Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1281/10.7TBAMT-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TAVARES DE PAIVA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
CHEQUE
NOVAÇÃO
ACEITE
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
LIBERALIDADE
SOCIEDADE COMERCIAL
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: TÍTULOS DE CRÉDITO – NOVAÇÃO – ACEITE
Doutrina: Abel Delgado, «Lei Uniforme sobre Letras e Livranças»
Antunes Varela, «Das obrigações em Geral», vol. III, 7.ª ed., págs. 361 e ss.
Antunes Varela e Pires de Lima« Código Civil Anotado» ,anotação ao art. 857.º;
Legislação Nacional: LULL: ART. 17.º
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS: ART. 6.º, N.º 2 E 3, 260.º, N.º 4;
CÓDIGO CIVIL: ART. 217.º, 281.º, 342.º, N.º 1, 595.º, N.º 1, B), 857.º, 1143.º,
Jurisprudência Nacional: AUJ N.º 1/2002
AC. STJ DE 26-09-2013, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
I - Vem provado que a letra de câmbio dada à execução foi entregue ao oposto (exequente) pelo legal representante da oponente-executada para pagamento de dívidas tituladas por cheques, da responsabilidade de duas outras sociedades de que ele era também legal representante, sendo que aquela apresentava maiores garantias de solvabilidade; por isso foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada à execução nos presentes autos, tendo na altura o exequente devolvido todos aqueles cheques ao legal representante da executada, ficando portador da letra aqui dada à execução.

II - A factualidade referida em I é mais própria do instituto da novação (art. 857.º do CC) que aqui tem a sua expressão decisiva na devolução dos cheques que o exequente fez ao legal representante da executada aquando do aceite da letra aqui em questão, sendo a dívida relacionada com os cheques substituída pela titulada pela letra oferecida à execução.

III - Competia à sociedade executada demonstrar e provar que o negócio em questão mais não era do que um liberalidade feita pela executada (art. 342.º, n.º 1, do CC) contrária ao fim societário da mesma, e como tal nulo (art. 280.º, n.º 1, do CC), provando, no caso, a inexistência de interesse próprio, isto é, os requisitos da nulidade que pretende aproveitar, e isto porque ninguém melhor que a própria sociedade estará habilitada a fazer a prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio, a que alude o art. 6.º do CSC.

IV - E sobre este requisito a matéria de facto é completamente omissa e insuficiente, já que para a prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio não chega provar que o crédito da exequente não decorre duma relação com a sociedade executada e que se prove que o aceite pela sociedade executada foi porque esta no contexto do grupo de empresas de que o representante da executada tinha participação era a que apresentava maiores garantias de solvabilidade.

V - O aceite aposto na letra oferecida à execução pelo legal representante da executada, do qual consta também um carimbo da própria sociedade executada, à luz do n.º 4 do art. 260 do CSC e com o reforço do entendimento sufragado pelo AUJ n.º 1/2002 que doutrinou «a indicação da qualidade de gerente prescrita no n.º 4 do art. 260.º do CSC pode ser deduzida, nos termos do art. 217.º do CC, de factos que com a toda a probabilidade a revelem», vincula validamente a executada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - Relatório


AA, exequente, intentou contra BB, Lda execução com base no facto de ser portador legítimo de uma letra de câmbio no montante de € 243.100,00 sacada pelo exequente e aceite pela executada e que esta não pagou, nem procedeu à sua reforma, na data do seu vencimento em 5 de Junho de 2009.


A executada veio deduzir oposição alegando, em síntese:


Que nunca teve lugar qualquer transacção comercial entre o exequente e executada que pudesse originar a letra em execução, sendo certo também que o exequente nunca apresentou a letra a pagamento ou interpelou o opoente para pagar a quantia nela aposta

Mais alegou que nem a emissão da letra nem a alegada transacção comercial foram confirmadas por deliberação unânime dos sócios e que o anterior gerente actuou para além dos limites do objecto social da opoente, com total desconhecimento do outro sócio. Alega ainda que a simples assinatura feita pelo gerente, sem a menção de tal qualidade não vincula a sociedade, impugnando ainda a letra e assinatura da letra, quer no que se refere à quantia nele aposta e bem assim no que se refere às datas nela constantes.


O exequente contestou, concluindo pela improcedência da oposição e defendendo a regularidade da subscrição do título oferecido à execução, a exigibilidade do seu pagamento por força do aceite firmado, alegando que o título lhe foi entregue para pagamento de dívidas tituladas por cheques emitidos por sociedades em que o então já referido sócio-gerente da executada tinha também participação social, tendo sido proposto o pagamento de tais cheques e a substituição dos mesmos pelo aceite da letra dada à execução, posto a oponente dar maiores garantias de solvabilidade.


Findo os articulados, foi proferido despacho saneador, tendo sido dispensada a selecção da matéria de facto.


Realizado o julgamento e após a decisão sobre a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição deduzida pela executada.


Inconformada a executada interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, pelo Acórdão de fls. 224 a 239, julgou procedente a apelação interposta e, revogando a sentença da 1ª instância, determinou a extinção da execução relativamente à executada.


O exequente não se conformando com esta decisão interpôs recurso de revista para este Supremo.

Nas suas alegações de recurso formula as seguintes conclusões:


1. Cinge-se o presente recurso de revista à reponderação da decisão proferida acerca da incapacidade de gozo da executada e incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 6.° e 486.° do CSC, de acordo com os fundamentos de facto e de direito que infra melhor se explanarão.


I - DA DECISÃO SURPRESA

2. A executada na sua oposição a execução nunca alegou não possuir capacidade de gozo para aceitar a letra dada à execução, nem tão-pouco alegou quaisquer factos que levassem o Tribunal a concluir por tal incapacidade (nomeadamente falta de conveniência na prossecução dos seus fins, falta de interesse próprio e inexistência de relação de grupo ou domínio).

3. O Tribunal da Relação do Porto entendeu pronunciar-se sobre a nova questão da incapacidade de gozo da executada levantada pela apelante apenas no seu recurso, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso, podendo, pois, ser apreciada pelo Tribunal a todo o tempo.

4. Porém, salvo melhor opinião de VExas, não poderia o Tribunal da Relação do Porto ter decidido tal nova matéria de direito sem ter sido concedida ao recorrido/exequente a possibilidade de se pronunciar previamente sobre tal intenção ao abrigo do princípio do contraditório, nos termos do disposto no artigo 3.° do CPC, implicando a violação dessa faculdade uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 201. o do anterior CPC (aplicável ao incidente de oposição à execução).

5. Pode ler-se no sumário do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no processo 391l0.8TBMDA.Cl, disponível em www.dgsi.pt:

"I - Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

II - No primeiro caso o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame.

III - No segundo caso o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação.

IV - Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais - e não meios de julgamento de julgamento de questões novas.

V - Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

VI - Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

VII - A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões - como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis - constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora. quando isso suceda de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (art° 30, na 3 do CPC)," - Negrito e sublinhado nossos

6. Acreditando-se que, se a faculdade de pronúncia prévia tivesse sido possibilitada, certamente a decisão seria outra porque a decisão surpresa e seus fundamentos evidencia, salvo melhor opinião, falta de reflexão acerca de todas as questões (DE FACTO) relevantes para aferição da capacidade de gozo das sociedades comerciais, a qual poderia certamente ter sido diferente na eventualidade de ter sido concedida a possibilidade de exercício de contraditório, nos termos supra melhor explicados nas alegações de recurso.


***


II - DA DECISÃO ERRADA POR INTERPRETAÇÃO INCORRECTA DO ARTIGO 6.° CSC QUANTO AO INTERESSE PRÓPRIO - DA PROTECÇÃO DO COMÉRCIO JURÍDICO


7. É realidade assente que a executada/oponente não logrou demonstrar quaisquer factos que pudessem demonstrar má-fé do exequente/oposto (nomeadamente quanto ao por si alegado conluio).

8. E o Tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou precisamente sobre a impossibilidade de ser apreciada a falta de interesse próprio da sociedade comercial perante um terceiro de boa-fé, protegendo-o da alegação de falta de capacidade de gozo da sociedade comercial em virtude da inexistência de interesse próprio em liberalidades ou garantias prestadas àquele.

9. Consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo 9334111.8TBOER-B.Ll-6 e disponível em www.dgsi.pt: "( ... )

GIL, exequente nos autos de que estes são apenso, veio interpor recurso da decisão que julgou procedentes os incidentes de prestação espontânea de caução por parte de CC – Aluguer de Equipamentos de Construção, S.A., DD e EE, executados nos autos principais, para efeitos de suspensão da execução na pendência de oposições apresentadas pelos executados. Nos autos, os executados dos autos principais vieram oferecer caução para suspensão da execução na sequência das oposições deduzidas: a Recorrida "CC" veio oferecê-la mediante constituição de penhor de diversos bens móveis de sua propriedade; os Recorridos DD e EE vieram fazê-lo mediante prestação de garantia por terceiro (a cc-executada "CC") mediante a extensão do mesmo penhor à garantia das obrigações dos executados pessoas singulares. Inicialmente objecto de diversos apensos, foram todos os requerimentos decididos nos presentes autos por decisão judicial proferida nesse sentido. Cumprido o demais legal, foi proferida a seguinte decisão:

(. . .)


Mais alega que inexiste qualquer interesse próprio da sociedade em garantir dívidas de terceiros e, nessa conformidade, não tem a sociedade garante capacidade judiciária para prestar a presente caução, sendo nula a caução caso fosse admitida.

Contudo, não se nos afigura que lhe assista razão.

(. . .)

2.1.2 Regime da prestação de garantias por sociedades A prestação de garantias a terceiros por sociedades comerciais é questão amplamente debatida na jurisprudência e doutrina nacionais. A norma do artigo 160°, do CC (W), que sucedeu à do artigo 34°, do Código de Seabra ([2}), tem sido considerada como consagrando a teoria da especialidade de fim quanto à actuação das sociedades comerciais ([3]).

No direito nacional a questão tem actualmente de enquadrar-se em sede do Código das Sociedades Comerciais, no contexto da Directiva 68/151/CEE, do Conselho, de 9 de Março de 1968 (141) (1a Directiva societária).

É o seguinte o teor da norma pertinente daquela Directiva, o artigo 9.°

« 1. A sociedade vincula-se perante terceiros pelos actos realizados pelos seus órgãos, mesmo se tais actos forem alheios ao seu objecto social, a não ser que esses actos excedam os poderes que a lei atribui ou permite atribuir a esses órgãos.

Todavia os Estados-membros podem prever que a sociedade não fica vinculada, quando aqueles actos ultrapassem os limites do objecto social, se ela provar que o terceiro sabia, ou não o podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto ultrapassava esse objecto; a simples publicação dos estatutos não constitui, para este efeito, prova bastante.

2. As limitações aos poderes dos órgãos da sociedade que resultem dos estatutos ou de uma resolução dos órgãos competentes, são sempre inoponíveis a terceiros, mesmo que tenham sido publicadas. 3. Quando a legislação nacional preveja que o poder de representar a sociedade é atribuído por cláusula estatutária, derrogatória da norma legal sobre a matéria, a uma só pessoa ou a várias pessoas agindo conjuntamente, essa legislação pode prever a oponibilidade de tal cláusula a terceiros, desde que ela seja referente ao poder geral de representação; a oponibilidade a terceiros de uma tal disposição estatutária é regulada pelas disposições do artigo 3°». Este o regime quadro do Código das Sociedades Comerciais cujo preâmbulo expressamente o refere ([Q}).

Neste contexto, dispõe o artigo 6.° do CSC:

« 1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

2 - As liberalídades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.

3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

4 - As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.

5 - A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários».

Por seu turno o artigo 409° do CSC estatui ([ZJ):

«1 - Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.

2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, lendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas. 3 - O conhecimento referido no número anterior não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade.

4 - Os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade».

Este o específico quadro legal a ter em conta. Face ao que deve distinguir-se o que se refere à capacidade de gozo das sociedades do que respeita à sua vinculação externa (face a terceiros) pelos actos praticados pelos seus orgãos.

A capacidade de gozo exprime «a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas (.. 8)) mm enquanto a vinculação externa se refere à válida constituição de obrigações jurídicas para com terceiros.

O próprio enunciado determina se conclua que apenas pode haver vinculação no âmbito da capacidade de gozo. Dito de outro modo, a capacidade de gozo é a medida da possibilidade de vinculação da sociedade; a determinação da vinculação da sociedade pressupõe necessariamente que o acto vinculativo se inclua na sua capacidade de gozo, embora não imponha que tal acto esteja dentro dos poderes do órgão da sociedade que o praticou.

O primeiro momento de apreciação da questão que nos ocupa é assim o de distinguir o que se refere a capacidade mm do que se refere a vinculação externa.

A razão de ser da Directiva identificada foi a de proteger o comércio jurídico, estabelecendo a segurança de que a actuação dos órgãos da sociedade em seu nome estabelecia a sua vinculação, salvas contadas excepções em que é patente à generalidade dos intervenientes no comércio jurídico que o envolvimento da sociedade está excluído, nomeadamente por os actos excederem os poderes dos órgãos. Excepções que se fundam na desnecessidade de assegurar o que é flagrantemente inválido ou de proteger quem não deve contar com essa protecção em razão da má fé com que negociou.

O artigo 6.°do CSC refere-se à capacidade de gozo das sociedades no seu nº 1 estabelecendo que as sociedades gozam de ampla capacidade de gozo quanto aos «direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim» exceptuando os que são «vedados por lei» ou «inseparáveis da personalidade)».

Por seu turno, o nº 4 da mesma norma volta a referir-se à capacidade de gozo das sociedades estatuindo que a mesma não é afectada por «cláusulas contratuais» ou «deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos». Com o que se limita a concretizar em pontos específicos o que já resultava do n.? 1: a capacídade não é limitada senão nos termos pela lei ou pela natureza

(10).

Este o quadro que delimita a capacidade de gozo das sociedades: todos os direitos e obrigações exigidos pela prossecução do seu fim, sem restrições que não as constantes de lei expressa, nomeadamente sem restrições estabelecidas contratual ou unilateralmente pela sociedade. Ou seja, dito de outro modo, a capacidade de gozo das sociedades é ampla de modo a permitir-lhes a prossecução do seu fim e não pode ser restringida pela própria sociedade, nomeadamente mediante restrição unilateral do que possa entender-se ser esse fim em concreto (v.g. pela fixação de objecto (11)).

Poderia objectar-se que a norma do artigo 6°, n° 1, do esc, indica a prossecução do fim como limite da capacidade, não como seu horizonte, e aponta para uma capacidade de gozo casuística, a determinar face aos actos concretos, correspondente à teoria da especialidade do fim que sempre foi considerada consagrada no artigo 160° do CC, norma que o artigo 6.° parece limitar-se a reproduzir e que é próxima da consagrada no Código de Seabra.

A abordagem que seguimos supra levaria, pelo contrário, a considerar um alargamento da teoria da especialidade do fim que a tornaria mais próxima, quiçá assimilada, à teoria da ilimitação.

Pensamos que a objecção não colhe. Por um lado, mantém-se a consagração de uma teoria da especialidade do fim, embora considerada em termos genéricos e não casuísticos: partindo da capacidade para a análise dos actos e não destes para a definição da abrangência da capacidade pela sua mera adição ou justaposição. Assim, a capacidade é considerada como «categoria generalizadora» (U2l) para a prática de determinados actos considerados abstractamente no seu contorno jurídico - v.g. capacidade para comprar, para vender, para arrendar - e não em termos casuísticos - v.g. capacidade para comprar naquelas concretas circunstâncias, para arrendar aquele concreto bem por aquele indicado preço, etc (lUl). Por outro lado, admitir o contrário, implicaria que apenas a perfeição do acto já praticado permitiria concluir da capacidade de gozo da sociedade. Com a consequência, que cremos iniludível, de que não existindo capacidade de gozo (a apreciar caso a caso, acto a acto) a questão da vinculação da sociedade face a terceiros nunca se poderia colocar, desvirtuando o regime que a Directiva pretendeu instituir, pois permitiria multiplicar as situações de dúvida com prejuízo da segurança do comércio jurídico (fHl).

Cremos, assim, que os n.Ds 1 e 4 do CSC se referem à capacidade de gozo das sociedades com o sentido indicado.

E quanto aos outros números do artigo 6.°, do CSC? Reportam-se também eles à capacidade de gozo?

Os nºs. 2, 3 e 5 referem-se a situações concretas anteriormente debatidas na doutrina e na jurisprudência que seguidamente se abordarão.

o n." 5 estabelece a responsabilidade da sociedade pelos actos dos seus representantes em assimilação do regime dos artigos 500.0, n.o 1, e 483.0, do CC, o que é pacífico e exorbita do necessário à ponderação do caso que nos ocupa.

Vejamos então os nºs 2 e 3. Trata-se de normas relativas à capacidade ou à vinculação das sociedades? Adiante-se que entendemos que respeitam tão somente à vinculação, conjugando-se, aliás, com o disposto no artigo 409º do CSC, e com as orientações da Directiva comunitária.

Ou seja, as liberalidades e as garantias são actos abstractamente incluídos na capacidade de gozo das sociedades (a lei não veda a sua prática pelas sociedades, antes expressamente a admite nas normas citadas). As sociedades têm capacidade de gozo para a prática de tais actos. Podem é não ser vinculadas por eles quando se verifiquem as previsões das normas citadas, sendo este o problema de que as normas agora em análise se ocupam.

Em suma, a capacidade enquanto aptidão das sociedades para serem titulares de direitos e obrigações está prevista no artigo 60, nºs 1 e 4. e a vinculação enquanto conjunto de obrigações resultantes para a sociedade anónima da actuação dos seus órgãos nos artigos 6, nºs 2, 3 e 5, e 409, do CSC.

Porém, como interpretar a letra do n.? 3, único que interessa ao caso, que parece impor leitura no sentido de estabelecer uma presunção de que a prestação de garantias pela sociedade é contrária à prossecução do seu fim (apontando por essa via para a questão da capacidade)? Se assim for, contrariamente ao que defendemos, a norma implica uma presunção de incapacidade de gozo a ilidir mediante a demonstração de que o acto concreto foi praticado relativamente a dívida de entidade numa relação de domínio ou de grupo ou prosseguindo um interesse próprio da sociedade.

Curiosamente, mesmo quando a questão é situada no âmbito da capacidade, não é essa a posição maioritária na jurisprudência que maioritariamente impõe à sociedade o ónus de demonstrar a falta de interesse ou de relação de domínio ou de grupo ([1J2}). Ora, salvo o devido respeito, esta conclusão não resulta coerente quando se interprete a norma no âmbito da capacidade (Ilâl).

o que a norma estatui não é a presunção de que a prestação de garantia a terceiros seja genericamente presumida como contrária ao fim da sociedade delimitando a sua capacidade de gozo. O que a norma estatui é que uma garantia prestada a entidade estranha (um) ou em que inexiste a prossecução de um interesse próprio da sociedade, se presume contrária ao fim da sociedade, não sendo a sociedade onerada com a prova desta contrariedade no confronto com os órgãos Que praticaram o acto mas apenas com a prova da inexistência de interesse no confronto com terceiros de má fé.

Assim sendo, em resumo, as sociedades têm capacidade de gozo ampla para a prossecução dos seus fins, Que não pode ser restringida senão por lei expressa - artigo 6.°, n.? 1 do CSC -, sendo inidóneas as restrições contratuais ou unilaterais da sociedade- artigo 6.°, n.? 4, do CSC -, capacidade que inclui a prestação de garantias a entidades estranhas (uma vez que inexiste lei expressa que as exclua). antes estando prevista a sua prestação vinculativa no artigo 6.°, nº 3. do CSC. A prestação de garantias a entidades estranhas vincula assim a sociedade - artigo 409.°, nº 1, do CSC - que pode, no entanto, opor a inexistência de Interesse próprio nessa prestação a terceiros que soubessem ou não pudessem ignorar essa inexistência

2.1.3 Prestação judicial de garantia

Concluímos que a sociedade apenas pode invocar a falta de interesse próprio na prestação da garantia no confronto com terceiro de má fé. No caso sub judie e a prestação da garantia é judicial pelo que a má fé poderia apenas resultar de situações de conluio por exemplo por aproveitamento de efeitos de revelia ou outras condutas processuais, cabendo ao tribunal uma apreciação perfunctória da existência de interesse societário, em sede de fundamentação de decisão pela idoneidade da garantia. ( ... )"

1O. Acredita-se que a interpretação e aplicação conecta do artigo 6.° CSC se subsume à operada pelo Tribunal da Relação no Acórdão ante citado, protegendo-se, quer o comércio jurídico, quer os terceiros de boa-fé, impossibilitando-se dessa forma, portanto, que a executada/oponente possa sequer alegar falta de interesse próprio.

11. Aliás, ainda mais longe, lembram-se aqui as seguintes decisões:

a) Ac. sr J de 21/09/220: Col.. Jur./S'IJ, 2000, 3. "_36 - "O acto ou negócio jurídico praticado pelos sócios gerentes de uma sociedade comercial não pode ser considerado nulo com o fundamento de que, dado o principio da especialidade, a sociedade não tem capacidade de gozo

para o realizar "; ou

b) Ac. RC, de 17/10/2000: CoI. Jur.2000, 4-37 - A sociedade comercial não pode invocar a sua incapacidade de gozo e nulidade do acto que praticou face a terceiro, salvo provando que estes sabiam ou deviam saber que o acto não respeitava cláusula do pacto social. "

12. Aliás, não foi sequer alegada qualquer factualidade que pudesse levar o Tribunal recorrido a acreditar que inexistia interesse próprio da sociedade executada ou que o aceite da letra não era um acto necessário ou conveniente à prossecução dos seus fins.

13. Com efeito, o facto de não ter existido uma transacção comercial directa entre as palies não é sinónimo da existência de uma liberalidade ou de que não se tratava de um acto necessário ou conveniente à prossecução dos seus fins ou ainda de que inexistia interesse próprio.

14. Para que se possa falar em liberalidade teria a executada/oponente de demonstrar que o aceite da letra de câmbio pressupunha um animus donandi, uma dádiva, uma oferta - o que não foi, nem podia ser, demonstrado, sabendo-se que muitas são as razões que levam as sociedades a prestar garantias, assumir dívidas de terceiros ou garanti-las, sem que exista um interesse económico ou financeiro imediato para a mesma e sem que tal conduta seja proibida por falta de capacidade de gozo.


***


III - DO ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA DE FACTOS QUE ESTÃO NA ORIGEM DA DECISÃO RECORRIDA

Sem prescindir de todo o exposto,

15. É pacífico que, nos termos do disposto no artigo 6.0, na 3 do esc, independentemente das correntes doutrinais e jurisprudenciais, verificando-se a existência de conveniência na prossecução do fins, de interesse próprio ou de relação de grupo ou domínio, inexiste qualquer incapacidade de gozo das sociedades comerciais para a prática de garantias e liberalidades.

16. Dos factos provados nada consta acerca da relação de grupo entre as sociedades "FF, Lda", "GG, Lda" e a sociedade executada, sabendo-se apenas que a letra em discussão nos presentes foi aceite por esta última e entregue ao exequente em substituição de cheques subscritos por aquelas (pontos 34 a 41 dos factos provados).

17. O Supremo Tribunal de Justiça no processo 0482540 disponível em www.dgsi.pt. cujo sumário refere:

"I - Os actos praticados pelo gerente em nome da sociedade, e dentro dos poderes que a lei lhe confere, vinculam-na perante terceiros.

II - Quando uma sociedade comercial preste garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades e pretenda obter a declaração da sua nulidade, ao abrigo do disposto no mi. 6° n° 3 do C.S.C., recai sobre a sociedade garante o ónus da prova da inexistência de interesse próprio e de relação de domínio ou de grupo com a entidade beneficiária."

18. Ora, não estando alegada e provada pela executada, a inexistência da relação de grupo ou de domínio e só a ela lhe incumbindo tal alegação e prova, nos termos da distribuição de tal ónus, a consequência será obviamente de considerar que a mesma possuía capacidade de gozo para o aceite da letra em discussão nos presentes.

19. Lê-se no texto integral do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ante referido:

"Dispõe o art. 6° n° 1 do Cód. das Soc. Comerciais que "a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular".

Por sua vez, prescreve o n 3 do mesmo preceito que "considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo".

E é neste n? 3 que terá de ser encontrada a solução para a questão que é posta em sede de revista.

Como acima se disse, peticiona a A. recorrente a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, de anulação das hipotecas por si constituídas a favor da ré, para garantir o pagamento de uma letra aceite por C, l.da., com o fundamento de que tais garantias não foram prestadas no seu interesse e de que entre a A. e a C, Lda. não existe relação de domínio ou de grupo.

As decisões das instâncias foram no sentido da improcedência da acção por a A. não ter provado a inexistência daquele interesse e da relação de grupo.

Defende a A. recorrente que era à ré que incumbia a prova, para a obstaculização da declaração de nulidade, ou anulação, das referidas garantias, de que existia justificado interesse próprio da sociedade garante ou de que se tratava de sociedade em relação de domínio ou de grupos.

Portanto, a única questão objecto do recurso é, precisamente, a de saber se é a A. que tem de provar a inexistência do aludido interesse e da relação de grupo, ou se é sobre a ré que incide o ónus da prova da existência daquele interesse ou relação de grupo para, assim, poder obstar à decretação da pretendida nulidade, ou anulação.

Volvendo à questão supra enunciada, desde já se adianta que a decisão a proferir vai engrossar o caudal da corrente jurisprudencial e doutrinária, ilustrada no ac. deste Supremo Tribunal de 21/09/2000, publicado na CoI. Jur-Acs. do S.T.J.- Ano VIII, III. págs. 36 e segs. (v. citações nele feitas). que defende caber à autora a prova da inexistência de justificado interesse próprio da sociedade garante ou de relação de grupo.

Na verdade, o citado art. 60 tem o seu fundamento no nº 1 do art. 90 da 1ª Directiva do Conselho da CEE n° 68/151, de 09/03/68 (in JOCE nO L- 65, de 14/03/68), onde se dispõe que os autos realizados pelos órgãos sociais obrigam a sociedade relativamente a terceiros, mesmo quando tais actos são estranhos ao objecto social, a menos que excedam os poderes que a lei confere ou permite conferir aos referidos órgãos.

Todavia, os estados membros podem estabelecer que a sociedade não seja obrigada por actos que superem os limites do objecto social se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, atentas as circunstâncias, que o acto superava os ditos limites; a publicação dos estatutos não poderá constituir prova bastante desse conhecimento".

Em consonância com esta regra, e como justificação para o texto do referido art. 60, fez o nosso legislador constar do preâmbulo do DL 262/86, de 02/09, que aprovou o Cod. Soe. Com., sob o n° 23, o seguinte:

"Quanto à vinculação da sociedade pelos gerentes, adopta-se uma alteração importante ao regime vigente, que decorre da primeira Directiva da CEE. Os actos praticados pelo gerente em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhe confere vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes da deliberação dos sócios. A sociedade pode opor a terceiros limitações de poderes resultantes do objecto social se provar que o terceiro tinha conhecimento de que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, ela não tiver assumido o acto, por deliberação expressa ou tácita dos sócios, mas tal conhecimento não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato da sociedade (art. 2600)."

Do que se acaba de expor resulta que para produzir efeitos perante terceiros, se faz recair sobre a sociedade o ónus de provar a sua incapacidade para a realização de certos negócios jurídicos.

E a melhor hermenêutica jurídica leva, in casu, a que se faça incidir sobre a A. sociedade o ónus de provar a inexistência de justificado interesse próprio ou de relação de grupo.

Tendo sido a sociedade A. quem prestou. a terceiro, as questionadas garantias, e pretendendo ela valer-se, agora da nulidade dos actos que praticou, deverá ser ela a ter que provar a inexistência de qualquer situação legitimadora dessa prática.

Aliás, transcrevendo o entendimento de Luís Serpa de Oliveira sobre este tema expresso no mencionado acórdão deste Supremo de 21 de Setembro de 2000, é "o órgão da administração da sociedade que tem condições para apurar se esta tem interesse próprio na prestação da garantia, bem como se lhe interessa ou não dar a conhecê-lo".

E, nada obsta a considerar a inexistência das duas situações ressalvadas no n? 3 do art. 6° do C.S.C. como elemento constitutivo do direito que a A. pretende fazer valer.

Basta atentar nos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela ministrados na anotação, no Código Civíl Anotado, ao art. 3420•

"Para sabermos se um facto é constitutivo ou impeditivo não se pode olhar ao facto isoladamente considerado, mas à sua conexão com o direito invocado ou com a pretensão formulada.

Assim, o erro, o dolo e a coacção revestem em regra a natureza de factos impeditivos; mas, se o autor vier alegar qualquer desses vícios para pedir a declaração judicial de nulidade do negócio, esses factos passam a funcionar como constitutivos (da pretensão deduzida pelo autor).

Nos casos de dúvida sobre se determinado elemento é facto constitutivo ou é a sua falta que representa um facto impeditivo, o nº 3 do artigo 342° dá um critério supletivo, optando pela primeira solução".

Concluindo.

Quando uma sociedade comercial preste garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades e pretenda obter a declaração da sua nulidade. ao abrigo do disposto no art. 6° n° 3 do C.S.C .. a sociedade garante tem que provar. para alcançar aquele objectivo. a inexistência de interesse próprio e de relação de domínio ou de grupo com a entidade beneficiária.

Como no caso em apreço a A. não provou a inexistência daquelas duas situações tinha a acção que improceder.

Termos em que se julga o recurso improcedente e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente."

20. Assim, dúvidas não restam que era à executada que incumbiria demonstrar falta de interesse próprio e inexistência de relação de grupo ou domínio e uma vez que a mesma não logrou provar tal realidade, não poderá manter-se na ordem jurídica a decisão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ao decidir pela incapacidade de gozo da executada quando nem sequer existem quaisquer factos alegados e provados quanto à inexistência de relação de grupo entre as sociedades "FF, Lda", "GG, Lda" e a sociedade executada, sabendo-se apenas que a letra em discussão nos presentes foi aceite por esta última e entregue ao exequente em substituição de cheques subscritos por aquelas (pontos 34 a 41 dos factos provados).

2l. Aliás, também Pedro de Albuquerque in "A vinculação ", refere que "no caso específico de a garantia ser dada por ter sido considerada pelos órgãos sociais como de interesse social, e salvo circunstâncias verdadeiramente excepcionais, parece mesmo de todo em todo impossível que o terceiro possa substituir a sua valoração ( ... ) à dos órgãos sociais. Saber se um acto é ou não de interesse social postula um conhecimento dos negócios da sociedade que só os respectivos órgãos estão em condições de ter, não um terceiro. É que o interesse social deve determinar-se em relação aos fins a alcançar pelo ente societário. Por isso, sustentar a necessidade de os terceiros realizarem um controle de mérito sobre um deliberação social, em virtude do qual se decide oferecer determinada garantia, envolveria a aceitação da possibilidade de os terceiros se substituírem às sociedades na determinação dos objectivos a alcançar por ela - pois só dessa forma lhes seria dado determinar qual o interesse social"

22. Também se pode ler no sumário do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, disponível em www.dgsi.pt:

"Compete à sociedade opoente/executada que aceitou de favor as letras dadas à execução e que invocou a nulidade dos aceites por violação do princípio da especialidade ínsito no art. 6, n° 1 do CSC, o ónus de alegar e provar que esses aceites não eram necessários nem convenientes à prossecução do seu fim social."

23. Do qual se destaca do seu texto integral:

"A" deduziu oposição à execução contra si instaurada por "8", alegando que: ( .. )que a executada aceitou as letras dadas à execução para permitir à exequente, com a qual não celebrou qualquer negocio, efectuar o desconto bancário das mesmas e assim receber a quantias que lhe eram devidas pela a sociedade "C"; que a aceitação das letras dadas à execução e a respectiva entrega à exequente implica por parte da executada a violação do princípio da especialidade consagrada nos art. 6 do CSC, o que fere de nulidade as referidas " liberalidades e os aceites prestados pela executada "nos termos do artigo 2940 do CC.

( ... )

Após o que foi proferida sentença julgou improcedente a oposição e determinou o prosseguimento da execução.

Desta sentença recorreu a exequente que formulou, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:

( ... )

Pede, a final, a revogação da sentença recorrida e a respectiva substituição por outra que condene a exequente a: a) reconhecer que as liberalidades e os aceites prestados pela executada, supra mencionados, violam o princípio da especialidade acima enunciado e, por isso, a; b) ver declaradas nulas aquelas líberalidades e aceites; e c) ver julgada extinta, no seu todo, a presente execução.

( ... )

O Direito:

Dispõe o art. 6 do Código das Sociedades Comerciais: "1.A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular; 2. As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta; 3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dividas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo; 4 ( ... ), 5( ... )"

Enveredou a sentença pela aplicação ao caso sub judice do n° 3 do art. 6 do CSC., considerando preenchidas as duas ressalvas aí previstas. Assim, considerou que existia um justificado interesse próprio da sociedade aceitante das letras em tais aceites (sendo certo que incumbia à sociedade opoente a prova de que não existia esse justificado interesse próprio da sociedade no aceite das letras dadas em execução, o que não logrou fazer) além de que as duas sociedades estavam em relação de domínio ou de grupo.

( ... )

o fim da sociedade, previsto no n? 1 é "o escopo lucrativo, o intuito de obter lucros para atribuí-lo (s) aos sócio (s)".

Consequentemente, "os actos gratuitos, os actos pelos quais uma sociedade dá a outrem uma prestação ou vantagem sem contrapartida estão em regra-porque não necessários nem convenientes à prossecução do fim social, porque contrários mesmo a este fim - fora da capacidade societária".

Por isso," os actos estranhos à capacidade societária, contrário ao fim lucrativo (doações, comodatos, mútuos gratuitos, prestação gratuita de garantias) são nulos." (Coutinho de Abreu, Curso do Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, pág. 184 e 185)

Contudo, "não basta a simples gratuitidade dos actos para colocá-los fora da capacidade e dentro da nulidade. Actos gratuitos podem entrar na capacidade societária, as sociedades podem validamente praticá-los quando eles se revelem necessários ou, ao menos convenientes à consecução de lucros. Imagine-se que a sociedade A subscreve uma letra de câmbio de favor para possibilitar que a sociedade B seja financiada por um banco ... " (ob. cit., pág. 186).

Ora se assim é, recaía sobre a sociedade opoente o ónus de alegar e provar que os actos gratuitos que praticou em benefício da sociedade "C" não eram necessários nem convenientes para ela, opoente.

E isto continua a ser assim mesmo que se perspective o aceite das letras como uma liberalidade (nº).

"Se é verdade que os negocios gratuitos supõem o espírito de liberalidade, é igualmente verdade que esse espírito não se confunde com o ânimo ou escopo altruísta, desinteressado; liberalidades existem com fim interessado ou interesseiro e estas são em geral compatíveis com o fim lucrativo das sociedades, entram na capacidade delas (exemplificámos, já recorde-se, com a subscrição de uma letra de favor ... " (ob. cit, pág. 192 e 193)

Aliás, o n° 3 do art. 6 do CSC não considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais se existir justificado interesse próprio da sociedade, o que vale também como elemento interpretativo do nº 1.

"O justificado interesse próprio há-de compreender-se por referência ao fim da sociedade, que é a obtenção e distribuição dos lucros da actividade económica correspondente ao objecto fixado no contrato ou nas deliberações sociais pertinentes" (Ac. STJ de 17.6.2004, relatado por Quirino Soares, in CoI. STJ 2004-11-94).

Para os efeitos do n° 3 do art. 6 " o interesse próprio da sociedade ... tem de ser objectivamente apreciado e resultará das circunstâncias concretas que, em cada caso enquadram ou determinam a concessão da garantia e há-de traduzir-se na obtenção de uma qualquer vantagem para a sociedade ainda que eventualmente de forma indirecta (Ac. STJ de 28.10.2003, relator Moreira Alves, in www.dgsi.pt).

Pelo que, também nesta perspectiva, competia à opoente demonstrar que a liberalidade tinha sido feita sem qualquer fim interessado, que não a movia qualquer fim egoístico, que daí não lhe tinha resultado qualquer vantagem directa ou indirecta.

( ... )

E, por isso, para ajuizar do ónus da prova da violação do princípio da especialidade ínsito no n? 1, tem, também, interesse apreciar como é que a doutrina e a jurisprudência vêm o ónus da prova à face do nO 3.

( ... )

Assim, sustenta-se no acórdão do STJ de 21.9.2000, in Cal. 2000-111-40 que o ónus da prova recai sobre aquele que pretender mostrar não ter havido justificado interesse próprio.

No acórdão do STJ de 13.5.2003, relatado por Pinto Monteiro, pode ler-se:

"A sociedade-garante embargou, sustentando que a prestação da garantia é contrária ao fim da sociedade, já que não existiu justificado interesse próprio da sociedade nem se trata de sociedade em relação de domínio ou de grupo. A prova deste facto impeditivo do direito invocado pelo exequente compete à sociedade embargante. Afigura-se-nos que não é correcto o entendimento de que o n? 3 do artigo 6° do CS Comerciais para efeitos do ónus da prova deve ser cindido em duas partes, considerando-se que "salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante" é facto a provar pela pessoa colectiva a quem foi prestada a garantia. Aliás, a entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que na prática seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia.

Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado a lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada.

Acresce até que no caso em análise, como correctamente se salientou no acórdão recorrido a existência de sócios comuns às duas sociedades e as relações comerciais existentes entre elas fazem criar pelo menos ao nível dos factos uma presunção da existência do interesse próprio."

Ainda segundo o supra citado Ac. STJ de 17.6.2004, compete à sociedade garante o ónus de alegar e provar que a garantia que prestou a terceiro não satisfez um justificado interesse seu, sob pena de o acto dever ser considerado como conforme ao fim social. Para este aresto, esta posição" confere com a ideia de que o normal é que os actos praticados pelos representantes da sociedade são orientados pelo interesse social e não o contrário. E como se sabe foi pelo critério da normalidade que o legislador se orientou na distribuição do ónus probatório ... ".

Assim, dentro deste critério de normalidade, é normal que recaia sobre a sociedade opoente o ónus de alegar e provar que os actos gratuitos que praticou em benefício da sociedade "C" não eram necessários nem convenientes ao seu fim, não correspondiam a um justificado interesse próprio ou que as liberalidades (se os aceites forem vistos como tal) tinham sido feitas sem qualquer fim interessado ou egoístico, sem qualquer vantagem directa ou indirecta para ela.

Em conclusão, a opoente não cumpriu o seu ónus de provar que o aceite das letras não era necessário nem conveniente à prossecução do seu fim (art. 6, n? 1 do CSC).

o que implica, desde logo, a improcedência da sua oposição à execução.

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante"

24. Nos presentes autos, também a executada/oponente não alegou e provou que o aceite da letra não era necessário ou conveniente à prossecução do seu fim, com as consequências melhor explicadas no Acórdão acabado de transcrever.

25. Ressalvando-se que, à semelhança, dos autos aí analisados, e conforme resulta dos factos provados, também nos presentes o sócio-gerente da executada era o mesmo das sociedades "FF, Lda" e "GG, Lda",

26. Pelo que in casu, caberá inteiramente a conclusão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães quando atesta que "a existência de sócios comuns às duas sociedades e as relações comerciais existentes entre elas fazem criar, pelo menos ao nível dos factos, uma presunção da existência do interesse próprio."

27. Ainda quanto à mesma questão do ónus da prova, traz-se à colação os ensinamentos constantes do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferidos no processo 213/08.7TJVNF-A.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt:

"I - Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado), nas quais os sujeitos cambiáríos o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem.

II - Assim, não se baseando a execução em sentença - mas sim numa letra - e encontrando-nos no âmbito das relações imediatas, era lícito ao executado invocar os vícios da relação jurídica subjacente (art. 816.° do CPC).

III - A letra dada à execução consubstanciou uma subjacente assunção cumulativa de dívida, prevista no art. 595.° do CC, operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem.

IV - Nem sempre a assunção cumulativa de dívidas se traduz numa garantia de pagamento de dividas de terceiro, podendo inclusive corresponder à satisfação jurídica de necessidades práticas, numa óptica comercial ou empresarial.

V - As sociedades podem validamente - sem com isso violar o art. 6.°, nº 3, do CSC - praticar actos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros, quando a esses actos presida um interesse próprio da sociedade garante e ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata; basta que haja o objectivo de ser alcançado um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade, e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido.

VI - É à sociedade garante, que invoca a nulidade da garantia por si prestada, que compete alegar e provar a inexistência de interesse próprio, ou seja, os requisitos da nulidade que pretende aproveitar: isto porque, ninguém melhor que a própria sociedade garante estará habilitada a fazer prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio.

VII - A deferir-se o ónus da prova ao terceiro beneficiário, nas situações em que o mesmo não é parte na acção, estaria descoberto o caminho à verificação sempre da nulidade e, por via dela, ao incumprimento obrigacional."

28. Pode ler-se no Texto integral do mesmo Acórdão o respectivo fundamento:

"( ... )

Muitas são as razões comerciais, empresariais, por que uma dada sociedade pode co-assumir uma dívida de terceiro sem que isso, por si só, deva ser considerado como contrário ao fim da sociedade.

( ... )

Aliás na esteira do acórdão do sr J de 17/9/2009, citado no aresto sob recurso, e tendo em atenção o disposto no art. 1600 nº1 do CC que diz que "A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins", "não decorre uma incapacidade absoluta das sociedades para a prática de liberalidades. Apenas na ponderação do circunstancialismo que acompanhou a situação concreta se deve aferir da licitude ou não da liberalidade efectuada pelos órgãos sociais da sociedade ...

As sociedades podem validamente praticar actos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros quando a esses actos presida um interesse próprio da sociedade garante, ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata. Basta que haja o objectivo de ser alcançado um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido".

Por isso e transpondo-nos para o ónus da prova, constitui jurisprudência recente deste STJ (vidé, por todos, acórdão do STJ de 7/10/2010, também citado no acórdão recorrido) que "é à sociedade garante que invoca a nulidade da garantia, por si prestada que compete alegar e provar a inexistência de interesse próprio, ou seja provar os requisitos da nulidade que pretende aproveitar e isto porque ninguém (a não ser em determinadas situações, o terceiro beneficiado), melhor do que a própria sociedade garante estará habilitada a provar se tal garantia foi ou não efectuada no seu interesse próprio"

( ... )

Quem invoca a nulidade é a sociedade oponente (e não qualquer terceiro que não está na acção), então é a esta que incumbe provar (e não a terceiros e muito menos à exequente) que não existiu interesse próprio da sociedade executada na assunção da dívida subjacente à obrigação cambial porque, in casu, ninguém melhor que a sociedade executada estará em condições de provar se tal assunção de dívida foi ou não efectuada no seu interesse próprio. A deferir-se o ónus da prova ao terceiro beneficiário, nas situações em que o mesmo não é parte na acção, estaria descoberto o caminho à verificação sempre da nulidade e por via dela ao incumprimento obrigacional.

Ora, da matéria provada retira-se apenas que a recorrente assumiu uma dívida cujos devedores eram outras sociedades e pessoas singulares e que nunca teve qualquer relação comercial com a recorrida. Esta matéria nada nos diz quanto ao interesse ou não interesse da sociedade recorrente na assunção cumulativa da dívida. À recorrente que, na sua oposição à execução, invocou a nulidade do acto de assunção de dívida incumbia provar que tal acto era contrário ao fim da sociedade por inexistir justificado interesse próprio desta. Não o tendo feito, não pode ser considerado nulo o acto da relação jurídica subjacente, nem inválido o título executivo.

O presente recurso não pode deixar de naufragar."


***


IV - DA EFECTIVA RELAÇÃO DE DOMÍNIO - artigos 21.° do CVM e 486.° CSC

29. Sem prejuízo da falta de alegação e prova da executada quanto à prova da inexistência de interesse próprio e inexistência de relação de grupo ou domínio, a verdade é que dos factos provados, resulta até, salvo melhor opinião, a referida relação de domínio.

30. Com efeito, dos factos provados resulta que HH era dono (sócio) e único gerente das sociedades "FF, Lda", "GG, Lda" e da sociedade executada, pelo que exercia uma posição dominante sobre todas elas.

31. O Código dos Valores Mobiliários (CVM, aprovado pelo Decreto-Lei n° 486/99, de 13 de Novembro, sujeito a diversas alterações, que para o caso não relevam) estipula no artigo 210 que "para efeitos deste Código, considera-se relação de dominio a relação existente entre uma pessoa singular ou colectiva e uma sociedade quando, independentemente de o domicílio ou a sede se situar em Portugal ou no estrangeiro, aquela possa exercer sobre esta, directa ou indirectamente. uma influência dominante" (n° 1 ).

32. Por sua vez, dispõe o artigo 486.°, n° 1 do csc que "Considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer, directamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.°, n.? 2, sobre a outra, dita dependente, uma influência dominante."

33. Dispondo o referido artigo 483.° do csc:

"1 - Considera-se que uma sociedade está em relação de simples participação com outra quando uma delas é titular de quotas ou acções da outra em montante igualou superior a 10% do capital desta, mas entre ambas não existe nenhuma das outras relações previstas no artigo 482.° 2 - À titularidade de quotas ou acções por uma sociedade equipara-se, para efeito do montante referido no número anterior, a titularidade de quotas ou acções por uma outra sociedade que dela seja dependente, directa ou indirectamente, ou com ela esteja em relação de grupo, e de acções de que uma pessoa seja titular por conta de qualquer dessas sociedades. "

34. Assim, da factualidade apurada nos factos provados, e não obstante o ónus da prova da inexistência pertencer à executada, verifica-se que existia efectivamente aquando do aceite da letra em discussão nos presentes uma relação de domínio das sociedades "FF, Lda" e "GG, Lda" sobre a sociedade executada pela via do dono (sócio) e legal representante de todas elas.

35. Como se sabe, a influência dominante prevista no nº 1 do artigo 486.° contém um conceito indeterminado e pode ser exercida tanto de forma directa, como indirecta por intermédio de pessoa singular que detenha acções ou quotas em ambas as sociedades comerciais.

36. A existência de uma situação dominante está sujeita a um variado leque de situações, sendo que a factualidade provada nos presentes autos permite concluir pela posição dominante do sócio-gerente HH sobre todas elas.

37. Haverá maior relação de domínio entre sociedades do que uma pessoa ser a dona e legal representante de todas elas??!! - É mais do que claro e evidente que essa pessoa (in casu HH) exerce posição dominante sobre as sociedades.

38. E foi só pela existência dessa relação de domínio que o exequente permitiu que ocorressem os factos dados como provados nos pontos 39.0 a 41. o, ou seja, a substituição dos títulos (cheques) das sociedades "FF, Lda" e "GG, Lda" pelo aceite de uma letra de câmbio no mesmo valor em dívida.


***


V - DO PONTO 41 DOS FACTOS PROVADOS E DO ABUSO DE DIREITO (TAMBÉM DE CONHECIMENTO OFCIOSO)

39. No ponto 41 dos factos provados consta que "o oposto devolveu todos aqueles cheques ao Senhor HH, então legal representante da opoente, e ficou portador da letra dada à execução".

40. Ora, está provado então que o exequente era credor das sociedades "FF, Lda" e "GG, Lda", estando tal dívida titulada por cheques que foram entregues/devolvidos ao legal representante da aqui executada, uma vez que o mesmo, arrogando-se e apresentando-se como dono e exclusivo legal representante da executada se ofereceu para aceitar uma letra de câmbio no valor total da dívida, ficando o exequente sem qualquer título na sua posse, a não ser a letra de câmbio.

41. Ora, não pode a sociedade executada agir no sentido de aceitar uma letra de câmbio para que o exequente lhe devolva os títulos de crédito que possuía e vir depois a beneficiar de tal atitude com o argumento de que não teria capacidade de gozo para esse mesmo efeito.

42. Seria a mais clamorosa injustiça beneficiar tal sociedade e permitir o abuso de direito da mesma manifestado no facto de ter ficado com os títulos (cheques) das outras sociedades e deixado despido de qualquer título o exequente, defraudando todas as regras atinentes à boa-fé e à expectativa da não violação das regras atinentes ao comércio jurídico.

43. Veja-se o que refere o próprio Supremo Tribunal de Justiça no processo 2460/07.0TBFAF.G1.S1 disponível em www.dgs.pt em idênticas circunstâncias:

"( ... )

E esta é toda a defesa da ré DD, Lda. Com a invocação do disposto no art.6°, n''] do CSComerciais.

Que reza:

A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim ...

 

Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dividas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

A pergunta é: agiu a sociedade em violação do disposto neste artigo 60 ao subscrever os cheques c, consequentemente, é nulo - como agora pretende - o acto praticado?

Ao subscrever o(s) cheque(s) com o qual cumpria a obrigação assumida pelo aqui réu CC, a sociedade co-assumiu a dívida deste e - é preciso não esquecer que o cheque é, em si mesmo, um meio de pagamento - em princípio cumpria mesmo a obrigação deste.

Nem podia ignorar que era isso mesmo que estava a fazer pois era a mesma pessoa física - sempre o réu CC - aquela que suportava a dívida original e aquela que incorporava e representava o interesse societário que co-assumia essa dívida.

Cairia até no domínio do abuso de direito, tal como vem definido no art.334° do CCivil, vir sustentar agora, em nome da sociedade, um acto que em nome da sociedade e afirmando a vontade da sociedade se praticou antes. Seria um venire contra factum proprium.

44. Ou seja, exactamente como nos presentes autos, sempre a mesma pessoa física (HH), que era o sócio e o gerente de todas as sociedades envolvidas.

45. Razão pela qual, quanto mais não seja por uma questão de abuso de direito, terá de ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que reconheceu incapacidade de gozo à executada, levando à procedência da oposição à execução.

46. Abuso de direito igualmente aflorado pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 04B4671 :

o abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 3340 do Código Civil).

Rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo (ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128°, pág. 241).

Na vertente do chamado venire contra factum proprium traduz-se o abuso do direito na conduta contraditória, ou seja, na conduta anterior do seu titular que, objectivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes, gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso programou a sua actividade, isto é, pressupõe uma situação objectiva de confiança, um investimento de confiança."

47. Requer-se, pois, ao Supremo Tribunal de Justiça que revogue a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto repondo a justiça material já constante da decisão já proferida pelo Tribunal de primeira instância.


Nestes termos e nos melhores de direito que VExas mui doutamente suprirão, deverá proceder totalmente o presente recurso de revista, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto e confirmando-se integralmente a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância,

Fazendo-se assim inteira e sã justiça



  A recorrida apresentou contra- alegações e depois afastar a invocada decisão surpresa por parte do recorrente, pugna pela manutenção do Acórdão recorrido.


  Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:


II - Fundamentação:


  A factualidade provada é a seguinte:


1 - A letra dada à execução não foi paga nem na data do vencimento, nem posteriormente;

2 - Inicialmente, a oponente denominava-se “II - Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, Lda”;.

3. Em 2004, a oponente mudou o nome para “BB – Combustíveis, Lubrificantes e Serviço Ld.ª”;

4 - O objecto da sociedade consiste em “comércio por grosso e a retalho de combustíveis líquidos, sólidos, gasosos e produtos derivados; estação de serviço e serviços”;

5 - No acto de constituição da sociedade eram sócios HH e JJ;

6 - Desde a constituição da oponente até Setembro de 2008, o sócio HH foi o seu único gerente;

7 - Em 1 de Setembro de 2008, HH cedeu a posição de sócio a LL;

8 - Nessa mesma data e pelo mesmo documento, HH renunciou à gerência;

9 - A cessão de quotas e renúncia à gerência foram registadas na Conservatória do Registo Comercial de Amarante;

10 - Desde a sua constituição até ao final do ano de 2006, a oponente não desenvolveu qualquer actividade comercial;

11 - Anualmente, as contas da oponente foram aprovadas de acordo com os valores apresentados pela contabilidade;

12 - No exercício do ano de 2007 a oponente apresentou prejuízo de 379,92 €;

13 - No ano de 2008 a oponente apresentou prejuízo de 4.354,56 €;

14 - No ano de 2009 a oponente apresentou prejuízo de 1.800 €;

15 - A oponente não desenvolveu qualquer actividade comercial significativa desde a sua constituição;

16 - E os resultados negativos dos exercícios dos anos de 2007, 2008 e 2009, devem-se a pagamentos especiais por conta;

17 - A oponente não possui no seu activo corpóreo qualquer bem, móvel ou imóvel, adquirido ao exequente, naquele indicado valor;

18 - Não existe registo na contabilidade da oponente da celebração de qualquer transacção comercial com o exequente, justificativa do valor constante da aludida letra;

19 - Não existe na contabilidade da oponente qualquer factura alusiva à celebração de negócio com o exequente no valor supra indicado;

20 - Na conta bancária que a oponente possui não há sinal de qualquer movimento de dinheiro no montante peticionado;

21 - Ao longo do ano de 2008 a conta bancária da oponente apresentou saldo negativo por diversas vezes e o saldo positivo não ultrapassou a quantia de 625 €;

22 - No ano de 2009, de Janeiro a Junho o saldo médio da oponente foi praticamente zero;

23 - O exequente não celebrou qualquer transacção comercial com a oponente;

24 - Bem sabendo que a dívida não existe, nem nunca existiu;

25 - Ao longo de todo este tempo, mais de dois anos, nunca interpelou, verbal ou por simples carta, a aqui oponente para pagar a quantia nela aposta;

26 - A oponente é uma sociedade comercial por quotas, com sede em Amarante;

27 - Matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Amarante sob o n.º …;

28 - Nem a emissão da letra, nem a falada transacção comercial foram confirmados, expressa ou tacitamente, por deliberação unânime dos sócios;

29 - O anterior gerente actuou com total desconhecimento do outro sócio da oponente;

30 - Conforme se pode ver do documento dado à execução, em parte alguma do mesmo consta que a assinatura aposta no rosto do documento foi efectuada em nome da oponente;

31 - Em parte alguma do documento consta a palavra “gerência”;

32 - Não foi a gerente actual que assinou a letra no campo destinado ao aceite;

33 - Foi antes o único gerente da oponente nessa data;

34 - A letra de câmbio dada à execução foi entregue ao oposto pelo legal representante da oponente – HH – para pagamento de dívidas tituladas por cheques;

35 - O senhor HH era sócio e gerente das sociedades comerciais “GG, Ld.ª” e ”FF, Ld.ª”;

36 - Para pagamento de dívidas ao aqui oposto aquele assinou os cheques;

37 - No entanto, tais cheques não foram pagos;

38 - E as sociedades “GG, Ld.ª” e ”FF, Ld.ª” não apresentavam garantias de solvabilidade;

39 - Uma vez que o Senhor HH era também legal representante da sociedade aqui oponente e esta apresentava maiores garantias de solvabilidade, foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada à execução nos presentes autos;

40 - A totalidade da quantia constante dos cheques é exactamente a mesma que consta da letra de câmbio dada à execução;

41 - O oposto devolveu todos aqueles cheques ao Senhor HH, então legal representante da oponente, e ficou portador da letra aqui dada à execução.


Apreciando:


Uma das primeiras questões que importa resolver é, desde logo, saber se a sociedade executada está obrigada cambiariamente pela via da letra oferecida à execução.

E sendo um título cambiário acccionado importa saber se o mesmo está ou não no domínio das relações imediatas ou mediatas.


A questão de saber se o título oferecido à execução se encontra no domínio das relações mediatas ou imediatas mostra-se, no caso em apreço, relevante e decisivo, como adiante se demonstrará e, isto porque a solução que daí decorrer, tendo em conta sempre a factualidade provada, pode até levar à prejudicialidade da outra questão relacionada com o facto de saber se o aceite feito pelo sócio gerente da executada à data da emissão do título que, entretanto, cedeu a sua quota , vincula a sociedade executada, questão esta  que pode também estar relacionada com o disposto no art. 260 nº4 do CSC, com referência também ao Ac. Uniformizador nº 1/2002 publicado no DR I Série – A nº 20 de 24.01.2002    

 

Segundo o art. 17 da LULL:

As pessoas acccionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre relações pessoais delas com o sacador ou com portadores anteriores a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.


Segundo Abel Delgado in “ Lei Uniforme sobre Letras e Livranças” refere em anotação ao citado normativo:

“ A letra está no domínio das relações imediatas quando está no domínio das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador primeiro endossado, etc) isto é, nas relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares”.

“ A letra está no domínio das relações mediatas, quando na posse duma pessoa estranha às convenções extracartulares”.


No caso em apreço, parece não haver dúvidas que estamos no domínio das relações imediatas, já que, aqui, os sujeitos cambiários da letra (a sacada – executada) e o sacador (exequente) são os originais do título, sendo que também nesta questão as instâncias não divergiram sobre a matéria.


A executada funda a sua oposição fundamentalmente na inexistência de qualquer transacção comercial entre o exequente e a sociedade executada, o que, aliás, vem comprovado na matéria de facto elencada sob os nº 23 e 24.

No entanto, também vem provado que a letra de câmbio dada à execução foi entregue ao oposto (exequente) pelo legal representante da opoente ( HH) para pagamento de dívidas tituladas por cheques (34 ).

 O senhor HH era sócio e gerente das sociedades comerciais “ GG Ldª e “ FF Ldª;

Para pagamento de dívidas ao aqui oposto (exequente) assinou os cheques, que no entanto não foram pagos.

Uma vez que o senhor HH era também legal representante da sociedade aqui opoente e esta apresentava maiores garantias de solvabilidade foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante aceite da letra dada à execução nos presentes autos.

A totalidade da quantia constante dos cheques é exactamente a mesma que consta da letra de câmbio dada á execução.

O oposto (exequente) devolveu todos aqueles cheques ao senhor HH (então, legal representante da opoente) e ficou portador da letra aqui dada á execução.


A 1ª instância essencialmente com base no facto de ter sido proposto o pagamento da dívida titulada por aqueles cheques, mediante o aceite da letra dada à execução, qualificou juridicamente a situação como de assunção de dívida por parte da exequente (cfr. art. 595 do C. Civil) rejeitando a situação  de letra de favor e, isto, como se disse, porque foi provado que o que foi proposto foi o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada à execução .


Também a Relação admitiu esta qualificação jurídica quando concluiu que “da factualidade dada como apurada, não vemos razões para deixar de acompanhar a construção extraída pelo tribunal “ a quo” ao enquadrar a dita realidade como constitutiva duma transmissão de dívida, ou seja, em que um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem , com a previsão contida no caso , no art. 595 nº1 al. b) do C. Civil – v no sentido que vimos reflectindo , A. Varela  in “ das Obrigações em Geral “ Vol. II 7ª ed. pags. 361 e 365 a 366.

E acrescenta o Acórdão para confirmar este enquadramento:

  “Com efeito, tendo como referência os Pontos 34 a 39 da matéria de facto acima elencada, descortina-se que a emissão da letra dada á execução teve como causa a forma de pagamento ao exequente por parte da apelante executada dívidas tituladas por cheques de que aquele primeiro era beneficiário, dívidas essas da responsabilidade de terceiros (cremos de que outras sociedades) assim aquela (sociedade executada) pretendendo assumir o pagamento.”


Tratando-se conforme vem provado da substituição de dívidas tituladas por cheques por um aceite de uma letra e tendo em conta a própria vontade das partes, parece que estas pretenderam sobretudo substituir a dívida relacionada com os cheques por uma nova agora titulada por uma letra cambiária.

O que importa saber é se as partes quiseram ou não, com a modificação operada, extinguir a obrigação, designadamente as suas garantias ou acessórios. ( cfr- P. Lima e A: Varela in C: Civil em anotação ao art. 857 do C. Civil ( novação objectiva).

Pelo que vem provado a letra de câmbio dada à execução foi entregue ao oposto (exequente) pelo legal representante da opoente (executadas (HH ) para pagamento de dívidas tituladas por cheques.;

Uma vez que o senhor HH era também legal representante da sociedade, aqui, opoente e esta apresentava maiores garantias de solvabilidade foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada á execução nos presentes autos.

A totalidade da quantia constante dos cheques é exactamente a mesma que consta da letra de câmbio dada à execução .

O oposto (exequente) devolveu todos aqueles cheques ao senhor HH (então, legal representante da opoente) e ficou portador da letra aqui dada à execução.

 

Esta factualidade é mais própria do instituto da novação (cfr. art. 857 do C. Civil) que, aqui, tem a sua expressão decisiva  na devolução dos cheques que o exequente , fez ao referido António Jorge aquando do aceite da letra aqui em questão.

Na verdade a dívida relacionada com os cheques é agora substituída pela titulada pela letra oferecida à execução. (cf. art. 857 do C Civil).

A factualidade que vem provada supra referenciada traduz seguramente a vontade expressa das partes nesse sentido e preenche a exigência do estatuído no art. 859 do C. Civil .

Note-se que “ é expressa a declaração quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade, nos termos do nº1 do art. 217 do C. Civil (Cf.  P. Lima e A. Varela in C. Civil  Anotado  2ª ed.  Vol. II pag. 131).


Isto para dizer que não se acompanha a qualificação jurídica que as instâncias emprestaram á situação em apreço, e enquadramo-la, antes, na novação ( art. 857 do C. Civil).


Chegados aqui, há que indagar se a letra oferecida á execução, assinada pelo, então, socio gerente da executada à data da emissão (08.06.05) HH  vincula validamente a executada.

A 1ª instância sobre a questão concluiu que a assinatura levada a cabo pelo HH, enquanto gerente da opoente (executada) , responsabiliza esta perante o opoído ( exequente), ou seja, os efeitos jurídicos do acto praticado pelo então gerente projectaram-se na esfera jurídica da sociedade por forma a considerar-se que se está perante um acto (aceite) da própria sociedade.


A Relação depois de afastar as nulidades decorrente do negócio em questão traduzir a existência de empréstimos ( civis) nulos por falta de forma (art. 1143 do C. Civil) bem como o mesmo ofender os bons costumes ( art 281 do C. Civil) em função da  matéria que vem provada nomeadamente sob os nº 34 a 41, considerando  a não existência de um crédito do exequente, originariamente decorrente duma relação com a executada  e tendo sido apurado que “uma vez que o Senhor HH era também legal representante da sociedade aqui opoente e esta apresentava maiores garantias de solvabilidade , foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada á execução nos presentes autos” , configurou   o referido negócio-  assunção de dívida pela executada- como uma liberalidade por parte da sociedade executada ( art. 6 nº2 do CSC) e nessa medida  fora da capacidade societária, que conduziu à nulidade do negócio e  consequentemente julgou procedente a oposição deduzida.


Cremos não existir fundamento probatório para tal veredicto. 


E, aqui, entra o ónus da prova, no sentido que competia a opoente demonstrar e provar que o negócio em questão mais não foi do que uma liberalidade, feita pela executada ( art. 342 nº1 do C. Civil) contrária ao fim societário e como tal nulo ( art. 280 nº1 do CC).


Segundo o nº3 do art. 6 do CSC” Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo”.

E de facto a executada só em sede alegações do recurso de apelação suscita esta nulidade ( a petição inicial é completamente omissa sobre a questão), sendo que na sentença da 1ª instância a questão não se colocou e não fosse tratar-se de uma nulidade susceptível de conhecimento oficioso por via do art. 280 nº1 do CC estaríamos perante uma questão nova, que nem sequer podia ser apreciada.

Independentemente desta questão o certo é que é à sociedade executada que compete alegar e provar a inexistência de interesse próprio, ou seja os requisitos da nulidade que pretende aproveitar e, isto, porque ninguém melhor do que a própria sociedade garante estará habilitada a fazer prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio (cfr. neste sentido Ac. STJ de 26.09.2013 acessível via www.dgs.pt)

E sobre este requisito temos de reconhecer que a matéria de facto é completamente omissa e insuficiente, já que para prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio, não chega provar que o crédito do exequente não decorra duma relação com a sociedade executada e “ que se prove que o aceite pela sociedade executada foi porque esta no contexto do grupo de empresas de que o HH também tinha participação era a que apresentava maior garantias de solvabilidade”.

Não se acompanha o Acórdão recorrido quando conclui pela nulidade em virtude da “assunção da dívida” se situar fora da capacidade societária contrariando a norma imperativa do art. 6º nº 1 do CSC.


Quanto ao mais e fazendo o confronto com o título oferecido a execução, cuja cópia se encontra inserida fls. 214 destes autos, parece não haver duvidas que o aceite aposto na letra pelo referido António Jorge na letra da qual consta também um carimbo da própria sociedade executada, à luz do nº 4 do art. 260 nº4 do CSC e com o reforço do entendimento sufragado pelo Ac. Uniformizador nº 1/ 2002 que doutrinou “ A indicação da qualidade de gerente prescrita no nº 4 do art. 260 do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do art. 217 do Código Civil, de factos que com toda a probabilidade a revelem”, vincula validamente a executada.

 

Na verdade ao remeter para o art. 217 do C. Civil, admitiu-se a vinculação das sociedades através de forma tácita, ou seja, recurso a factos não contemplados no documento para se fazer a prova de quem interveio em nome da sociedade, foi alguém que o fez em representação dela, não se vinculando a título pessoal ( cf. neste sentido Ac. STJ de 6.07.2011 acessível via www.dgsi.pt).


Neste domínio também nada vem provado que contrarie que o aceite da letra pelo, então, sócio gerente, HH, não vincule a sociedade executada.


E sendo assim a sociedade executada tem de responder cambiariamente



Em conclusão:


1. Vem provado que a letra de câmbio dada á execução foi entregue ao oposto ( exequente) pelo legal representante da opoente (executadas ( HH ) para pagamento de dívidas tituladas por cheques, que era também legal representante da sociedade, aqui, opoente  e esta que apresentava maiores garantias de solvabilidade, foi proposto o pagamento da dívida titulada por todos aqueles cheques mediante o aceite da letra dada à execução nos presentes autos, tendo na altura o oposto ( exequente) devolvido todos aqueles cheques ao senhor HH (então, legal representante da opoente) e ficou portador da letra aqui dada à execução.

2. A factualidade referida em 1 é mais própria do instituto da novação (cfr. art.857 do C. Civil) que, aqui, tem a sua expressão decisiva na devolução dos cheques que o exequente , fez ao referido António Jorge aquando do aceite da letra aqui em questão, sendo a dívida relacionada com os cheques substituída pela titulada pela letra oferecida à execução ( cf. art. 857 do C Civil).

3. Competia à sociedade executada demonstrar e provar que o negócio em questão, mais não foi do que uma liberalidade feita pela executada ( art. 342 nº1 do C. Civil) contrária ao fim societário e como tal nulo ( art. 280 nº1 do CC) no caso, provar a inexistência de interesse próprio ou seja, os requisitos da nulidade que pretende aproveitar e, isto, porque ninguém melhor que a própria sociedade estará habilitada fazer a prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio, a que alude o art. 6ºdo Código das Sociedades Comerciais.

4. E sobre este requisito a matéria de facto é completamente omissa e insuficiente, já que para prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio, não chega provar que o crédito do exequente não decorra duma relação com a sociedade executada e “ que se prove que o aceite pela sociedade executada foi porque esta no contexto do grupo de empresas de que o HH também \tinha participação era a que apresentava maior garantias de solvabilidade”.

5. O aceite aposto na letra oferecida á execução ( cópia inserida a fls.214 destes autos) pelo referido HH, então representante legal da executada, da  qual consta também um carimbo da própria sociedade executada, à luz do nº 4 do art. 260 nº4 do CSC e com o reforço do entendimento sufragado pelo Ac. Uniformizador nº 1/ 2002 que doutrinou “ A indicação da qualidade de gerente prescrita no nº 4 do art. 260 do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do art. 217 do Código Civil , de factos que com toda a probabilidade a revelem”, vincula validamente a executada.



III - Decisão:


Nesta conformidade e considerando o exposto, acordam os Juízes deste Supremo em conceder a revista, revogando o Acórdão recorrido, para subsistir a sentença da 1ª instância.


Custas pela sociedade recorrida/executada.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 26 de novembro de 2014


Tavares de Paiva (Relator)


Abrantes Geraldes


Bettencourt de Faria