Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17/07.4MAFIG.C2.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
CINDIBILIDADE DO RECURSO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 05/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I – O demandado civil não tem legitimidade para recorrer da parte criminal de uma decisão, por força do disposto no art. 401.º, n.º 1, al. c), do CPP, podendo apenas recorrer da parte cível da decisão.
II - No presente caso, o arguido, em 1.ª instância, foi condenado numa pena de prisão inferior a 5 anos, e em sede de recurso viu o procedimento criminal extinto por prescrição, não sendo admissível o recurso para o STJ, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. d), do CPP.
III - É certo que, no presente caso, verificando-se que o tribunal da Relação conheceu do objeto do processo, tendo procedido a uma análise da matéria factual e a uma análise da sua qualificação jurídica, e tendo mesmo concluído que os factos deveriam ser qualificados como integrando um crime de homicídio por negligência (nos termos do art. 137.º, n.º 1, do CP) e um crime de ofensa à integridade física por negligência (nos termos do art. 148.º, n.º 1, do CP), não nos parece que possamos concluir que não conheceu do objeto do processo, pese embora tenha decidido pela prescrição do procedimento criminal; na verdade, não tendo o arguido sido condenado por ter ocorrido a extinção do procedimento criminal, dever-se-á considerar que se aplicam as mesmas regras que vigoram para as situações em que tenha sido absolvido.
IV - Não só a decisão seria irrecorrível caso o tribunal da Relação tivesse simplesmente analisado a problemática inerente à prescrição do procedimento criminal, como é irrecorrível tendo sido o arguido libertado do processo penal por prescrição do procedimento criminal, como, além disso, a decisão seria também irrecorrível caso tivesse ocorrido uma confirmação da condenação, embora com uma qualificação distinta dos factos. Isto porque sempre o arguido seria condenado em pena de prisão inferior a 5 anos — dado que, mesmo que condenado em concurso de crimes pelo crime de homicídio negligente e pelo crime de violação da integridade física negligente, sabendo que num caso o limite máximo da pena de prisão é de 3 anos (cf. art. 137.º, n.º 1, do CP) e no outro é de 1 ano, e sabendo que, de acordo com as regras estabelecidas no art. 77.º, n.º 1, do CP, o limite máximo da pena aplicável em sede de concurso de crimes seria de 4 anos (3+1), nunca a pena a aplicar poderia ser superior a 5 anos de prisão; e caso se tivesse optado pela aplicação da pena de multa (dado que a pena de multa é alternativa em ambos os tipos legais de crime referidos) também a decisão não seria recorrível, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 17/07.4MAFIG.C2.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, mediante acórdão de 14.02.2020, do Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Central Criminal ..., Juiz ...), o arguido AA, foi condenado pela prática de um crime de infração de regras de construção, agravado pelo resultado, nos termos dos art. 277.º, n.ºs 1, al. a), e 2 e 285.º, ambos do Código Penal (CP) na redação dada pela Lei n.º 59/2007, por referência aos arts. 2.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 46/2002 e art. 4.º, n.º 2, al. e), dos Estatutos do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM), em anexo ao Decreto-Lei n.º 257/2022, na pena de prisão de 2 anos e 6 meses, substituída pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, por igual período.

Foi ainda decidido condenar o Estado Português (enquanto sucessor do extinto Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos) ao pagamento de uma indemnização civil

- a BB no valor total de € 38 490,00 (trinta e oito mil e quatrocentos e noventas euros) (a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento),

- a CC, DD e EE um valor de € 17 500,00 (dezassete mil e quinhentos euros) a cada um (a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento),

- a FF e a GG um valor de € 27 500,00 (vinte e sete mi e quinhentos euros) a cada um  (a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento), e

- a HH um valor de € 8 500, 00 (oito mil e quinhentos euros) (a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento),

2.1. Inconformados com o acórdão recorrido, recorreram para o Tribunal da Relação o arguido AA e o demandado civil Estado Português/Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos.

Por acórdão de 16.06.2021, o Tribunal da Relação ... decidiu:

«Parte Criminal:

Julga-se procedente o recurso interposto pelo arguido AA, ainda que com base em diferentes pressupostos dos alegados, declarando-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, al. c), 119.º, n.º 1, 120.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, 121.º, n.º 3, todos do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 137.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1, ambos do Código Penal,

Sem custas.

****

Parte Cível:

Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo Demandado Cível, indo este absolvido de pagar o montante relacionado com a aquisição do talhão do cemitério (€ 770,00), mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Custas na proporção do decaimento, sem prejuízo da respetiva isenção a que está sujeito o demandado.»

3. Inconformado, veio, novamente, o Estado Português/IPTM recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça — “na vertente penal, nos termos e para os efeitos dos arts. 399º, 401º n.º 1 c), 406º n.º 1, 407º n.ºs 1 e 2 a), 408º n.º 1 a), 410º n.ºs 1, 2 e 3 e 432º n.º 1 b) do Código de Processo Penal (doravante CPP brevitatis causa), e cível (no limite, de revista excepcional, nos termos do art. 672º CPC pois sendo o recorrente demandado serão aplicáveis in casu as regras do processo civil!)” — concluindo a motivação nos seguintes termos:

«A. Estão em causa questões que pela sua relevância jurídica merecem apreciação bem como estão em causa interesses de particular relevância social, que se mostram violados pelo recurso a jurisprudência divergente pois verificou-se um reenvio para concretas e determinadas questões que foi levado a cabo por Tribunal colectivo totalmente diverso que depois, a final, proferiu decisão integral mesmo sobre pontos não abarcados pelo acórdão precedente e alterando a decisão da matéria de facto do primitivo e douto acórdão de primeira instância, com alteração da qualificação jurídica não precedida de qualquer comunicação e/ou contraditório prévios (quer ao arguido em causa quer ao demandado face ao qual directamente adviria a sua responsabilidade cível por força da acção ilícita de tal arguido) e, em boa verdade, é a condenação do Estado (logo, de todos nós!) que está em causa;

B. É de sindicar tal alteração da qualificação jurídica bem como a composição do Tribunal colectivo na sequência de reenvio, tratando-se de questões cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito e tratando-se de condenação do Estado (logo de todos nós!), julgam-se estar em causa interesses de particular relevância social e, por ser uma decisão injusta do ponto de vista material como juridicamente inquinada (ademais, sem respaldo em jurisprudência uniforme!), não se poderá assistir de braços cruzados a tal injustiça, estando preenchidos não apenas um mas todos os três critérios (ainda que não cumulativos!) plasmados no n.º 1 do art. 672º CPC, sendo assim tal recurso admissível não só à luz do regime civil como ainda penal, atenta violação de normas processuais penais e subsunção jurídica, tratando-se, em boa verdade, de decisão de primeira instância com tal qualificação jurídica;

C. Nunca e em momento algum o demandado havia sido confrontado com tal causa de pedir, que em boa verdade, subverte os próprios pedidos que assentavam em ilicitude diversa (dá a impressão que a própria condenação do recorrente teve de ser forçada, como se se tratasse de uma peça que não encaixava no puzzle) pois que de uma multiplicidade de arguidos, foram todos absolvidos e nenhum deles sequer seria condenado por qualquer dos crimes imputados na douta acusação e pronúncia públicas, sendo o presente processo todo um enigma, enxertado numa adivinha, enlaçado por um mistério e a culminar num futuro desenlace que permanece em segredo;

D. A douta decisão é deveras errónea, injusta e imerecida, pois não assenta num Direito que se queira materialmente justo e processualmente conforme, estando em causa vícios formais e substanciais que inquinaram a douta decisão proferida e ora recorrida pois sendo de lamentar o infeliz acontecimento não é menos verdadeiro que o Tribunal não se poderá deixar cegar pela aparente misericórdia devida às vítimas e cometer uma injustiça contra o arguido e demandados, não se tratando de nenhuma compensação mas tão-somente de juntar uma nova injustiça pois o Estado é de todos e não pode ser usado para satisfação de interesses privados sempre e quando não se possa apontar ao mesmo qualquer falha dado que, não obstante a mui douta fundamentação que se mostra subjacente ao douto acórdão condenatório, entende o recorrente que o cumprimento devido à decisão de Tribunal superior precedente e a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento imporia conclusão diversa no tocante a concretos pontos de facto, subsunção jurídica bem como dosimetria cível (ao nível do quantum!);

E. Está em causa o ordenado em douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação ... e datado de 16 de Maio de 2018, que determinou os termos em que o novo julgamento seria efectuado bem como os vícios e insuficiências da douta decisão primitiva de primeira instância, não tendo sido dado cumprimento na íntegra a tal douta decisão, andando-se a perder tempo com reinquirições de testemunhas que nada adiantavam face ao determinado e não se avançou nada relativamente a algumas insuficiências existentes, continuando o douto acórdão ora proferido a padecer dos mesmos males, como a simples leitura do teor decisório que determinou o reenvio dos autos para novo julgamento e esteve assim na génese da nova prolação decisória ora recorrida permitirá comprovar;

F. Houve uma dificuldade acrescida para os decisores signatários da segunda decisão de primeira instância em virtude de nenhum deles ter estado no primitivo julgamento sendo que tal circunstancialismo inquina todo o processado conforme o signatário, que também não esteve no primeiro julgamento em virtude de a sua nomeação ter sido posterior (mas ainda assim não permitiu que fosse notificado da decisão anterior!), chamou a atenção para tal logo na primeira sessão de julgamento indevidamente repetido pois a douta decisão do Tribunal da Relação ... não reenvia os autos para repetição de julgamento mas apenas para uma maior indagação fáctica que, por constituir matéria inovatória e não julgada, importaria um novo julgamento, tendo tido o cuidado de referir que seria apenas face a tais concretas questões, o que implicaria que tudo o mais se manteria nos seus precisos termos;

G. O colectivo devia ser o mesmo pois não foi determinada a repetição de julgamento mas tão-somente a reabertura para efeito de indagação fáctica face a factualidade suplementar, com audiência de julgamento contínua e um único julgamento, necessariamente levado a cabo pelo mesmo colectivo, o que não sucedeu pois nenhum dos membros do colectivo anterior esteve na continuação do julgamento e, tendo sido efectuada uma decisão integral face a factos (condições económicas dos demandados, circunstancialismo das vítimas e prova inerente aos pedidos cíveis, etc.), cuja prova não foi efectuada neste novo julgamento, houve aproveitamento do julgamento anterior sem imediação e decisão que assenta em prova não produzida perante este novo colectivo, num imbróglio e um sarilho jurídicos que não poderá deixar de ter a virtualidade de anular todo o processado atenta a cristalina preterição de juiz natural (violação do art. 32º n.º 9 CRP pois verificou-se a subtracção de uma causa a quem a mesma havia sido anteriormente atribuída), o que constitui nulidade insanável nos termos e para efeitos do art. 119º e) CPP, a qual se invoca;

H. Mostra-se aplicável o douto parecer e anotação ao Código de Processo Penal, pelos Senhores Conselheiros, em anotação ao art.º 40º (anot. 4ª) transcritos na motivação, a delimitar em termos claros o que deva ser entendido por competência/impedimento e problemática associada, conforme art. 426º-A n.º 1 CPP, cabendo a competência para novo julgamento, em caso de reenvio do processo, ao Tribunal que tiver efectuado o julgamento anterior e estando em causa não uma repetição integral mas tão-somente uma maximização da factualidade, não poderá deixar de ser entendido como cabendo ao mesmíssimo colectivo pois nem o julgamento anterior nem a primitiva e douta decisão de primeira instância foram julgados nulos ou de nenhum valor, tendo o Tribunal a quo reconhecido isso logo na página inicial ao referir que teve “essencialmente por assente a demais factualidade”, em violação do princípio da plenitude de assistência por não ser juridicamente válida tal decisão feita a doze mãos e por seis pessoas diferentes, pois aos três anteriores juízes (que decidiram parte da factualidade tida agora novamente por provada e em relação à qual nenhuma prova foi feita!) somaram-se agora novamente mais três!

I. Diferente seria se tudo tivesse sido julgado nulo e a ordem de repetição fosse uma realidade, com repetição integral e a necessidade de nova prolação decisória, mas in casu não faz sentido o apelo a qualquer impedimento pois do que se trata é unicamente de fazer face aos males da douta decisão inicial e para isso seria competente o órgão colegial que a prolatou, devendo ser esse mesmo colectivo quem, confrontado com o teor decisório superior, lhe deveria dar seguimento pois poder-se-ia dar o caso de o colectivo inicial entender que conseguia suprir os vícios elencados sem necessidade de produção suplementar de prova (os vícios de contradição insanável seriam de fácil solução e uma pronúncia sobre os factos que o Tribunal superior considerou necessários indagar também poderia ter resultado da prova já produzida!), possibilidade que se julga que tão-pouco foi valorada;

J. O teor decisório do Tribunal superior transitou em julgado e tem de ser cumprido em termos legalmente conformes, estando a presente situação mais próxima da reabertura da audiência, superiormente ordenada, que da realização de integral novo julgamento, impondo-se que o colectivo fosse o mesmo pois, enquanto reabertura da audiência a visar a produção de prova suplementar, tratar-se-á de continuação da audiência tendo em vista o carreamento de prova para correcta prolação da decisão, implicando necessariamente que o Tribunal e a composição sejam os mesmos, em nome do princípio da plenitude da assistência dos juízes (art. 328º n.º 1 A CPP), cristalinamente violado pois o colectivo que ora proferiu o acórdão recorrido apenas assistiu à prova produzida na sequência de douto acórdão de Tribunal superior e, não obstante, aproveita factos dados por provados em anterior julgamento a que não assistiu, com violação dos princípios da oralidade e imediação, invocando-se o que sobre tais princípios se mostrou escrito no Ac. STJ n.º 11/2008;

K. É claro e cristalino que falha tal imediação e oralidade sobre a prova testemunhal produzida relativa às circunstâncias pessoais dos demandantes, dos arguidos e demais testemunhas ouvidas anteriormente e que agora não foram inquiridas, na senda do decidido no douto acórdão do Venerando TR..., de 11-IV-2019 (autos 218/12....), onde se refere que face aos inconvenientes e prejuízo para o funcionamento do sistema de justiça decorrentes da sucessão de juízes na titularidade dos processos, impôs-se a adoção de um princípio complementar aplicável às situações de continuação de julgamento: o princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no artigo 328º-A CPP, já aplicável no processo penal anteriormente à Lei n.º 27/2015, quer através do artigo 654º n.º 1 CPC ex vi art. 4.º CPP, quer por força do disposto do artigo 70º, maxime n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais;

L. Nos termos do n.º 5 do artigo 328º-A CPP e ressalvadas as excepções nele enunciadas (julga-se que in casu não estará o facto de falecimento ou impossibilidade permanente dos anteriores juízes decisores!) e outras decorrentes da lei, designadamente do regime das escusas, recusas e impedimentos, o juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento (o juiz que inicia o julgamento, em regra, também o conclui!), visando o princípio da plenitude da assistência do juiz, em especial a defesa da oralidade e imediação do juiz com a totalidade da prova, da conservação da prova produzida, da eficácia do sistema e da verdade processual e procurando impedir que, injustificadamente, ocorra uma modificação orgânica ou funcional com incidência num momento crucial já iniciado e ainda não terminado do processo penal, a saber, a audiência de discussão e julgamento, concluindo-se assim que o presente processo não se mostra legalmente conforme, como se comprova igualmente pela jurisprudência indicada na motivação!

M. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios do juiz natural, da plenitude de assistência aos juízes, da imediação e da oralidade bem como das garantias de defesa, o entendimento e dimensão normativa do art. 426º-A n.º 1 CPP segundo o qual “Tendo sido decretado reenvio do processo para novo julgamento, apenas relativamente a concretas questões delimitadas na douta decisão proferida e por se verificarem os vícios do artigo 410º n.º 2 alíneas a) e b) do CPP, a competência para tal novo julgamento não competirá ao colectivo que havia julgado o processo em primeira instância e poderá ser realizado por colectivo totalmente diverso não obstante não se tratar de juízo de anulação/nulidade nem de reenvio para repetição integral”;

N. É disforme à Lei fundamental, por violação dos princípios do juiz natural, da plenitude de assistência aos juízes, da imediação e da oralidade bem como das garantias de defesa, o entendimento e dimensão normativa do art. 426º-A n.º 1 CPP segundo o qual “Tendo sido decretado reenvio do processo para novo julgamento, apenas relativamente a concretas questões delimitadas na douta decisão proferida e por se verificarem os vícios do artigo 410º n.º 2 alíneas a) e b) do CPP, não é de conceder possibilidade de pronúncia e eventual sanação dos vícios apontados em tal douta decisão superior ao colectivo que compôs o Tribunal de primeira instância, cabendo a apreciação do rumo a tomar ao novo Tribunal e colectivo diverso”;

O. Denota-se originalidade de ser transmutada a subsunção jurídica do crime fundamento da condenação do recorrente sem que tenha havido qualquer comunicação nesse sentido, havendo assim uma ilegal alteração da qualificação jurídica, por não precedida de qualquer comunicação prévia e consequentemente nulidade ao abrigo do disposto no art. 379º n.º 1 b) CPP pois que não só deveria tal alteração ter sido previamente notificada (e não foi!) ao arguido como igualmente ao demandado, atenta tal relação umbilical, não deixando de ser curioso que tenha previamente lugar a decisão de prescrição do procedimento criminal, assente em tal alteração da qualificação jurídica, sem prévia análise dos fundamentos e apreciação do recurso da matéria de facto;

P. Além de tal alteração da qualificação jurídica inexiste matéria de facto dada por provada que permitisse tal incriminação e imputação, o dolo imputado não consente tal condenação e imputação e os factos alegadamente consubstanciadores de um crime de violação de regras de construção não permite a transmutação em homicídio por negligência e por omissão, como ressalta de fls. 151, terceiro parágrafo, quando o Tribunal expressamente refere que o arguido AA “não tinha nenhuma qualidade pessoal que lhe permitisse desenvolver uma daquelas atividades profissionais” para concluir mais à frente, a fls. 152 que “Ora, não é possível considerar que o arguido AA tivesse qualquer ligação direta com o planeamento, direção ou execução da construção da ponte.” e “Em momento algum, o arguido AA planeou, executou ou dirigiu a obra.”

Q. Tal circunstancialismo foi alegado por qualquer dos recorrentes, pelo que, chegando a tal conclusão teria o arguido de ser absolvido do crime imputado e não ver-se alvo de uma alteração ilícita da qualificação jurídica, ao arrepio das normas legais pois não precedida de qualquer comunicação, e depois a salvo por prescrição que permita condenar o Estado (demandado e recorrente cível!) quando nenhuma culpa tem o mesmo nem o arguido cometeu o crime pelo qual estava acusado e pronunciado;

R. O Tribunal (e bem, diga-se, pois nem tudo é mau!) conclui que o arguido AA, fundamento da condenação estatal, deverá ser absolvido dos crimes imputados mas trata de, motu próprio em substituição do Ministério Público, assistentes e demandantes, arranjar outros, sem lhos comunicar previamente, não o responsabilizando por prescrição mas condenando o Estado com base em actividade ilícita diversa do peticionado pelos demandantes e vertida na acusação pública pois nunca a acusação pública, a douta pronúncia, os doutos pedidos de indemnização cível ou algum recurso equacionaram o fundamento da demanda cível na prática de crimes de homicídio ou ofensas à integridade física por negligência e a título de omissão, havendo subversão da lide, violando o princípio da estabilidade da instância bem como da vinculação temática ao objecto do processo!

S. O arguido AA não precisava da prescrição pois face a tais crimes nunca esteve acusado ou pronunciado pelos mesmos (tão pouco o Tribunal equaciona da apresentação (ou não!) de queixa face ao crime de natureza semi-pública!) e se tivesse havido condenação por tal crime diverso a douta decisão seria nula pelo que, tendo havido absolvição em nome de uma pseudo prescrição de tal crime não imputado nem na douta acusação nem na pronúncia, a simili não deixará tal decisão de ser nula, tratando-se a prescrição do procedimento criminal de uma falsa questão e uma escapatória juridicamente inválida e disforme à legalidade;

T. Dúvidas inexistem em como foi relativamente à alegada e suposta prática de tais crimes nunca antes imputados e agora inovatoriamente convocados, que assentou a condenação cível, como decorre de fls. 231 e 232, não tendo tal condenação em sede cível suporte na imputação penal, pois que além de tal alteração ser ilícita ainda o que deveria ter ocorrido era a apreciação da matéria de facto e consequentemente serem tais factos, atinentes aos crimes imputados na douta acusação e pronúncia, objectivamente dados por não provados atentas as conclusões a que o Tribunal chegou e vertidas a fls. 151, terceiro parágrafo e a fls. 152, com absolvição e não recurso a alteração da subsunção jurídica e prescrição, padecendo a douta decisão de contradição insanável entre fundamentação e decisão, sendo por isso nula bem como demissão ajuizativa face à apreciação da subsunção jurídica nos termos requeridos pelo demandado, com remissão para factualidade inovatória que nunca lhe foi comunicada, o que igualmente constitui nulidade por omissão de pronúncia, nos termos e para efeitos do art. 379º n.º 1 c) CPP;

U. Não se percebe em que circunstancialismo o Tribunal assenta para classificar como “urgente” (fls. 156, 3º parágrafo, 161 segundo parágrafo e 227 sexto parágrafo) a necessidade de actuação por parte do arguido AA, havendo manifesta contradição insanável face à factualidade dada por provada pois que tendo sido nomeado adjunto em 09 de Fevereiro de 2007 (facto provado 1), temos que mais nenhum acidente ocorreu após tal data (factos 49 a 57!) à excepção do mortal, cerca de quarenta dias volvidos, não se podendo invocar urgência para um problema que aparentemente tinha cessado e deixado de ocorrer precisamente um dia antes de tal nomeação, apenas tendo a interdição do canal sido levada a cabo pelo IPTM quando a solução já estava encontrada e a transferência de cais concluída, sem necessidade de travessia no local (e mesmo assim, entre o acidente mortal e tal interdição, demorou mais de uma semana!);

V. Não se percebe em que factos o Tribunal se apoiou para a determinar, pois que não houve registo de novos acidentes durante quarenta dias, lapso temporal deveras relevante e ausência proeminente (no espaço de uma semana entre finais de Janeiro e primeira semana de Fevereiro de 2007 tinham ocorrido múltiplos!), julgando-se que a fundamentação em tal urgência de actuação se mostra contraditada pelos factos dados por provados, inquinando a subsunção jurídica e a condenação em sede cível, padecendo a douta decisão do vício de nulidade por contradição insanável;

W. É falso e sem apoio no circunstancialismo apurado o que consta a fls. 156 (“O que releva para o caso em apreço é a circunstância de o aludido arguido nada ter decidido, como devia, antes da data em que ocorreu a morte dos dois pescadores, quer ao nível de comunicar a situação aos seus superiores hierárquicos, quer ao nível da tomada de medidas que estivessem no âmbito das suas competências.”) e que até se mostra contraditório com o referido a fls. 160 e 161: “Na verdade, o arguido AA, a partir de 9 de fevereiro de 2007, não se demitiu por completo das suas funções, conforme resulta dos pontos 60, 61, 62, 66, através dos quais podemos constatar que, no mínimo, se encontrava a acompanhar a situação.”, não se vislumbrando fundamento para tal urgência que não é alicerçada em qualquer facto dado por provado pois tal conclusão vai ao arrepio da prova existente nos autos;

X. O Tribunal omite o teor do facto convocado pelo Tribunal de primeira instância e que deveria constar dos factos dados por provados, o qual consta de fls. 186 in fine e 187 supra: “- no dia 14 de Fevereiro de 2007, o I.P.T.M.-C. remeteu, via fax, para a “II – Sociedade de Construções, S.A.” cópia do parecer da Capitania do Porto ..., de 31 de Janeiro de 2007, de não oposição à implementação das marcas de assinalamento marítimo projetadas (ofício aquele que entrara no I.P.T.M.-C. no dia 1 de Fevereiro de 2007), constando, manuscrito na aludida cópia do parecer, os dizeres «Eng. JJ: segue o parecer sobre o assinalamento marítimo. 07.02.14. Churro», fax recebido pela “II – Sociedade de Construções, S.A.” na apontada data de 14 de Fevereiro de 2007 (fls. 5204 dos autos principais);”, pelo que tendo o arguido AA dado cumprimento ao envio de tal fax, nada mais lhe seria exigível pois o IPTM não era nem dono da obra nem empreiteiro e sendo enviado a 14/02/2007, após os pequenos acidentes anteriores, era apto a gerar em qualquer homem médio um sentimento de cumprimento do exigido, vindo tal confiança a ser reforçada com o decorrer dos dias sem notícias de novos acidentes!

Y. Tendo havido tal alteração da qualificação jurídica não se pode dizer que o objecto processual se mantenha o mesmo, pelo que não tem aplicação o afirmado a fls. 161: “a extinção do procedimento criminal, por prescrição, não tem como consequência o fim da lide, no que diz respeito aos pedidos cíveis deduzidos nos autos – ver, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11/7/2019, Processo n.º 1203/16...., da ... secção, relatado pelo Exmo. Conselheiro KK, in www.dgsi.pt, no qual é feita expressa referência ao Acórdão n.º 3/2002, de 17-01-2002, processo n.º 342/2001, publicado no DR, I Série - A, de 05-03-2002, que fixou a seguinte jurisprudência: “Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal, mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”. (…)».”, sendo convocada jurisprudência que nada tem que ver com os presentes autos, pois que alude expressamente ao teor de despacho nos termos do art. 311º CPP e antes da realização de julgamento e in casu a situação não é essa, havendo contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que se decide com base em pressupostos e argumentos inaplicáveis in casu, pois que o estádio processual não é o do saneamento do processo;

Z. Estando em causa não só a responsabilidade criminal de um arguido como a umbilicalmente relacionada responsabilidade cível da pessoa colectiva demandada por força de tal actuação do arguido, tal comunicação para exercício de defesa deveria ter sido levada a cabo face a ambos e não o foi face a nenhum;

AA. Mostra-se inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 358º nºs 1 e 3 CPP no sentido de “Se se verificar uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com relevo para a decisão da causa, não se verifica necessidade de comunicar a alteração ao arguido, nem de conceder, se ele o requerer, o tempo  estritamente necessário para a preparação da defesa.”;

BB. Mostra-se inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 358º nºs 1 e 3 CPP no sentido de “Se se verificar uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com relevo para a decisão da causa, não se verifica necessidade de comunicar a alteração ao demandado, cuja responsabilidade cível se mostre relacionada com tal acção ilícita do arguido em causa, nem de conceder, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.”

CC. São múltiplas as referências e confirmações de alterações levadas a cabo sem terem sido ordenadas no anterior acórdão, como se confirma a fls. 181 in fine e 182, acabando tudo por ser irrelevante, passando tudo incólume e sem consequências jurídicas face a tal violação e extravasar de mandato, não se podendo afirmar que é irrelevante o facto de ser dado por provado que o pescador sobrevivente caiu à água ou se atirou quando o certo é que 100% das pessoas que caíram (duas delas!) morreram e 100% dos que se atiraram…salvaram-se nem a questão da necessidade de passagem no local, pois a não existir tal necessidade (por haver uma alternativa!) não é assim tão irrelevante como aparece a fls. 183 a opção de tais pescadores em fazer uma travessia que não era exigida por haver alternativa, apenas a fazendo por comodidade!

DD. Muitos pescadores deixaram de passar no local, faltando saber o porquê daqueles três, naquele circunstancialismo adverso pelas marés, terem decidido arriscar, o que não foi apurado mas decidido in dubio, contra reo dado que as alterações levadas a cabo e não ordenadas são essenciais (desvirtuam o julgamento anterior e permitem uma alteração ao decidido, como se comprova pelo desfecho!) e quando nem toda a prova foi produzida perante o colectivo que decidiu, pois que apenas assistiu a uma ínfima parte da mesma dado não ter estado no primeiro julgamento, não se percebendo como tudo o que é em favor dos recorrentes (arguido e Estado/IPTM) é irrelevante tentando que a culpa não morra solteira e tenha de casar à força;

EE. O afirmado a fls. 183 em como “os sucessivos acidentes descritos nos autos que precederam o que aconteceu no dia 19 de março de 2007 transmitem a ideia de que diversos pescadores sentiam a necessidade de passar pelo local, pois, de outra forma, não o fariam” é erróneo pois entre tais ditos acidentes anteriores (cujo último ocorreu em 08 de Fevereiro de 2017!) e o acidente fatal decorreram 40 dias sem qualquer acidente (após o arguido AA ter sido nomeado adjunto apenas ocorreu um acidente!), tendo sido olvidadas na subsunção jurídica as medidas de minimização vertidas no facto provado 70 bem como a encomenda de sinalização e implementação de assinalamento marítimo, não fazendo sentido que, em nome de uma prescrição de procedimento criminal face ao arguido pessoa física, se demita o Tribunal de apreciar a globalidade do circunstancialismo quando em causa está a actuação de um ente público e fundamento da sua responsabilidade, havendo a curiosidade de alusão ao teor do fax remetido pelo arguido AA, factualidade que está documentalmente provada mas não consta dos factos provados;

FF. Padece assim a douta decisão do vício de contradição insanável pois que lança mão de argumentação inaplicável in casu para não conhecer o recurso na sua totalidade, padecendo em acréscimo de demissão ajuizativa/omissão de pronúncia e no tocante à dinâmica do acidente as alterações não são de pormenor e não foram ordenadas, fazendo toda a diferença e alterando-a de forma relevante (basta ver que desapareceu a forma como o barco era conduzido e a posição dos pescadores sendo significativas as diferenças), pois manifestamente o que consta a fls. 195 supra (“A modificação da redação existente relativa à dinâmica do acidente, no seu essencial, nada altera, pois dela resulta que a embarcação adornou, o que levou os pescadores a entrarem em contacto com a água.”) não tem aplicação in casu;

GG. No tocante ao facto 80 havendo documento que é prova cristalina e inequívoca, não se pode referir que a adição do seu teor não tem qualquer efeito útil quando não está em causa a interdição em si nem a competência ou autoria, mas a fundamentação justificante, a qual não é despicienda dado tal interdição ter sido levada a cabo por se mostrarem reunidas as condições para tal, as quais inexistiam em momento anterior, e apenas cerca de uma semana após o acidente mortal, pelo que a urgência a que o Tribunal tanta vez convoca inexistia em concreto, impondo-se a valoração global desse despacho/edital, o não teve lugar!

HH. Por referência à impugnação do ponto 48, em primeira linha, apontou-se o teor do facto precedente (47) e só subsidiariamente o teor da testemunha LL pelo que rejeitar tal alteração unicamente em nome de tais declarações é uma visão redutora e configura omissão de pronúncia face à valoração e coexistência entre os pontos 47 e 48 pois a fls. 200 o Tribunal admite que a prova “permite uma outra apreciação mas não a impõe” e sem que fundamente as razões para tal não imposição, o que volta a referir a fls. 208, mas ainda assim decide contra reo dado que se a prova permite outra apreciação então o que a impõe é a decorrência do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência bem como a repartição o ónus da prova, a qual não compete ao recorrente uma vez que a contraface do afirmado pelo Tribunal é o circunstancialismo de a prova não impor a decisão tomada pelo Tribunal a quo, tanto que admite outra valoração!

II. Mostra-se inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 127º CPP, por violação do princípio in dubio pro reo e demais garantias de defesa quando interpretado no sentido de “[É] de manter o entendimento e decisão da matéria de facto decidida pelo Tribunal a quo não obstante a prova permite uma outra apreciação mas não a imponha, sem que se fundamentem as razões dessa não imposição”;

JJ. Mostra-se disforme à lei fundamental o entendimento e dimensão normativa do art. 127º CPP, por violação do princípio in dubio pro reo, regras do ónus da prova e demais garantias de defesa quando interpretado no sentido de “É de manter o entendimento e decisão da matéria de facto decidida pelo Tribunal a quo não obstante o Ministério Público, os assistentes/demandantes não terem efectuado prova sólida dos factos em causa a ponto de a prova permitir uma outra apreciação, favorável ao arguido e ao demandado”.

KK. Verifica-se contradição face às mais elementares garantias de defesa bem como regras do ónus da prova, com interpretação e dimensão normativa inconstitucional pois que nem Ministério Público nem assistentes nem demandantes fizeram prova cabal e inequívoca de tais factos pois relativamente ao ponto de facto 74, salvo o devido respeito, não se pode afirmar, como é feito a fls. 201, que não se vêm razões para alterar tal ponto da matéria de facto quando o certo é que quem se atirou à água (como o fez o pescador sobrevivente HH!) salvou-se, pelo que será mais um indício e comprovação de aparente culpa de quem o não fez e apenas caiu, tratando-se do que havia sido anteriormente dado por provado (“lançou-se ao rio”!) e foi o que tal pescador ouvido como testemunha afirmou plúrimas, vastas, múltiplas e imensas vezes!

LL. Ao dar-se como provado que ele HH (que referiu que se tratou de um acidente, “um dia de azar, claro”) “caiu à água” não só se desvirtua a prova como se desonera os demais pescadores da adopção de qualquer comportamento que lhes pudesse ter, muito possivelmente, evitado a morte, colocando tal ónus sobre o IPTM e o Estado que nada poderiam ter feito em tal circunstancialismo dado que tal sobrevivente alcançou a segurança em poucas braçadas, conforme facto 75, verificando-se in casu que quem de facto poderia ter feito alguma coisa acaba por ser desonerado com condenação de quem nada podia fazer no momento, razão da preconizada alteração da indemnização com repartição de ónus de culpa de 75% e 25% e não em proporção igual para ambas as partes;

MM. A fls. 203 a 207 o Tribunal reproduz o alegado pelo recorrente, com múltiplas passagens de prova testemunhal que se julga imporem decisão diversa face ao ponto 83, em acréscimo à invocada ausência de mandato para a alteração efectuada, e mais uma vez com alusão aos acidentes anteriores mas sem valorar que após 08 de Fevereiro de 2007 apenas sucedeu o fatídico acidente mortal e volvidos quarenta dias, pelo que mais uma vez se verifica contradição entre tal invocação e os factos dados por provados e a verdade verdadeira, pois que ninguém percebe que se fundamente necessidade de alteração quando os acidentes deixaram de ocorrer, configurando tal ausência de mandato alteração abusiva e ilegítima, pois que, repita-se, a totalidade da prova não foi produzida neste segundo novo julgamento nem perante o mesmo colectivo, a impedir alterações à matéria de facto face às quais qualquer parte processual média não poderia contar e com violação dos princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da protecção da confiança!

NN. Ao exigir que o recorrente tivesse indicado qualquer demais prova para além da inexistência de mandato e alteração abusiva, o Tribunal preclude as garantias de defesa e vai para além da legalidade, pois o que todo e qualquer declaratário normal e médio perceberia do teor do acórdão anterior é que apenas seria produzida prova para os concretos pontos doutamente determinados e que não se iria fazer um novo julgamento face ao que não foi abarcado por tal reenvio sendo irónico que o Tribunal, não obstante o facto de se ter visto desautorizado, a final coloque chancela de legalidade a tal desautorização, o que é sintomaticamente gravoso, abrindo a porta para a inobservância ao teor das decisões de Tribunais superiores e subvertida a hierarquia judicial!

OO. Mostra-se inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 416º n.º 1 CPP quando interpretado no sentido de “[E]m case de reenvio superiormente determinado pelo Tribunal da Relação, com indicação precisa dos vícios e pontos de facto abrangidos, é lícito e juridicamente conforme que a indagação fáctica a levar a cabo pelo Tribunal de primeira instância extravase tal âmbito superiormente determinado, tendo validade jurídica a decisão da matéria de facto que não se mostrava abrangida e a representar alteração face à primitiva decisão de primeira instância que não foi julgada nula”.

PP. O referido a fls. 207 in fine (“Em primeiro lugar, no que tange ao pretendido aditamento de um facto do qual conste que um dos pescadores vítimas do naufrágio esteve presente na reunião de 26 de fevereiro, não vislumbramos que seja relevante, pois resulta do ponto 62 dos factos provados que, nessa reunião, esteve presente uma comissão de representantes da comunidade piscatória.”) denota contradição intrínseca face ao acórdão anterior, pois que foi este quem mandou apurar tal composição da comissão de pescadores, conforme decorre da transcrição de fls. 175 in fine, pelo que aquilo que antes havia sido tido por essencial agora já não é importante referindo o Tribunal a fls. 208 que “A presença do malogrado FF na mencionada reunião nada aporta de novo à boa decisão da causa, pois a questão da navegação dizia respeito a todos os pescadores e não a um em particular.”

QQ. O facto de ter estado presente uma comissão não bastou no anterior acórdão que mandou expressamente averiguar a sua composição, mas agora, que foi apurado que um dos membros era um dos pescadores afinal já não é relevante ser dado por provado, sendo incompreensível que um mesmo Tribunal se contradiga a si próprio, sendo que aquando da reunião de 26 de Fevereiro de 2007, a situação mostrava-se sem acidentes há cerca de vinte dias e foram tomadas medidas que mitigavam tal perigo, como a transferência do cais, pelo que todo e qualquer cidadão médio se sentiria mais acreditado na inexistência de perigo futuro;

RR. Os argumentos aduzidos pelo recorrente no sentido da indevida subsunção jurídica não foram apreciados, como consta de fls. 231 em nome da alteração da qualificação jurídica, abusivamente levada a cabo, havendo manifesta omissão de pronúncia face a tal apreciação, sendo a douta decisão nula pois que se imporia que fosse analisado o mérito do objecto processual e do recurso, sem alterações que se julgam ilegais e desprovidas do normal trâmite processual, com absolvição cível como decorrência de serem dados por não provados os factos imputáveis ao arguido AA e absolvido dos crimes que se lhe mostravam imputados, conforme conclusões de fls. 151, terceiro parágrafo (o arguido AA “não tinha nenhuma qualidade pessoal que lhe permitisse desenvolver uma daquelas atividades profissionais”) e fls. 152: “Ora, não é possível considerar que o arguido AA tivesse qualquer ligação direta com o planeamento, direção ou execução da construção da ponte.” e “Em momento algum, o arguido AA planeou, executou ou dirigiu a obra.”;

SS. Manifestamente ter-se-á de concluir que a acusação de que tal arguido era alvo e a condenação sofrida em primeira instância teria de ser dada por não provada, com alteração do julgamento da matéria de facto atento o não preenchimento dos requisitos de punição face aos crimes imputados, o que levava a que inexistisse fundamento para a condenação cível do recorrente e consequente absolvição como será de justiça pelo que a alteração unilateral, não precedida de qualquer contraditório ou promoção do Ministério Público ou recurso dos assistentes, mostra-se eivada de nulidade, devendo sim ter lugar o julgamento como não provado dos factos típicos dos crimes imputados e pelos quais foi condenado em primeira instância e consequente absolvição;

TT. Aquilo que o Tribunal fez foi alterar os dados do jogo, sem comunicação anterior, efectuando um julgamento novo e que não traduz verdadeiramente o âmbito recursório, decidindo algo que não foi submetido à sua apreciação e omitindo pronúncia face ao objecto do recurso, tratando-se de prática processual errónea e lesiva do Estado português e de todos os contribuintes (se qualquer cidadão nacional se poderá queixar internacionalmente das decisões da justiça nacional como o fará o Estado português quando vítima das mesmas injustiças: será o Estado condenado a indemnizar o Estado?!) pois a fls. 232 o Tribunal refere que “No caso presente, estamos perante factos que, como já vimos, constituem a prática de crimes de homicídio negligente e de ofensas à integridade física por negligência, a existência de danos, um nexo causal entre o evento e os danos e o nexo de imputação do evento, a título de mera culpa.” mas verdadeiramente nunca existiu qualquer acusação nesse sentido nem os pedidos de indemnização civil pressupunham a prática de tais crimes, que agora foram unilateralmente alterados e sem que se perceba a bondade pois não foi dado cumprimento ao normativo legal nem emerge da procedência de qualquer recuso de qualquer parte processual!

UU. Inexistiu qualquer denegação de responsabilidades/funções ou omissão por parte do arguido AA (e consequentemente do demandado!), que seja causa directa e necessária para os danos pois, tal qual abundantemente repetido nas declarações da testemunha HH (o único sobrevivente!), tratou-se de um acidente (repete-se, acidente: evento nefasto que ocorre as mais das vezes sem que haja responsabilidade dolosa ou qualquer culpa concreta de quem quer que seja, evento inesperado e indesejável que causa danos e que ocorre de modo não intencional), para o qual foi deveras decisivo/nevrálgico, o modus operandi na condução do bote e saber se era pelo falecido FF (o Tribunal a quo, salvo erro, nem isso deu por provado!), pelo que olhada a globalidade da prova produzida não se vislumbra culpa que possa ser directamente assacada a qualquer arguido pelo infeliz acontecimento, atenta a auto-colocação em risco, devidamente conscienciosa, por parte dos aventureiros pescadores, tendo a testemunha HH (pescador sobrevivente) sido expressa em afirmar que já lá tinham passado mais vezes e conheciam os perigos, confirmando claramente que se as vítimas tivessem levado o colete de salvação vestido, teriam, ficado a boiar e não teriam morrido;

VV. Estando os pescadores conscientes dos perigos que poderiam encontrar, era normal e exigível que houvesse um reforço de cuidados básicos ao nível de segurança, sendo sintomático também o uso de formas verbais do verbo “arriscar”, a denotar manifestamente a expressa consciência e apenas no caso de se poder ter por verificado um nexo de causalidade, sem culpa das vítimas, é que poderá haver responsabilização, estando a situação em análise nos antípodas de uma outra em que não houvesse consciência do perigo por parte dos pescadores, por se tratar de perigo recente ou camuflado, nem o mesmo fosse conhecido e tivessem sido adoptadas todas as medidas de segurança por parte das vítimas, pelo que, inexistindo semelhança entre tais duas realidades, terá de ser aplicado o princípio da desigualdade, não podendo ser conferido tratamento igual a algo que manifestamente não é semelhante;

WW. No tocante à subsunção jurídica e atribuições do demandado/recorrente, impõe-se que seja estabelecido o nexo de causalidade adequada entre a pseudo omissão e o acidente fatídico, pois sem esse elo, será irrelevante qualquer omissão e, in casu, mesmo que até devesse ter sido levada a cabo qualquer acção sempre se deparou com a oposição/não cooperação dos pescadores, como foi resultado das reuniões havidas uma vez que a navegação ainda não tinha sido proibida por a isso se opor a comissão dos pescadores (a testemunha MM referiu que houve pescadores a tentar levar os barcos pela estrada, com um carro, “com medo de passar por ali”, havendo assim uma alternativa real!);

XX. A pesca da lampreia, em razão da sua sazonalidade e proveito económico, veio colocar problemas que de início se não colocavam, com alteração superveniente das circunstâncias mas uma perspectiva isenta e imparcial nunca permitirá imputar responsabilidade ao demandado/recorrente, apagando por completo e desconsiderando a responsabilidade própria dos pescadores que se demitiram das condições de segurança e arriscaram pois a situação de perigo era pública e tudo foi feito para que a questão fosse ultrapassada, não sendo feito sem concordância e prévia informação aos pescadores, que sempre teriam uma palavra a dizer: e neste caso, foi claramente de oposição ao fechar de tal canal, cabendo aos pescadores fazer um juízo de ponderação entre os bens jurídicos/valores em confronto, estando por um lado a vida/integridade física e por outro o proveito económico;

YY. Soube o primitivo Tribunal referir o animus do lucro, refutado pelos demandantes mas a transparecer um paradoxo (se assim não era, menos compreensível o arriscar por parte deles dado que se não seria assim tão compensador, para quê colocar em perigo o bem supremo?!) e uma visão global de conjunto imputará a culpa pelos acidentes mortais exclusiva das próprias vítimas, impondo-se a absolvição do recorrente atenta a exclusão do direito à indemnização nos termos e para efeitos do art. 570º n.º 1 CC in fine pois o IPTM/Estado não tinha poder nem responsabilidade de implementar tal assinalamento marítimo e tal colocação de meios de salvamento, a cargo de outras entidades, e no tocante à interdição, e com observância ao princípio da proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, não fazia sentido decretar a mesma quando o perigo não era contínuo nem permanente [a interdição apenas foi decretada uma semana após os acidentes mortais e quando já se mostrava concluída a transferência das embarcações, quando a navegação não iria ocorrer (se fosse algo premente tinha sido decidido logo no dia do acidente, ocorrido ao início do dia!)];

ZZ. A Capitania e a Polícia Marítima eram conhecedoras da situação e também nada fizeram a mais que o arguido AA, a população em geral era conhecedora da situação e nada fez, os pescadores eram conhecedores do perigo e nada fizeram, os demais arguidos eram conhecedores do perigo e nada fizeram, o Ministério Público do Tribunal ... poderá eventualmente também ter tido notícia dos factos e também nada fez, podendo-se concluir em resumo que ninguém fez nada e, não obstante, apenas uma pessoa é condenada, tratando-se de uma pessoa que do ponto de vista da hierarquia do IPTM não era nem o Presidente do Conselho Directivo nem tinha responsabilidades centrais ou poder decisório por ser um mero adjunto, conforme dado por provado, que nada decidia e se limitava a encaminhar e transmitir documentos para outras entidades, servindo de ponto de contacto e correio, a quem não competia dar pareceres nem aprovar o que quer que fosse pois ou era a Capitania ou a Direcção de Faróis com competência para o efeito!

AAA. Se é certo que a culpa não pode morrer solteira também não pode ser juridicamente válido um casamento forçado e assente em erro pois a fls. 79, ao nível do grau de ilicitude e modo de execução, o Tribunal a quo, pese embora invoque referir-se ao caso concreto, o certo é que copiou e colou de qualquer outra decisão a contender com demolição de casa de habitação antiga em que apenas foram fornecidas luvas, botas e capacetes: convenhamos que não se trata da situação em causa nos autos nem tão-pouco se mostra aplicável por analogia pois o IPTM não era dono da obra nem o responsável pela construção;

BBB. Nem o recorrente nem o arguido AA são culpados pela forma descuidada como a embarcação era conduzida, em violação das leges artis, pela sua fraca potência, sujeição voluntária ao risco, pelas roupas usadas, pela corpulência dos pescadores, pela demissão do uso de coletes de salvação, pelo número da tripulação, etc etc. pois tais violações das leges artis é que foram causa directa e necessária das mortes, nenhuma culpa tendo o IPTM pelo atraso no fornecimento do material à entidade construtora nem havendo ilicitude do IPTM pela não implementação do assinalamento marítimo cujo parecer e decisão lhe não competia, da mesma forma que a sua implementação também não estava a seu cargo, inexistindo culpa e obrigações do IPTM pela segurança de obra da qual não era nem o dono nem a entidade construtora, não tendo sido por acção do IPTM que as velocidades da água aumentaram ou que o canal ficou mais estreito!

CCC. Os factos dados por provados, quer objectivos quer a contender com os elementos subjectivos, não consentem a condenação do arguido pelos crimes de homicídio e ofensa à integridade física negligentes e face aos crimes pelos quais se mostrava acusado e pronunciado terá de ser absolvido pelo que se impõe a decorrente absolvição do demandado cível e ora recorrente dado nenhuma culpa poder ser imputada a qualquer ente público ou seu funcionário, falecendo os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, sendo a culpa exclusiva das vítimas;

DDD. O Tribunal considerou que a culpa e responsabilização pelos acidentes mortais deveria ser dividida ao meio entre os pescadores/vítimas/demandantes e os demandados mas a situação em análise está nos antípodas de uma outra em que não houvesse consciência do perigo por parte dos pescadores, por se tratar de perigo recente ou camuflado, nem o mesmo fosse conhecido e tivessem sido adoptadas todas as medidas de segurança por parte das vítimas pelo que, a não ser dado provimento à peticionada decisão de culpa total imputável às vítimas, no limite nunca a divisão equitativa de culpas se mostra justa, devendo a repartição ser reformulada com majoração de culpa/responsabilidade para as vítimas e numa lógica de 75% / 25%;

EEE. A indemnização por danos não patrimoniais é, de acordo com o disposto nos arts. 496º, n.º 3 e 494º CC, fixada equitativamente, considerando a culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, as especiais circunstâncias do caso e a gravidade do dano, não podendo na procura do valor dessa compensação deixar de ser tidas em conta as circunstâncias específicas de cada vítima, como a idade, a saúde, a vontade de viver, a situação familiar, a realização profissional, etc., pelo que sendo as vítimas pessoas já de idade avançada, com cerca de 70 anos (não tendo já toda uma vida deveras longa, em termos expectáveis, pela frente!), sendo um casado e outro não, aparentemente sem formação superior e tendo o lesante agido sem elevado grau de culpa (dolo eventual!), nos termos e para efeitos do art. 494º CC deverá haver lugar à limitação da indemnização, sendo a douta decisão nula por não ter conhecido de tal realidade;

FFF. A privação da vida das vítimas constitui um dano situado no patamar inferior da escala de gravidade configurável para este tipo de danos, julgando-se que o Tribunal a quo exagerou ao fixar como adequado o valor de € 60.000,00 a título de compensação por tal perda face a pessoas com quase 70 anos (e portanto já de idade considerável!) e, em termos notórios, o que se alega nos termos e para efeitos do art. 412º CPC, com uma esperança média de vida já de curta expressão face ao tempo já vivido (não se afirmando com menosprezo pelo valor da vida mas unicamente fruto das circunstâncias in casu!) e razões apontadas na conclusão anterior aconselham a fixação em valor não superior a € 50.000,00;

GGG. Não atendendo a qualquer prolongamento de sofrimento, necessidade de intervenções cirúrgicas, incapacidades duradouras ou similares, julga-se estar majorado indevidamente o valor inerente da compensação do sofrimento da própria vítima pois a morte, não tendo sido instantânea, o certo é que não terá possibilitado grandes lapsos temporais de padecimento pelo que, tendo o STJ, por douto acórdão de 03/11/2016, proferido no processo n.º 6/15...., num caso em que vítima “sofreu dores intensas em consequência do acidente e das graves lesões que a atingiram, suportou cerca de 23 dias de clausura hospitalar e dolorosos tratamentos e perspectivou a sua morte, o que lhe causou angústia e medo”, considerado acertada a indemnização de 20 000,00 €, sendo maiores as diferenças que as semelhanças impõe-se a atenuação e mais adequado e justo o montante de € 10.000,00, defendendo-se a atenuação de tal montante fixado;

HHH. A quantia de € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais da demandante BB é deveras majorada pois se é certo que há sempre angústia, sofrimento, dor, perda e vazio, não é menos verdade que há que olhar para todo o circunstancialismo, não sendo a situação, felizmente, similar à que seria resultante de uma jovem viúva, sem filhos que a amparassem ou lhe servissem de apoio, sendo certo que com o avançar da idade as pessoas também se mentalizam/preparam que o dia de uma possível viuvez pode chegar, pelo que sendo mais maduras acabam por sofrer menos (diminuindo também o período médio de viuvez à medida que se avança na idade e a morte do cônjuge ocorra mais tarde!), mostrando-se mais adequado e justo o montante de € 10.000,00, defendendo-se atenuação de tal montante;

III. No tocante à perda de rendimentos, devida pela falta de contribuição familiar do seu marido nos cinco anos subsequentes à sua morte, julga-se que o Tribunal errou ao fixar em € 30.000,00, a corresponder a € 6.000,00 por cada um dos cinco anos pois, lá diz o povo na sua proverbial sabedoria que muita vela na Igreja é capaz de provocar um incêndio, e do teor dos factos dados por provados 120 e 121, a fls. 33 da douta decisão recorrida será impossível alguém acreditar que uma pessoa com quase 70 anos lograsse trabalhar 12 meses por ano sem férias, tendo o Tribunal a quo feito tábua rasa e não valorado aquilo que deu como provado sob os pontos de facto 131 e 132 (a fls. 34 infra e 35 supra de douta decisão recorrida) pois se a demandante voltou a trabalhar, necessariamente auferindo retribuição, coisa que não faria caso o falecimento não tivesse ocorrido, e tendo por certo passado a receber pensão de sobrevivência (notório e invoca nos termos e para efeitos dos arts. 412º CPC!) não se vê a existência de quaisquer perda de rendimentos quando tão pouco se aferiu em concreto qual o valor da retribuição que passou a auferir!

JJJ. Se o falecido NN estava reformado mas ainda se dedicava à pesca 12 meses por ano, não tendo tal valor da quantia mensal líquida resultado provado, competindo tal prova aos demandantes e não a tendo feito, não se percebe como o Tribunal a quo se socorre de critérios de equidade a concluir € 6.000,00 por ano (€ 500,00 por mês), quando o salário mínimo nacional era em 2007 403 euros, não sendo plausível que uma pessoa com quase 70 anos auferisse quantia mensal de € 854,10 (de acordo com o facto provado 119 o falecido NN auferiria € 354,10 de reforma), não se vislumbrando assim as alegadas dificuldades económicas, e ademais, se em relação ao demandante HH, que se dedicava à pesca com os falecidos e portanto deveriam repartir os ganhos, pela privação/incapacidade de voltar ao mar durante dois anos seguintes, o Tribunal a quo fixou uma indemnização de € 2.000,00 e já a incluir o valor do vestuário, valor não superior a mil euros por cada ano, não estando o falecido NN já em idade laboralmente activa nem empregado, não poderá ser contabilizada tal perda de rendimentos pois tão-pouco se poderá afirmar com um juízo de prognose assertivo que tal situação de trabalho se manteria nos próximos cinco anos;

KKK. A cada ano haverá uma diminuição das capacidades e o proveito tenderá a diminuir, pelo que se face ao HH foi fixado um valor não superior a dois mil euros pelos primeiros dois anos, à razão de mil euros cada um, então no máximo a perda de rendimentos a atribuir à demandante BB não poderá ser superior a cinco mil euros (€ 5.000,00), sendo certo que pelas razões supra aduzidas não é sequer certo que tal situação de perda de rendimentos tenha sido uma realidade, podendo mesmo ter havido incremento patrimonial e a questão ser unicamente subsumível ao nível os danos não patrimoniais (se é certo que ficou privada do produto da pesca não é menos verdade que passou a auferir um apoio do protocolo celebrado, uma pensão de sobrevivência e a retribuição do seu trabalho!) pelo que deverá o recorrente ser absolvido de tal condenação ou, no limite, ser a mesma substancialmente atenuada para valor não superior a € 1.000,00/ano e total de € 5.000,00;

LLL. No tocante às despesas com o funeral, julga-se e invoca-se como notório, nos termos e para efeitos do art. 412º CPC, a Segurança Social devolve o dinheiro ou efectua uma comparticipação, não podendo assim a demandante obter um duplo benefício pois, quanto muito, será a Segurança Social a ter direito de regresso sobre o demandado, devendo haver absolvição do demandado/recorrente face a tais danos patrimoniais!

MMM. Relativamente aos pedidos de indemnização cível deduzidos pelos filhos do falecido NN, valerão as considerações já supra expostas com redução da indemnização nos termos similares aos de sua mãe, recebendo consoante a sua quota-parte, o mesmo se aplicando igualmente aos filhos do falecido FF, com atenuação das indemnizações a todos eles, sem esquecer a supra defendida repartição com majoração de culpa/responsabilidade para as vítimas e numa lógica de 75% / 25% e no tocante ao demandante HH, a atribuição de um valor por danos não patrimoniais de € 15.000,00 mostra-se deveras elevada, defendendo-se a sua atenuação em virtude de a questão da queda à água ser um erro de julgamento, conforme já supra exposto, e a situação em relação a si durou pouco tempo e alcançou a margem “em duas braçadas”, sem grande esforço ou sofrimento, julgando-se assim mais conforme a sua atenuação para € 10.000,00, sem esquecer a supra defendida repartição com majoração de culpa/responsabilidade para as vítimas e numa lógica de 75% / 25%;

NNN. Tal douta decisão recorrida padece de vícios cristalinos e ostensivos, com o não cumprimento do doutamente ordenado por Tribunal superior e preterição de juiz natural e princípio da plenitude de assistência à cabeça, inexistindo qualquer prova cabal de nexo de causalidade entre qualquer acção ou omissão do arguido AA e o sinistro mortal, que foi decorrente de uma auto-colocação em risco por parte das vítimas e sem observância das mais elementares regras de segurança, que seriam aconselhadas em razão da publicidade do perigo de navegação no local e sua experiência pessoal e profissional na arte piscatória, não deixando V/ Exas. de, como sempre, de forma justa fazer funcionar a aplicação do Direito em termos adequados, julgando procedente o presente recurso pois se é certo que a culpa não pode morrer solteira também não pode ser juridicamente válido um casamento forçado ao arrepio da lei;

OOO. E tal violação dos princípios do juiz natural, da plenitude de assistência, do acusatório, do contraditório bem como vinculação temática ao objecto do processo, conjugada com os vícios decisórios de contradição insanável e demissão ajuizativa que, globalmente, constituem o pecado original deste processo pois que é o próprio Tribunal quem acaba por não levar a cabo, em termos cabais, aquilo para o qual se julga que estava legitimado e habilitado, com prejuízo manifesto e ostensivo não só para o recorrente mas para, segundo se julga, a imagem da justiça portuguesa (ao não ir a jogo e apreciar in totum o mérito do recurso, a justiça ratifica a injustiça e perde por falta de comparência!);

PPP. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 1º n.º 1, 10º nºs 1 e 2, 14º, 15º, 18º, 31º n.º 1, 137º n.º 1, 277º nºs 1 a) e 2, 285º CP; arts. 119º e), 127º, 374 n.º 1 d), 328º-A nºs 1 e 5, 358º nºs 1 e 3, 379º n.º 1 b) e c), 426º e 426º-A n.º 1 CPP; arts. 9º n.º 3, 483º n.º 1, 487º n.º 2, 494º, 496º, 563º, 566º n.º 3 e 570º n.º 1 CC; arts. 2º n.º 1, 4º n.º 1 DL 48051; art. 70º n.os 1 e 2 da Lei 21/85 (Estatuto dos Magistrados Judiciais); art. 2º b) e c) DL 46/2002; art. 4º n.º 2 e) dos Estatutos do IPTM, anexo ao DL 257/2002; arts. 1º, 13º n.º 1, 18º nºs 1 e 2, 22º, 32º nºs 1, 2, 5 e 9, 110º n.º 1, 202º nºs 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; arts. 412º n.º 1 e 414º CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime do juiz natural, da plenitude de assistência dos juízes, da imediação e da oralidade, da vinculação temática ao objecto do processo, do acusatório, do contraditório, da livre apreciação da prova, do respeito devido às decisões de Tribunais superiores, da presunção de inocência (in dubio pro reo), do dispositivo, da culpa, da legalidade, da tipicidade, da igualdade, da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso, da responsabilidade cível, do nexo de causalidade entre facto e dano e da culpa dos lesados.»

4. Por despacho de 27.09.2021, foi o recurso admitido nos seguintes termos:

«1) Por estar em tempo, ter sido interposto por quem tem legitimidade, admite-se o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça pelo Estado Português/” Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, IP”, a fls. 5894 a 5931, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo – artigo 432.º, n.º 1, b), do CPP, e artigo 672.º, do CPC, ex vi artigo 4.º, do CPP,

Notifique.

****

2) Tendo em consideração a interposição e admissão do recurso referido em 1), não há que conhecer, nesta fase processual, da arguição de nulidade de fls. 5871 a 5877 verso, face ao disposto no artigo 379.º, n.º 2, do CPP.

Notifique.»

4. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação ... respondeu e apresentou as seguintes conclusões:

«1 - As questões suscitadas pelo recorrente/demandado civil, IPTM/Estado são praticamente as mesmas que suscitou para o Tribunal da relação, as quais foram analisadas e discutidas, ao pormenor pelos Exm.s Senhores Juízes Desembargadores, que rejeitaram, ponto por ponto e sem voto de vencido, a maior parte de todas as questões que visavam absolvição dos pedidos de indemnização civil, apenas o julgando provido o recurso no segmento em que o absolveu de pagar também, a uma das demandantes civis, a aquisição do talhão do cemitério, no montante de 3 700,00.

2 – O acórdão da Relação que, apreciou todas aquelas questões suscitadas pelo recorrente- confirmando no essencial a decisão da 1.ª instância, garantiu a dupla apreciação e, nessa parte, esgotou o direito ao recurso consagrado na Constituição da República e no direito convencional universal e europeu. Essas mesmas questões não podem ser sindicadas em terceiro grau de jurisdição.

3 – Estamos, assim, perante uma situação de Dupla conforme, pois não só é confirmada no essencial a decisão cível de condenação do demandante recorrente como este viu reduzida a indemnização cível em que foi condenado em 1.ª instância, caindo, por essa razão, na alçada do art.º 671.º n.º 3 do CPC, tratando-se de um acórdão proferido pela Relação sem voto de vencido.

4 – Deve, por isso, ser liminarmente rejeitado».

5.1.  A demandante cível BB respondeu ao recurso interposto, tendo concluído que:

«1. É manifestamente injustificada a pretensão do recorrente, na parte cível, pois convoca todas as alíneas do nº 1 do artigo 672º do CPC para justificar o recurso, incumprindo os respectivos requisitos ou não as justificando, conforme expressamente se refere nas várias alíneas do nº 2 do aludido normativo legal.

2. Dir-se-á que a única “justificação” que o recorrente apresenta é que a causa tem particular relevância social e estão em causa questões de relevância jurídica porque o condenado é o Estado (logo todos nós) e não um qualquer privado, o que para além de atentatório ao comum cidadão não configura qualquer justificação.

3. As razões a que se refere a al. a) do nº 2 do artigo 672º, são razões concretas e objectivas que devem ser explicitadas através de argumentação sólida e convincente, susceptível de revelar a alegada relevância jurídica, a qual passa pela complexidade ou dificuldade da questão de direito que se pretende ver reapreciada, pela controvérsia que essa questão venha gerando na doutrina ou jurisprudência, e pela consequente susceptibilidade de produzir decisões divergentes ou mesmo contraditórias, o que o recorrente não fez.

4. Apesar de alegar contradição do acórdão com outros já transitados em julgado, não dá cumprimento ao estipulado na alínea c) do nº 2 do artigo 672º (e ao nº 2 do artigo 637º) do Código Processo Civil, não juntando sequer cópia do acórdão fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em contradição.

5. Este incumprimento dos requisitos formais implica a rejeição imediata do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 672º do CPC.

6. E se assim não fosse, no limite, até se poderia teoricamente considerar existirem fundamentos para o recurso de revista previsto no artigo 671º do CPC ( através do instituto permitido pelo nº 5 do artigo 672 do CPC) – algo que o próprio recorrente aceita tacitamente não existir ao não o invocar nem convocar tal preceito-, mas mesmo isso estaria votado ao insucesso.

7. Tendo o Tribunal da Relação ..., no que tange à parte cível, confirmado a condenação prolatada pelo Tribunal Judicial da Comarca ... em 1ª instância, apenas desconsiderando o valor de 770€, a título de danos patrimoniais, que decidiu não conceder à demandante que aqui responde, confirmando integralmente quanto aos demais mandantes, confirmando a fundamentação, está formada a “dupla conforme”, pois inexistiu qualquer voto de vencido, sendo a fundamentação quanto ao pedido cível essencialmente coincidente, pelo que o recurso não é admissível.

8. O recorrente assume processualmente a posição única de demandado civil, pelo que, nos termos da alínea c) do artigo 401º do CPP, não tem legitimidade para impugnar autonomamente a parte penal do acórdão.

9. Ao contrário do que pretende o recorrente, a causa de pedir, na parte cível, não é o crime mas sim os danos provocados por factos, por uma conduta ou por omissão dela quando a isso estaria obrigado, factos esses que podem integrar vários crimes.

10. Na parte penal, a decisão do Tribunal da Relação ... incide sobre o recurso interposto pelo recorrente do Acórdão do Tribunal Judicial ..., como tal nunca poderia funcionar como 1ª instância. Mais, não tem a recorrente legitimidade para recorrer dessa matéria porquanto não é parte nessa “ação” nem por ela afetado.

11. Havendo uma declaração de culpabilidade proferida pela primeira instância e reiterada por uma instância superior, mesmo que de modos diversos, está suficientemente assegurada a existência de um grau de recurso e preenchida a garantia do art. 32º, nº 1 CRP.

12. Não sendo decisão de 1ª instância, também não se verificam os pressupostos de recorribilidade, dado ter ocorrido extinção do procedimento criminal, por prescrição, não tendo a decisão condenatória de 1ª instância sido superior a 5 anos.

13. Pelo que também, nesta parte, deve o recurso ser rejeitado.

14. O recorrente não tem legitimidade para arguir a nulidade decorrente da não notificação prévia da alteração da qualificação jurídica ao arguido por não ser parte por ela afetada.

15. Diferentemente do que aconteceria com a alteração dos factos, a alteração da qualificação jurídica não tem qualquer implicação na responsabilidade do arguente, decorrendo esta diretamente dos factos e não da sua qualificação. Constituindo esses factos crime com consequências cíveis, é o bastante, independentemente da sua qualificação.

16. Não tendo o arguido AA arguido essa eventual nulidade não pode o demandado vir fazê-lo.

17. O dever de comunicação, constante do nº 1 do artigo 358 do CPP, só existe quando haja uma alteração que, embora não substancial, seja relevante.

Não sendo, não terá de existir comunicação e, consequentemente, não se verificará a nulidade do art. 379º nº 1 alínea b) CPP.

18. É entendimento largamente maioritário na jurisprudência, que se considere que quando o crime pelo que o arguido é condenado, constitui um “minus” relativamente ao crime que constava da acusação ou da pronúncia, a alteração da qualificação jurídica não carece de ser comunicada, nos termos do art. 358º CPP, precisamente por se imputar um crime menos grave.

19. É precisamente o que se passa nos autos, em que os crimes pelos quais o arguido AA vinha pronunciado são mais graves do que aqueles que seria condenado por face da alteração jurídica considerada no douto acórdão.

20. Os elementos constitutivos dos crimes de homicídio negligente e do crime de ofensa à integridade física por omissão são também eles constitutivos dos crimes pelos quais o arguido vinha pronunciado, pelo que o mesmo teve oportunidade de se defender convenientemente sobre tais elementos, não havendo, pois, necessidade de qualquer comunicação.»

5.2. O demandante civil FF aderiu a esta resposta.

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º, do CPP, emitiu douto parecer considerando que:

- «nos termos deste normativo [artigo 400.º, do Código de Processo Penal], conjugado com o disposto no art. 432, no 1, al. b), também do CPP, o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma as condenações da 1a Instância (princípio da dupla conforme condenatória) e as penas parcelares aí aplicadas, uma vez que não são superiores a 8 anos de prisão.»;

- «como realça a assistente na sua resposta ao recurso, o recorrente carece de legitimidade para questionar determinados segmentos da decisão, designadamente para arguir a nulidade decorrente da não comunicação da alteração jurídica dos factos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358, nº 1, do CPP.

Esta norma visa proteger os direitos de defesa do arguido e por isso apenas ele é objecto da comunicação aí prevista.

O demandado apenas tem legitimidade para recorrer das decisões contra si proferidas, como estatui a al. c), do no 1, do art. 401, do CPP.

Mas, por outro lado, ainda que assim não fosse, não se verifica no caso qualquer violação daquele normativo, dado que da alteração da subsunção jurídica dos factos resultou a imputação de um crime menos grave.»

E concluiu:

- «Desta forma, no caso dos autos, a decisão penal do Tribunal da Relação ... é irrecorrível. Assim, o recurso interposto pelo demandado no que concerne à parte penal da decisão deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos arts 399, 400, nº 1, al. f), 401, nº 1, al. c), 420, nº 1, al. b), 414, nºs 2 e 3 e 432, nº 1, al. b), todos do CPP.» e

- «No que respeita ao segmento do recurso que incide sobre a parte cível da decisão, o Ministério Público carece de legitimidade e interesse em agir para se pronunciar sobre o mesmo (art. 401, nºs 1, al. a) e 2, do CPP).»

7. Notificados, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, os sujeitos processuais deste parecer, o demandando/recorrente veio responder nos seguintes termos:

«Pelos motivos apontados em sede de recurso, para onde se remete por economia processual, entende-se que tal conclusão se não mostra justificada e se mostra assente num lapso.

Salvo o devido respeito, tal douto parecer mostra-se erróneo pois não analisa devidamente o recurso interposto, desde logo nos seus aspectos essenciais, entrando em manifesto erro de apreciação.

Na verdade, não pode ser desconsiderado que o recurso apresentado pelo demandado, por força da umbilical relação da condenação cível com a condenação penal, terá necessariamente de versar sobre a parte penal.

E desde logo sobre violações processuais e ofensas a princípios jurídicos, havendo necessariamente matérias comuns e pontos de contacto, pois que aquela (a condenação criminal!) é o fundamento único da condenação cível.

E há que ter em linha de conta a especificidade dos autos, pois que in casu o demandado não era arguido, não havendo assim dupla qualidade processual, pelo que não pode ser prejudicado pelo facto de a outrem, que não ele, ser aplicado uma alteração não substancial ou da qualificação jurídica in melior.

Não há identidade entre arguido e demandado, pois que o alvo da condenação penal seria um mas quem eventualmente teria/terá de pagar a indemnização é outro (melhor, seremos todos nós, enquanto cidadãos e contribuintes!).

Pelo que, caso houvesse tal identidade plena e o demandado fosse também arguido, aí sim, ficaria dispensada a comunicação pois que lhe aproveitaria na parte criminal.

Mas não o sendo, havendo tal diferença específica, não pode haver alteração, seja não substancial dos factos ou da qualificação jurídica, que seja relevante para a matéria cível e sem comunicação aos demandados que não sejam arguidos!

E esta é a pedra de toque da nulidade e da ilegalidade cometida, pois que perante a ausência de prova da acusação/pronúncia como a mesma estava construída, o Tribunal a quo (mal, reafirme-

-se!) acabou por resolver a contenda, alterando a qualificação jurídica dos factos e absolvendo o arguido por alegada prescrição mas sem ouvir ou sequer comunicar o que quer que fosse ao demandado, ora recorrente.

E vê-se o demandado/recorrente condenado, ao abrigo da eventual culpa de um outro arguido, por um crime menos grave mas sem que tenha sido ouvido ou lhe tenha sido comunicada tal alteração, não podendo exercer contraditório ou defesa.

E reafirme-se mais uma vez a relação deveras umbilical entre a conduta penal e a responsabilidade cível, pois que o demandado não é condenado por culpa própria mas sim de um seu ex-funcionário!

E dúvidas inexistiam da pertinência de tal comunicação, pois que, em face de um possível condenação ao abrigo de crime menos grave haveria fundamento para peticionar então a revisão em baixa da indemnização, pois que se a culpa em menor, a indemnização teria de ser revista em baixa.

Ora, o Tribunal a quo nada fez e, injustificadamente, manteve a condenação cível tal qual se mostrava, com excepção do pagamento de uma despesa associada ao cemitério…

Ou seja, perante uma culpa aparentemente menos grave nem por isso tal circunstancialismo se viu reflectido no valor da indemnização, o que se mostra de uma contradição notável!

Já para não falar de ser toda a gente absolvida e a única condenação ser de quem não era nem dono da obra nem face a quem haja uma especial violação e regra de construção ou qualquer outro dever, pois que nunca foi comunicado ao demandado em que é que ele falhou nesta nova visão da qualificação jurídica!

Todos os pedidos cíveis e a acusação/pronúncia se mostravam alicerçados na violação de regras de construção, mas afinal face a isso não houve qualquer condenação penal, pelo que os pedidos de indemnização cível têm de cair pela falência de causa de pedir!

Pelo que se mostra essencial aferir da decisão penal, não na vertente de condenação de algum dos arguidos mas unicamente da justeza da condenação cível.

Basta ver que não se recorre da medida de qualquer pena nem da condenação-crime de algum arguido, pois que ninguém foi sequer condenado!

Não está em causa um recurso penal, mas sim de uma decisão de culpa criminal que foi tida em conta para assacar a responsabilidade cível.

Mas questiona-se: onde foram dados como provados os factos objectivos e subjectivos inerentes

aos homicídios e ofensa à integridade física negligentes por omissão?!

Julga-se assim que está em causa, cristalinamente, um caso de vícios previstos no art. 410º n.º 2 CPP, pois que há erro notório na apreciação da prova, contradição insanável e falta de fundamentação, pois que matéria de facto alterada não permite condenação cível cuja causa de pedir seria culpa assente na violação de regras de construção.

E desde logo e igualmente a insuficiência para a decisão da matéria de facto, pois que ao não ser elencada após tais alterações nem se sabe verdadeiramente que factos foram julgados ou não provados!

Continua o recorrente a defender que a decisão terá de ser toda ela recorrível pois estão em causa vícios substanciais que mancham e inquinam a justiça em geral e é por força deles que houve a condenação em sede cível.

Condenação cível essa totalmente injustificada e não o espelho fiel da não condenação de qualquer dos arguidos pelos crimes pelos quais havia acusação/pronúncia e que tinham servido de causa de pedir aos pedidos cíveis.

O presente processo poder-se-á eventualmente tratar, do que se conhece, de uma das maiores trapalhadas jurídicas de que se tem memória e no qual alguma vez se interveio!

E não se vislumbra que haja justeza numa demissão ajuizativa do mérito decisório, com convocação de argumentos inaplicáveis in casu para o não conhecimento pleno do recurso!

E como defender, como faz o Ministério Público, a não recorribilidade ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do art. 400º CPP?! Mas acaso, a decisão da Relação confirmou a decisão de primeira instância na parte penal?!

É cristalino que não, pois basta ver que o arguido recorrente, então condenado, foi absolvido e teve lugar a uma alteração da qualificação jurídica que não é despicienda, pois que tratou de aplicar um crime menos grave mas a contender com bens jurídicos diversos e de distinta inserção dogmática e sistemática.

Não houve assim qualquer confirmação condenatória em segunda instância, pelo que tal argumento é manifestamente não verdadeiro!

Num outro ponto, o Ministério Público alega a falta de legitimidade do demandado para recorrer,

ao abrigo do art. 401º n.º 1 c) CPP.

Tal é uma falácia e um jogo de palavras não defensável, pois que o demandado foi condenado pela culpa do arguido e não por culpa própria ou específica, pois que não era arguido nem se lhe mostrado a ele assacada qualquer responsabilidade criminal.

E culpa criminal essa assente, dizia a acusação e os pedidos de indemnização cível formulados, na violação/infracção de regras de construção.

Ora, acabou o arguido absolvido de tal crime, aparentemente devia ser condenado pelos crimes de homicídio e ofensas à integridade física negligentes por omissão, mas sem alteração concreta da matéria de facto nem comunicação de tais alterações ao demandado.

Conforme já supra referido, com a imputação de uma culpa menos grave, deveria ter havido revista em baixa das indemnizações, pois que as mesmas terão de ter correspondência à medida da culpa.

E não havendo identidade entre arguido e demandado, não ocupando este também o lugar daquele, não se poderá afirmar que o mesmo não tem interesse em sindicar uma alteração, ainda que da qualificação jurídica, que lhe dirá umbilicalmente respeito e na qual assentará a sua eventual responsabilidade cível.

A relação umbilical é cristalina e ostensiva, e afecta seriamente o demandado, que não é arguido, pois que vê alterados os dados do jogo, que assim ficam viciados.

Houve uma alteração umbilicalmente decidida pelo Tribunal, que desvirtua o fundamento da responsabilidade cível e mesmo assim mantém-se a condenação (que havia assentado antes em fundamento diverso!) sem qualquer comunicação a todas as partes interessadas.

Não sendo o demandado sido notificado da alteração dos fundamentos da sua responsabilidade, terá de ser absolvido, o que se requereu!

A nulidade da não comunicação é a segunda hipótese, para o caso de assim se não entender!

Na visão do Ministério Público e do Tribunal a quo, o demandado não arguido mostrar-se-á inexoravelmente impossibilitado de reagir às violações do princípio do acusatório, da vinculação temática ao objecto do processo e do pedido, tendo de aceitar coercivamente quaisquer alterações de qualificação jurídica e fundamentos de culpa e responsabilidade penal assacada ao arguido e fundamento da sua condenação cível.

Tal visão é manifestamente deturpada e própria de um sistema que não o de um Estado de Direito com respeito pelas regras processuais que assegurem efectiva possibilidade de defesa.

Razões pelas quais se justificaram no mesmo as razões que impunham a recorribilidade, seja pela aplicação do regime processual penal seja cível.

E in casu, repita-se, não está qualquer recorribilidade puramente penal pois não se recorre nem de penas nem de dosimetrias penais, não podendo contudo a decisão ser cindida aos bocados, como se não fosse una e a alegada e ilícita condenação penal, salva pela prescrição, não constituir fundamento da condenação cível…

Apenas num quadro de Direito disforme à lei fundamental é que assim poderá ser, pois a condenação transita toda ela ao mesmo tempo, não sendo alvo de múltiplos e sequenciais trechos decisórios com autonomia plena e imutável.

Basta ver que a previsão do art. 400º n.º 1 f) CPP não se verifica pois não houve qualquer dupla conforme perfeita.

Ademais, não está verificada a previsão legal de quaisquer demais normas a impedir a recorribilidade, que assim terá de ser plena e observar todo o âmbito recursório, sem qualquer demissão ajuizativa que inquine as mais elementares garantias e direitos de defesa do recorrente.

Não se compreenderá que o recurso seja apenas admissível face à parte cível sem atentar na matéria de facto e justeza de tal julgamento na parte criminal pois tal equivalerá a uma decisão de cristalização confirmante dos vícios processuais que inquinam todo o processado!

E atento o teor do art. 4º CPP julga-se que nada obstaculizará a que possa haver lugar à aplicação, mutatis mutandis, do regime cível, maxime vertido no art. 672º n.º 1 a) e b) CPC.

O entendimento vertido pelo Ministério Público no seu douto parecer mostra-se assim violador dos princípios constitucionalmente consagrados!

Mostra-se inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 400º n.º 1 f) CPP ou qualquer outra alínea de tal norma, quando interpretado no sentido de Não é admissível recurso, intentado por demandado cível que não seja arguido, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja decisão que não traduz dupla conforme perfeita, não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida por ter levado a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos, que lhe não foi (a ele, demandado/recorrente!) comunicada, com absolvição do arguido por alegada prescrição de crimes diversos face aos quais o arguido havida sido condenado em primeira instância e que haviam constituído fundamento para a responsabilidade cível que lhe foi (a ele, demandado/recorrente!) assacada.

É disforme à lei fundamental o entendimento e dimensão normativa do art. 400º n.º 1 f) CPP ou qualquer outra alínea de tal norma, quando interpretado no sentido de Não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja recurso intentado por demandado cível que não era arguido face a decisão que não traduz dupla conforme perfeita (não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida, por ter sido levada a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe não foi, a ele demandado, comunicada e com absolvição do arguido por alegada prescrição) e o recurso interposto verse sobre questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito por contender com a necessidade ou não de comunicação aos demandados não arguidos de alteração dos factos ou da qualificação jurídica, génese e fundamento da condenação cível em primeira instância.

Mostra-se inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 400º n.º 1 f) CPP ou qualquer outra alínea de tal norma quando interpretado no sentido de Não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja recurso intentado pelo Estado, demandado cível que não seja arguido, face a decisão que não traduz dupla conforme perfeita (não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida, por ter sido levada a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe não foi, a ele demandado, comunicada e com absolvição do arguido por alegada prescrição) e o recurso interposto verse sobre interesses de particular relevância social, como seja, condenação cível do Estado e responsabilização de todos os contribuintes.

É disforme à lei fundamental o entendimento e dimensão normativa do art. 401º n.º 1 c) CPP quando interpretado no sentido de Não é admissível, por falta de interesse em agir, o recurso intentado por demandado cível que não seja arguido, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja decisão que não traduz dupla conforme perfeita, não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida por ter levado a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos, que lhe não foi (a ele, demandado/recorrente!) comunicada, com absolvição do arguido por alegada prescrição de crimes diversos face aos quais o arguido havida sido condenado em primeira instância e que haviam constituído fundamento para a responsabilidade cível que lhe foi (a ele, demandado/recorrente!) assacada.

Mostra-se inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 400º n.º 1 f) CPP quando interpretado no sentido de Não é admissível, por falta de interesse em agir, o recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja recurso intentado por demandado cível que não seja arguido face a decisão que não traduz dupla conforme perfeita (não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida, por ter sido levada a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe não foi, a ele demandado, comunicada e com absolvição do arguido por alegada prescrição) e o recurso interposto verse sobre questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito por contender com a necessidade ou não de comunicação aos demandados não arguidos de alteração dos factos ou da qualificação jurídica, génese e fundamento da condenação cível em primeira instância.

É disforme à lei fundamental o entendimento e dimensão normativa do art. 401º n.º 1 c) CPP quando interpretado no sentido de Não é admissível, por falta de interesse em agir, o recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, quando em causa esteja recurso intentado pelo Estado, demandado cível que não seja arguido, face a decisão que não traduz dupla conforme perfeita (não havendo assim em rigor confirmação da douta decisão recorrida, por ter sido levada a cabo alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe não foi, a ele demandado, comunicada e com absolvição do arguido por alegada prescrição) e o recurso interposto verse sobre interesses de particular relevância social, como seja, condenação cível do Estado e responsabilização de todos os contribuintes.

O recorrente e o signatário acreditam na sua procedência face a tais questões essenciais (a recorribilidade e revogação da condenação cível, atentos os vícios decisórios, preterições de garantias de defesa, violações legais e ausência de suporte da causa de pedir de tais pedidos de indemnização face à alteração da qualificação jurídica levada a cabo!) pois decisão contrária seria incompreendida por todo e qualquer declaratário normal e a população em geral.

Na verdade, daria uma péssima imagem da justiça se tal sucedesse e houvesse validação de tal flagrante e cristalina incoerência, pois passaria a imagem de valer tudo para uma condenação do Estado (que somos todos nós!), até a preterição de comunicação de alteração de qualificação jurídica e do fundamento da sua responsabilização cível, que deixa de alicerçar na causa de pedir dos pedidos de indemnização cível.

A condenação cível mostra-se alicerçada e com toda uma ligação umbilical à culpa de outrém, que não própria do demandado, havendo assim manifesto interesse na recorribilidade bem como fundamento para a mesma, atenta a preterição das regras processuais e direitos de defesa do demandado.

Todavia, terão V/ Exas. oportunidade de analisar os fundamentos do recurso, convocando demais jurisprudência e legislação para, como sempre, doutamente fazerem Justiça!

Convidam-se, serena e respeitosamente, V/ Exas. a olhar o recurso sob a perspectiva oferecida e apresentada, de forma humilde e sem tentativa de ostentação de verdade suprema, por a única  perspectiva falsa ser a que pretende ser única!

Na verdade, teve-se o cuidado de alicerçar o presente recurso em fundamentos concretos, justificando as opções e soluções apresentadas que nada terão de irrealismo.

De facto, todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do Direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa.

Assim, um olhar global sobre os fundamentos em confronto, tomando por parâmetro o respeito pelos mais elementares princípios jurídicos de um Estado de Direito, justificará, com o devido respeito, a procedência do recurso no tocante a tais aspectos e revogação decisória!

Em sã consciência e obediência aos mais elementares princípios jurídicos, legal e constitucionalmente tutelados, V/ Exas. decidirão…

Em conclusão, entende-se que, pese embora as doutas considerações vertidas na douta decisão recorrida e douto parecer ao qual se responde, que se mostra eivado de um erro de percepção dos fundamentos recursórios, in casu, por as mesmas se não mostrarem conformes à normatividade jurídica aplicável bem como dissidentes face ao plasmado na Lei Fundamental, justifica-se outro tratamento fáctico-jurídico, sendo que não deixarão V/ Exas. de, como sempre, de forma justa fazer funcionar a aplicação do Direito em termos adequados e assim julgarem procedente o presente recurso, fazendo justiça ao ESTADO!»

8. Por despacho da Juíza Relatora, de 11.01.2022, os autos foram remetidos à “formação” de juízes nos termos e para os efeitos de apreciação preliminar sumária do recurso de revista excecional, de acordo com o art. 672.º, do CPC.

8.1. Por acórdão de 09.02.2022, foi decidido rejeitar a revista excecional porquanto:

«II O Recorrente arrima a sua pretensão recursória no disposto no artigo 6722 do CPCivil.

Aquele normativo, prevê no seu nº 1 o seguinte:

«Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no nº 2, 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».

A relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito ocorre, como tem sido afirmado de modo constante e reiterado por esta Formação, quando se trate de questão manifestamente complexa, de difícil resolução, cuja subsunção jurídica imponha um largo debate na doutrina e na jurisprudência com o objectivo de obter um consenso em termos de servir de orientação, quer para as pessoas que possam ter um interesse jurídico ou profissional na resolução de tal questão, a fim de tomarem conhecimento da provável interpretação, que poderão contar, das normas aplicáveis, quer para as instâncias, para uma melhor aplicação do direito, bem como a sua eventual natureza inovadora, em termos de se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar polissemias interpretativas, acautelando-se assim o interesse público na administração da justiça minorando-se uma eventual insegurança decorrente de apreciações divergentes ou mais necessitadas de um aprofundamento jurisprudencial.

Por seu turno, entendem-se como sendo de particular relevância social as questões com repercussão, ou, em limite, alarme, e/ou controvérsia, por conexão com valores socioculturais, inquietantes implicações políticas, que ponham em causa a eficácia do direito ou façam duvidar da sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística, ou em que exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes, cfr entre outros os Ac da Formação de 4 de Abril de 2013 (Relator Sebastião Póvoas), 24 de Setembro de 2014 (Relator Alves Velho) e 13 de Novembro de 2014 (Relator Nuno Carneira), in SASTJ, site do STJ.

De outra banda, tem entendido que a oposição de acórdãos susceptível de permitir o conhecimento da Revista, de harmonia com o disposto no artigo 672º, nº l, alínea c) do CPCivil, pressupõe que a decisão e fundamentos do acórdão - recorrido e fundamento - se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades.

Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação, neste sentido o Ac da Formação de 27 de Janeiro de 2015 (Relator Nuno Carneira), in SAST, site do STJ.

Acrescenta-se no n° 2 daquele mesmo normativo:

«O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:

a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social;

c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.».

Daqui deflui que o Recorrente para além de ter de indicar na sua motivação, especificadamente, os pressupostos onde faz assentar a sua impugnação, tem o ónus de alegar pormenorizadamente as razões pelas quais a questão tem relevância jurídica e/ou social, bem como quais os aspectos de identidade ou de similitude factual entre os casos em confronto, caso a sua fundamentação recaia sobre uma oposição de Acórdãos.

Na espécie, verificamos que a alegação é completamente omissa no que tange a este ónus de suscitação, o que determina a rejeição do recurso.

Note-se que o Recorrente alega as razões da sua discordância com a decisão impugnada, quer em termos factuais, quer em termos da subsunção jurídico normativa efectuada, o que, embora possa reflectir um desacordo, essa circunstância não é bastante para fazer desencadear a possibilidade de interposição recursória excepcional prevenida no artigo 672º do CPCivil.»

8.2. Inconformado, o recorrente veio arguir a nulidade da decisão; e por acórdão de 24.03.2022 foi decidido indeferir a reclamação apresentada porquanto:

«O Reclamante imputa ao Acórdão o vício da nulidade, com os fundamentos aludidos nas alíneas c) e d) do artigo 615º, nº 1 do CPCivil, isto é, aquele é nulo porque:

«c) Os fundamentos estão estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixou [deixe] de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».

A decisão plasmada no Acórdão reclamado é clara, precisa e concisa, tendo abordado de forma específica e concreta os pressupostos genéricos aventados pelo Recorrente na sua impugnação, tendo sido analisada a problemática envolvente, não se verificando, pois, qualquer vício que lhe tolde a eficácia e validade, claudicando a sua pretensão anulatória.

Ademais, nem sequer se verifica, como alvitra o Recorrente, qualquer violação do normativo inserto no artigo 3º do CPCivil, por prevaricação do princípio do contraditório, com a omissão do cumprimento do preceituado no artigo 655º, nº1 do mesmo diploma, quando não foi ordenada a audição do Recorrente quanto à eventual possibilidade de não conhecimento do objecto do recurso interposto.

Aquela audição, em tema de Revista excepcional não tem lugar.

A explicação para tal procedimento radica na circunstância de a própria situação de dupla conformidade decisória obstaculizar a acessibilidade recursória, a qual só é possível nas situações excepcionais aludidas no n.º 1 do artigo 672º do CPCivil, cabendo neste caso uma apreciação preliminar sumária, primeiramente por parte do Relator a quem o processo foi distribuído para aferir da dupla conformidade e dos demais requisitos gerais impugnatórios e, verificados esses, o que implica necessariamente a asserção de que há uma susceptibilidade de interposição da Revista, impõe-se de seguida uma pronuncia da da Formação nos termos do disposto no nº3 do artigo 672º, em sede de apreciação daqueles pressupostos: há a possibilidade de interposição de recurso de Revista, excepcional portanto, cujo conhecimento efectivo ficará dependente da verificação dos respectivos pressupostos.

O processo só é remetido à Formação quando o concurso dos requisitos de admissibilidade da revista nos termos gerais e do da dupla conformidade se tiver consolidado, o que aconteceu no caso sujeito, nada mais havendo a determinar.

Subsequentemente, a Formação apenas se pronunciou, como se lhe impunha, sobre a motivação atinente à excepcionalidade invocada, em matéria cível, única em causa e para a qual tem competência expressamente conferida pela Lei.

No que concerne ao recurso em matéria penal, tal será objecto de apreciação na sede própria, como não poderá deixar de ser, nem nunca esteve em causa, não obstante as dúvidas que o Recorrente parece tecer no arrazoado reivindicativo ora apresentado, contudo, sem qualquer razão nesse particular.»

8.3. O acórdão relativo à revista excecional transitou em julgado a 07.04.2022 (cf. certidão junta, ref. ...37).

9. Colhidos os vistos, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

1. O acórdão do Tribunal da Relação ..., de 16.06.2021, é insuscetível de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, não estando este Supremo Tribunal vinculado à anterior decisão que admitiu o recurso (cf. art. 414.º, n.º 3, do CPP).

O recorrente é muito claro logo no introito do requerimento de recurso apresentado afirmando que recorre da parte penal e da parte civil. E fundamenta o recurso de uma e outra parte em diferentes dispositivos.

Quanto à parte penal, fundamenta o recurso com base no disposto em várias normas do Código de Processo Penal — «“ESTADO PORTUGUÊS”/“INSTITUTO PORTUÁRIO E DOS TRANSPORTES MARÍTIMOS, IP”, recorrente nos presentes autos e neles melhor identificado, tendo sido notificado do douto acórdão recorrido, ad cautelam, e não obstante ter previamente invocado a respectiva nulidade para acautelar qualquer entendimento divergente, vem, mui respeitosamente, apresentar recurso, na vertente penal, nos termos e para os efeitos dos arts. 399º, 401º n.º 1 c), 406º n.º 1, 407º nºs 1 e 2 a), 408º n.º 1 a), 410º nºs 1, 2 e 3 e 432º n.º 1 b) do Código de Processo Penal (doravante CPP brevitatis causa)». (negrito nosso)

Quanto à parte civil, fundamenta o recurso com base no disposto no art. 672.º, do CPC — “ESTADO PORTUGUÊS”/“INSTITUTO PORTUÁRIO E DOS TRANSPORTES MARÍTIMOS, IP”, recorrente nos presentes autos e neles melhor identificado, tendo sido notificado do douto acórdão recorrido, ad cautelam, e não obstante ter previamente invocado a respectiva nulidade para acautelar qualquer entendimento divergente, vem, mui respeitosamente, apresentar recurso, na vertente penal, (...), e cível (no limite, de revista excepcional, nos termos do art. 672º CPC pois sendo o recorrente demandado serão aplicáveis in casu as regras do processo civil!)» (negritos nossos).

Assim, tendo por base a interposição do recurso apresentado, vejamos.

No que respeita à parte penal, o “demandado não tem legitimidade para recorrer da parte criminal da sentença enquanto condenatória ou absolutória”[1], pelo que o recurso deve ser rejeitado. Na verdade, nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. c), do CPP, as partes civis podem recorrer, sendo que a sua legitimidade está restringida à matéria civil da decisão. E assim tem que ser, dado que apenas os ofendidos, constituídos assistentes, têm legitimidade para recorrer parte penal da decisão [cf. art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP], o que não é o caso do recorrente[2].

As partes civis, enquanto “sujeitos da acção cível que adere ao processo penal e que como acção cível permanece até ao fim”, conservando “para todos os efeitos, a sua especificidade de verdadeira acção civil” [3], têm legitimidade para recorrer da decisão que seja proferida contra elas, ou seja, a decisão referente à matéria civil[4].

Mas, ainda que assim não fosse, e raciocinando a partir da eventual possibilidade de as partes civis poderem recorrer da parte penal da decisão, o certo é que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da parte penal não é admissível.

Na verdade, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, apenas se admitem os recursos das decisões do Tribunal da Relação cuja irrecorribilidade não seja estabelecida no art. 400.º, do CPP.

Ora, nos termos deste dispositivo, as decisões absolutórias do Tribunal da Relação ou aquelas que apliquem pena de prisão inferior a 5 anos de prisão são irrecorríveis. (art. 400.º, n.º 1, d), do CPP).

No presente caso, o arguido, em 1.ª instância, foi condenado numa pena de prisão inferior a 5 anos, e em sede de recurso viu o procedimento criminal extinto por prescrição.

É certo que, no presente caso, verificando-se que o Tribunal da Relação conheceu do objeto do processo, tendo procedido a uma análise da matéria factual e a uma análise da sua qualificação jurídica, e tendo mesmo concluído que os factos deveriam ser qualificados como integrando um crime de homicídio por negligência (nos termos do art. 137.º, n.º 1, do CP) e um crime de ofensa à integridade física por negligência (nos termos do art. 148.º, n.º 1, do CP), não nos parece que possamos concluir que não conheceu do objeto do processo, pese embora tenha decidido pela prescrição do procedimento criminal[5].

Todavia, nos casos em que haja absolvição e a pena de prisão aplicada seja inferior a 5 anos, também a decisão não é recorrível — art. 400.º, n.º 1, al. d), do CPP. Ora, não tendo o arguido sido condenado por ter ocorrido a extinção do procedimento criminal, dever-se-á considerar que se aplicam as mesmas regras que vigoram para as situações em que tenha sido absolvido. Na verdade, “parece não haver razões de tomo que impeçam a adopção de um conceito mais abrangente, aliás, de acordo com o sentido etimológico de absolvição, quando confrontado, por exemplo, com situações de prescrição, amnistia ou caso julgado, ou seja, na terminologia de alguns tratadistas franceses, “aquittement” para os primeiros casos, e a “absolution” para o restante, de todo o modo, sempre, na aceitação da tradicional ideia de que “absolver” é libertar alguém de um vínculo ou de uma sujeição ou ligação a um processo”[6].

Sendo assim, não só a decisão seria irrecorrível caso o Tribunal da Relação tivesse simplesmente analisado a problemática inerente à prescrição do procedimento criminal, como é irrecorrível tendo sido o arguido libertado do processo penal por prescrição do procedimento criminal, como, além disso, a decisão seria também irrecorrível caso tivesse ocorrido uma confirmação da condenação, embora com uma qualificação distinta dos factos. Isto porque sempre o arguido seria condenado em pena de prisão inferior a 5 anos —  dado que, mesmo que condenado em concurso de crimes pelo crime de homicídio negligente e pelo crime de violação da integridade física negligente, sabendo que num caso o limite máximo da pena de prisão é de 3 anos (cf. art. 137.º, n.º 1, do CP) e no outro é de 1 ano, e sabendo que, de acordo com as regras estabelecidas no art. 77.º, n.º 1, do CP, o limite máximo da pena aplicável em sede de concurso de crimes seria de 4 anos (3+1), nunca a pena a aplicar poderia ser superior a 5 anos de prisão; e caso se tivesse optado pela aplicação da pena de multa (dado que a pena de multa é alternativa em ambos os tipos legais de crime referidos) também a decisão não seria recorrível, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.

Mas não pode deixar de se referir um outro aspeto. Suponhamos que se admitia o recurso na sua totalidade reconhecendo-se, por exemplo, a existência dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, como pretende o recorrente. Tal teria como consequência a invalidade do acórdão recorrido, e com isso a invalidade da decisão que considerou o procedimento criminal prescrito, e o processo seria reenviado ao Tribunal da Relação para nova decisão. E suponhamos ainda que os arguidos acabavam condenados nos crimes por que foram acusados e até com as mesmas penas aplicadas no Tribunal de 1.ª instância. Qual seria a constitucionalidade desta decisão perante a anterior decisão do Tribunal da Relação que, sendo irrecorrível para o Ministério Público [e também para os arguidos por falta de legitimidade, nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP] transitou em julgado?

O Recorrente não se pode esquecer que as regras dos recursos ordinários relativas à parte penal se aplicam aos arguidos e ao Ministério Público; e, perante essas regras, o Ministério Público não pôde recorrer ainda que, por absurdo, tivesse considerado que, por exemplo, todos os argumentos agora apresentados pelo recorrente seriam argumentos válidos de modo que os arguidos deveriam ter sido condenados, ou ainda que tivesse considerado que a decisão padecia dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Ainda que assim tivesse entendido a decisão transitou em julgado não sendo passível de recurso. Pelo que, qualquer pretensão do demandado em modificar aquela decisão penal falece por inteiro. Uma vez transitada em julgado por inadmissibilidade do recurso a decisão é imodificável. E, perante o regime de recursos consagrado no nosso sistema jurídico, a decisão penal é irrecorrível para este Supremo Tribunal de Justiça. 

Por tudo o exposto, o acórdão é irrecorrível nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, als. d) e c), ambos do CPP.

2. No que respeita à parte civil, o demandado interpôs o recurso somente ao abrigo do disposto no art. 672.º, do Código de Processo Civil (CPC) — “e cível (no limite, de revista excepcional, nos termos do art. 672º CPC pois sendo o recorrente demandado serão aplicáveis in casu as regras do processo civil!)”

Tendo em conta os acórdãos de 09.02.2022 e 24.03.2022 prolatados pela “formação” constituída ao abrigo do art. 672.º, n.º 3, do CPC, que rejeitou a revista excecional e tendo transitado em julgado, fica prejudica o conhecimento desta matéria.

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em não conhecer o objeto do recurso interposto pelo demandado civil Estado Português/Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos.

Custas pelo recorrente, com 5 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de maio de 2021

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

António Gama

Eduardo Loureiro

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[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., Lisboa: UCP, 2011,  art. 401/ n. 12, p. 1055.
[2] No sentido de que a possibilidade de recurso das decisões não é idêntica para todos os sujeitos processuais, cf. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 222: “é constitucionalmente admissível. Não havendo qualquer violação do princípio da igualdade, que a matéria dos recursos seja regulada de maneira diferente em relação ao arguido, por comparação com o assistente e o ministério público, designadamente quando a recorribilidade das decisões seja mais ampla relativamente ao primeiro” (cf. Acs. do TC n.ºs 132/92, 153/2012 e 540/2012).”
Deve ainda referir-se que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a admissibilidade de recurso do assistente de decisão do Tribunal da relação que tenha absolvido o arguido: “Julgar inconstitucional a norma dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.” (ac. n.º 540/2012, Relatora: Cons. Maria João Antunes).
[3] Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal- O novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina, 1989, p. 15.
[4] Também assim, Simas Santos/ Leal-Henriques, Recursos Penais, 9-.ª ed-., Lisboa: Rei dos Livros, 2020, p. 59 — “as partes civis vêem assim consagrado o direito de impugnar o segmento das decisões contra si proferidas, que é, como se sabe, a matéria respeitante à indemnização civil” (cf. jurisprudencia aqui citada).
[5] No sentido de que a decisão que declara extinto o procedimento criminal por prescrição constitui uma decisão cujo recurso não é admissível por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., art. 400/ nm. 4, p. 1043, embora consideremos que a hipótese aqui referida é distinta da dos presentes autos; cf. também acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.10.2021, Proc. n.º 161/16.7T9AVD.P1.S1, disponível aqui:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f443f5cb5051bead8025876e0035e309?OpenDocument
[6] Pereira Madeira, Código de Processo Penal – comentado, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, art. 400.º, nota 5, p. 1228-9.