Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1649/19.3JAPRT-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA FÉRIA
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
CONTAGEM DE PRAZOS
INDEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O peticionante fundamenta o seu pedido de concessão da providência de Habeas corpus na invocação da ilegalidade da sua reclusão, por, em seu entender, esta carecer de fundamento legal, pois considera não ter ainda transitado o acórdão condenatório que lhe aplicou a pena de prisão que se encontra a cumprir, e como tal suscetível de ser objeto da providência de Habeas corpus.

II - Um acto processual destinado a produzir efeitos jurídicos no processo, sem prejuízo da discussão e decisão que aí possa suscitar e, do direito ao recurso, quando admissível, só pode, porém, desencadear a providência, excepcional, de Habeas corpus, se gerar consequência que integre um dos pressupostos constantes do art. 222.º, n.º 2, do CPP.

III - Isto significa que o Habeas corpus também não é o meio próprio de impugnação da oportuna liquidação da pena, que sendo definida e decidida em despacho judicial, somente poderá ser impugnável por via do recurso ordinário.

IV - Ora, o peticionante encontra-se em cumprimento de uma pena de prisão que lhe foi imposta por força de um acórdão condenatório, e que foi confirmada, por acórdão proferido pelo tribunal da Relação do Porto, a 23-03-2022 e notificado ao Ilustre Defensor Oficioso do peticionante a 24-03-2022. Pelo que a condenação da pena de prisão aplicada ao ora peticionante se mostrava já transitada em julgado quando, a 03-05-2022, foi ordenada a emissão dos competentes mandados de detenção.

V - Pena esta cujo início teve lugar no pretérito dia 04-05-2022, quando estes foram executados.

VI - Assim, a pena que o peticionante se encontra a cumprir foi ordenada pela entidade competente, o tribunal de condenação, foi motivada pela prática de um crime, o previsto no art. 164.º do CP, e não atingiu ainda o seu termo.

VII - Inexistem assim quaisquer factos que possam preencher algum dos pressupostos que a lei elenca no art. 222.º, n.º 2, do CPP, como sendo os adequados a aferir a ilegalidade de uma privação da liberdade.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Audiência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

I

AA preso à ordem dos presentes Autos, requer que lhe seja concedida a providência de Habeas Corpus, nos termos do artigo 222º e 223º do C.P.P., por entender que se configura como ilegal a prisão a que se encontra submetido.

II

Na sua Petição expõe o que segue:

O Recluso aqui Requerente, como melhor se extrai do Acordão produzido pela Relação ..., viu o seu recurso ser indeferido e, mantida a pena de prisão efectiva de 4 anos que já lhe tinha sido aplicada em primeira instância (Proc. nº. 1649/19. ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... – Juiz ...);

Ora,

De tal Acordão do Tribunal da Relação ..., foi o Defensor Oficioso (aqui signatário) notificado via “citius” no passado dia 24/03/2022, sendo que, por tal via e em razão da presunção inerente ao Artº. 113º. do nosso Código Penal, somada da interrupção da contagem do prazo por via das férias judiciais (período da Páscoa), confere ao referido processo (o qual não é urgente), que o seu transito em julgado apenas seja efectivo a 8 de Maio de 2022 (contando com os ainda previsto 3 dias de multa);

Acontece que,

“In casu”, a 21/04/2022, os Autos de recurso acima identificados baixaram em definitivo á primeira instância, a qual, no passado dia 3 de Maio, por despacho nos autos proferido, considera os autos transitados em julgado desde 07/04/2022 e, por consequência emite competentes mandados de detenção, os quais foram já efectivados, encontrando-se o aqui requerente, recluso desde 04/05/2022, data da efetivação do referido mandado, tudo o que, como atrás se explanou é inusitadamente ilegal;

Ainda nesta consonância,

E de acordo com o estipulado no número 2 alínea b) do Artº. 222º. do Código de Processo Penal Português, o referido mandado e, a sua presente Reclusão, é motivada por facto pelo qual a Lei não permite, o que, determina que á data, o aqui Requerente encontra-se ilegalmente preso.

Termos em que, à providência de “Habeas Corpus” aqui apresentada deve ser concedido provimento e, em consequência, ser o Arguido/Recorrente aqui Requerente, devolvido à Liberdade, assim se fazendo a costumada, Justiça!

III

O Despacho proferido nos termos do artigo 223º nº 1 do CPP, a 19.11.2019, informa que:

AA, mostra-se condenado, nos presentes autos, por acórdão datado de 17.11.2021 (fls. 501/541), na pena de 4 (quatro) anos de prisão efectiva, pela prática de um crime de Violação previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, als. a) e b) do Decreto-Lei n.º 48/95 de 15.03, na redacção conferida pela Lei n.º 83/2015 de 05.08.

Desta decisão, foi pelo arguido interposto o competente recurso para o Tribunal da Relação ..., cujo Acórdão datado de 23.03.2022 veio confirmar, integralmente, os seus termos – cfr. Acórdão de fls. 621 a 677-v.º.

Vem, por esta via, o arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 222º e 223º do Código de Processo Penal alegar que, tendo o Ilustre Defensor Oficioso sido notificado do Acórdão do Tribunal da Relação ... a 24.03.2022 e, dado o interregno de férias judiciais (Páscoa) bem como a circunstância de não se tratar de processo urgente, o trânsito em julgado de tal Acórdão apenas terá lugar a 8 de Maio de 2022 (contando com os ainda previsto 3 dias de multa).

Nesta conformidade, entende que ao encontrar-se recluído em cumprimento de pena desde 03.05.2022, data de efectivação dos Mandados de Detenção emitidos por este Juízo Central Criminal – J.…, ocorreu violação do regime jurídico postulado no art. 222º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.

Donde, sendo a sua reclusão motivada por facto pelo qual a Lei não o permite, encontrar-se ilegalmente preso.

Requer, pois, a sua imediata restituição à liberdade.


***


Salvo relevante e diversa opinião, afigura-se-nos que ao aludir ao prazo do trânsito em julgado do Acórdão da Relação, a pedra de toque da petição apresentada pelo arguido se consubstancia na violação do seu direito ao recurso.

Vejamos então,

Após a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, passou a estabelecer-se no artigo 400º, n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal que:

“1 – Não é admissível recurso: (…)

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

(…)”.

Já foi dito pelo Supremo Tribunal de Justiça que tal alteração legislativa e, em específico, a da alínea f), teve um sentido restritivo, impondo uma maior restrição ao recurso, referindo a “pena aplicada” e não já a “pena aplicável”, quer no recurso directo, quer no recurso de acórdãos da Relação que confirmem decisão de primeira instância, circunscrevendo a admissibilidade de recurso das decisões da Relação confirmativas de condenações proferidas na primeira instância às que apliquem pena de prisão superior a oito anos.

O direito ao recurso em matéria penal inscrito como integrante da garantia constitucional do direito à defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) está consagrado em um grau, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma instância superior das decisões sobre aculpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, por a Constituição, no seu artigo 32.º, se bastar com um duplo grau de jurisdição, já concretizado no caso dos autos, aquando da sua apreciação pela Relação ....

No caso em apreciação, o que se constata é que há uma afirmação de identidade de decisão, completa, na medida em que, em sede de recurso ordinário, o Tribunal da Relação ... confirmou o acórdão condenatório proferido nos presentes autos, mantendo-o na íntegra e nos seus exactos termos, inclusivamente, no que respeita à pena aplicada.

Ou seja, estamos perante a assunção de uma dupla conforme condenatória, mostrando-se cumprido o duplo grau de jurisdição exercido pela Relação em via de recurso, pelo que, tendo o arguido sido condenado em pena inferior a oito anos, já não é admissível recurso para o STJ – cfr. art. 400º, n.º 1, al. f) do C.P.P.

Constata-se igualmente que se mostram decorridos os prazos de reclamação e/ou de recurso para o Tribunal Constitucional.

Por conseguinte, o Acórdão do Tribunal da Relação ... adquiriu carácter definitivo.

IV

Da consulta dos Autos constata-se que este se encontra instruído com certidão das seguintes peças:

1. Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., a 17.11,2021;

2. Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., a 23.03.2022,

3. Notificação, a 24.03.2022, do Acórdão do Tribunal da Relação ao Defensor Oficioso do Arguido;

4. Promoção, de 02.05.2022, para emissão de Mandados de Detenção do Arguido; 

5. Despacho, de 03.05.2022 determinando a emissão de Mandados de Detenção do Arguido;

6. Mandados de Detenção do Arguido, datado de 03.05.2022;

7. Ofícios provindos do Posto da GNR de ... e da DGRSP, relativos à excução dos Mandados de Detenção, datados de 04-05-2022

V

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 223º nº 1 a 3 do CPP.

Realizada a Audiência, cumpre apreciar e decidir:

A consagração constitucional da providência de Habeas Corpus configura-se como um meio de garantia de defesa do direito individual à liberdade, reconhecido pela Lei Fundamental no seu artigo 27º, mormente em virtude de prisão ou detenção ilegal.

Nessa conformidade, a lei processual penal elenca os fundamentos e o procedimento de tal providência, dispondo-se no artigo 222º nº 2 do CPP, poder ser invocado como fundamento da ilegalidade da prisão contra a qual se pretende reagir:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Nestes Autos, o peticionante fundamenta o seu pedido de concessão da providência de Habeas Corpus na invocação da ilegalidade da sua reclusão, por, em seu entender, esta carecer de fundamento legal, pois considera não ter ainda transitado o Acórdão condenatório que lhe aplicou a pena de prisão que se encontra a cumprir, e como tal suscetível de ser objeto da providência de Habeas Corpus.

Todavia, esta sua alegação carece do necessário suporte legal.

Pois, como se estatui claramente no Acórdão deste Supremo Tribunal firmado no processo nº 1257-12.0jflsb-C.S1-3ª, e relatado pelo Ex.mo Conselheiro Pires da Graça, “o habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222º do CPP.,

Um acto processual destinado a produzir efeitos jurídicos no processo, sem prejuízo da discussão e decisão que aí possa suscitar e, do direito ao recurso, quando admissível, só pode, porém, desencadear a providência, excepcional, de habeas corpus, se gerar consequência que integre um dos pressupostos constantes do artigo 222º nº 2 do Código de Processo Penal.

Isto significa que o habeas corpus também não é o meio próprio de impugnação da oportuna liquidação da pena, que sendo definida e decidida em despacho judicial, somente poderá ser impugnável por via do recurso ordinário.”

Ora, como se alcança do exame dos factos em apreço, constata-se que o peticionante se encontra em cumprimento de uma pena de prisão que lhe foi imposta por força de um Acórdão condenatório, e que foi confirmada, por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., a 23.03.2022 e notificado ao Ilustre Defensor Oficioso do peticionante a 24.03.2022.

E, como muito bem se enfatiza na Informação prestada pela Mmª Juíza do Tribunal de condenação: “(…) mostrando-se cumprido o duplo grau de jurisdição exercido pela Relação em via de recurso, pelo que, tendo o arguido sido condenado em pena inferior a oito anos, já não é admissível recurso para o STJ – cfr. art. 400º, n.º 1, al. f) do C.P.P.

Constata-se igualmente que se mostram decorridos os prazos de reclamação e/ou de recurso para o Tribunal Constitucional.

Por conseguinte, o Acórdão do Tribunal da Relação ... adquiriu carácter definitivo.”

Pelo que a condenação da pena de prisão aplicada ao ora peticionante se mostrava já transitada em julgado quando, a 03.05.2022, foi ordenada a emissão dos competentes Mandados de Detenção.

Pena esta cujo início teve lugar no pretérito dia 04.05.2022, quando estes foram executados.

Assim, a pena que o peticionante se encontra a cumprir foi ordenada pela entidade competente, o Tribunal de condenação, foi motivada pela prática de um crime, o previsto no artigo 164º do Código Penal, e não atingiu ainda o seu termo.

Inexistem assim quaisquer factos que possam preencher algum dos pressupostos que a lei elenca no artigo 222º nº 2 do CPP como sendo os adequados a aferir a ilegalidade de uma privação da liberdade.

Na verdade, e como é Jurisprudência constante deste Supremo Tribunal “no âmbito da providência de habeas corpus o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode e deve verificar se a prisão resultou de uma decisão judicial, se a privação da liberdade foi motivada pela prática de um facto que a admite e se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial. Isto sem prejuízo de, nos limites da decisão no âmbito da providência de habeas corpus, não condicionada pela via ordinária de recurso, se poder efectivar o controlo de situações graves ou grosseiras, imediatamente identificáveis e “clamorosamente ilegais” (na expressão do acórdão deste Tribunal de 3.7.2001, Colectânea, Acórdãos do STJ, II, p. 327), de violação do direito à liberdade.” ([1])

Nesta conformidade outra conclusão se não impõe que não seja a de se concluir pela improcedência do peticionado por ausência de fundamento legal.

VI

Termos em que se acorda em indeferir a requerida concessão da providência de Habeas Corpus por falta de fundamento bastante, nos termos do disposto no artigo 223º nº 4 al. a) do CPP.


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1UC, nos termos do artigo 8º nº 9 da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Feito em Lisboa, aos 18 de maio de 2022.

Maria Teresa Féria de Almeida (Relatora)

Sénio dos Reis Alves (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente)

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[1] Ac. de 10.04.2019, proc. nº503/14.0PBVLG-I.S1, Relator Conselheiro Lopes da Mota