Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1011/11.6TBAGH.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIFAMAÇÃO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
TRIBUNAL COMUM
DIREITO CANÓNICO
CONCORDATA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FACTOS CONCLUSIVOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Mantém-se na nossa ordem jurídica o mecanismo anteriormente previsto no artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, devendo ser suprimida da fundamentação de facto da sentença toda a matéria dela constante suscetível de ser qualificada como questão de direito, bem como a que integre juízos conclusivos ou de valor;

II. Atendendo à causa de pedir configurada pelo Autor, a invocada relação jurídica envolve a pretensão ao ressarcimento de repercussões advindas, não de violações do direito canónico, mas de imputações – “difamações/pressões” – ilícitas e culposas que, tendo sido, supostamente, perpetradas pela ré Diocese, colimaram os direitos de personalidade do autor, sendo de apreciar pelos tribunais comuns.

III. De acordo com os factos provados, a atuação da Ré não traduz a violação de qualquer direito ou interesse protegido do Autor, tendo aquela atuado no quadro do direito canónico, a que o próprio Autor se vinculou enquanto sacerdote, em especial, no que concerne ao dever de “transmitir uma salutar imagem da instituição que representava, agregadora da comunidade pastoreada e não causadora de estranheza ou reacções negativas por parte dos seus paroquianos”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I. Relatório

1. AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, contra Diocese ……, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de €30 500,00 (trinta mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

 Alegou, em síntese, que:

- é sacerdote católico e durante 10 anos exerceu tais funções ao serviço da Ré;

- em fins de agosto de 2010, entregou-lhe um atestado médico do foro psiquiátrico, não podendo continuar a exercer as funções de sacerdote nas paróquias…….. e …….. o que a Ré reconheceu;

- a Ré comunicou que deveria deixar as duas paróquias até .../09/2010, devendo o passal dos ………. ficar livre a partir de tal data e que este podia residir na Casa Sacerdotal ……. ou …….;

- o Autor foi fazendo os seus próprios descontos para a Segurança Social do seu vencimento enquanto padre;

- na sua doença foi acolhido por uma família amiga e abandonado ao seu destino pelos seus pares, bem como pela Ré;

- em .../12/2010, a Ré admoestou-o, porque, alegadamente, vivia uma situação escandalosa, querendo referir-se que vivia na mesma casa em que uma senhora chamada BB, divorciada e com ... filhas menores também residia;

- naquela casa viviam também os pais desta senhora e o seu irmão, quando de visita à sua família nas férias escolares;

- não procurando saber se o Autor partilha qualquer quarto ou cama com a mesma;

- o que de facto não sucede, dado que o Autor tem o seu próprio quarto, não vivendo maritalmente com tal senhora;

- com quem apenas mantém uma relação de grande amizade, bem como com a família, e por isso com amargura e estupefação levou-o a escrever a carta datada de .../02/2011, que junta;

- o Autor não abandonou as paróquias onde se encontrava, antes foi mandado sair de lá e não vive qualquer relação escandalosa com a dita senhora;

- nos 24 meses que antecederam esta situação, o Autor foi sujeito às maiores pressões e difamações provocadas pela Ré e a si dirigidas;

- acusando-o de se encontrar em situação de escândalo para com os seminaristas, mantendo que vivia em união de facto com a dita BB e retirou-o de dar aulas no Seminário…, onde lecionou por 15 anos;

- pressionando-o para que fosse falar com o Bispo  …… e para que fosse viver para uma das casas Sacerdotais ou em …… ou em ……., fazendo tábua rasa do atestado que lhe enviou;

- e afirmando até que não estava para sustentar a mulher e os filhos com quem o Autor vivia, o que lhe provocou uma profunda depressão, da qual não consegue sair e para a qual é medicado;

- vive uma tristeza profunda, tem dias que não dorme, em que passa as noites em claro, em que chora, ansioso, revoltado com as inverdades de que está a ser vítima por parte da Ré;

- vive com medo do futuro, aumentando o seu estado nervoso pelos que estes danos merecem a tutela do direito.

2. Citada, a Ré veio contestar, defendendo-se por exceção e impugnação, concluindo, no sentido da procedência da exceção invocada, com a sua consequente absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido, com a sua consequente absolvição do mesmo pela improcedência da ação, alegando que:

- atendendo que a admoestação que lhe foi aplicada pela Diocese de …… e porque o Autor é padre, não pode ser dirimida nos tribunais comuns, mas apenas discutida e tratada nos tribunais eclesiásticos;

- o direito a aplicar apenas pode ser o direito canónico, dado que as questões in casu, se prendem com o voto de celibato do Autor, pelo que se invoca a incompetência material para este tribunal comum julgar esta questão que apenas deve e pode ser dirimida nos tribunais eclesiásticos aplicando-se o direito canónico;

- o que determinará a absolvição da Ré da instância, atenta a incompetência absoluta do Tribunal;

- mantendo o Autor a categoria de sacerdote católico, e assumindo o mesmo que vive na mesma casa que a Dª BB, tal não pode suceder;

- sendo igualmente do conhecimento público que o Autor se faz acompanhar em locais públicos com esta senhora, o que tem provocado grande estranheza juntos dos seus paroquianos, causando escândalo público;

- quem provocou estes comentários foi o próprio Autor, com o seu comportamento e, por isso, não pode agora acusar a Ré das consequências de tais atitudes;

- relativamente ao atestado médico que juntou, a Ré recebeu-o e por isso libertou-o das obrigações que o mesmo disse que não podia assumir;

- não difamou o Autor antes foi ele que juntou os documentos eclesiásticos demonstrando o que se estava a passar na igreja e, portanto, de qualquer forma não se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil.

3. Em sede de réplica, veio o Autor responder à exceção invocada, no sentido da sua improcedência, defendendo a competência do foro para conhecer do pedido deduzido, considerando a questão suscitada como de mera responsabilidade civil.

4. Dispensou-se a realização da audiência prévia, fixado o valor da causa, tendo sido proferido despacho saneador, que conheceu da exceção de incompetência material e internacional dos tribunais judiciais comuns, julgando improcedente a exceção; foi fixado o objeto do litígio e indicados os temas de prova.

Foi interposto recurso de apelação da decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência arguida, tendo a mesma sido julgado improcedente.

Interposto recurso de revista pela Ré, o STJ veio a negar a revista.

5. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, “e em consequência, condeno a DIOCESE ……, a pagar ao autor AA, a título de indemnização civil pelos danos não patrimoniais e morais por este sofridos em consequência das condutas da ré, a quantia total de 18.000,00 (dezoito mil euros), acrescidos os juros de mora, os quais são devidos desde a data da citação para a presente acção, até integral e efectivo pagamento pela Ré.”

6. Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação …….. .

7. O Tribunal da Relação  ……. veio a proferir a seguinte decisão:

“I) Julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Recorrente/Ré DIOCESSE ………., em que figura como Apelado/Recorrido/Autor AA;

II)   Em consequência, revoga-se a sentença recorrida/apelada, que se substitui por decisão que julga totalmente improcedente a acção, com consequente absolvição da do pedido deduzido;

III) Considerar prejudicado o conhecimento do segmento recursório da invocada nulidade de sentença por ausência de fundamentação do quantum indemnizatório fixado nos termos das alíneas b) e c), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil.”

8. Inconformado com tal decisão, veio o Autor interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Nos presentes autos a então recorrente concluiu pela procedência do recurso, revogando-se a sentença recorrida, passando: “a) Os factos erradamente julgados como provados pelo Tribunal a quo, por manifesta má apreciação da prova, nos pontos 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 38 da matéria de facto tida por provada, constantes do corpo da sentença ora impugnada, a ser julgados como não provados, alterando-se, assim, o juízo de prova feito incorretamente pelo Tribunal a quo, e, como consequência lógica, absolvendo-se a Apelante da totalidade do pedido;

2.ª Ora, na apreciação da matéria de facto, contrariamente ao que fora alegado e concluído pelos recorrentes o douto tribunal ad quo decidiu o seguinte:

(…)

- os pontos factuais 13 e 17 são considerados como irrelevantes, atenta a conclusão e proposição de direito nos mesmos contida;

- o ponto factual 16 é considerado, em parte, irrelevante, por que conclusivo e, no demais, eliminado, por que já contido, com maior objectividade e pura densificação factual, noutros pontos factuais julgados provados;

(…)

Tendo a recorrente, no que concerne a toda a matéria de facto pedido, tão somente que a mesma fosse considerada não provada, o Venerando Tribunal recorrido, considera os seguintes pontos 13, 16 e 17 como irrelevantes e elimina-os.

3.ª Ao proferir uma decisão, o julgador deve ficar adstrito ao pedido formulado pelas partes. O juiz, ao sentenciar, precisa percorrer uma trilha, um caminho, até chegar ao objetivo final, que é resolver o mérito da demanda, nos termos do que lhe foi entregue pelas partes, ou, como preferem alguns, nos termos do pedido. Ademais, os limites da decisão devem respeitar não apenas o pedido, mas também a causa depedir eos sujeitos da relação processual. É que se chama de limites objetivos e subjetivos da sentença.

4.ª Ao apreciara matéria de facto para além do alegado e concluído pela recorrida o douto acórdão violou, o disposto nos artigos 1 e 2, do artº. 639º e 662.º do Cód. de Processo Civil. Sendo nula nessa parte por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. E) do CPC.

Devendo, em consequência, manter-se os pontos 13, 16 e 17:

13. Não vivendo, qualquer relação escandalosa, tal como clarificada pela ré;

16. Provado apenas e com o esclarecimento de que, ao contrário do que diz a ré, o autor não abandonou as paróquias onde tinha sido colocado, antes foi mandado sair por esta e, o autor não vive qualquer relação escandalosa, ou marital, com a citada BB, vive antes uma relação de profunda amizade com esta e a sua família, pai, mãe, filhas e irmão;

17. Provado apenas e com o esclarecimento de que, nos 24 meses que antecederam esta situação, isto é, nos dois anos antes de Setembro de 2010, o autor foi sujeito pela ré a pressões e difamações;

5.ª Há que entender e, claramente aceitar, que o Estado Português reconhece, perante a Santa Sé, a existência de uma ordem jurídica canónica e que o exercício da respetiva jurisdição, pertence à Igreja Católica. Aqui chegado, concluiremos sempre, como o fez a douta Relação ……., no sentido em que, “importa indagar se a factualidade provada traduz ou comprova a existência de atos que possam lograr qualificar-se como ilícitos e culposos, fundantes de pedido indemnizatório, ou seja, que não se reportam aos praticados pela autoridade eclesiástica, no pleno exercício do seu múnus”.

6.ª E, é aqui, que nos parece que baterá todo o cerne da presente questão. É que não está em causa a admoestação praticada pela Ré,a mesma tem plena legitimidade para o fazer, está em causa o seu texto, conteúdo e aqui, a ré, com o devido respeito, ultrapassou o seu múnus, adjetivou, qualificou e, assim sendo, parece-nos que a decisão, que não ataque as máximas canónicas, deveria ter sido outra.

7.ª Na realidade, é dado comoprovado que ao admoestar o autor a ré pediu-lhe garantias de que o mesmo deveria abandonar “a situação escandalosa em que te encontras”, ponto 8 dado como provado e sublinhado nosso, por referência, acrescenta-se, como provado, “ao facto de, na residência que o acolheu, viver BB, divorciada, com ... filhas menores” e mais, resulta provado que “a ré, não averiguou, por meios próprios, nomeadamente junto do autor, se este partilhava quarto ou cama com a indicada BB”.

8.ª Dito de outra forma, o que está aqui em causa, não é o ato de admoestar, que é competência eclesiástica, mas o que vem para lá e além dele: a adjetivação de “escandalosa” de uma relação que a recorrida não averiguou se existia. Terminasse em “relação” e nada demais daqui resultaria, mas tal situação foi classificada de “escandalosa”, o mesmo que imoral, indecente, difamatório, indecoroso, infame, pernicioso, ruinoso, vergonhoso, sem que, no terreno, tal fosse averiguado. E é aqui, que se ultrapassam os limites.

9.ª É que a ré poderia ter pedido garantias de que o autor tivesse abandonado a situação em se encontrava, mas não, vai mais além, “a situação escandalosa” e é por isso a “amargura e estupefação, perante aquela admoestação”, resultando provado que o autor mantém “tão-só, uma relação de grande amizade com aquela família” (sublinhado nosso) sendo perfeitamente inócuo, porque traduz apenas a sua opinião o contato mantido pelo Senhor Vigário Geral, com o autor, ao afirmar, não ultrapassando limites, que “a situação por este vivenciada, ao ser visto frequentemente acompanhado por uma senhora e as filhas desta, era comentada e constituía mau exemplo para os seminaristas a quem lecionava”.

10.ª O direito à honra e à boa fama – tanto próprio como alheio – é um bem mais precioso do que as riquezas e de grande importância para a vida pessoal, familiar e social”, in https://opusdei.org/pt-pt/article/tema-37-o-oitavo-mandamento-do-decalogo.

11.ª Terá o texto contido na admoestação tido em conta tal? Parece-nos que não, salvo o respeito devido, basta atentar-se à prova plasmada em 11, supra, dos factos provados:

“A ré, não averiguou, por meios próprios, nomeadamente junto do autor, se este partilhava quarto ou cama com a indicada BB”. A tudo isto, há mesmo a dizer a inexistência de qualquer processo canónico e/ou eclesiástico prévio à mesma ou superveniente, pelo que a carta não poderia deixar de ser apreciada, por estar fora de tal âmbito.

12.ª O princípio geral da Responsabilidade por factos ilícitos encontra-se consagrado no artigo 483º do Código Civil: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação». Com a análise destes preceitos, decorre que o dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos depende de vários pressupostos.

13.ª O Código Civil não se limita à fixação, no artigo 483º/1, dos mencionados critérios básicos. Contempla alguns casos especiais de ilicitude que não se enquadrariam nessa previsão genérica como é o caso da Ofensa do crédito ou do bom nome – artigo 484º Infere-se da lei que tem de haver imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais. A regra consiste na irrelevância da veracidade ou falsidade do facto, mas sempre que esteja em causa a proteção de interesses legítimos, parece admitir a «exceptio veritatis». O facto afirmado ou difundido deve mostrar-se suscetível de afetar o crédito ou a reputação da pessoa visada.

14.ª Nos caso sub judice apurou-se a responsabilidade da recorrida por factos ilícitos, pois verifica-se:

a)Um acto voluntário de um agente da recorrida, no exercício das suas funções sob a forma de acção;

b) A ilicitude, que advém da ofensa, por esse facto, de direitos ou de disposições legais que se destinam a proteger interesses alheios;

c) A culpa, como nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente, que na forma de mera culpa se afere pela diligência que teria naquelas circunstâncias um bónus patter familia. Pressupõe uma censura de ordem jurídica ao comportamento do lesante;

d) O dano, prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica do lesado. Só havendo direito a indemnização, no caso desta última, quando o dano, pela sua gravidade, avaliada segundo um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, mereça a tutela do direito (cfr. artigo 496º, nº 1 do Código Civil);

e) O nexo de causalidade entre o facto (acto ou omissão) e o dano, a apurar segundo a teoria da causalidade adequada (cfr. artigo 563º do Código Civil), que pressupõe que os danos se apresentem como consequência normal, provável e típica do facto ilícito.

15.ª Pois, conforme resulta provado nos autos:

Nos dois anos anteriores a Setembro de 2010, a Ré, nomeadamente através do Sr. Vigário Geral, afirmou ao Autor que a situação por este vivenciada, ao ser visto frequentemente acompanhado por uma senhora e as filhas desta, era comentada e constituía mau exemplo para os seminaristas a quem leccionava;

16.ª A 29 de Dezembro de 2010, a ré veio admoestar o autor, padre canónico há 10 anos, dizendo que o mesmo deveria dar-lhe “garantias de abandonares a situação escandalosa em que te encontras” por referência ao facto de, na residência que o acolheu, viver BB, divorciada, com ... filhas menores sendo que em tal residência habitam igualmente os pais de BB, bem como um irmão desta, quando de visita à família nas férias escolares;

17.ª A Ré não averiguou, por meios próprios, nomeadamente junto do Autor, se este partilhava quarto ou cama com a indicada BB; O autor tem quarto próprio e não vive maritalmente com a indicada pessoa, Mantendo, tão-só uma relação de grande amizade com aquela família;

18.ª A amargura e estupefacção, perante aquela admoestação, levaram a que o autor respondesse à ré, missiva recebida em ... .02.2011 e que consta de fls. 9 a 13 dos autos; Na sequência do descrito nos factos 3 a 5, 7 a 11, 15, 18 e 20, o Autor mergulhou numa profunda depressão, da qual não consegue sair, e, para a qual é medicado, vive, o autor, por força de tal situação, uma tristeza profunda, tem dias em que não dorme e em que passa as noites em claro, em que chora, ansioso, revoltado, com as atitudes que imputa à Ré, vive com medo do seu futuro, aumentando o seu estado nervoso ;

Pelo que deveria ter sido mantida a douta sentença de primeira instância, mantendo-se a condenação da recorrida aí sentenciada.

19.ª Ao proceder de modo diverso o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 483.º e 484.º, 496.º e 563.º do Código Civil, fazendo uma má aplicação do direito aos factos.

Normas violadas: números 1 e 2, do artº. 639º e 662.º do Cód. de Processo Civil. Sendo nula nessa parte por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. E) do CPC e 483.º e 484.º, 496.º e 563.º do Código Civil.

E conclui: “deve o douto acórdão recorrido ser declarado nulo na parte em que elimina os pontos 13, 16 e 17 da matéria dada por provada, sendo o mesmo revogado e, em consonância, a recorrida condenada ao pagamento ao recorrente da verba fixada em 1.ª instância, por decorrerem dos autos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual”.

9. A Ré contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, concluindo pela improcedência do recurso e formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Havia já recorrido o Recorrido para o Tribunal da Relação de ……… por entender que os seguintes factos dados como provados pela Meritíssima Juíza a quo não o deveriam ter sido, a saber, os indicados nos pontos: 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 38 da matéria de facto julgada provada.

2.ª A Relação concedeu parcialmente razão à Recorrida, alterando a redação dos pontos factuais 10, 11, 18, 20, 26 e 34 que se mantiveram provados, os pontos 13, 16 e 17 foram considerados irrelevantes, os pontos 19, 21 a 25 foram julgados como não provados e os demais mantidos como estavam, sendo que a matéria da prova não é passível, agora, de sindicância nesta sede, pelo que não se voltará à mesma.

3.ª O Tribunal da Relação ……….. entendeu e bem que os pontos 13, 16 e 17 da matéria de facto julgada provada pela sentença recorrida reportam-se não a verdadeira matéria de facto mas sim a conclusões sobre factos e, como tal, sendo insuscetíveis de um juízo probatório, são irrelevantes, a saber:

4.ª “13. Não vivendo, qualquer relação escandalosa, tal como clarificada pela ré;”

5.ª “16. Provado apenas e com o esclarecimento de que, ao contrário do que diz a ré, o autor não abandonou as paróquias onde tinha sido colocado, antes foi mandado sair por esta e, o autor não vive qualquer relação escandalosa, ou marital, com a citada BB, vive antes uma relação de profunda amizade com esta e a sua família, pai, mãe, filhas e irmão;”

6.ª “17. Provado apenas e com o esclarecimento de que, nos 24 meses que antecederam esta situação, isto é, nos dois anos antes de Setembro de 2010, o autor foi sujeito pela ré a pressões e difamações;”

7.ª No ponto 13 3 no 1ue se entende por relação escandalosa – que, por si, é também uma conclusão -, não resulta elemento factual algum desse ponto;

8.ª Quanto ao ponto 16 este está eivado de conclusões: “não abandonou as paróquias”, foi “mandado sair por esta”, “não vive qualquer relação escandalosa, ou marital”, “vive antes uma relação de profunda amizade”, sendo que não é indicado facto algum que materialize qualquer duma dessas conclusões, quanto mais de todas de todas juntas “num único facto”.

9.ª E quanto ao ponto 17 “o autor foi sujeito pela ré a pressões e difamações;” não explicando quais (independentemente da prova quanto às supostas pressões e difamações que não logrou fazer, mormente quando a sua testemunha, BB, não foi capaz de imputar um único facto a uma pessoa específica, independentemente de trabalhar/representar ou não a Diocese).

10.ª O Tribunal para quem se recorre fica limitado pelo princípio do pedido, tal como já o havia sido o tribunal a quo, o que, em termos de recurso, se reporta ao que é alegado e objeto de conclusão e, desse modo, define-se o objeto do recurso, ao que deve ser apreciado. No entanto, não fica o tribunal ad quem vinculado quanto à interpretação do Direito nem quanto à sua aplicação. Uma vez definido o objeto da lide pelas partes, o Tribunal apenas está limitado pela lei e pela consciência do julgador na apreciação da questão sub judice.

11.ª Ora, julgar como factualmente irrelevante a matéria conclusiva considerada, impropriamente, como de facto, não constitui nenhuma ultrapassagem das barreiras legais ao princípio do pedido. Note-se que o pedir que seja julgado como não provado não impede o tribunal de considerar não se tratar de verdadeiros factos a matéria impugnada. Tal não implica um plus em relação ao pedido, estando, pelo contrário, compreendido não só no efeito pretendido (o ser considerado como não provado implica uma inexistência ou irrelevância factual para efeitos do processo), como também na margem de manobra de apreciação do julgador.

12.ª Quanto à questão da responsabilidade civil bem andou o Tribunal da Relação ……… ao entender que não houve qualquer comportamento ilícito do Sr. Bispo …….. ou do Sr. Vigário Geral em representação da Diocese, tendo os comportamentos de ambos se cingido ao normal exercício das respetivas funções, mormente o Sr. Bispo quando enviou a carta ao Recorrente em que este estriba o seu pedido.

13.ª O dito mal-estar de que o Recorrente se queixa reporta-se a uma situação com os seus paroquianos que o terá levado a apresentar uma baixa médica à Diocese em finaisdeagostode2010–doc. junto aos autos declarando não reunir as condições para continuar a exercer as suas funções sacerdotais, tendo-o aquela, consequentemente, libertado destas informando-o de que deveria deixar as duas paróquias a seu cargo até ao dia ..../09/2010, bem como o passal ……….. adstrito ao sacerdote que ficasse encarregue dessas paróquias, e que, para não ficar sem ter para onde ir residir durante a sua convalescença, poderia ir residir para qualquer uma das duas casas sacerdotais disponíveis (uma em ……… e a outra em ……….) à sua escolha.

14.ª A carta de que o Recorrente se queixa data de .../12/2010, ou seja de altura claramente posterior à situação que terá causado a maleita que levou apresentação da sua baixa médica, razão pela qual não é causa adequada a causar-lhe os danos de que se queixa.

15.ª Do depoimento de D. BB resulta que esta refere situações de ameaças/pressões, sem precisar, que não consegue imputar a um/nos sujeito/s específico/s, mais refere que o Recorrente, quando estava na paróquia ……..., terá adoecido e procurado ajuda psiquiátrica tendo estado de baixa médica de 2010 a 2013. Ora, como já se referiu, o facto imputado à Recorrida – carta de admoestação canónica – como causador do sofrimento infligido ao Recorrente data de momento posterior à baixa médica do Recorrente, ou seja é já posterior aos danos que o mesmo havia pretensamente sofrido às mãos de terceiros não identificados pela testemunha D. BB.

16.ª Apesar de instada pelo Tribunal a quo por diversas vezes, a testemunha nunca conseguiu identificar qualquer uma das pessoas que, pretensamente, fizeram qualquer pressão sobre o Recorrente, limitando-se a generalizações inconclusivas.

17.ª Bem andou a Relação ao concluir que o depoimento da D. BB “(…) revelou pouca consistência factual, fundando-se na adução e imputação de generalidades, falho na concretização e identificação, por um lado e, por outro, direcionando todas as imputações para a Ré, de forma indiscriminada e acrítica.”

18.ª “Todavia, tal não legitima, por que falhas de densificação factual, imputações no sentido de que “todas as coisas vinham sempre da Dioceses”, sem as concretizar, que afinal não assistiu pessoalmente a quaisquer conversas, apenas mencionando o que alegadamente o autor lhe transmitiu que as “pressões continuaram”, mas sem nunca as traduzir em atos concretos e precisos, acabando por apontar para as cartas juntas aos autos (documentos n.º 1 e 2, juntos com a petição inicial), e que afinal, por parte do Bispo de ……, houve apenas um telefonema, pouco antes do Autor intentar a presente ação”.

19.ª Previamente ao julgamento dos factos, teve lugar um recurso quanto à questão da competência dos tribunais judiciais para decidirem sobre matéria de direito canónico, tendo ficado definido, pós-recurso, que “atendendo aos termos pelos quais o A. estruturou a sua pretensão, tratar-se-á na ação, não de avaliar a (des)conformidade à lei canónica de tais atos praticados pela Diocese de ……., mas sim, de apurar se as alegadas falsidades que, censuravelmente, tenham visado o A. teriam sido adequadamente idóneas a causar as putativas ofensas aos direitos de personalidade do mesmo, com as repercussões por ele invocadas.”

20.ª Acrescentando que “a relação jurídica sub judice, tal como é conformada pelo demandante, é a pretensão ao ressarcimento de repercussões advindas, não de violações de direito canónico, mas de imputações – “difamações/pressões” – ilícitas e culposas que, tendo sido, supostamente, perpetradas pela R., colimaram os direitos de personalidade do A.”

21.ª Contudo, é também enfatizado que a matéria factual a apurar “(…) terá que ir para além não só dos próprios atos sancionatórios efetivados pela Ré Diocese (admoestação e remoção ou suspensão das funções sacerdotais), como ainda de todos os atos inseridos no iter procedimental necessário à aplicabilidade daqueles atos sancionatórios, ou seja, os alegados factos, pressões ou difamações ponderáveis, in casu, suscetíveis de fundar o pedido indemnizatório, terão que reportar-se a factualidade que vá para além, isto é, que extravase aqueles atos interlocutórios inseridos no procedimento de natureza puramente eclesiástica”.

22.ª Os factos que permitiriam um tal juízo de verificação e de imputação de responsabilidade à Recorrida pressupunham que o juízo probatório, agora presente a este Venerando Tribunal, tivesse considerado provados os factos constantes dos pontos 19 e 21 a 25 e que considerasse que a sua autoria fosse da responsabilidade da Recorrida, o que não foi o caso.

23.ª Assim sendo, sem factos que preencham os requisitos para a verificação e aplicação do instituto legal da responsabilidade civil, não poderia o tribunal da Relação ……., tal como não pode agora esse Venerando Tribunal, concluir no sentido propugnado pelo Recorrente.

24.ª Balizados assim os factos, temos que a matéria de direito canónico e do procedimento do foro eclesiástico está excluída da sindicância dos tribunais comuns, sendo que só aquilo que extravasasse desse foro é que poderia ser apreciado judicialmente.

25.ª Ora, uma vez que não foi provada a prática ilícita e culposa, por parte do Sr. Bispo …., à data dos factos Sr. D. CC, ou pela de qualquer dos representantes da Diocese, vulgo o Sr. Vigário Geral, de qualquer facto que violasse os direitos de personalidade do Recorrente, não se vislumbra, portanto, qualquer réstia de razão ao recorrente, pelo que deve ser mantido, na íntegra, o douto acórdão recorrido.

E conclui: “Termos em que, por não provado, deve o presente recurso ser julgado improcedente e mantido o douto acórdão da Relação ………. recorrido.”

10. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões, expressamente apresentadas pelo Recorrente e que têm o seguinte teor:

- Nulidade do acórdão recorrido por ter condenado em objeto diverso do pedido (artigo 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil) – eliminação dos pontos 13, 16 e 17 da matéria de facto provada, considerados conclusivos pela Relação, quando a apelante pediu apenas que tal matéria fosse considerada não provada;

- Verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual – Saber se a factualidade provada comprova a existência de atos praticados por representantes da Ré que possam qualificar-se como ilícitos e culposos, fundantes do pedido indemnizatório deduzido, que não se reportem aos praticados pela autoridade eclesiástica no pleno exercício do seu múnus.

III. Fundamentação

1. A factualidade provada é a seguinte (após as alterações efetuadas pelo Tribunal da Relação):

1.1. O autor é sacerdote católico;

1.2. Durante cerca de 10 anos exerceu as suas funções de sacerdote, ao serviço da ré;

1.3. Em finais de Agosto de 2010, entregou à ré, atestado médico, do foro psiquiátrico, não podendo continuar as suas funções sacerdotais que eram as de pároco ……… e …….;

1.4. Situação que a ré reconheceu;

1.5. Dizendo-lhe que deveria deixar as duas paróquias a seu cargo até 15.09.2010, devendo o passal dos ……., onde habitava, ficar livre a partir daquela data, podendo o autor ir residir para a Casa Sacerdotal …… ou ……..;

1.6. Na sua doença, o autor foi acolhido por uma família amiga, na morada indicada na petição inicial;

1.7. Provado apenas e com esclarecimento de que, foi dada a possibilidade ao autor de ir para a Casa Sacerdotal em …….. ou em ……..;

1.8. A ... de Dezembro de 2010, a ré veio admoestar o autor, dizendo que o mesmo deveria dar-lhe “garantias de abandonares a situação escandalosa em que te encontras”;

1.9. Por referência ao facto de, na residência que o acolheu, viver BB, divorciada, com duas filhas menores;

1.10. Em tal residência habitam igualmente os pais de BB, bem como um irmão desta, quando de visita à família nas férias escolares;

1.11. A Ré não averiguou, por meios próprios, nomeadamente junto do Autor, se este partilhava quarto ou cama com a indicada BB;

1.12. O autor tem quarto próprio e não vive maritalmente com a indicada pessoa;

1.13. Mantendo, tão-só uma relação de grande amizade com aquela família;

1.14. A amargura e estupefacção, perante aquela admoestação, levaram a que o autor respondesse à ré, missiva recebida em ... .02.2011 e que consta de fls. 9 a 13 dos autos;

1.15. Nos dois anos anteriores a Setembro de 2010, a Ré, nomeadamente através do Sr. Vigário Geral, afirmou ao Autor que a situação por este vivenciada, ao ser visto frequentemente acompanhado por uma senhora e as filhas desta, era comentada e constituía mau exemplo para os seminaristas a quem leccionava;

1.16. Na sequência da apresentação do atestado médico referenciado no facto 3, a Ré dispensou o Autor das aulas que leccionava no Seminário Episcopal ……….., o que já perdurava por 15 anos;

1.17. Na sequência do descrito nos factos 3 a 5, 7 a 11, 15, 18 e 20, o Autor mergulhou numa profunda depressão;

1.18. Da qual não consegue sair;

1.19. E, para a qual é medicado;

1.20. Vive, o autor, por força de tal situação, uma tristeza profunda;

1.21. Tem dias em que não dorme;

1.22. Em que passa as noites em claro;

1.23. Em que chora;

1.24. Ansioso;

1.25. Revoltado, com as atitudes que imputa à Ré;

1.26. Vive com medo do seu futuro;

1.27. Aumentando o seu estado nervoso;

1.28. Provado apenas e com o esclarecimento de que, é do conhecimento público que o autor vive na mesma casa que a Dª. BB, que aliás o A, reconhece, fazendo-se acompanhar por esta em locais públicos e por isso tal causa estranheza junto dos seus paroquianos;

1.29. Provado apenas e com o esclarecimento de que, a Ré aceita a situação acabada de descrever supra, como sendo escandalosa;

1.30. Provado apenas que a Ré aceitou o atestado médico que o autor lhe apresentou.

2. Do excesso de pronúncia

Nulidade do acórdão recorrido – irrelevância de matéria conclusiva.

Em relação aos pontos 13, 16 e 17 da matéria de facto provada pelo Tribunal de 1.ª instância, o Autor/Recorrente alega que, na apelação, a Ré pediu que essa factualidade fosse tida como não provada, mas o Tribunal da Relação considerou-os como irrelevantes e eliminou-os, pelo que, desse modo, o Acórdão recorrido foi para além do pedido, extravasando o objeto delimitado ou fixado nas conclusões recursórias apresentadas pela apelante Ré, em violação do disposto nos artigos 639.º, n.os 1 e 2, e 662.º, ambos do Código de Processo Civil.

Sobre a nulidade arguida pela Recorrente, o Tribunal da Relação, em acórdão de 25-03-2021, sustentou que “a decisão, ao entendê-los como irrelevantes e/ou eliminado (parcialmente o facto 16), não apreciou para além do pedido contido no objecto recursório delimitado pela Recorrente Ré, antes lhe dando um diferenciado contorno, enquadramento ou relevo jurídico (…) Efectivamente, o peticionar que um alegado, e eventual, facto, objecto de impugnação, deva ser considerado como não provado, entendendo antes o Tribunal de recurso como não se estando perante verdadeira matéria de facto, e decidindo no sentido da sua irrelevância, não traduz um violar do balizamento constante do objecto recursório fixado, pois não traduz um plus de conhecimento legalmente vedado.”

Num caso similar apreciado pelo STJ antes da entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, na vigência do anterior artigo 646.º, n.º 4, do antigo Código de Processo Civil, perante a arguição da nulidade do acórdão por excesso de pronúncia por terem sido considerados não escritos pontos da matéria de facto provada em relação aos quais tinha sido pedido que fossem considerados não provados, considerou o STJ que “não há excesso de pronúncia uma vez que a consideração de que os pontos da base instrutória se devem considerar não escritos, por conterem matéria de direito, nos termos do art° 646° n° 4 do C. P. Civil, é do conhecimento oficioso. Com efeito trata-se de matéria de direito em que o julgador não está sujeito à alegação das partes” (acórdão de 15-04-2010, Revista n.º 9810/03.6TVLSB.S1). Defendendo que não ocorre qualquer excesso de pronúncia ao considerar não escrito, por conclusivo, um ponto da matéria de facto fixada na 1.ª instância, ainda que nenhuma das partes tenha levantado a questão, pronunciou-se o acórdão do STJ de 10-12-2009 (Revista n.º 2710/05.7TVLSB.S1).

Depois da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil que não prevê norma similar ao antigo artigo 646.º, n.º 4, do anterior código, tem considerado o STJ em várias decisões que, apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, “mantém-se na nossa ordem jurídica o mecanismo anteriormente previsto no art. 646.º, n.º 4, do CPC, devendo ser suprimida da fundamentação de facto da sentença toda a matéria dela constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, bem como a que integre juízos conclusivos ou de valor” (Acórdão de 12-07-2018, Revista n.º 88/14.7TJPRT.P3.S2).

- Neste sentido, no Acórdão do STJ, de 12-01-2021 (Revista n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1), referiu-se que “em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação.”

 - Cf., ainda neste mesmo sentido e a mero título exemplificativo, os Acórdãos do STJ de 19-12-2018 (Revista n.º 857/08.7TVLSB.L1.S2), de 23-03-2017 (Revista n.º 301/14.0T8STR.E1.S1), e de 23-03-2017 (Revista n.º 641/10.8TVLSB.L1.S1).

No acórdão do STJ de 12-09-2019 (Revista n.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1, Relatora Rosa Ribeiro Coelho), apesar de se considerar que não pode ser aplicado o mecanismo previsto no n.º 4 do artigo 646.º do antigo Código de Processo Civil, por ter sido revogado, no caso de ser incluída na decisão sobre a matéria de facto, a afirmação de uma conclusão jurídica sem que se julguem como provados factos concretos que a integrem, defendeu-se que “haverá lugar à constatação de que a matéria de facto apurada não suporta essa conclusão jurídica, que, por isso, não será vinculativa para a decisão de mérito a proferir.”-


Assim, ao pronunciar-se no sentido em que o fez, o Acórdão recorrido não é nulo por excesso de pronúncia, como pretende o Autor, pelo que, nesta parte, a sua pretensão não pode ser atendida.

3. Verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual

Nas suas alegações de revista, o Recorrente, apesar de aceitar que o Estado Português reconhece, perante a Santa Sé, a existência de uma ordem jurídica canónica e que o exercício da respetiva jurisdição pertence à Igreja Católica, defende que, no caso dos autos, os atos praticados pela Ré e que resultaram provados não se reportam aos praticados pela autoridade eclesiástica, no pleno exercício do seu múnus. Defende o Recorrente “que não está em causa a admoestação praticada pela Ré, a mesma tem plena legitimidade para o fazer, está em causa o seu texto, conteúdo e aqui, a ré, com o devido respeito, ultrapassou o seu múnus, adjetivou, qualificou e, assim sendo, parece-nos que a decisão, que não ataque as máximas canónicas, deveria ter sido outra.”

Sustenta o Autor Recorrente que “não é o ato de admoestar, que é competência eclesiástica, mas o que vem para lá e além dele: a adjetivação de “escandalosa” de uma relação que a recorrida não averiguou se existia. Terminasse em “relação” e nada demais daqui resultaria, mas tal situação foi classificada de “escandalosa”, o mesmo que imoral, indecente, difamatório, indecoroso, infame, pernicioso, ruinoso, vergonhoso, sem que, no terreno, tal fosse averiguado. E é aqui, que se ultrapassam os limites.”

No Acórdão recorrido, concluiu-se, ao invés, que “não se vislumbra na factualidade provada a prática, por parte da demandada Ré, de quaisquer actos que, fora daquele iter procedimental conducente à aplicação das decisões sancionatórias eclesiásticas de admoestação e suspensão das funções sacerdotais, tenham afectado ou violado os direitos de personalidade do Autor.”


Dispõem os artigos 2.º e 10.º da Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português de 2004, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004, de 16/11; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 16/11, o seguinte:

“Artigo 2.º:

1 - A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica.

2 - A Santa Sé pode aprovar e publicar livremente qualquer norma, disposição ou documento relativo à actividade da Igreja e comunicar sem impedimento com os bispos, o clero e os fiéis, tal como estes o podem com a Santa Sé.

3 - Os bispos e as outras autoridades eclesiásticas gozam da mesma liberdade em relação ao clero e aos fiéis.

4 - É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa.

Artigo 10.º

1 - A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.

2 - O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1.º, 8.º e 9.º nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, até à data da entrada em vigor da presente Concordata.

3 - A personalidade jurídica civil das pessoas jurídicas canónicas, com excepção das referidas nos artigos 1.º, 8.º e 9.º, quando se constituírem ou forem comunicadas após a entrada em vigor da presente Concordata, é reconhecida através da inscrição em registo próprio do Estado em virtude de documento autêntico emitido pela autoridade eclesiástica competente de onde conste a sua erecção, fins, identificação, órgãos representativos e respectivas competências.”

Em matéria de demarcação de competência entre o foro eclesiástico e o foro comum, o STJ tem decidido que a “a necessidade de intervenção do foro eclesiástico sucederá quando o litígio derivar de uma relação interna ou orgânica de pessoa colectiva canónica, regulada pelo direito interno canónico; quando o litígio se reconduz a uma questão externa ao âmbito canónico (…), então a correspondente decisão deve obedecer ao direito interno nacional, independentemente da natureza das pessoas envolvidas nesse pleito, devendo, consequentemente, serem os tribunais estatais comuns os competentes para a resolução do pleito (cfr. Acórdão do STJ de 18-10-2016, Revista n.º 3759/03.0TBBCL.G1.S1).

Esta posição foi reafirmada no Acórdão do STJ proferido no âmbito destes autos, em 28-06-2018, que confirmou as decisões das instâncias de improcedência das exceções de incompetência internacional e material dos tribunais portugueses. Nesse aresto, como se pode ler no respetivo sumário, defendeu-se que “Serão chamados a intervir a autoridade da Igreja Católica, se estiver em causa a violação do direito canónico, e os tribunais estaduais, se estiver em causa a violação do direito interno português, assim se impedindo que um tribunal ou entidade pública possa sindicar um concreto acto ou decisão da competente autoridade eclesiástica no exercício no exercício das suas actividades de culto, magistério e ministério.”

Defendeu-se nesse aresto que “os tribunais estaduais não podem sindicar, p. ex., o acto sancionatório praticado pela autoridade eclesiástica, nem, também, os actos interlocutórios inseridos no procedimento, do qual aquele é o acto final”.

Porém, no caso sub judice, atendendo à causa de pedir tal como foi configurada pelo Autor aqui Recorrente, entendeu-se que “a invocada relação jurídica, tal como é conformada pelo demandante, é a pretensão ao ressarcimento de repercussões advindas, não de violações do direito canónico, mas de imputações – “difamações/pressões” – ilícitas e culposas que, tendo sido, supostamente, perpetradas pela ré Diocese, colimaram os direitos de personalidade do autor. Assim, não se tratando de ajuizar, sequer, o grau de viabilidade da demonstração dos alegados danos ou dos demais pressupostos da figurada responsabilidade civil extracontratual, em que se funda a pretensão à reparação dos mesmos, em abstracto, tal relação é da competência (internacional e material) dos tribunais estaduais, ainda que a mesma se possa conexionar com actos (admoestação eclesiástica e suspensão de funções sacerdotais) que não podem ser por eles sindicados.”

No sentido acima aduzido acerca da demarcação de competência entre o foro eclesiástico e o foro comum, pronunciou-se o STJ nos seguintes acórdãos: de 1-03-2016 (Revista n.º 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1); de 14-12-2016 (Revista n.º 4242/15.6T8LRA.C1.S1);  de 22-02-2011 (Revista n.º 332/09.2TBPDL.L1.S1); de 10-12-2013 (Revista n.º 27/09.7TBHRT.L1.S1); de 17-12-2009 (Revista n.º 743/08.0TBABT-A.E1.S1); de 26-04-2007 (Agravo n.º 723/07); de 27-01-2005 (Agravo n.º 4525/04); de 17-02-2005 (Agravo n.º 116/05).


No caso dos autos, resultou provado que o Autor exerceu as suas funções de sacerdote, ao serviço da Ré, durante cerca de 10 anos e que em finais de agosto de 2010, entregou à Ré um atestado médico, do foro psiquiátrico, não podendo continuar as suas funções sacerdotais, situação que a Ré reconheceu, dizendo-lhe que deveria deixar as duas paróquias a seu cargo até 15.09.2010, devendo o passal …….., onde habitava, ficar livre a partir daquela data, podendo o Autor ir residir para a Casa Sacerdotal ………. ou ……… .

Na sequência da apresentação do atestado médico acima referido, a Ré dispensou o Autor das aulas que lecionava no Seminário Episcopal …….., o que já perdurava por 15 anos.

Mais se provou que na sua doença, o Autor foi acolhido por uma família amiga, embora lhe tenha sido dada a possibilidade de ir para a Casa Sacerdotal em …….. ou em ……….. A ... de dezembro de 2010, a Ré veio admoestar o Autor, dizendo que o mesmo deveria dar-lhe “garantias de abandonares a situação escandalosa em que te encontras”, por referência ao facto de, na residência que o acolheu, viver BB, divorciada, com duas filhas menores. Em tal residência habitam igualmente os pais de BB, bem como um irmão desta, quando de visita à família nas férias escolares, não tendo a Ré averiguado, por meios próprios, nomeadamente junto do Autor, se este partilhava quarto ou cama com a indicada BB. O Autor tem quarto próprio e não vive maritalmente com a indicada pessoa, mantendo, tão-só uma relação de grande amizade com aquela família.

Provou-se ainda que nos dois anos anteriores a setembro de 2010, a Ré, nomeadamente através do Sr. Vigário Geral, afirmou ao Autor que a situação por este vivenciada, ao ser visto frequentemente acompanhado por uma senhora e as filhas desta, era comentada e constituía mau exemplo para os seminaristas a quem lecionava. É do conhecimento público que o Autor vive na mesma casa que a Dª. BB, fazendo-se acompanhar por esta em locais públicos e por isso tal causa estranheza junto dos seus paroquianos.

Por fim, provou-se que a Ré aceita a situação acabada de descrever supra, como sendo escandalosa.


Dispõe o Cânone 277 do Código de Direito Canónico de 1983:

“§ 1. Os clérigos têm obrigação de guardar continência perfeita e perpétua pelo Reino dos céus, e portanto estão obrigados ao celibato, que é um dom peculiar de Deus, graças ao qual os ministros sagrados com o coração indiviso mais facilmente podem aderir a Cristo e mais livremente conseguir dedicar-se ao serviço de Deus e dos homens.

§ 2. Os clérigos procedam com prudência para com as pessoas, cuja convivência possa constituir perigo para a obrigação de guardarem continência ou redundar em escândalo para os fiéis.

§ 3. Compete ao Bispo diocesano dar normas mais determinadas nesta matéria e emitir juízo sobre a observância desta obrigação nos casos particulares.”

Por sua vez, dispõem os Cânone 1740 e 1741 do mesmo Código o seguinte:

“Cân. 1740 – Quando, por qualquer causa, mesmo sem culpa grave do pároco, o seu ministério se tiver tornado prejudicial ou, pelo menos, ineficaz, esse pároco pode ser removido da paróquia pelo Bispo diocesano.

Cân. 1741 - As causas pelas quais o pároco pode ser legitimamente removido da paróquia, são principalmente as seguintes:

1.° modo de proceder que traga grave detrimento ou perturbação à comunhão eclesiástica;

2.° imperícia ou doença permanente mental ou corporal, que tornem o pároco incapaz de desempenhar utilmente as suas funções;

3.° perda da boa estima perante os paroquianos probos e ponderados, ou a aversão contra o pároco, que se preveja não haver de cessar em breve tempo;

4.° grave negligência ou violação dos deveres paroquiais, que persista mesmo depois de admoestação;

5.º má administração dos bens temporais com dano grave para a Igreja, quando por outra forma não se puder remediar este mal.

Atenta a factualidade provada, podemos concluir que não se apurou a prática de quaisquer atos por representantes da Ré que não se reportem às funções exercidas pelas autoridades eclesiásticas de acordo com o direito canónico porquanto o Autor, enquanto sacerdote, vinculou-se ao dever de “proceder com prudência para com as pessoas, cuja convivência possa constituir perigo para a obrigação de guardarem continência ou redundar em escândalo para os fiéis.”, cabendo ao Bispo diocesano dar normas mais determinadas nesta matéria e emitir juízo sobre a observância desta obrigação nos casos particulares.

A própria adjetivação de “escandalosa” decorre do referido parágrafo 2.º do Cânone 277 do Código de Direito Canónico de 1983. Como se afirmou no Acórdão recorrido, o ministério sacerdotal professado pelo Autor, “objectiva e socialmente considerado - independentemente de qualquer juízo sobre a natureza religiosa das obrigações assumidas - é dificilmente condizente com uma vivência que passasse por fazer-se acompanhar quotidianamente de uma mulher em locais públicos, e de viver acolhido na casa desta (ainda que também com os seus pais), como se relacionamento pessoal e afectivo tivessem, dado que, tal indiciaria, desde logo, aos olhos da comunidade, e independentemente da sua efectiva concretização, não provada, violação das regras celibatárias a que se tinha obrigado, decorrente da provisão do ofício eclesiástico.”

           

Assim, a atuação da Ré não traduz a violação de qualquer direito ou interesse protegido do Autor porquanto se moveu no quadro do direito canónico, a que o próprio Autor se vinculou enquanto sacerdote, em especial, como se salientou no Acórdão recorrido, ao dever de “transmitir uma salutar imagem da instituição que representava, agregadora da comunidade pastoreada e não causadora de estranheza ou reacções negativas por parte dos seus paroquianos”.

Deste modo não se verificando qualquer ato ilícito e culposo praticado pela Ré, o recurso deve improceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 25 de maio de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)    

Fátima Gomes           

Fernando Samões


Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Fátima Gomes e Fernando Samões.