. Assim, a presente ação está votada ao insucesso.». Contra esta decisão, insurge-se a A., alegando essencialmente o seguinte: - Ao A. cabia o ónus de alegação e de prova da verificação do risco coberto, o que foi cumprido com a prova da existência de danos no seu veículo em consequência de um sinistro, como quer que ele tenha sido provocado; - À R. cabia o ónus de alegação e de prova da verificação de uma situação excluída do risco (como facto impeditivo do direito do autor - art. 342, n.º 2 do CC) que, no caso, é a situação de os danos terem sido "causados intencionalmente pelo tomador do seguro, segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro" (art. 41 das condições gerais do contrato de seguro)”, o que, no caso, não foi alcançado; - Se a R. tem o ónus de provar que os danos sofridos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, desconhecendo-se se os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro, ela tem de responder pelos danos provados; - A A., embora sem conseguir provar a sua versão do embate, conseguiu provar factos suficientes para que se possa dizer preenchida a previsão da cobertura contratada; - Em suma, por não se provar que se esteja perante uma situação excluída do risco coberto, a R. tem de pagar a contraprestação a que se obrigou. Por sua vez, a Recorrida pugna pela manutenção do acórdão recorrido, alegando que: - Erra a Recorrente ao invocar que incumbia à seguradora afastar o evento danoso do âmbito da cobertura da apólice de danos próprios, designadamente pela prova de que se está diante de uma situação excluída do contrato (evento intencional ou doloso); - Tal ónus não impende sobre a R. pois que o que está em causa não é a alegação de uma situação/cláusula excludente do contrato de seguro – o que não foi invocado – mas sim a necessidade de a A. alegar e provar a ocorrência de um concreto sinistro susceptível de permitir accionar a cobertura do seguro contratado; - Ora, a A. não fez prova do sinistro por si invocado na petição inicial, concretamente que o condutor do veículo seguro, por ter realizado uma manobra evasiva a fim de evitar a colisão com um motociclo, desviou para a esquerda, e acabou por embater no muro de uma habitação; - Apenas ficou provado que o veículo ostentava danos; - Assim, a pretensão da A. tinha, necessariamente, de soçobrar. Vejamos. Perante a alteração da matéria de facto dúvidas não subsistem – nem tal foi invocado pelas partes – que, estando provado que o veículo automóvel da A. sofreu danos, não está contudo provado como foram esses danos causados. Encontra-se previsto na apólice de seguro junta aos autos com a contestação que a cobertura do seguro por danos próprios abrange as situações, identificadas sob CE004, de “Choque, Colisão ou Capotamento”, as quais são assim definidas (cfr. facto provado 41): “Para efeitos desta cobertura considera-se: CHOQUE: o embate do veículo contra qualquer corpo fixo ou o embate sofrido pelo veículo imobilizado, causado por outro veículo ou qualquer outro corpo em movimento. COLISÃO: o embate entre o veículo em movimento e qualquer corpo em movimento. CAPOTAMENTO: o acidente em que o veículo perca a sua posição normal e que não resulte de choque ou colisão.”. Prescreve o art. 342.º do Código Civil que: «1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.». A aplicação destas regras legais ao contrato de seguro faz-se, na feliz síntese do sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 10.03.2016 (proc. n.º 4990/12.2TBCSC.L1.S1)[1], disponível em www.dgsi.pt, síntese que corresponde fielmente ao conteúdo da fundamentação do mesmo acórdão[2]: - «[I]ncumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC.». - «Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC.». Aplicando esta orientação ao caso dos autos, temos que à A. segurada cabia o ónus de provar a ocorrência da situação de choque, no caso, conforme por si alegado, o embate do veículo contra um corpo fixo; feita tal prova cabia/caberia à R. seguradora provar «os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual». Verificando-se que a A. não logrou fazer prova de factos que preencham a situação de choque, nem tampouco de factos que integrem a situação de colisão, de capotamento ou de qualquer outra das hipóteses factuais cobertas pelo seguro por danos próprios, tal cobertura não poderá funcionar, sem que seja necessário que a R. seguradora tenha alegado e/ou provado factos subsumíveis à cláusula ou cláusulas de exclusão. Esclareça-se que a conclusão a que se chegou no acórdão recorrido, e que se sufraga integralmente, não é infirmada por, em sede de decisão de facto, se fazer pontualmente uso do termo “sinistro” (cfr. facto 9) ou da expressão “veículo acidentado” (cfr. facto 14). No contexto da circunstanciada fundamentação do mesmo acórdão, no que à alteração da decisão de facto respeita, constata-se que a dita terminologia não é utilizada com o sentido técnico-jurídico que a Recorrente lhe pretende atribuir. Conclui-se, assim, pela improcedência da pretensão da Recorrente. 6. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido. Custas pela Recorrente. Lisboa, 15 de Setembro de 2022 Maria da Graça Trigo (Relatora) Catarina Serra Paulo Rijo Ferreira ______ [1] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes e votado pela aqui relatora como 1ª adjunta. |