Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P2488
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
COITO VESTIBULAR
Nº do Documento: SJ200409230024885
Data do Acordão: 09/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J ESTREMOZ
Processo no Tribunal Recurso: 57/03
Data: 04/15/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : Preenche o conceito típico de «coito oral», da previsão do n.º 2 do artigo 172.º do Código Penal, indo, assim, além do simples «acto sexual de relevo» tipificado no n.º 1 do mesmo dispositivo legal, a introdução, com fins libidinosos, do pénis do arguido na boca de uma criança de nove anos, sendo indiferente para o efeito que tenha ou não sido feito prova de erecção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Foi deduzida acusação pública contra RJF, devidamente identificado, imputando-lhe a prática, em autoria material, em concurso real, na forma consumada, de:
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.°, n.º 1, do Código Penal;
- de um outro crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.°, n.º 2, do mesmo diploma;
- e de um crime de coacção grave, p. e p. pelos arts. 154.°, n.º 1 e 155.°, n.º 1, al. b), com referência ao art. 143.°, todos do Código Penal.

O Ministério Público, em representação do menor AACRR, nascido a 23.01.1993, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo que o mesmo seja condenado no pagamento a favor daquele, da quantia de dez mil Euros (10.000,00), acrescido de juros moratórios, à taxa legal, desde a data da citação do demandado e até integral pagamento.

Efectuado o julgamento foi proferida sentença em que, além do mais, foi decidido:
Condenar o arguido RJF, como autor material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão
Julgar o pedido cível procedente, por provado, condenando-se o arguido a pagar ao menor AACRR a quantia de 5.000 € (cinco mil Euros), acrescido de juros moratórios legais, desde a notificação e até integral pagamento, através de depósito bancário em nome do menor e a movimentar, apenas, quando este atingir os dezoito anos de idade.
Inconformado, recorre ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, sendo este o teor da respectivas súmula conclusiva:
1. O arguido foi condenado, pela prática de u m crime de abuso sexual de crianças, p. e p. no artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

2. Contudo, o acórdão deu como provado que o arguido introduzia o seu pénis na boca do menor;

3. Tal facto constitui coito oral;

4. O coito oral consubstancia agora, após a reforma trazida pela Lei 65/98, uma acto previsto no n.º 2 da norma citada;

5. Pelo que, ao considerar que os factos praticados pelo arguido integravam o crime p. e p. no n.º 1 do art.º 172.º do CP e, não, o do n.º 2 do mesmo, o acórdão recorrido violou por interpretação tais normas;

6. Assim, deve o acórdão recorrido ser revogado nesta parte, julgando-se que o arguido praticou o crime p. e p. no artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal;

7. O que, só por si, face a uma moldura penal muito diversa, implica a necessidade de reavaliação da pena aplicada ao arguido.

8. Na fixação da pena deve atender-se, nomeadamente, à culpa grave, ao elevado grau de ilicitude, à gravidade das consequências sofridas pelo menor e às acentuadas exigências de prevenção geral.

9. Assim, atento o disposto no artigo 71.º do Código Penal, a pena justa e adequada a aplicar ao arguido é a de 6 anos de prisão.

10. Consequentemente, o acórdão recorrido deverá ser revogado (também) nesta parte, condenando-se o arguido na pena de 6 anos de prisão.

Respondeu o arguido em defesa do julgado.
Subidos os autos, pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto foi requerida a produção de alegações por escrito, o que foi deferido.
Fixado então prazo para o efeito, só aquele magistrado as veio a produzir, acabando por concluir que os factos provados, traduzindo inequivocamente a existência de coito oral, integram a previsão do artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.
E que, face às circunstâncias do caso, a pena de prisão a aplicar deve ficar próxima dos cinco anos.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência - art.º 419.º, n.º 4, d), do CPP - cumpre decidir.

Vejamos, antes de mais, os factos provados

O arguido possui uma oficina na Rua...., n.º ..., em Estremoz, constituída por uma divisão principal, destinada à oficina e por duas arrecadações, na segunda das quais tem instalado um sofá em tecido, de cor castanha.

Tal oficina, onde o arguido se encontrava habitualmente durante os dias úteis, situa-se nas imediações da residência do menor AACRR, nascido, no dia 23 de Janeiro de 1993, sita na Rua....., n.º ...., em Estremoz.

Desde data não concretamente apurada do ano 2002, mas seguramente compreendida no decurso do período de verão desse ano, numa altura em que o menor A tinha apenas nove (9) anos de idade, que o arguido manteve com este actos de natureza sexual, no interior da segunda das referidas arrecadações.

Nessas ocasiões o arguido chamava o menor para o interior do seu estabelecimento, conduzia o A até à aludida arrecadação, mandava-o baixar os calções e baixava as suas calças.

Então o arguido sentava-se no referido sofá e dizia ao A que se sentasse no seu colo, para que ficassem frente a frente, após o que o beijava na boca.

Depois, permanecendo o arguido sentado, este ordenava ao A que se ajoelhasse na sua frente e que colocasse o pénis do arguido na boca, o que o menor fazia.
Noutras ocasiões era o arguido que introduzia na sua própria boca o pénis do A.
Ainda noutras situações o arguido encostava o seu pénis ao ânus do menor.
Aconteceu, igualmente, o arguido ordenar ao menor A que encostasse o seu pénis ao ânus do arguido.
Após os factos, o arguido dava 0,50 € ou 1,00 € ao A.
Tais situações ocorreram três vezes até ao mês de Março de 2003, data em que o menor A já tinha completado 10 anos de idade.
Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, ciente da idade do menor AR, com os propósitos alcançados de satisfazer os seus instintos libidinosos.
Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e legalmente punida.

O arguido provocou intensa vergonha ao A.
Em consequência de tais factos, o menor, até então uma criança alegre e extrovertida e com bom relacionamento com os seus pares, modificou o seu comportamento.
Com efeito, diminuiu o seu aproveitamento escolar por dificuldades em concentrar-se.

Passou a ser apelidado de "paneleiro" e "fufo" pelo seu irmão, colegas de escola e por eles rejeitado.
Passou a agir com violência a tais expressões, envolvendo-se em confrontos físicos com os colegas.

Entrou em estrado de profunda tristeza, isolando-se e afastando-se dos seus pares.
As consequências nefastas de tais factos, não cessaram com a detenção do arguido.

Efectivamente, o menor foi forçado a despertar para a sexualidade numa idade em que ainda não possui a necessária maturidade para entender o significado do acto sexual.

Perdendo prematuramente a inocência própria da sua idade.
Deixando, deste modo, de beneficiar de uma saudável descoberta da sexualidade na idade própria para esse efeito.
Fruto das precoces e desfasadas experiências sexuais a que o arguido o submeteu, é previsível que o menor venha a ter dificuldades em manter uma normal relação amorosa e a interpretar o acto sexual como um acto de satisfação mútua entre parceiros e, consequentemente, a obter uma plena satisfação sexual.

Cada acto sexual avivará no menor a memória dos actos a que foi submetido pelo arguido.
O arguido é casado e de modesta condição económica e social; é reformado, auferindo uma pensão mensal de 473,49€ e pagando 13,35 € de renda de casa.
É primário e tem 66 anos de idade.
Tem dois filhos, com 34 e 42 anos de idade.
Há cerca de dois anos que não tinha relações sexuais com a esposa.
Confessou parte dos factos imputados.
Encontra-se a ser acompanhado pela psicóloga no E.P.
Tem vergonha dos factos por si praticados.
O menor encontra-se, em regime de internamento, na Casa Pia de Évora e tem, agora, melhor enquadramento escolar.

Não se provou que:
O arguido dizia que dava dinheiro ao A se este o deixasse enrabá-lo, ficando ambos completamente nus na arrecadação;
E dizia-lhe que lhe batia se contasse a alguém o que tinham feito.
O arguido chamava o menor para o interior do seu estabelecimento às segundas, quartas e sextas-feiras;
O menor colocasse o pénis erecto do arguido na boca;
O arguido encostava o seu pénis erecto ao ânus do menor, procurando introduzi-lo no ânus do menor, provocando-lhe dores fortes;
O menor A que encostasse o seu pénis erecto ao ânus do arguido;
Tais situações ocorreram múltiplas vezes, em número não apurado;
Ainda em consequência da conduta do arguido o menor ficou amedrontado, com receio que este lhe batesse;
Qualquer outro facto com relevo para a decisão da causa.
Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de a afectarem, mormente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

É certo que o arguido na sua contramotivação defende estar tal matéria fáctica afectada de contradição insanável, na medida em que se deu por provado - facto 6 - que «depois, permanecendo o arguido sentado, este ordenava ao A que se ajoelhasse na sua frente e que colocasse o pénis do arguido na boca, o que o menor fazia», mas já se deu como não provado - ponto d) dos factos não provados - que «o menor colocasse o pénis erecto do arguido na boca».

Daqui resultaria a alegada contradição insanável pois segundo o arguido, «existe oposição entre os factos provados e os factos não provados».
Sem razão, como é óbvio.
Se se provou que o arguido colocava ou introduzia o pénis na boca do menor, mas não se provou que o fizesse com o pénis erecto, a conclusão a extrair não pode ser como pretende o arguido de que uma coisa afasta a outra, pois as duas situações podem perfeitamente conviver: introdução do pénis na boca do menor, mas não prova de que tal órgão [já] estivesse em erecção.

Portanto, a conclusão a extrair destes factos só pode ser uma: o arguido introduzia o pénis na boca do menor, não se provando no entanto que o fizesse em estado de erecção.
Um facto porém resulta inapelavelmente assente: o arguido introduzia o pénis na boca do menor.

Não há, pois, qualquer contradição entre os factos provados e não provados, muito menos insanável.
E não se vislumbrando nela qualquer outro vício, tem-se a matéria de facto supra transcrita como definitivamente assente.

Aqui chegados, cumpre a apreciação jurídica do acaso.
Como se viu, o ilustre magistrado recorrente, com apoio da hierarquia neste Supremo Tribunal, defende que os factos assim assentes estão incorrectamente qualificados pelo tribunal recorrido, pois, em seu entendimento, a introdução do pénis na boca do menor consubstancia um acto de coito oral, pelo que ao invés de prevista no n.º 1 do artigo 172.º do Código Penal, a situação definida pela factualidade provada integra, antes, a previsão do n.º 2 do mesmo artigo, na redacção resultante da reforma introduzida pela Lei n.º 65/98.
Consequentemente, a pena deve ser elevada para 6 anos de prisão segundo o magistrado do MP na 1.ª instância, e para cerca de 5 anos segundo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal.
É este o problema jurídico em discussão.

O tribunal recorrido, discorrendo nesta sede, fundou assim a sua decisão:
« Os factos provados nos autos evidenciam o preenchimento da factualidade típica de um - e apenas - dos crimes de que o arguido vinha acusado, a saber, um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1 do Código Penal vigente, sendo a pena abstracta de 1 a 8 anos de prisão.
Face à matéria dada como provada tal preenchimento não levanta dúvidas, pois que o AACRR tinha, à data, 9-10 anos de idade e o arguido sabia desse facto, sendo inultrapassável a circunstância de o legislador ter pretendido acautelar, proteger, a autodeterminação sexual do/da jovem, sendo que a idade inferior a 14 anos nos surge como uma presunção ou um indício claro de que o/a jovem ainda não atingiu a maturidade suficiente para se auto determinar sexualmente.
Por outro lado os actos do arguido devem ser qualificados como actos sexuais de relevo.»

E, tomando posição quanto à medida da pena, prosseguiu:
«Na determinação concreta da medida da pena tendo presente o disposto no art. 71º , n.ºs 1 e 2 do Código Penal, impõe-se ao Tribunal atender à culpa do agente e às exigências de prevenção geral que em casos desta natureza assume bastante relevo, bem com às circunstâncias que relevam no caso sub-judice, a saber, o dolo directo e a gravidade das consequências sobre a personalidade e desenvolvimento futuro do A militando contra o arguido, estando a seu favor, o seu bom comportamento anterior, com pouco relevo e a sua inserção social.

Assim sendo, afigura-se-nos equilibrada uma pena abaixo da média abstracta.
Por outro lado é procedente o pedido cível, na medida em que preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, entendendo-se adequada uma indemnização de 5.000 €, a favor do menor, acautelando-se a sua salvaguarda até o mesmo perfazer os dezoito anos de idade.»

Quid juris?
Dispõe o artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal vigente, que: «Quem praticar acto sexual de relevo com menor ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos» acrescentando o n.º 2, que: «Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor se 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.»

A questão que importa ultrapassar consiste em saber se o arguido praticou sobre o menor sua vítima, um mero acto sexual de relevo, tal como entendeu o tribunal a quo ou, antes, se manteve com ele coito oral.

Tal como a cópula para efeitos de tipificação do crime de violação - art.º 164.º do Código Penal - deve considerar-se a penetração da vagina pelo pénis, (1) o coito anal e o coito oral consistem respectivamente na penetração do ânus ou da boca pelo pénis. (2)

Colocando-se a questão se saber se "coito" existe apenas com a penetração do ânus ou da boca pelo pénis, ou se se verifica igualmente quando a penetração se opera por meio de qualquer outro órgão ou mesmo por objecto ou artefacto - caso, nesta segunda hipótese, em que a nossa lei ter-se-ia deixado conduzir pelo chamado modelo da "penetração" - o Prof. Figueiredo Dias (3), responde que parece que só a primeira opinião se pode sufragar, decisivamente porque «o significado comum de coito exige uma conjunção de corpos com intervenção do órgão sexual masculino (...)».

Este ensinamento já nos fornece alguma luz para a solução do problema a resolver.
Com efeito, afastada a concepção afecta ao referido modelo da "penetração", segundo o qual o acento tónico da acção relevante se desloca para a penetração corporal, seja pelo pénis, seja por outro órgão ou objecto, a concepção vigente de coito, privilegia, grosso modo a concepção comum de conjunção de corpos com intervenção do órgão sexual masculino.

Mas, se assim é, logo se vê que a questão da erecção ou falta dela é aqui totalmente irrelevante, pois, a penetração oral pelo pénis pode consumar-se com ou sem ela. Basta que a vítima a isso se disponha.

E se atentarmos em que o bem jurídico que aqui se cura proteger é a autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade (4), então não podem restar quaisquer dúvidas assentes num mínimo de consistência sobre a total irrelevância da erecção no acto de coito, mormente quando em causa, como no caso, um acto de coito oral.

Dizendo de outro modo: os factos provados, mormente a introdução do pénis do arguido na boca do menor - se não também a do deste na do arguido - ao invés do que decidiu o colectivo ora recorrido, vão para além de simples «actos sexuais de relevo» da previsão do n.º 1 do artigo 172.º do Código Penal, para, com erecção ou sem ela, se assumirem plenamente como actos de coito oral, tipificado no n.º 2 daquele mesmo artigo.

E consumiram, em termos de relevância jurídica, os demais que pudessem ver-se separadamente como «actos sexuais de relevo».
Como assim, a pena que, em abstracto, cabe ao crime, em vez de prisão de 1 a 8 anos, é antes de 3 a 10 anos.
E se é certo que as circunstâncias provadas, mormente as levadas a crédito do arguido, onde se destacam a sua idade, a falta de antecedentes criminais e a modéstia da condição sócio-económica, apontam, tal como decidiu o tribunal recorrido, para uma pena algo abaixo da «média abstracta», não é menos verdade que o mínimo da pena capaz de dar satisfação às exigências preventivas abaixo do qual não é possível baixar, está para além da pena aplicada na decisão recorrida.

Mas não necessita de ir até aos 6 anos propostos pelo digno recorrente, podendo mesmo, com alguma benevolência assente, acima de tudo, nos 66 anos do arguido, ficar-se pelos quatro anos e meio de prisão.
Procede, nos termos expostos, a pretensão recursiva.

3. Termos em que, no parcial provimento do recurso, revogam em parte o acórdão recorrido e, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. no artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, condenam o arguido na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
No mais confirmam o decidido.
Sem tributação.

Lisboa, 23 de Setembro de 2004
Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Santos Carvalho
____________________
1 Cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, págs. 472.
2 Ibidem.
3 Ob. cit., págs. 473
4 Cfr. autor e loc. cits. págs. 541