Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
529/15.6T8BGG.G1.S1-A
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
CESSÃO DE CRÉDITOS
EFICÁCIA
PENHORA DE DIREITOS
EMBARGOS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO DO RELATOR
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA / FUNDAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, p 48 e 49;
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1981, p. 233 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 688.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 31-01-2002, PROCESSO N.º 3804/01;
- DE 17-02-2009, PROCESSO N.º 08A3761, IN CJSTJ, TOMO I, P. 102, WWW.DGSI.PT.
Sumário :   
I. A contradição de julgados relevante para efeitos de uniformização jurisprudencial, nos termos do artigo 688.º, n.º 1, do CPC, tem de se revelar inequívoca no confronto dos critérios decisórios que desembocaram em soluções antagónicas.

II. De resto, tornar-se-ia inviável resolver uma oposição de julgados, quando não se consegue sequer identificar o critério decisório conducente a uma das soluções decretadas, sem qualquer evidência de suporte interpretativo-aplicativo de norma legal para tanto aplicável.

III. Num caso como o dos autos, em que o acórdão-fundamneto se cingiu a apreciar e decidir a questão ali controvertida da transmissão da titularidade do crédito futuro cedido a terceiro e a concluir pela improcedência dos embargos de terceiro contra a penhora por essa via impugnada, mas sem que ali tivesse, tão pouco, sido equacionada nem suscitada a questão do momento da eficácia da penhora de crédito também futuro, tal como o fora no acórdão recorrido, não se tem por verificada uma contradição frontal entre tais arestos no domínio desta questão fundamental de direito, nos termos e para os efeitos exigidos pelo artigo 688.º, n.º 1, do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório

 

1. A Caixa AA (A.) instaurou, em 06/04/2015, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade BB, Lda (R.), alegando, no essencial, que:

. Em 28/10/2003, A. celebrou com a sociedade “CC SGPS, S.A.”, um contrato de conta corrente até ao montante de € 750.000,00; 

. Em 11/01/2006, foi acordado um aditamento àquele contrato, nos termos do qual, em garantia das obrigações emergentes do mesmo para a sociedade “CC SGPS, S.A.”, a sociedade “CC, SGPI, S.A.”, cedeu à A., sob condição suspensiva, a respetiva posição contratual num contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre esta última sociedade e a “Caixa DD”, em 06/12/2001;  

. Em 15/02/2011, foi outorgado um terceiro aditamento ao mencionado contrato de conta corrente mediante o qual, para reforço das respetivas garantias, a sociedade “CC, SGPI, S.A.”, cedeu à A. os créditos que para aquela emergiam de contratos celebrados, em 01/04/ 2010, entre a sociedade cedente e a ora R. e que incidiam sobre um prédio urbano, sito em …, …, a saber:

a) – de um contrato de sublocação comercial com preferência e contrato-promessa e de um contrato-promessa de compra e venda, com exceção das quantias, até ao montante de € 271.119,11, entregues a título de sinal;         

b) – do contrato de compra e venda prometido e referido na alínea anterior, com exceção das quantias também ali aludidas;

. Aquela cedência de créditos à A. compreende o crédito correspondente ao preço de € 578.880,89, excluído o valor do sinal já pago, relativo à prometida compra e venda do prédio urbano que esta última sociedade iria celebrar com a R.;

. A cessão desse crédito foi notificada à R. por carta registada com A/R, recebida em 28/04/2011;

. Aquando da outorga da escritura do contrato de compra e venda, em 18/04/2012, a R., em vez de entregar o valor do preço à A., entregou-o ao Fisco, no âmbito de uma execução fiscal em que era devedora a sociedade “CC SGPI, S.A.”, após notificação de que o referido crédito ficava penhorado;

. Porém, tal penhora foi posterior à notificação feita à R. da sobredita cessão de crédito, o que significa ter a R. entregue ao Fisco, para pagamento de dívida de terceiro, o valor correspondente ao crédito de que a A. já era titular ativo, no montante de € 578.880,89, vencido desde 18/04/ 2012:

Concluiu a A. a pedir que a R. fosse condenada a pagar-lhe a referida quantia de € 578.880,89, acrescida de juros de mora vencidos desde 18/04/2012, liquidados em € 68.704,44, à data da propositura da ação, e vincendos até ao seu integral pagamento.

2. A R. apresentou contestação, sustentando que:

. Os contratos de sublocação, de promessa de compra e venda e da cessão de créditos futuros são nulos, uma vez que a sociedade CC SGPI, S.A., já tinha cedido à A. a sua posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária, carecendo, por isso, de legitimidade para celebrar aqueles contratos;

. O pagamento feito ao Fisco ocorreu a pedido a CC, que afirmou ter consentido em tal;

. Não obstante isso, por se tratar de crédito futuro, a cessão só se consumou com a celebração do contrato de compra e venda, momento em que o Fisco já havia penhorado aquele crédito;

Nessa base, a R. concluiu pela improcedência da ação.

3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 261-273 do processo principal, datada de 16/02/2017, a julgar a ação totalmente improcedente.

4. Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de … que, pelo acórdão proferido a 329-342 do processo principal, datado de 11/07/2017, julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, condenando a R. a entregar à A. a quantia de € 578.880,89, correspondente ao valor do crédito cedido, acrescida dos juros vencidos e vincendos até à entrega efetiva.

5. Veio então a R. pedir revista, no âmbito da qual foi proferido o acórdão de fls. 484-499 do processo principal, datado de 12/04/2018, transitado em julgado em 30/04/2018, conforme certidão de fls. 505 daquela processo, a negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

6. Vem agora a mesma R. interpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, formulando as seguintes conclusões:

   1.ª – O acórdão ora recorrido, relativamente à mesma questão fundamental de direito, está em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal de 31/01/2002, com o n.º RV 3804/01, da 2.ª Secção Cível, há muito transitado em julgado proferido no processo n.º 10/94, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da …;

   2.ª - Sufragasse o acórdão recorrido (como, aliás, devia ter feito) o entendimento do acórdão-fundamento, o recurso de revista interposto pela R./Recorrente teria que proceder, porquanto a penhora fiscal de créditos (futuros) foi efetuada antes de a cessão de créditos (da «CC» para a AA produzir seus efeitos, tendo o Fisco o direito de ser pago (como foi) com preferência ou prevalência sobre a A./Recorrida.

   3.ª- Tanto no acórdão recorrido como no acórdão-fundamento, está provado que foi efetuada uma cessão de créditos futuros, sobre os quais (créditos futuros) incidiu, posteriormente à data da celebração da aludida cessão de créditos futuros, mas antes do nascimento do crédito na ordem jurídica ou na esfera jurídica do cedente, uma penhora (no âmbito de ação executiva movida por um credor do cedente).

   4.ª - O acórdão-fundamento e o acórdão recorrido estão em consonância relativamente à teoria ou doutrina a aplicar à transmissão ou transferência do crédito no caso de cessão de créditos futuros: ambos explicitam e entendem dever aplicar-se a teoria da transmissão, ou seja: o crédito futuro quando nasce, nasce primeiramente na esfera jurídica do cedente e só posteriormente se transfere para a esfera jurídica do cessionário.

   5.ª - No entanto, os referidos acórdãos divergem quanto:

      1 - ao regime jurídico aplicável à cessão de créditos futuros;

      2 - ao momento em que a cessão de créditos futuros se torna eficaz ou inicia a sua produção de efeitos em relação às partes – cedente, cessionário - aos devedor cedido e a terceiros;

      3 - ao que deve prevalecer, se a penhora se a cessão de crédito futuro, quando a penhora (notificada ao devedor cedido e referente a processo de execução em que o exequente é credor do cedente):

   3.1 - é temporalmente posterior à data da celebração do contrato de cessão de crédito;

      3.2) - é temporalmente anterior ao nascimento do crédito na esfera jurídica do cedente.

6.ª - Estamos, assim, no confronto do acórdão-fundamento com o acórdão recorrido, em face de decisões opostas no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamentai de direito, o que constitui fundamento para o presente recurso nos teremos do disposto no artigo 688.º do Novo CPC;

7.ª - Questão fundamental de direito que é a mesma, ou seja:

   a) - Qual o momento em que a cessão de crédito futuro se torna eficaz em relação ao cedente, ao cessionário, ao devedor cedido e a terceiros e, consequentemente, qual o regime jurídico a aplicar à eficácia da cessão de crédito futuro (o previsto, qua tale, para a cessão de créditos presentes ou, pelo contrário, sabendo-se que inexistem normas no Código Civil Português que prevejam e regulem expressamente a cessão de créditos futuros, deve aplicar-se o regime previsto para a cessão de créditos presentes, mas devidamente adaptado à cessão de créditos futuros, atendendo às suas especificidades - desde logo porque aquando da celebração da cessão o crédito não existe);

   b) - No caso de penhora do crédito futuro (no âmbito de ação executiva em que o exequente é o credor do cedente), posterior à data da celebração do contrato de cessão de crédito futuro, mas anterior ao nascimento do referido crédito na ordem jurídica ou na esfera jurídica do cedente, qual a prioridade ou prevalência a estabelecer entre a referida cessão de crédito futuro e a penhora que recai sobre o crédito futuro objeto de cessão.

8.ª - In casu, é evidente, manifesta e expressa a oposição de acórdãos, porquanto o acórdão-fundamento sufragou o entendimento de que, na penhora de créditos futuros, posterior à celebração da cessão de crédito futuro, mas anterior ao nascimento do crédito futuro, aquela (penhora) prevalece; e o acórdão recorrido entendeu que, nessa mesma situação (penhora de créditos futuros, posterior à celebração da cessão de crédito futuro mas anterior ao nascimento do crédito futuro), o efeito translativo da cessão deve prevalecer sobre o efeito desta última (solução que correta estaria se se tratasse - mas não se trata - de uma cessão de créditos presentes);

9.ª - Acórdãos -fundamento e recorrido, que divergem quanto ao momento em que a cessão de créditos futuros produz efeitos e, consequentemente, quanto à ordem de prevalência, de prioridade ou de eficácia entre uma penhora e uma cessão de créditos:

1) - Por um lado, para o acórdão-fundamento a cessão de crédito futuro só se torna eficaz (transferindo-se o crédito da esfera do cedente para a esfera do cessionário) se se reunirem todas as condições de transferência aquando do nascimento do crédito (quando este se tornar presente, quando este passar a ser urna realidade e deixar de ser uma ficção ou uma abstracção) - condições essas que têm de se verificar na pessoa do cedente - logo, se ocorreu penhora (por credor do cedente) do crédito cedido, posterior à celebração da cessão de crédito futuro, mas anterior ao surgimento do crédito, a penhora prevalece e a cessão não se torna eficaz, isto é, o crédito não se transfere para o cessionário, pois o cedente não pode (como é lógico) transferir algo que já não tem, isto é, que já não se encontra na sua esfera de disponibilidade;

2 - Por outro lado, para o acórdão recorrido a cessão de crédito futuro torna-se eficaz a partir do momento da celebração do contrato de cessão (ou da notificação da cessão de crédito futuro ao devedor cedido) - como se o crédito futuro, que ainda não existe na data da celebração da cessão, fosse um crédito presente - pelo que nunca será afetado por penhora posterior à data da celebração da cessão de crédito futuro, prevalecendo sempre a cessão de crédito futuro sobre a penhora que, sobre o mesmo, incida posteriormente à data da celebração da cessão de crédito futuro;

   10.ª - In casu:

      - O contrato-promessa celebrado entre a aqui R./Recorrente e o cedente («CC SGPI) não tem eficácia real, mas apenas obrigacional, isto é, com o mesmo não se opera a transferência da propriedade sobre determinada coisa.

   - O crédito que o cedente («CC SGPS) declarou ceder à A., AA, sendo futuro, há-de provir de relações contratuais não constituídas à data da celebração da cessão de créditos.

   - Crédito futuro cedido que só se constituirá, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, ou nascerá na esfera jurídica do cedente no momento da efetiva celebração ou outorga do contrato de compra e venda.

   - Apenas com a celebração da escritura pública de compra e venda (que ocorreu a 18/04/2012) e o inerente pagamento do remanescente do preço nasce o crédito futuro, surgindo na esfera ou titularidade do cedente, podendo então passar para o património do cessionário, caso nada obste a tal transmissão.

   - Assim, a transmissão do crédito futuro só ocorre com a sua radicação na esfera jurídica do cedente (e não com a celebração do contrato de cessão e notificação, aceitação ou conhecimento da cessão pelo devedor, pois tais regras são apenas aplicáveis à cessão de créditos presentes), que só por ele pode ser diligenciado (artigos 880.º e 408.º, n.º 2, do CC), sendo que o cessionário só substitui o credor para receber o preço e nada mais.

   - Existia uma penhora - no âmbito de execução fiscal - de crédito futuro cuja notificação (ocorrida a 30/03/2012) ao devedor (R./ Recorrente) é anterior ao nascimento do crédito cedido (18/04/ 2012), ou seja, pela prioridade temporal ou teoria da preferência na afetação e tendo sempre em conta a aplicação da teoria da transmissão à cessão de créditos futuros, o crédito nasceu (aquando da celebração da escritura de compra e venda) ou radicou-se na titularidade do cedente e encontrava-se onerado com uma penhora anterior à produção de eficácia da cessão de crédito futuro.

   - Notificação de penhora, provinda da Autoridade Tributária, que continha a expressa menção do crédito no montante de € 578.880,89, fosse ele atual ou futuro, bem como a advertência expressa de que a devedora/notificada "não se desonerava pagando directamente ao credor".

   - Assim, a perfeição do contrato de cessão de crédito futuro nunca ocorre no momento da sua outorga (15/02/2011), mas apenas com a verificação cumulativa do nascimento do crédito cedido das condições de transferência.

   - Ora, sucede que o crédito (futuro) cedido foi penhorado quando a cessão não se encontrava consumada e, atendendo à penhora anterior, não podia o cedente transmitir o referido crédito ao cessionário, porque dele não podia dispor livremente.

  - Pelo que, se encontra, desse modo, respeitado, no acórdão-fundamento (o que não acontece no acórdão recorrido) o princípio da prioridade temporal ou da preferência na afetação;

   - Devendo prevalecer, assim, contrariamente ao propugnado no acórdão recorrido, a penhora realizada, ao abrigo do disposto nos artigos 820.º (pois a cessão posterior à penhora - posterior porque não produz efeitos no momento da celebração do contrato de cessão nem da notificação da cessão ao devedor pois ainda não ocorreu - seria sempre inoponívei à execução) e 822.º (o Fisco, com a penhora, adquiriu o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, que, como se verifica, o cessionário não tinha), ambos do CC;

   - Com efeito, a tese ali vertida (acórdão recorrido) e a conclusão de direito a que chega, parte do pressuposto de que estamos perante uma cessão de créditos normal (presentes);

   - Contudo, como resulta dos autos, não é isso que acontece e, assim, importa frisar que, enquanto para a cessão de créditos presentes se encontram previstas normas específicas que a regulam (artigos 577.º e seguintes), o mesmo não acontece para a cessão de créditos futuros, tendo de se encontrar resposta à diversa problemática que nesse âmbito surja na interpretação das disposições legais do nosso CC, não fazendo sentido aplicar, sem mais, isto é, sem qualquer adaptação tendo por referência a especificidade da cessão de créditos futuros, as normas previstas para a cessão de créditos presentes à cessão de créditos futuros (como fez o acórdão recorrido);

   - Não está em causa, in casu, uma cessão de créditos presentes, na qual, em relação às partes (cedente e cessionário), o crédito se transmite por mero efeito do contrato, operando-se de imediato a transmissão do cedente para o cessionário (e aí, sim, tendo eficácia "erga omnes") - artigo 408.º, n.º 1, e 577.º, ambos do CC;

   - Está em causa nos presentes autos (e sempre esteve) uma cessão de créditos futuros e, em relação a qualquer coisa futura, a transmissão dá-se quando a coisa é adquirida pelo alienante, não sendo o crédito futuro exceção a essa regra - artigo 408.º, n.º 2, do CC;

   - Contudo, no momento em que a cessão se torna eficaz, já o crédito se encontra onerado com uma penhora (do fisco), a qual deverá, necessariamente, prevalecer, porquanto o cessionário não goza de garantia real anterior, sendo que a penhora constitui, segundo a generalidade da doutrina, um direito real de garantia, com as inerentes características, de sequela e de preferência;

   - Assim, justifica-se a realização de interpretação de normas jurídicas existentes no nosso sistema jurídico que possam regular a cessão de créditos futuros (que não tem identidade com a cessão de créditos presentes), tendo sempre em vista a obediência a princípios basilares de Direito como é o caso do princípio "nemo plus iuris in alienam transfere potest quem ipse habet" e as especificidades da cessão de créditos futuros;

11.ª – O acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, nega os alicerces do instituto da cessão de créditos e o princípio da prioridade e preferência da penhora;

12.ª - Sendo a tese vertida no acórdão-fundamento, a única consentânea com as normas, com a doutrina, com a jurisprudência e com os princípios legais aplicáveis;

13.ª - Bastava, para vencimento da pretensão da R./Recorrente a consideração de que não se está na presença (como não está), no caso “sub judice", de cessão de um crédito presente e, consequentemente, que a penhora incidente sobre o crédito (futuro) é totalmente eficaz e prevalecente;

14.ª - Por todo o alegado, não podemos deixar de pugnar pela tese vertida no acórdão-fundamento que confirmou acórdão do Tribunal da Relação de …, a qual determina, por si só, a improcedência da ação e a procedência do recurso de Revista.

15.ª - Destarte, violou o acórdão recorrido o disposto nos artigos 211.º, 399.º, 408.º, n.º 1 e 2, 577.º, 588.º, 895.º, 585.º, 1058.º, 820.º, 821.º, 822.º e 880.º do CC e o princípio do “nemo pias iuris in alienam transfere potest quem ipse habet”, da doutrina da transmissão na cessão de créditos futuros, designadamente, quanto ao momento da sua consumação ou eficácia e do princípio da prioridade temporal ou da preferência na afetação da penhora.

16.ª – Confluência em que deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso, fixando-se Jurisprudência Uniforme de acordo com os fundamentos e as conclusões propostos ou outros que melhor se entendam, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por outra que julgue improcedente a ação.  

7. A Recorrida apresentou contra-alegações a concluir que não existe, em rigor, contradição entre os acórdãos fundamento e recorrido, sendo que o acórdão recorrido é o que melhor responde à questão de direito em apreço, de forma mais consentânea com o quadro legal em vigor.

  8. Seguidamente, foi proferida a decisão de fls. 119 a 134, datada de 27/09/2018, em sede de apreciação liminar sobre a admissibilidade do recurso, nos termos da qual se concluiu pela rejeição do mesmo por se considerar que não se verificava, no caso, a necessária oposição entre o acórdão aqui recorrido e o acórdão-fundamento.

  9. Desta feita, vem a Recorrente reclamar para a conferência, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A R. «BB, Lda.» interpôs Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência invocando que o acórdão recorrido proferido, no âmbito deste processo, pelo STJ, datado de 12/04/2018 e transitado em julgado a 30/04/2018, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, se encontrava em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal de 31/01/2002, com o n.º RV 3804/01, da Secção Cível, há muito transitado em julgado proferido no processo n.º 10/94, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da ….

2.ª - Na decisão singular proferida sobre o recurso de uniformização interposto pela R. «BB, Lda.», com data de 27/09/2018, considerou o STJ inexistir contradição relevante entre o decidido no Acórdão Recorrido e no acórdão-fundamento, rejeitando aquele recurso com fundamento na inexistência de oposição de acórdãos;

3.ª - Não se concorda com tal decisão e da mesma se reclama, pois está preenchido o requisito de ordem substancial de existência de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento;

4.ª - Contrariamente ao plasmado na decisão sob reclamação, há oposição frontal entre a decisão proferida no acórdão-fundamento e a decisão proferida no acórdão recorrido quanto à mesma questão basilar de direito.

5.ª - Em ambos, foi considerada provada a celebração de uma cessão de crédito futuro sobre o qual (crédito futuro) incidiu, posteriormente à data da celebração da aludida cessão de crédito futuro, mas antes do nascimento do crédito na ordem jurídica ou na esfera jurídica do cedente, uma penhora no âmbito de ação executiva movida por um credor do cedente).

6.ª - E ambos os acórdãos em confronto consideram que se aplica a teoria da transmissão quanto à transferência do crédito futuro (segundo a qual primeiramente o crédito futuro nasce na esfera jurídica do cedente e só depois se transfere para esfera jurídica do cessionário).

7.ª- Em ambos, há a celebração de uma cessão de créditos futuros: no acórdão-fundamento, o crédito futuro é o direito de indemnização por expropriação; no acórdão recorrido, o crédito futuro é o preço ou o valor a pagar (excluído o sinal) que emergirá da celebração de compra e venda.

8.ª - Em ambos os acórdãos, um exequente (credor do cedente) avança com a respetiva ação executiva contra o cedente, sendo penhorado, ao abrigo da referida acção - mas após a celebração da cessão de crédito futuro e antes do nascimento desse crédito - o crédito futuro objeto de cessão.

9.ª - Em ambos os acórdãos, a penhora do crédito futuro (na ação movida pelo credor do cedente contra este) é posterior à data da celebração da cessão de créditos (entre o cedente e cessionário) mas anterior ao nascimento dor crédito (futuro):

- no acórdão fundamento: a cessão de crédito futuro entre cedentes (EE e marido) e cessionária (Caixa FF) é celebrada em 27/12/ 1996, o devedor cedido (Ministério da Agricultura) é notificado da penhora sobre o crédito futuro dos cedentes em 17/03/1997 e o referido crédito, aquando do seu nascimento em 10/01/2000, é entregue ou colocado â disposição pelo Ministério da Agricultura no processo de execução no âmbito do qual tal crédito se encontrava penhorado e que tinha sido movido pelo credor dos cedentes.

- no acórdão recorrido: foi celebrado contrato de cessão de crédito futuro em 15/02/2011, entre a cedente «CC SGPI S.A.» e a cessionária «Caixa AA S.A.», no âmbito do qual a primeira declarou ceder à segunda o crédito futuro que detinha sobre a «BB Lda.» e esta (devedora cedida) foi notificada em 30/03/2002 de que o crédito futuro da cedente «CC SGPI S.A.» se encontrava penhorado à ordem de processo de execução fiscal e foi o referido crédito, após o seu nascimento em 18/04/2012 com a celebração do contrato de compra e venda, entregue ou colocado à disposição pela "BB, Lda." em 30/04/2012 no processo de execução fiscal no âmbito do qual tal crédito se encontrava penhorado e que tinha sido movido pelo credor do cedente.

10.ª - A questão essencial de direito, num e noutro, é a mesma;

11.ª - No acórdão-fundamento, a questão que se discute é a de saber se o direito dos executados à indemnização (por expropriação) - por eles cedido à embargante em função do pagamento dos empréstimos que esta lhe concedeu - já se encontrava na titularidade plena da embargante aquando da penhora, que sobre esse mesmo direito incidiu na execução a que respeitam os presentes embargos de terceiro.

12.ª - No acórdão recorrido, a questão a resolver consiste em saber se a cessão de crédito futuro, pela sociedade "CC. SGPI. SA, a favor da A., em 15/02/2011, peticionado por esta contra a R.. agora como crédito atual e vencido, prevalece sobre a penhora do mesmo crédito futuro efetuada a favor do Fisco, lá após aquela cessão, no âmbito de uma execução fiscal movida contra a mesma sociedade CC. SGPI.SA,

13.ª - Essa questão implica, no entanto abordar as problemáticas respeitantes:

- em primeira linha, ao momento em que opera a cessão de crédito e ao modo como se transfere o crédito cedido para a esfera do cessionário, em particular no referente ao crédito futuro:

- em seguida, à prioridade a estabelecer entre a eficácia da referida cessão do crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efectuada posteriormente àquela cessão;

14.ª - Por outras palavras, e usando o excerto retirado do acórdão-fundamento para se demonstrar o paralelismo das situações e questões de Direito em causa:

«Se para o acórdão-fundamento o objeto do recurso ou questão essencial de direito a decidir é: a questão de saber se o direito dos executados à indemnização (por expropriação) - por eles cedido ã embargante “em função do pagamento” dos empréstimos que esta lhe concedeu - lá se encontrava na titularidade plena da embargante aquando da penhora que sobre esse mesmo direito incidiu na execução a que respeitem os presentes embargos de terceiro.”;

Para o acórdão recorrido, a questão é a de saber se o direito da executada (CC, S A), por ela cedido à A. (Caixa), já se encontrava na titularidade plena dela aquando da penhora que sobre esse mesmo direito de credito incidiu na execução fiscal movida pelo Fisco contra a executada e cedente «CC, SA».

15.ª - Embora com redações ou terminologias diferentes, e independentemente de se utilizar uma linguagem mais simplista ou complexa, é evidente/manifesto que nos dois acórdãos do STJ em confronto, fundamental ou essencial de direito a decidir é a mesma: consiste em saber quando opera ou quando se torna eficaz a cessão de crédito futuro em relação ao (à) cessionárlo(a) e qual o efeito de uma penhora (sendo o exequente credor do cedente) sobre tal cessão de crédito futuro;

16.ª - E tais questões de direito foram decisivas para a resolução do caso, para a emissão das decisões vertidas no acórdão-fundamento e no acórdão recorrido;

17.ª - Decisões - patentes no acórdão-fundamento e no acórdão recorrido - que, apesar de se debruçarem sobre a mesma questão essencial de direito e no domínio da mesma legislação, são contraditórias ou diametralmente opostas.

18.ª- E não se trata de uma mera divergência na parte expositiva, mas uma contradição relativamente ao cerne de cada um dos litígios e à solução jurídica que lhe foi ditada, pois: um (o acórdão-fundamento) entendeu que a embargante (cessionária) não era a titular do crédito pois, após a celebração da cessão de crédito futuro mas antes do surgimento do crédito, o credor do cedente, em execução movida contra o cedente, penhorou tal crédito futuro; o outro (acórdão recorrido) considera que a A. é titular do crédito cedido mesmo tendo ocorrido, após celebração da cessão de crédito futuro mas antes do surgimento do crédito, penhora sobre o mencionado crédito futuro no âmbito de execução fiscal movida pelo Fisco (credor do cedente) contra o cedente.

19.ª - Sendo fulcral e premente que o STJ analise e decida da contradição em causa, de modo a assegurar os valores da segurança e da certeza jurídica, no que concerne à resposta dada à questão ou questões que se revelaram decisivas e determinantes, em concreto, nos acórdãos em confronto, assegurando, assim, uma justiça uniforme para a generalidade dos cidadãos e, eventualmente, a reposição da justiça no caso concreto.

20.ª - Destarte, a decisão singular objeto da presente reclamação, violou o disposto nos artigos 688.º e 692.º do CPC.

  10. Não foi apresentada resposta.


         Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


   II – Fundamentação

 

Tal como se considerou na decisão ora reclamada, o artigo 688.º do CPC prescreve o seguinte:

1 - As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.  

2 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito.

3 – O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

     Trata-se de um recurso extraordinário cujo prazo de interposição é de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido (art.º 689.º, n.º 1, do CPC), tendo por finalidade verificar a alegada contradição jurisprudencial e, em caso afirmativo, decidir a questão controvertida, emitindo acórdão de uniformização sobre o conflito assim verificado.

     Posto isto, em sede de exame preliminar, importa averiguar das condições de admissibilidade daquele recurso, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 692.º do CPC, segundo o qual o mesmo deverá ser rejeitado quando: 

a) – Não tenha cabimento, seja intempestivo ou o recorrente não detenha as condições necessárias para recorrer - art.º 641.º, n.º 2, alínea a), do CPC;

b) - O requerimento de interposição não contenha alegações ou estas não sejam juntas ou sejam desprovidas de conclusões - art.º 641.º, n.º 2, alínea b), e 690.º, n.º 1, do CPC;

c) – O recorrente não junte cópia do acórdão-fundamento, nos termos do art.º 690.º, n.º 2, do CPC;

d) – Não exista a oposição que lhe serve de fundamento;

e) – A orientação perfilhada no acórdão recorrido esteja de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.


     Neste quadro, a questão que aqui se afigura, desde logo, fulcral é a de saber se ocorre contradição relevante entre o decidido no acórdão ora recorrido e no acórdão-fundamento.


     Convém, desde já, ter presente que o mecanismo processual da uniformização radica na necessidade de superação de contradições da jurisprudência do próprio Supremo Tribunal de Justiça, constituindo uma garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, aliás, na linha da diretriz hermenêutica do n.º 3 do art.º 8.º do CC[1]. Daí que o seu enfoque incida sobre a contradição de critérios normativo-decisórios e não sobre as divergências que se prendam com a própria especificidade de cada caso concreto. 

      Para tal, importa que a contradição alegada se revele frontal nas decisões em equação, que não implícita ou pressuposta, muito embora não se mostre necessária a verificação de uma contradição absoluta, não relevando a argumentação meramente acessória ou lateral (obiter dicta)[2]. Essa oposição só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado, como, de resto, se considerou no acórdão do STJ, de 17/02/2009, proferido no processo 08A3761 JSTJ000[3].

      No caso presente, o que vem posto em causa pela Recorrente é a alegada divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, quanto:

   i) - ao regime jurídico aplicável à cessão de créditos futuros;

  ii) - ao momento em que a cessão de créditos futuros se torna eficaz ou inicia a sua produção de efeitos em relação às partes - cedente, cessionário - aos devedor cedido e a terceiros;

  iii) - ao que deve prevalecer, se a penhora se a cessão de crédito futuro, quando se trata de penhora notificada ao devedor cedido e referente a processo de execução em que o exequente é credor do cedente que seja temporalmente:

   - posterior à data da celebração do contrato de cessão de crédito;

   - anterior ao nascimento do crédito na esfera jurídica do cedente.


Para tal efeito, considera a mesma Recorrente que a questão fundamental de direito é saber:

a) - Qual o momento em que a cessão de crédito futuro se torna eficaz em relação ao cedente, ao cessionário, ao devedor cedido e a terceiros e, consequentemente, qual o regime jurídico a aplicar à eficácia da cessão de crédito futuro:

  - se o previsto, qua tale, para a cessão de créditos presentes;

  - se, pelo contrário, sabendo-se que inexistem normas no CC que prevejam e regulem expressamente a cessão de créditos futuros, deve aplicar-se o regime previsto para a cessão de créditos presentes, mas devidamente adaptado à cessão de créditos futuros, atendendo às suas especificidades, desde logo, porque aquando da celebração da cessão o crédito não existe;

 b) - No caso de penhora do crédito futuro, no âmbito de ação executiva em que o exequente é o credor do cedente, posterior à data da celebração do contrato de cessão de crédito futuro, mas anterior ao nascimento do referido crédito na ordem jurídica ou na esfera jurídica do cedente, qual a prioridade ou prevalência a estabelecer entre a referida de cessão de crédito futuro e a penhora que recai sobre o crédito futuro objeto cessão.


Ora, no acórdão recorrido, a questão objeto de recurso consistia em saber se a cessão de crédito futuro, pela sociedade CC, SGPI, S.A., a favor da A., AA, em 15/02/2011, e peticionado por esta contra a R., agora como crédito atual e vencido, devia prevalecer sobre a penhora do mesmo crédito futuro efetuada a favor do Fisco, já após aquela cessão, no âmbito de uma execução fiscal movida contra a mesma sociedade “CC, SGPI, S.A.”.

Como naquele aresto se enunciou, tal questão implicava abordar as problemáticas respeitantes:

i) – em primeira linha, ao momento em que opera a cessão de crédito e ao modo como se transfere o crédito cedido para a esfera do cessionário, em particular no referente ao crédito futuro;

ii) – em seguida, à prioridade a estabelecer entre a eficácia da referida cessão do crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efetuada posteriormente àquela cessão.

     A solução dada foi a que se encontra sumariada no mesmo acórdão e que é do seguinte teor:

«1. A cessão de créditos, prevista e regulada nos artigos 577.º a 588.º do CC, pode incidir tanto sobre créditos presentes, vencidos ou não, como sobre créditos futuros, desde que determináveis, nos mesmos termos em que é permitida a constituição de obrigações sobre coisas futuras (artigos 211.º e 399.º do CC).

2. Ao contrato de cessão de crédito é aplicável, por via extensiva ou mesmo analógica, os princípios da consensualidade e da sua eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º em conjugação com o disposto no artigo 879.º, alínea a), 2.ª parte, do CC, em que se inclui, como efeito típico da compra e venda, a transmissão da titularidade do direito, disposição esta também aplicável aos demais contratos onerosos por via do artigo 939.º do mesmo Código.

3. A natureza relativa do direito de crédito não obsta àquela eficácia erga omnes, na medida em que esta eficácia translativa não versa sobre o conteúdo da prestação creditícia, mas sobre a própria titularidade do direito de crédito.

4. A autonomização da titularidade do direito de crédito, enquanto objeto específico de cessão, permite conferir-lhe, nesse particular, natureza absoluta equiparável aos direitos reais e portanto com eficácia erga omnes do respetivo efeito patrimonial translativo, nos termos do artigo 408.º do CC.

5. Tratando-se de cessão de crédito futuro, a transferência deste da esfera do cedente para a do cessionário ocorrerá logo que o direito cedido ingresse na esfera daquele, nos termos do n.º 2 do indicado artigo 408.º, transferindo-se assim automática e imediatamente para a esfera do cessionário.

6. No caso de concorrência de afetações do crédito futuro cedido e depois penhorado a favor de terceiro, face aos princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, a prevalência entre o efeito translativo da cessão e o efeito civil da penhora deve ser estabelecida em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de penhora.»

     Para tanto, foi considerado que a solução que se afigurava:

«(…) mais condizente e harmoniosa com os princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, aplicáveis à cessão de créditos, é a de resolver a concorrência de afetações do direito de crédito futuro, cedido e depois penhorado, em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de realização da penhora.

Nesta conformidade, verificando-se, no caso presente, que o contrato de cessão do crédito em causa celebrado entre a sociedade “CC, SGPI, S.A.” e a ora A., com subsequente notificação à R., foi anterior à realização da penhora por parte do Fisco, o efeito translativo daquela cessão deverá prevalecer sobre o efeito civil desta penhora, tal como bem se decidiu no acórdão recorrido.

Assim, o pagamento indevidamente efetuado pela R. a terceiro – no caso, o Fisco exequente - não a exonera perante a cessionária, ora A., como decorre do preceituado no artigo 770.º do CC.»   

        

     Por sua vez, o acórdão-fundamento do STJ, datado de 31/01/2002, proferido no processo RV3804/01-2, inscrevia-se em sede de processo de embargos de terceiro deduzidos contra penhora efetuada em execução ordinária, no qual se alegava, em síntese, o seguinte:

- na execução embargada foi ordenada a penhora do crédito dos executados sobre o Ministério da Agricultura, correspondente à indemnização a atribuir-lhes pela expropriação de prédios, de que são proprietários, até que se mostre suficiente para garantir o pagamento da quantia exequenda;

- em 27/12/96, foi outorgado entre o embargante, por um lado, e os executados, pelo outro, um “Contrato de Cedência de Direito”, através do qual este cedem àquela, em função do pagamento de todas as quantias mutuadas por ela, bem como dos respetivos juros e de todas as despesas judiciais e extrajudiciais, o direito à indemnização por expropriação e ocupação no âmbito da reforma agrária e que é objeto de outros processos;

- a dívida dos executados para com a embargante ascende a 224.886.896$00;

- só em meados de junho de 1997 a embargante teve conhecimento da execução e, consequentemente, de que fora ordenada a penhora do crédito dos executados.

     Nesses embargos, fora proferida decisão em 1.ª instância a julgar os mesmos improcedentes por se considerar que a embargante não lograra provar a sua qualidade de credora do direito penhorado antes de realizada a penhora, uma vez que, a admitir-se ser o contrato em causa uma cessão de crédito, os seus efeitos só se produziriam em relação ao devedor com a notificação deste, a qual nunca tivera lugar.

      Tendo a embargante apelado desse decisão, a Relação confirmou a mesma, ainda que com base noutro fundamento: o de que o contrato invocado por aquela consubstanciava uma cessão de crédito futuro, determinável, mas ainda indeterminado, cuja perfeição só se atingia quando entrasse na esfera jurídica dos cedentes.   

     Recorrendo, de novo, a embargante para o STJ, foi então proferido o acórdão-fundamento, no qual foi enunciado que a questão que se discutia consistia em saber se o direito dos executados à indemnização (por expropriação) – por eles cedido à embargante “em função do pagamento” dos empréstimos que esta lhes concedeu – já se encontrava na titularidade plena da embargante aquando da penhora, que sobre esse mesmo direito incidiu na execução a que respeitavam os embargos.

      Sobre tal questão, o acórdão-fundamento, remetendo para o acórdão ali recorrido, sufragou a resposta negativa dada a tal questão.

      Em consequência disso, considerou não haver dúvidas de que o referido direito à indemnização penhorado dizia respeito a créditos futuros, ainda indeterminados, embora determináveis, validamente cedidos pelos executados à embargante, os quais só passariam a integrar a esfera jurídica desta depois de se constituírem nas dos executados-cedentes. Nessa base, foi negada a revista.

Em termos algo similares aos considerados no acórdão-fundamento, no acórdão recorrido entendeu-se que:

«Tratando-se de cessão de crédito futuro, a transferência deste da esfera do cedente para a do cessionário ocorrerá logo que o direito cedido ingresse na esfera daquele, nos termos do n.º 2 do indicado artigo 408.º, transferindo-se assim automática e imediatamente para a esfera do cessionário.

        

No entanto, no acórdão aqui recorrido colocou-se ainda a questão de saber qual então a prioridade a estabelecer entre a eficácia da referida cessão do crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efetuada posteriormente àquela cessão, mais precisamente quanto a saber se a penhora que recai também sobre o mesmo crédito futuro, mas realizada posteriormente à cessão, prevalece sobre tal efeito translativo.

E foi no âmbito de tal questão que se considerou que:

«No caso de concorrência de afetações do crédito futuro cedido e depois penhorado a favor de terceiro, face aos princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, a prevalência entre o efeito translativo da cessão e o efeito civil da penhora deve ser estabelecida em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de penhora.»   

Para tanto, entendeu-se no acórdão recorrido que:

«(…) a solução que se afigura mais condizente e harmoniosa com os princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, aplicáveis à cessão de créditos, é a de resolver a concorrência de afetações do direito de crédito futuro, cedido e depois penhorado, em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de realização da penhora.

Nesta conformidade, verificando-se, no caso presente, que o contrato de cessão do crédito em causa celebrado entre a sociedade “CC, SGPI, S.A.” e a ora A., com subsequente notificação à R., foi anterior à realização da penhora por parte do Fisco, o efeito translativo daquela cessão deverá prevalecer sobre o efeito civil desta penhora, tal como bem se decidiu no acórdão recorrido.»


     Seja como for, no acórdão-fundamento, tal questão não foi sequer colocada nem tão pouco equacionada.

     Ali apenas se considerou que o direito à indemnização penhorado dizia respeito a créditos futuros, os quais só passariam a integrar a esfera da cessionária depois de se constituírem na esfera do cedente.

     Em face disso, o acórdão da Relação de … reproduzido a fls. 85-94, de 06/03/2001, sufragado pelo acórdão-fundamento, considerou que:

«Por isso, no presente caso, como estamos perante uma cessão de um crédito futuro, que, como vimos, embora determinável, ainda é indeterminado, não se pode concluir que tal cessão já se encontre consumada e que, portanto, quando se procedeu à penhora, já esse crédito se encontrava na titularidade da cessionária, ora embargante e recorrente.»

    Note-se que a fundamentação daquele acórdão centrou-se na questão da transmissão da titularidade do crédito futuro cedido a terceiro, sendo meramente residual ou conclusiva no que toca à penhora, não permitindo descortinar qualquer critério decisório sobre o efeito civil da penhora de crédito futuro.  

     Com efeito, não foi ali sequer equacionada nem ponderada especificamente a questão de saber quando é que a penhora sobre um crédito futuro se torna eficaz na esfera do cedente, como fora expressamente considerado no acórdão aqui recorrido. Quando muito, poderia dizer-se que, na solução perfilhada no referido acórdão da Relação de … e secundada pelo acórdão-fundamento, estaria implícita, de algum modo, a ideia do efeito imediato dessa penhora.

      Como decorre do acima exposto, a contradição de julgados relevante para efeitos de uniformização jurisprudencial tem de se revelar inequívoca no confronto dos critérios decisórios que desembocaram em soluções antagónicas, por isso mesmo sendo afastados os casos de meras decisões implícitas.

De resto, tornar-se-ia inviável resolver uma oposição de julgados, quando não se consegue sequer identificar o critério decisório conducente a uma das soluções decretadas, sem qualquer evidência de suporte interpretativo-aplicativo de norma legal para tanto aplicável.

Afigura-se, pois, ser esta a situação aqui em foco no respeitante ao acórdão-fundamento, que, centrando-se na questão ali controvertida da transmissão da titularidade do crédito futuro cedido a terceiro, se cingiu, no mais, a concluir pela improcedência dos embargos de terceiro contra a penhora por essa via impugnada, mas sem que tivesse sido equacionada nem muito menos suscitada a questão do momento da eficácia da penhora de crédito também futuro, tal como o foi no acórdão recorrido.

Nessas circunstâncias, argumentar que aquela decisão assentou em critério decisório - ou tese - divergente do adotado no acórdão recorrido será, quando muito, especular sobre algo hipotético, pressuposto ou meramente implícito, ficcionando um tal critério, não assumido inequivocamente como fator decisivo do julgado no acórdão-fundamento.

Nem tão pouco se colhe do acórdão-fundamento qualquer substrato argumentativo, tese ou esboço de juízo decisório que permita consubstanciar uma orientação jurisprudencial uniformizadora sobre a questão fundamental de saber qual o momento em que a penhora de um crédito futuro se torna eficaz em contraponto com o apreciado e decidido sobre tal questão no acórdão recorrido.      

    Neste quadro, salvo o devido respeito por todo o desenvolvido argumentário da Recorrente, não se afigura que a decisão do acórdão aqui recorrido e a do acórdão-fundamento estejam em contradição frontal no domínio daquela questão fundamental de direito, conforme se entendeu na decisão ora reclamada.  

       Termos em que se considera que não ocorre a relevante oposição de jurisprudência.


III – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente reclamação, mantendo-se a decisão reclamada de rejeição do presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, com fundamento na inexistência de oposição de acórdãos.

       As custas do recurso e da presente reclamação são a cargo da Recorrente/Reclamante, fixando-se a taxa de justiça, quanto a esta, em 3 UC.  


 Lisboa, 15 de novembro de 2018

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] Sobre a conciliação desses dois princípios, vide Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1981, pp. 233 e seguintes.
[2] Neste sentido, vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, pp. 48-49.
[3] Acórdão relatado por Salazar Casanova, publicado na CJSTJ, Tomo I, p. 102 e disponível na Internet http://www.dgsi. pt/jstj.