Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
374/13.3TBSTS.P1.S1-A
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PRESSUPOSTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
REJEIÇÃO DO RECURSO
JUIZ RELATOR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 10/12/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO SINGULAR
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES EM GERAL / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 3, 692.º, N.ºS 1 E 2,
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 610.º E 612.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-11-2016, PROCESSO Nº 96/14.8TBSPS.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Compete ao relator decidir da admissibilidade ou não do recurso para uniformização de jurisprudência, podendo o recorrente, nos termos do nº 2 do art. 692º, do CPC, reclamar desta decisão para a conferência.

II - Trata-se de uma faculdade legal que a lei confere ao recorrente cujo exercício não pode senão ser respeitado, independentemente da razoabilidade dos seus fundamentos.

III - Tendo o acórdão fundamento e o acórdão recorrido seguido precisamente a mesma orientação, entendendo que: (i) na apreciação da decisão relativa à matéria de facto pode a Relação fazer uso de presunções judiciais; (ii) esse uso tem limites; e (iii) ao Supremo Tribunal compete apenas sindicar o respeito por tais limites; a circunstância da aplicação destes parâmetros, em distintas decisões da Relação e em distintos processos, ter conduzido a resultados diferentes – no acórdão fundamento entendeu-se que a Relação respeitara os limites ao uso de presunções judiciais e no acórdão recorrido entendeu-se que não respeitara esses limites – não resulta de qualquer divergência na resolução de questões jurídicas, mas tão só das especificidades de um e outro processo, pelo que inexiste contradição de julgados, pressuposto da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência.

Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



1. A fls. 26 e segs. foi proferida decisão de não admissão do recurso para uniformização de jurisprudência com o seguinte teor:


1. Notificada do acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 6 de Abril de 2017, vem AA, Lda. interpor o presente recurso para uniformização de jurisprudência, invocando contradição entre a solução normativa acolhida naquele acórdão e a adoptada no acórdão que indica como acórdão fundamento do recurso (o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 2016, proc. nº 94/14.8TBSPS.C1.S1) de que juntou cópia retirada de www.dgsi.pt, e cujo trânsito em julgado se presume (art. 688º, nº 2, do Código de Processo Civil), formulando as seguintes conclusões:


I) O presente recurso para Uniformização de Jurisprudência vem interposto, em virtude do acórdão prolatado nesta acção estar em contradição com o acórdão de 24/11/2016, deste Supremo Tribunal, no processo 96/14.8TBSPS.

II) As questões fundamentais de direito em que se verifica contradição nos citados arestos são as seguintes:

1ª Questão: Em face da competência alargada da Relação na apreciação da matéria de facto, é, ou não, lícito à segunda instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela primeira instância, nomeadamente ao nível das prescrições judiciais?

2ª Questão: Pode, ou não, o STJ, em sede de revista, sindicar a decisão de facto das instâncias, em matéria de presunções judiciais, fora dos casos previstos no nº 3 do art. 674° ou do nº 3 do art. 682° do C.P.C.

III) Assim, na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.° do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662°, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

IV) No âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável pelo STJ se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova, podendo, no limite, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (cfr. art.º 46.° da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662°, n.º 4,674°, n.ºs 1 a 3, e 682°, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

V) Assim, há uma clara contradição entre o entendimento perfilhado no acórdão recorrido e o defendido no acórdão fundamento. Na verdade, enquanto o primeiro entende não poder a matéria de facto ser alterada pela relação com recurso a presunções judicias, quando tal não foi objecto de recurso; já o segundo considera ser lícito à segunda instância, com base em presunções judiciais, reequacionar a avaliação probatória feita pela primeira instância.

VI) A contradição entre os dois acórdãos existe igualmente na circunstância do Acórdão recorrido se permitir sindicar a decisão de facto das instâncias, em matéria de presunções judiciais, fora dos casos excepcionais previstos no nº 3 do art. 674° ou do nº 3 do art. 682° do C.P.C. Na verdade, o acórdão recorrido afirma ter a Relação violado os princípios fundamentais da disciplina processual para revogar a sua decisão. Isto é entendeu poder sindicar a avaliação qua a Relação fez da matéria de facto.

VII) Já o Acórdão fundamento entende que: "... Relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade ... Mas está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre."

VIII) Na verdade, a questão está em saber se fora das situações previstas no art 674° nº 3 - ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - o Supremo, pode, ou não, sindicar o juízo efectuado pela Relação para inferir presuntivamente determinado facto.

IX) Deste modo o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 349° do C.C. e 607° nº 4,662° nºs 1,2 e 4,674° nºs 1 e 3 e 682° nºs 1 e 2 todos do C.P.C.

Nesta conformidade, deve este alto Tribunal julgar procedente e invocada oposição de acórdãos, patenteada numa contradição jurisprudencial, revogando o acórdão recorrido, por violação do disposto nos artigos 349º do C.C. e 607° nº 4, 662° nºs 1, 2 e 4, 674° nºs 1 e 3 e 682° nºs 1 e 2 todos do C.P.C


            Os Recorridos não contra-alegaram.


2. Nos termos do art. 688º, nº 1, do Código de Processo Civil, “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

        A verificação da oposição que constitui o fundamento do recurso deve ser apreciada pelo relator nos termos do art. 692º, nº 1º, do CPC.

        A Recorrente invoca existir contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento quanto às duas questões seguintes:


1ª Questão: Em face da competência alargada da Relação na apreciação da matéria de facto, é, ou não, lícito à segunda instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela primeira instância, nomeadamente ao nível das prescrições [presunções] judiciais?


2ª Questão: Pode, ou não, o STJ, em sede de revista, sindicar a decisão de facto das instâncias, em matéria de presunções judiciais, fora dos casos previstos no nº 3 do art. 674° ou do nº 3 do art. 682° do C.P.C.?


       Analisadas as duas decisões, verifica-se não apenas que não existe oposição de julgados entre ambas, como que um e outro acórdão resolveram as duas questões seguindo orientação idêntica, que assim se pode sintetizar: na apreciação relativa à matéria de facto a Relação pode fazer uso de presunções judiciais com determinados limites, cabendo ao Supremo Tribunal verificar o respeito por estes limites.

        Ora, no acórdão fundamento concluiu-se que, no caso concreto, o uso de presunções judiciais feito pela Relação respeitava esses limites.

         Enquanto no acórdão recorrido se concluiu que, no caso concreto, o uso de presunções judiciais violava tais limites.

        Assim, as respostas às duas questões indicadas pela Recorrente são as mesmas num e noutro acórdão. Contudo, essas respostas, aplicadas a distintas decisões da Relação, proferidas em distintos processos, conduziram a distintos resultados. Resultados que não são contraditórios entre si, antes inteiramente conformes, no que se refere aos poderes da Relação na apreciação da decisão relativa à matéria de facto, e respectivos limites.


           Não se verifica, assim oposição de julgados.


3. Pelo exposto, não se admite o recurso.


2. Vem a Recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 692º, nº 2, do Código de Processo Civil, invocando, em síntese, os seguintes fundamentos:


1° Decidiu a Sra. Conselheira Relatora que: "Analisadas as duas decisões, verifica-se não apenas que não existe oposição de julgados entre ambas, como que um e outro acórdão resolveram as duas questões seguindo orientação idêntica, que assim se pode sintetizar: na apreciação relativa à matéria de facto a Relação pode fazer uso de presunções judiciais com determinados limites, cabendo ao Supremo Tribunal verificar o respeito por estes limites".

2° Ora, salvo melhor opinião, os dois acórdãos não só não seguiram orientação idêntica como existe frontal oposição entre eles.

3° Na verdade, enquanto o acórdão recorrido entende não poder a matéria de facto ser alterada pela relação com recurso a presunções judiciais, quando tal não foi objecto de recurso.

4° Já o acórdão fundamentado considera ser lícito à segunda instância, com base em presunções judiciais, reequacionar a avaliação probatória feita pela primeira instância.

5º A oposição está precisamente na circunstância de um acórdão entender poder a matéria de facto ser alterada pela Relação, com recurso às presunções judiciais, e o outro considerar que lhe está vedado tal uso quando não houver recurso sobre matéria de facto.

6° Aliás, a oposição vai ainda mais longe, qual seja a do acórdão recorrido se permitir sindicar a decisão de facto das instâncias, em matéria de presunções judiciais, fora dos casos excepcionais previstos no nº 3 do art. 674° ou do nº 3 do art. 682° do C.P.C.

7° Pelo que a decisão singular de não considerar verificada a oposição de julgados deve ser revogada, com todas as consequências legais.


       A Recorrida BB veio responder, pugnando pela manutenção da decisão de não admissão do recurso.

         Cumpre decidir.


3. Conforme previsto no art. 692º, nº 1, do Código de Processo Civil, compete ao relator decidir da admissibilidade ou não do recurso para uniformização de jurisprudência, podendo o recorrente, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, reclamar desta decisão para a conferência.

      A presente reclamação surge, pois, ao abrigo de uma faculdade legal que a lei confere ao recorrente cujo exercício não pode senão ser respeitado, independentemente da razoabilidade dos seus fundamentos.

     Entende a reclamante existir oposição de julgados entre o acórdão recorrido (proferido por este Supremo Tribunal em 6 de Abril de 2017) e o acórdão fundamento (proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 24 de Novembro de 2016, no proc. nº 94/14.8TBSPS.C1.S1, relativamente a duas questões:

- A possibilidade ou não de o acórdão da Relação alterar a matéria de facto com recurso a presunções judiciais;

- O poder de o Supremo Tribunal de Justiça sindicar ou não o uso de tais presunções judiciais pela Relação.


      Na decisão impugnada as pretensões da recorrente/reclamante foram assim apreciadas:

         “Analisadas as duas decisões, verifica-se não apenas que não existe oposição de julgados entre ambas, como que um e outro acórdão resolveram as duas questões seguindo orientação idêntica, que assim se pode sintetizar: na apreciação relativa à matéria de facto a Relação pode fazer uso de presunções judiciais com determinados limites, cabendo ao Supremo Tribunal verificar o respeito por estes limites.

        Ora, no acórdão fundamento concluiu-se que, no caso concreto, o uso de presunções judiciais feito pela Relação respeitava esses limites.

        Enquanto no acórdão recorrido se concluiu que, no caso concreto, o uso de presunções judiciais violava tais limites.

        Assim, as respostas às duas questões indicadas pela Recorrente são as mesmas num e noutro acórdão. Contudo, essas respostas, aplicadas a distintas decisões da Relação, proferidas em distintos processos, conduziram a distintos resultados. Resultados que não são contraditórios entre si, antes inteiramente conformes, no que se refere aos poderes da Relação na apreciação da decisão relativa à matéria de facto, e respectivos limites.


        Reapreciemos as duas questões suscitadas pela Reclamante/Recorrente, tendo em conta os dados relevantes de um e outro acórdão:


Acórdão fundamento

- Numa acção de responsabilidade civil por acidente de viação, a 1ª instância deu como provado um facto (facto 19) em que se declara que um dos condutores conduzia sem a devida atenção e em estado de embriaguez, estado que teve relação causal com o acidente;

- No recurso de apelação, o recorrente impugnou a matéria de facto, incluindo o facto 19 dado como provado;

- Conhecendo da impugnação da matéria de facto, a Relação reponderou o facto 19 e, no uso de presunções judiciais, alterou-o no sentido de afastar o nexo causal entre o estado de embriaguez e o acidente;

- No recurso de revista foi invocado erro de julgamento da Relação no uso de presunções judiciais quanto ao afastamento do nexo causal entre o estado de embriaguez e o acidente;

- O acórdão fundamento conheceu a questão, concluindo não ter a Relação, no uso de presunções judiciais que levaram a alterar o facto 19, incorrido em manifesta ilogicidade pelo que a decisão de alteração do facto não podia ser sindicada pelo Supremo Tribunal.


Acórdão recorrido

- Numa acção de impugnação pauliana, a 1ª instância deu como provado um dos três pressupostos previstos nos arts. 610º e 612º do Código Civil, e como não provados os outros dois pressupostos, fundamentando a decisão e concluindo pela improcedência da acção;

- No recurso de apelação, a autora não impugnou a decisão relativa à matéria de facto, limitando-se a pedir a reapreciação da decisão de direito;

- O acórdão da Relação, partindo dos factos dados como provados, e fazendo uso de presunções judiciais, deu como provados todos os três pressupostos da impugnação pauliana, e, sem alterar a decisão relativa à matéria de facto, concluiu pela procedência da acção;

- No recurso de revista a ré pôs em causa a decisão da Relação, ao dar como provados os dois pressupostos da impugnação pauliana;

- O STJ (no aqui acórdão recorrido) deu razão à ré, afirmando:

“Estamos perante uma violação de princípios fundamentais da disciplina processual. Se é permitido à Relação recorrer ao uso de presunções judiciais para desenvolver a matéria de facto dada como provada, não pode fazê-lo para alterar a matéria de facto, se tal alteração não constitui objecto do recurso de apelação.”


      Torna-se manifesta a inexistência de contradição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido. Ambas as decisões seguiram precisamente a mesma orientação, entendendo que:

(i) Na apreciação da decisão relativa à matéria de facto pode a Relação fazer uso de presunções judiciais;

(ii) Esse uso tem limites;

(iii) Ao Supremo Tribunal compete apenas sindicar o respeito por tais limites.


A aplicação destes parâmetros a distintas decisões da Relação, proferidas em distintos processos, conduziu a distintos resultados:

- No acórdão fundamento entendeu-se que a Relação respeitara os limites ao uso de presunções judiciais, ao alterar um facto dado como provado pela 1ª instância, facto esse que fora impugnado pelo apelante;

- No acórdão recorrido entendeu-se que a Relação não respeitara os limites ao uso de presunções judiciais, ao dar como provados dois factos que a 1ª instância decidira não terem sido provados, sem que a apelante tivesse impugnado a decisão relativa à matéria de facto. Por outras palavras, o acórdão da Relação continha uma contradição insanável entre dois factos essenciais dados como não provados e a fundamentação do mesmo acórdão na qual dava como provados tais factos.


A diferença nas decisões finais não resulta de qualquer divergência na resolução de questões jurídicas, mas tão só das especificidades de um e outro processo.

É pois manifesta a inexistência de contradição de julgados.


4. Pelo exposto, julga-se a reclamação improcedente, confirmando-se a decisão da relatora de não admissão do recurso.


Custas pela Reclamante.


Lisboa, 12 de Outubro de 2017


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho