Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
600/06.5TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 15-01-2013
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
COMPRA E VENDA
RELAÇÃO JURÍDICA COMPLEXA
INCUMPRIMENTO
CONTRATO DE ADESÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / NÃO CUMPRIMENTO (IMPUTÁVEL AO DEVEDOR) / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS - CONTRATOS DE ADESÃO.
Doutrina: - Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil”, Anotado, IV, p. 86.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, p. 536.
- Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Incumprimento das Obrigações, pp. 168/169:
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª edição, p.75.
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Colecção Teses, pág.745; in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, p. 964.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, p. 223 e segs,
- Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3ª edição.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 342.º, N.º1, 352.º, 354.º, N.º2, 355.º, 356.º, 357.º, 358.º, N.º1, 360.º, 361.º, 405.º, NºS 1 E 2, N.°1, 799º, Nº1, 874.º.
DL N.º 446/85, DE 25-10, REGIME JURÍDICO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, E, NA REDACÇÃO DO DL. 249/99, DE 7-7: - ARTIGO 1.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 23.05.2005, NÚMERO CONVENCIONAL TTRP00038086, IN WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 7.1.93, IN BMJ, 423-539;
-DE 21.9.93, IN CJSTJ, 1993, III, 19;
-DE 28.11.96, IN CJSTJ, 1996, 3, 117;
-DE 4.6.2009, PROC. N.º 257/09.1YFLSB, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I. O contrato de compra e venda de café, celebrado entre um vendedor e um comerciante dono de um estabelecimento de café, em regime de exclusividade, obrigando o comprador a consumos obrigatórios de determinadas quantidades de café, durante um certo período de tempo, mediante a contrapartida da disponibilidade de bens destinados do vendedor ao comprador durante o período de vigência do contrato, sendo estabelecida sanção para o incumprimento, exprime a existência de um contrato misto, complexo, avultando e prevalecendo a celebração de um contrato de fornecimento; nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.6.2009, Proc. 257/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt. “Estamos, pois, perante um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, finalmente, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador.”

II. Só existe incumprimento definitivo pelo devedor quando, por motivos que não lhe são imputáveis, a prestação não pode por si ser realizada em termos de aproveitar ao interesse do credor; tal impossibilidade deve ser objectiva, absoluta, definitiva e total.

III. Para que se considere a existência de um contrato de adesão não é bastante que algumas cláusulas sejam pré-ordenadas unilateralmente pelo proponente; importa que o núcleo essencial modelador do regime jurídico contratualmente acordado constitua um bloco que o aderente aceita ou repudia, sem qualquer possibilidade de negociação.

IV. A proibição do venire contra factum proprium, uma das modalidades do abuso do direito, ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi isento de desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

V. Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito formalmente exercido, se pretendem actuar, mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado que a ética negocial reprova, porque incompatível com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito que colidem com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural.

VI. Não tendo o credor condescendido com a inexecução do contrato, antes tendo alertado o devedor para esse facto, não pode este invocar abuso do direito de resolução por não ter sido violada qualquer sua expectativa tutelável induzida pelo credor no sentido que lhe era indiferente tal violação, por não sido traída confiança incutida na perspectiva de complacência com o continuado incumprimento do contrato.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


             AA, S.A., instaurou, em 15.9.2006, pelas Varas Mistas da Comarca de Guimarães, com distribuição à 1ª Vara – acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

 BB, e CC.

Pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de € 21 272,12, sendo € 21 056,66 de capital em dívida e € 215,46 de juros vencidos à taxa supletiva de 9,83%, desde 28.07.2006 até 04.09.2006, acrescida de juros de mora vincendos, alegando, para tanto e em síntese:

- Autora e RR. celebraram, em 19.05.2003, o contrato nº … – doc. de fls.71 a 73;

- o Réu BB obrigou-se a não publicitar outras marcas de café e descafeinado, e a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento, o café B..., Lote Premium, da Autora;

- na mesma cláusula I, mas no nº3 e Quadro Inicial do contrato, o Réu BB obrigou-se, ainda, a consumir o mínimo mensal de 47 kg daquele café;

- na cláusula V, 1º, a) e Quadro Inicial do contrato, estipulou-se uma duração de 60 meses;

- como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora entregou ao Réu, a título de comparticipação publicitária, a quantia de 10.000,00 € + IVA, na altura a 19%, no total de  € 11.900,00;

- nos termos da cláusula III, 1º do anexo intitulado “Comparticipação Publicitária” e quadro inicial do contrato, a Autora entregou, ainda, ao Réu uma máquina de café Cimbali M29 Basic com escalda chávenas 3 grupos, no valor de 4.077,35 € + IVA, na altura a 19%, no total de 4.852,05 €, e um moinho de café Cimbali Special, no valor de 743,89 € + IVA, na altura a 19%, no total de 885,23 €, perfazendo o montante de 5.737,28 €;

- nos termos da cláusula III, do 1º do anexo intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento” e Quadro Inicial do contrato, na cláusula 2º do anexo intitulado “Comparticipação Publicitária”, estabeleceu-se que, resolvido ou extinto o contrato, por qualquer razão, antes do termo do seu período inicial, o Réu restituiria à Autora a comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses;

- na cláusula 3º do anexo sob o mesmo título e quadro inicial do contrato, estabeleceu-se que a violação das obrigações das cláusulas I - 1º e 3º, faria incorrer o Réu na obrigação de indemnizar a Autora no montante de 3,50 € por cada quilo de café não adquirido, até ao termo do contrato;

 - na cláusula 4º do anexo intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento”, estabeleceu-se que, rescindido ou extinto o contrato, sem cumprimento perfeito e integral do Réu, este obrigava-se a indemnizar a Autora pelo valor da máquina e moinho de café supra mencionados, ficando este equipamento a pertencer ao Réu;

- a Ré CC constituiu-se fiadora e principal pagadora à Autora dos montantes em dívida, pelo Réu, resultantes do contrato;

- tendo-se o Réu obrigado a consumir a quantia mensal mínima de 47 kg. (quilogramas) do estipulado lote de café, teria nestes 24 meses do contrato de ter consumido 1 128 kg, o que não aconteceu ao longo deste período contratual;

- por escrito, em 08.07.2004, a Autora advertiu o Réu para o facto de não estar a consumir a quantidade de café contratada e interpelou-o para a necessidade de passar a fazê-lo;

- no contrato ficou prevista a possibilidade da sua prorrogação, caso até ao termo do prazo, o Réu não conseguisse consumir a quantidade de café contratada – cfr. Cláusula V, 1º, alínea c);

- na cláusula 4ª do Anexo do contrato, intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento”, está estipulado que face à resolução do contrato, incorria o Réu na obrigação de indemnizar a Autora pelo valor da máquina e do moinho de café, equipamentos que ficaram a pertencer-lhe a partir de Junho de 2005, quando faltavam 36 meses para o termo dos 60 meses do contrato consumira 483 kg dos 2.820 kg contratados;

- o Réu deixou de consumir e publicitar o café B... da Autora e não mais retomou o seu consumo ou o publicitou;

- a Autora, enviou carta, em 13.02.2006, ao Réu AA, resolvendo o contrato, exigindo a restituição da quantia de € 7.139,88, referente à comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período decorrido (€ 11.900,00:60 = € 198,33x36 meses = € 7.139,88);

- exigiu-lhe, também, o pagamento da quantia de € 8.179,50, referente a € 3,50 por cada quilo de café não adquirido até ao termo do contrato (2.820 kg - 483 kg = 2.337 kg x € 3,50 = €  8.179,50);

- e exigiu ao Réu, ainda, o pagamento da quantia de € 5.737,28, referente à máquina e moinho de café supra referidos;

- por carta de 17.08.2006, a Autora exigiu à Ré CC o pagamento da quantia de € 21.056,66, no prazo de dez dias;

- por carta datada de 26 de Setembro de 2005, a Autora deu conta ao 1º Réu que “o estabelecimento, Café M..., não se encontra a consumir café B...”, solicitando que informasse a Autora qual a atitude que pretendia tomar em face do contrato assinado;

- no dia 2 de Novembro de 2005, o 1º Réu respondeu à missiva endereçada pela Autora, dando-lhe, novamente, conta do sucedido;

- foi o Réu que, findo o contrato que mantinha com a marca de café P..., solicitou a presença do Sr. DD, chefe de vendas da Autora, manifestando vontade de negociar um contrato de exclusividade com a Autora;

- após negociação, nomeadamente da quantidade de café a consumir, do consumo mensal, do prazo contratual, do lote de café, das contrapartidas a conceder pela Autora e das consequências do incumprimento, Autora e Réu chegaram a acordo, de que resultou a celebração do contrato dos autos.

Contestando, os RR. vieram dizer que a fiança é indeterminável, pois que a 2.ª Ré desconhece se a prestou a favor da Autora se do 1.º Réu, sendo, portanto, nula e esclareceu que, no dia 1 de Janeiro de 2002, o 1º Réu e EE e mulher celebraram um contrato que denominaram como contrato de locação de estabelecimento, mediante o qual, contra o pagamento da retribuição mensal de € 1346, 75, estes cederam ao 1º Réu a exploração de um estabelecimento comercial de café e snack-bar designado “Café M...”, instalado na fracção A, correspondente à loja n.º1, no rés-do-chão, constituído por uma ampla divisão e dois sanitários, do prédio urbano situado no Lugar de M..., da freguesia de P....

Tal contrato foi feito pelo prazo de um ano, com início nessa data, e renovável por iguais períodos, se não fosse denunciado.

 Em 15.01.2004, a Câmara Municipal de Guimarães, informou o Réu que “uma vez que não foram efectuadas as alterações indicadas na vistoria efectuada em 10.03.2003 esse estabelecimento não cumpre a legislação actualmente em vigor…Assim sendo, informa-se que a Câmara considera este processo encerrado e logo que terminar o prazo concedido para se adaptar à legislação em vigor, a Câmara Municipal procederá ao respectivo encerramento desse estabelecimento, sem conceder qualquer novo prazo para se efectuar as alterações necessárias.”.

Após as obras o filho de EE, passou a explorar o Café, até hoje.

Concluem afirmando que, se o 1.º Réu incumpriu o contrato, tal facto ficou a dever-se, única e exclusivamente, à conduta de EE, pelo que requereu a intervenção principal provocada deste e mulher FF.

Termina, pedindo que seja admitido o referido incidente, e a citação dos mesmos.

A Autora respondeu e não deduziu oposição ao incidente de intervenção.

Por despacho de fls. 222 foi admitido o incidente deduzido pelos RR.

Os chamados, impugnando, contestaram a versão dos factos alegada pelos RR. e dizendo que não se deveu às obras efectuadas no local, o facto de o 1.º Réu, não consumir a totalidade de café que havia contratado com a Autora, mas antes às dificuldades financeiras que este atravessava, já que não cumpria outros compromissos com fornecedores, como bancos e outras entidades.

Termina pedindo a sua absolvição.


***

A final, foi sentenciado:

Nos termos expostos julgo a acção totalmente procedente e, em consequência condeno os RR. BB e CC, a pagarem à Autora AA, S.A. a quantia de € 21 272,12, (vinte e um mil duzentos e setenta e dois euros e doze cêntimos), sendo € 21 056,66 de capital em dívida e € 215,46 de juros vencidos à taxa supletiva de 9,83%, desde 28.07.2006 até 04.09.2006, acrescida de juros de mora vincendos desde 04.09.2006 e até efectivo e integral pagamento e, ainda, absolvo os chamados EE e mulher FF, do pedido.”


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Inconformados, os Réus recorreram para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 19.6.2012 – fls. 708 a 720 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.


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De novo inconformados, os RR. recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça,  e alegando, formularam as seguintes conclusões:

1ª. Mal andou o Tribunal a quo em ter julgado totalmente improcedente o anterior recurso, desconsiderando, dessa forma, a confissão judicial escrita dos chamados EE e Mulher, mais tendo feito, salvo o devido respeito, uma errada subsunção dos factos ao direito.

2ª. Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça em sede de recurso de Revista, prendem-se exclusivamente com a apreciação da matéria de direito, salvo se tiver ocorrido ofensa de uma disposição expressa da lei que exigir certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

3ª. Nos presentes autos, não foi observado o princípio legal da força probatória da confissão judicial escrita.

4ª. Valorando a confissão dos chamados e aqui recorridos EE e FF, patente nos artigos 20º, 21° e 22° da contestação que apresentaram, resulta que o recorrente não teve qualquer possibilidade de proceder ao levantamento dos bens que possuía, nomeadamente a máquina e moinho de café, uma vez que estes bens estavam e estão na posse dos sobreditos EE e FF.

5ª. Nestes termos mal andou o Tribunal recorrido em não alterar a resposta aos artigos 19°, o qual deveria ter sido dado como provado.

6ª. Ademais a prova produzida sempre seria suficiente para provar os factos extintivos do direito invocado pela Recorrida AA.

7ª. Em primeiro lugar e por força da confissão escrita dos recorridos EE e FF patente nos artigos 20°, 21° e 22° da contestação que apresentaram, apura-se desde logo a impossibilidade do recorrente em entregar a máquina e moinho de café, uma vez que estes bens estavam e estão na posse dos sobreditos EE e FF.

8ª. Por outro lado, resulta inequívoco da matéria apurada nos autos que o 1º Recorrente não cumpriu o remanescente do contrato por motivo que não lhe é imputável, pelo que nos termos do artigo 790º, n°1, do Código Civil, a obrigação se tinha como extinta, uma vez que o não cumprimento por parte dos Recorrente, apenas se pode imputar única e exclusivamente ao recorrido senhorio EE, que impossibilitou o recorrente de vender o café que se comprometeu.

9ª. Na verdade, resulta suficientemente apurada a impossibilidade de o recorrente cumprir o contrato com a Autora AA S.A. por força da conduta do recorrido senhorio EE uma vez que este concedeu ao seu filho o direito de exploração do estabelecimento comercial (cfr. resposta ao quesito 18°), direito incompatível com o direito do recorrente de explorar o referido.

10º. Ainda que não se entenda que a obrigação do recorrente para com a Autora AA S.A. se extinguiu por força do artigo 790°, nº1, do Código Civil nos termos vindos de demonstrar, sempre restaria apurado nos autos que a impossibilidade de cumprimento do contrato pelo recorrente se deu por força da conduta culposa dos senhorios recorridos, pelo que, deveriam ter sido estes condenados no pagamento à Autora AA das quantias se que se mostrarem devidas nestes autos.

11ª. Tal solução resulta desde logo da provada a conduta do recorrido senhorio EE uma vez que este concedeu ao seu filho o direito de exploração do estabelecimento comercial (cfr. resposta ao quesito 18°), direito incompatível com o direito do recorrente de explorar o referido, pelo que se dão aqui por reproduzidas para este efeito as conclusões extraídas sob o n.°20º e 21°.

12º. Em sede contestação à petição inicial, os ora recorrentes procederam, desde logo, ao chamamento dos ora recorridos e senhorios EE e FF, peticionando a condenação destes no pagamento das quantias em que eventualmente fossem condenados nos autos, isto porque, como se demonstrou, foi exclusivamente por força da conduta culposa destes que o recorrente incumpriu as obrigações para com a AA S.A.

13ª. Deverá, então, o presente recurso ser totalmente procedente nesta matéria, condenando-se os recorridos e senhorios EE e FF, no pagamento à Autora AA S.A. das quantias que eventualmente se mostrem apuradas nos autos.

14ª. A douta sentença proferida em primeira instância, confirmada pelo acórdão recorrido, considerou que o teor do contrato celebrado entre a Recorrida e o 1° Recorrente não se encontra sob a alçada do DL. n.°446/85, de 22 de Outubro, entendimento que não se pode sufragar se efectuada uma devida análise do contrato em causa nos autos e da prática contratual subjacente conforme supra se demonstrou na motivação do recurso.

15ª. Nessa medida, tem-se como nulas e portanto excluídas do contrato o ponto 2° da cláusula V do contrato, que estabelece o direito à resolução do contrato por incumprimento das obrigações estipuladas na cláusula 1, pontos 1° e 3°, por violação do art. 18° al. f) do DL. n.°446/85, de 25 de Outubro.

 16ª. Por outro lado, também o ponto 3° da cláusula V é nulo e como tal excluído do contrato, por violação do art. 18° al. c) do DL. n.°446/8 5, de 25 de Outubro.

17ª. De igual maleita padece a cláusula 4° do contrato inserta na subsecção Comodato e Aquisição do Equipamento a qual se tem como nula e excluída do contrato por força do disposto no artigo 8° alínea a) e b), 15° e 19° alínea c), todos do Decreto-Lei n.°446/85, de 25 de Outubro.

18ª. Quanto a esta última, ainda que se entenda que não deverá ser excluída do contrato, sempre deverá ser operada a redução da mesma nos termos do artigo 14° do Decreto-Lei n.°446/85, de 25 de Outubro, de modo a que seja atribuído ao recorrente e aos recorridos EE e FF a possibilidade de restituir à recorrida AA S.A. a máquina de café Cimbali M29 Basic e o moinho de café Cimbali Special, não sendo, assim, devida qualquer indemnização pecuniária.

19ª. Nestes autos, a Autora AA S.A. peticionou a condenação dos recorrentes, no pagamento da quantia total de € 21.056,66, acrescida de juros legais de mora vencidos e vincendos corresponde à soma de diversas quantias, designadamente:

- € 7.139,88, relativa à comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido (€ 11.900,00: 60 = € 198,33x36 meses = € 7.139,88),

- € 8.179,50 referente a uma indemnização de €3,50 por cada quilo de café não adquirido (2.820 kg-483 kg = 2.337 kg x € 3,50 = € 8.179,50)

- € 5.737,28 correspondente ao valor dos bens não restituídos, designadamente a máquina de café Cimbali M29 Basic e do moinho de café Cimbali Special.

20ª. O recorrente entende que nunca seriam devidas as quantias de € 8.179,50, referente a uma indemnização de € 3,50 por cada quilo de café não adquirido e € 5.73 7,28 correspondente ao valor dos bens não restituídos, designadamente a máquina de café Cimbali M29 Basic e do moinho de café Cimbali Special.

21ª. Nos termos do contrato, o Recorrente comprometeu-se a consumir a quantidade mensal mínima de 47 kg de café.

No entanto, nos presentes autos deu-se como provado o quesito 20º da base instrutória no qual se perguntava: “O 1° Réu consumiu em média cerca de 20,5 kg (491 kg/24 meses e não 483 kg como alegado na p. i.) mensais da quantidade de café sem que a Autora tenha, desde Maio de 2003 até Maio de 2005, manifestado o propósito de resolver o contrato.”

22ª. Ora, resulta assim que o 1° Réu consumiu em média, cerca de 20,5 kg mensais da quantidade de café, ou seja, desde o início do contrato, o Réu jamais adquiriu as quantidades mínimas a que se obrigou com a Autora, sem que esta tenha, desde Maio de 2003 até Maio de 2005, manifestado o propósito de resolver o contrato.

23ª. Deste modo, a indemnização articulada pela Autora a este título é manifestamente excessiva face aos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito da Autora, o que consubstancia abuso de direito da Autora e recorrida AA S.A., nos termos do artigo 334° do Código Civil.

24º. Na verdade, atente-se que, resolvido o contrato, por qualquer motivo, à Autora AA S.A. cabe sempre a devolução esta da quantia relativa à comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, bem como a devolução dos bens que confiou ao recorrente a título de comodato, designadamente a máquina de café Cimbali M29 Basic e do moinho de café Cimbali Special, sendo que, face à sua não restituição lhe cabe, a título indemnizatório, o montante € 5.737,28, restituição destas quantias que corresponde ao desígnio legal plasmado no artigo 795°, n°1, do Código Civil que estipula que um dos efeitos da resolução do contrato consiste na restituição, ou seja, cada uma das partes terá de restituir à outra o que tenha em seu poder enquanto vigorou o contrato.

25ª. No entanto, tal desígnio legal já não se verifica quanto à peticionada indemnização de € 8.179,50, referente a € 3,50 por cada quilo de café não adquirido, uma vez que durante a execução do contrato, a Autora AA S.A. beneficiou das quantias de café que o recorrente foi adquirindo, bem como da publicidade exclusiva que o Recorrente lhe fez, não havendo assim que lhe ser concedida qualquer indemnização por força do não consumo de determinados quilos de café, tanto mais que, como se disse, a Autora nunca reclamou desse incumprimento durante a vigência do contrato.

26ª. Assim, além de tal indemnização ser indevida por força da nulidade da cláusula geral que a prevê conforme supra alegado em 4.1, é esta também peticionada em manifesto abuso de direito como se veio de demonstrar.

27ª. Por último, urge ainda dizer que a indemnização peticionada pela Autora, respeitante à máquina de café e moinho não tem razão de ser, tendo em conta que, como se disse um dos efeitos da resolução do contrato consiste na restituição, cada uma das partes terá de restituir à outra o que tenha em seu poder enquanto vigorou o contrato.

28ª. Ora, o 1° Recorrente apenas não devolveu quer a máquina de café, quer o moinho, uma vez que se encontrava impossibilitado de aceder às instalações do café que explorava, impossibilidade essa que, como aqui já se referiu, é consequência da atitude do senhorio FF.

29ª. A decisão em crise, violou ou fez errada aplicação do disposto nos artigos 567° n.°1 do Código de Processo Civil, dos artigos 280º, n.°1, 334°, 355º, 358°, 359º, 562°, 790º n.°1 e 795 n.°1 todos do Código Civil e, ainda, dos artigos 8º alíneas a) e b), 14°, 15°, 18º alíneas c) e f) e 19º alínea e) do Decreto-Lei n.°446/85, de 25 de Outubro, não podendo, por isso manter-se.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente.

Os Chamados contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.


***

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou, por remissão para a sentença, considerado os seguintes factos:

1. Autora e RR. celebraram, em 19-05-2003, o contrato n° … – doc. de fls.71 a 73. (A).

2. O Réu BB obrigou-se a não publicitar outras marcas de café e descafeinado, e a consumir em exclusivo no seu estabelecimento, o café B..., Lote Premium, da Autora. (B).

3. Na mesma cláusula 1, mas no n° 3°, e Quadro Inicial do contrato, o Réu BB obrigou-se, ainda, a consumir o mínimo mensal de 47 kg daquele café. (C).

4. Na cláusula V, 1, a) e quadro inicial do contrato, estipulou-se uma duração de 60 meses. (D).

5. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora entregou ao Réu, a título de comparticipação publicitária, a quantia de 10.000,00 € + IVA, na altura a 19%, no total de 11.900,00 €, nos termos da cláusula III, 1° do anexo intitulado “Comparticipação Publicitária” e quadro inicial do contrato. (E).

6. A Autora entregou, ainda, ao Réu, uma máquina de café Cimbali M29 Basic com escalda chávenas três grupos, no valor de 4.077,35 € + IVA, na altura a 19%, no total de € 4.852,05, e um moinho de café Cimbali Special, no valor de 743,89 € + IVA, na altura a 19%, no total de 885,23 €, perfazendo o montante de 5.737,28 €, nos termos da cláusula III, do 1° do anexo intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento” e quadro inicial do contrato. (F).

7. Na cláusula 2° do anexo intitulado “Comparticipação Publicitária”, estabeleceu-se que, resolvido ou extinto o contrato, por qualquer razão antes do termo do seu período inicial, o Réu restituiria à Autora a comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses. (G).

8. Na cláusula 3° do anexo sob o mesmo título e quadro inicial do contrato, estabeleceu-se que a violação das obrigações das cláusulas 1-1° e 3°, faria incorrer o Réu na obrigação de indemnizar a Autora no montante de 3,50 € por cada quilo de café não adquirido, até ao termo do contrato. (H).

9. Na cláusula 4° do anexo intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento”, estabeleceu-se que, rescindido ou extinto o contrato, sem cumprimento perfeito e integral do R., este obrigava-se a indemnizar a Autora pelo valor da máquina e moinho de café supra mencionados, ficando este equipamento a pertencer ao Réu. (I).

10. A Ré CC constituiu-se fiadora e principal pagadora à Autora dos montantes em dívida, pelo Réu, resultantes do contrato. (J).

11. A Autora, enviou carta em 13.02.2006 ao Réu AA, resolvendo o contrato e exigindo a restituição da quantia de 7.139,88 €, referente à comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período decorrido (11.900,00 €:60 = 198,33 € x 36 meses = 7.139,88€). (L).

12. (...) exigiu-lhe, também, o pagamento da quantia de 8.179,50 €, referente a 3,50 € por cada quilo de café não adquirido até ao termo do contrato (2.820 kg-483 kg = 2.337 kg x 3,50€ 8.179,50 €). (M).

13. (...) exigiu ao Réu, ainda, o pagamento da quantia de € 5.737,28 referente à máquina e moinho de café supra referidos. (N).

14. Por carta de 17.08.2006, a Autora exigiu à Ré CC o pagamento da quantia de € 21.056,66, no prazo de dez dias. (O).

15. Por carta datada de 26 de Setembro de 2005, a Autora deu conta ao 1º Réu que “o estabelecimento, Café M..., não se encontra a consumir café B...”, solicitando que informasse a Autora qual a atitude que pretendia tomar em face do contrato assinado. (P).

16. No dia 2 de Novembro de 2005, o 1° Réu respondeu à missiva endereçada pela Autora dando-lhe, novamente, conta do sucedido. (Q).

17. Por carta datada de 17 de Agosto de 2006 a Autora reclamou da 2ª Ré o pagamento de € 21.056,66, decorrente do “incumprimento” do contrato junto aos autos. (R).

18. No dia 30 de Agosto de 2006 os RR. responderam àquela missiva, explicando, novamente, tudo o que se passou com o seu estabelecimento comercial. (S).

19. Tendo-se o Réu obrigado a consumir a quantia mensal mínima de 47 kg. (quilogramas) do estipulado lote de café teria, nestes 24 meses do contrato, de ter consumido 1128 kg. (T).

20. O que não aconteceu ao longo deste período contratual. (U).

21. Por escrito, em 08.07.2004 a Autora advertiu o Réu para o facto de não estar a consumir a quantidade de café contratada e interpelou-o para a necessidade de passar a fazê-lo. (V).

22. No contrato ficou prevista a possibilidade da sua prorrogação, caso até ao termo do prazo o Réu não conseguisse consumir a quantidade de café contratada — cfr. Cláusula V, 1, alínea c). (X).

23. Na cláusula 4ª do Anexo do contrato, intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento”, está estipulado que face à resolução do contrato, incorreu o Réu na obrigação de indemnizar a Autora pelo valor da máquina e do moinho de café, equipamentos que ficaram a pertencer-lhe. (Y).

24. A partir de Junho de 2005, quando faltavam 36 meses para o termo dos 60 meses do contrato e consumira 483 kg dos 2.820 kg contratados, o Réu deixou de consumir e publicitar o café B... da Autora e não mais retomou o seu consumo ou o publicitou. (1.º).

25. No dia 1 de Janeiro de 2002 o 1º Réu e EE e mulher celebraram um contrato que denominaram como contrato de locação de estabelecimento, mediante o qual, contra o pagamento da retribuição mensal de € 1346, 75, estes cederam ao 1º Réu a exploração de um estabelecimento comercial de café e snack-bar designado “Café M...”, instalado na fracção A, correspondente à loja n°1, no rés-do-chão, constituído por uma ampla divisão e dois sanitários, do prédio urbano situado no Lugar de M..., da freguesia de P.... (2.°).

26. Tal contrato foi feito pelo prazo de um ano, com início nessa data, e renovável por iguais períodos, se não fosse denunciado. (3.°).

27. Em 15.01.2004, a Câmara Municipal de Guimarães, informou o Réu que “uma vez que não foram efectuadas as alterações indicadas na vistoria efectuada em 10-03-2003 esse estabelecimento não cumpre a legislação actualmente em vigor...Assim sendo, informa-se que a Câmara considera este processo encerrado e logo que terminar o prazo concedido para se adaptar à legislação em vigor, a Câmara Municipal procederá ao respectivo encerramento desse estabelecimento, sem conceder qualquer novo prazo para se efectuar as alterações necessárias.”. (5.°).

28. Após as obras o filho de EE, encontra-se a explorar o café, até hoje. (18.°).

29. O 1° Réu consumiu em média, cerca de 20,5 kg mensais da quantidade de café, sem que a Autora tenha, desde Maio de 2003 até Maio de 2005, manifestado o propósito de resolver o contrato. (20.°).

30. O referido em V) também foi feito por intermédio do vendedor. (21.º).

31. Foi o Réu que, findo o contrato que mantinha com a marca de café P..., solicitou a presença do Sr. DD, chefe de vendas da Autora, manifestando vontade de negociar um contrato de exclusividade com a Autora. (23.°).

32. Após negociação, nomeadamente da quantidade de café a consumir, do consumo mensal, do prazo contratual, do lote de café, das contrapartidas a conceder pela Autora e das consequências do incumprimento, Autora e Réu chegaram a acordo, do que resultou a celebração do contrato dos autos. (24.°).

33. Encontra-se a decorrer termos no processo n°.9/07.3TCGMR da 1ª Vara Mista de Guimarães. (25.°).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o Acórdão recorrido não atendeu à alegada confissão feita nos articulados pelos chamados EE e mulher – no incidente de intervenção principal provocada –, requerido pelos Réus;

             - se a impossibilidade de  restituição à Autora de objectos que lhe foram entregues na execução do contrato se deveu a circunstância a si não imputável, mas aos intervenientes;          

- se o contrato em causa é um contrato de adesão, sujeito ao regime legal das cláusulas contratuais gerais (ccg), sendo ilegais as cláusulas que o recorrente indica (conclusões 14ª a 18ª);

- se a Autora incorre em conduta abusiva do direito, tendo resolvido o contrato por incumprimento do Réu, por não ter consumido as quantidades de café a que obrigou.

            Vejamos:

            Entre a Autora e o 1ª Réu foi celebrado um contrato, em 19.5.2003, através do qual o Réu acordou comprar-lhe, ao longo de 60 meses, a quantia mínima mensal de 47 kg de café e a não publicitar outra marca senão a da Autora - “B...” - tendo esta, em contrapartida, entregue ao Réu uma máquina de café Cimbali M29 Basic com escalda chávenas 3 grupos, no valor de € 4.077,35 + IVA, na altura a 19%, no total de € 4.852,05, e uma máquina de café Cimbali Special, no valor de € 743,89 + IVA, na altura a 19%, no total de € 885,23, perfazendo o montante de € 5.737,28, nos termos do denominado contrato de “Comodato e Aquisição de Equipamento”.

Foi ainda acordado, no intitulado “Comparticipação Publicitária”, que, extinto o contrato por qualquer razão antes do termo do seu período inicial, o Réu restituiria à Autora a comparticipação publicitária deduzida do montante proporcional ao período decorrido contado em meses.

Estabeleceu-se, também, que a violação das obrigações das cláusulas 1-1° e 3°, faria incorrer o Réu na obrigação de indemnizar a Autora no montante de € 3,50 € por cada quilo de café não adquirido, até ao termo do contrato. Na cláusula 4º do anexo intitulado “Comodato e Aquisição de Equipamento”, foi ainda acordado que, rescindido ou extinto o contrato sem cumprimento perfeito e integral pelo Réu AA, teria ele que indemnizar a Autora pelo valor da máquina e moinho de café que lhe foram entregues, ficando este equipamento a pertencer ao Réu.

A relação jurídico-contratual estabelecida entre a Autora e o 1º Réu, com o nomem juris atribuído pelos contraentes - “Comodato e Aquisição de Equipamento” e “Comparticipação Publicitária” - foi celebrada ao abrigo do princípio da liberdade contratual – art. 405º, nºs 1 e 2, do Código Civil – exprime, no essencial, um contrato de compra e venda – art. 874º daquele diploma – através do qual a Autora venderia ao Réu, durante o prazo de cinco anos, uma determinada quantidade de café, comprometendo-se o comprador a, no seu estabelecimento, consumir, em exclusivo, a marca “B...” de café da Autora, tendo esta, como contrapartida, além de receber o pagamento do preço/kg do café vendido, entregue ao Réu  uma máquina de café Cimbali M29 Basic com escalda-chávenas 3 grupos, no valor de 4.077,35 € + IVA, aquilo a que as partes apodaram de “Contrato de Comodato e Aquisição de Equipamento”; como a Autora entregou ao Réu a quantia de € 10 000, 00 mais IVA, nessa vertente as partes apelidaram esse contrato de “Comparticipação Publicitária”.

Num caso de contornos muito semelhantes, mormente, quanto à estipulação negocial, pronunciou-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.6.2009, Proc. 257/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt. de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa:

“ […Importa, ora, caracterizar aquilo que é designado por contrato de fornecimento, que, grosso modo, é o acto ou o efeito de fornecer alguma coisa. Daí que, em sentido não jurídico, se possa qualificá-lo como todo aquele que tenha por objecto essa coisa ou um serviço.

Essa designação também tem sido atribuída aos contratos geradores de obrigações duradouras em que o âmbito das prestações de cada uma das partes dependa do consumo efectivo de uma delas.

Mas o contrato que visa directamente a transmissão do direito de propriedade sobre essa coisa ou a prestação de algum serviço há-de traduzir-se em contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, conforme os casos, ainda que se trate de contratos de execução continuada ou emparelhada, com a sua especificidade de não homogeneidade quantitativa de prestações.

O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.

No caso vertente, estamos perante declarações negociais que envolvem, por um lado, a promessa por parte da recorrente, no confronto do recorrido, de lhe vender, durante 60 meses, café da marca que explora, e do último, em relação à primeira, de àquela só o comprar em determinada quantidade mínima mensal.

E, por outro, a promessa do recorrido no confronto do recorrente de lhe publicitar a marca do café em elementos materiais afectos aos seus estabelecimentos, mediante o pagamento imediato de determinada quantia, e a colocação pela última nos estabelecimentos do primeiro de uma máquina e de um moinho de café para o seu uso gratuito.

A partir do referido contrato, ao longo do tempo, a recorrente e o recorrido celebraram vários contratos de compra e venda de café, ele na posição de comprador, e ela na qualidade de vendedora.

Estamos, pois, perante um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, finalmente, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador (artigos 2º, 13º e 463º, nº 1, do Código Comercial, 410º, nº 1, 874º, 1129º e 1154º do Código Civil).

No que concerne às obrigações decorrentes do referido contrato, releva essencialmente a que derivou para o recorrido, de adquirir mensalmente à recorrente 120 quilogramas de café, durante cinco anos, sob pena de dever indemnizá-la, por referência ao montante de 700$ por cada quilo de café não adquirido até ao termo do contrato.

Neste ponto, de comum acordo, ambas as partes convencionaram o montante da indemnização exigível, portanto à margem do apuramento do resultado do dano real, ou seja, o que se traduz naquilo que a lei designa por cláusula penal (artigo 812º, nº 1, do Código Civil) […].

 

A Autora, considerando que durante o período de vigência do contrato, o 1º Réu deixou de comprar mensalmente as quantidades de café acordadas, resolveu-o pedindo a condenação no pagamento das sanções pecuniárias previstas para o caso de resolução por incumprimento do comprador.

O 1º Réu, invocando a existência de um litígio com o senhorio e dono das instalações onde se encontra sedeado o “Café M...”, ao abrigo de um contrato de concessão da exploração, o impediu de utilizar as instalações e de poder comprar as quantidades de café acordadas com a Autora, requereu a intervenção principal provocada deste e da mulher, visando a prova da impossibilidade de cumprimento do contrato, na perspectiva das consequências da resolução decretada pela Autora, ou seja, que pelo facto de não ter acesso às instalações onde funcionava o estabelecimento, não poder de lá retirar a máquina de café Cimbali M29 Basi e o moinho de café Cimbali especial que lhe foram entregues.

 Adiante veremos que do contrato não constava a obrigação de restituição à Autora de tais equipamentos, mas sim que ficariam propriedade do Réu, tendo ele que indemnizar a Autora pelo respectivo valor.

Mas, voltando ao alegado pelo recorrente, como causa de impossibilidade de cumprimento do contrato.

Sustenta o Réu que o Acórdão recorrido não teve em consideração a confissão feita pelos intervenientes, nos arts. 20º a 22º do seu articulado, o que levou a Relação a manter a resposta ao quesito 19º.

Sustentam, os recorrentes, que os intervenientes ao alegarem o que consta daqueles artigos, afirmam a impossibilidade do recorrente em recuperar a máquina e moinho de café, uma vez que os chamados estão na posse desses bens, e ainda que resulta dessa alegação que o recorrente não cumpriu o remanescente do contrato por motivo que não lhe é imputável, artigo 790°, n°1, do Código Civil, pelo que a obrigação se deverá ter como extinta, uma vez que o não cumprimento por parte do recorrente apenas se pode imputar, única e exclusivamente ao recorrido senhorio EE, que impossibilitou o recorrente de vender a quantidade de café a que se comprometeu, uma vez que este concedeu ao seu filho o direito de explorar o estabelecimento comercial (cfr. resposta ao quesito 18°), direito esse incompatível com o direito do recorrente de explorar o referido estabelecimento.

Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”. – art. 352º do Código Civil.

A lei define duas modalidades da confissão, que pode ser expressa ou tácita, e a sua importância como meio de prova, estatuindo que não releva quanto a direitos indisponíveis – nº2 do art.354º, assinalando que pode ser judicial e extrajudicial – art. 355º - espontânea, se feita nos articulados, ou judicial quando  provocada através do depoimento de parte – art. 356º do Código Civil.

Deve ser inequívoca salvo se a lei o dispensar – art. 357º do Código Civil e faz prova plena contra o confitente – art. 358º,nº1º.

 A confissão é indivisível – art. 360º do citado diploma.

O reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão, vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal – art. 361º.

 A confissão é, pois, o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária – art. 352º do Código Civil.

“A confissão nos articulados consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo Réu, na contestação, ou em o réu reconhecer, na tréplica, factos afirmados pelo autor na réplica” - Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, IV, pág. 86.

Relevante como indicativo da declaração confessória é que o sujeito processual tenha consciência de que o facto desfavorável que alega é real e evidencia a revelação de um facto que, sendo-lhe desfavorável, favorece a parte contrária.

Vejamos o que o interveniente alegou na contestação do incidente, oferecida a fls. 245 a 248.

 Situando a sua defesa no contexto da acção que moveu ao aqui Réu, enquanto seu arrendatário do imóvel onde funciona o estabelecimento de “Café M...” – documento de fls. 63 a 65 – denominado “Contrato de Locação de Estabelecimento”, datado de 1.1.2002, onde pede a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, os Chamados cedentes, nos arts. 20º a 22º, do seu articulado, alegaram:

“Os Chamados desde a primeira hora que desconfiavam das intenções pouco sérias do Réu marido, uma vez que o mesmo para não pagar os montantes anteriores, dos quais passou cheques sem cobertura, abandonou no local vários bens e mercadorias…sendo que os ora Chamados, numa primeira fase guardaram os seus bens e numa fase posterior, vendo que o Réu marido, não as vinha recolher e não as guardava, e que as mesmas em consequência de tal abandono se poderiam estragar e deteriorar precederam ao seu armazenamento e…o locado apenas ficou livre de pessoas e bens uma vez retirados e guardados todos os bens pelos ora Chamados uma vez que o Réu marido, como já devia valores em renda não mais compareceu com receio de se ver na obrigação de pagar o que devia”. (destaque nosso)

Sendo a confissão indivisível, isto é, não podendo decompor-se para que a parte que dela se pretenda prevalecer apenas aproveite o que lhe é favorável afirmado pela parte contrária, importa, desde logo, evidenciar que os chamados afirmam que o Réu abandonou o local, e que, numa primeira fase, guardaram os bens para evitar que se deteriorassem, e depois, porque o Réu não mais aparecera, os retiraram do local.

Antes de tudo, mesmo que as afirmações referidas pudessem exprimir confissão de factos desfavoráveis ao chamado, importaria que ela fosse inequívoca (só o não devendo ser quando a lei o dispensar, o que no caso não sucede).

Importa relembrar que o Recorrente pretende afirmar que estes factos alegados pelos chamados foram decisivos para o incumprimento do contrato celebrado com a Autora, na vertente da impossibilidade de comprar para vender no seu Café a quantidade a que se obrigou mensalmente e, depois, que aqueles bens que lhe foram entregues (máquina e moinho de café), ficaram retidos pelos chamados.

Não se pode considerar que a actuação dos chamados possa considerar-se causa, inultrapassável pelo Recorrente, de cumprir o contrato com a Autora, nos termos do art. 790º, nº1, do Código Civil. – “A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”.  

 

Adoptando o critério proposto por Menezes Leitão, in  “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 223 e segs, consideramos o não cumprimento “Como a não realização da prestação devida, por causa imputável ao devedor, sem que se verifique qualquer causa de extinção da obrigação”. Assim, ficam excluídas as causas de incumprimento que não podem ser atribuíveis a conduta do devedor, v.g impossibilidade objectiva da prestação que constitui causa de extinção – art. 790º, nº1, do Código Civil – “a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”. 

                Como ensina Brandão Proença, in “Lições de Cumprimento e Incumprimento das Obrigações”, págs. 168/169:

 “Podemos afirmar sem erro que o legislador adoptou como padrão da impossibilidade com efeito exoneratório a impossibilidade objectiva, absoluta, definitiva e total. A impossibilidade diz-se objectiva sempre que o devedor esteja impedido de cumprir por razões que não dizem respeito à sua pessoa (por ex., o empreiteiro não pode entregar a obra dado que |eu esta ruiu por razões de força maior). Este impedimento é, em é, em si mesmo, uma barreira objectiva) inultrapassável pelo devedor ou por qualquer outra pessoa que o possa substituir (por ex., o bem precioso a entregar pereceu ou a adega onde se encontrava o vinho de uma colheita especial a engarrafar ficou completamente destruída).

 A impossibilidade objectiva é, assim e em regra, uma impossibilidade absoluta na medida em que o impedimento é um obstáculo inultrapassável (“cui resist non potest”) mesmo com esforços suplementar. Por outras palavras, mesmo que o devedor estivesse disposto a sacrifícios enormes não poderia cumprir. Nem ele, nem qualquer outra pessoa. A impossibilidade é total quando recai sobre toda a prestação ou sobre o conjunto das prestações cumulativas ou alternativas. A impossibilidade diz-se definitiva quando não for possível o seu cumprimento, por razões físicas ou pela circunstância de não interessar ao credor a sua recepção tardia. Uma impossibilidade com as características que ficaram traçadas não pode desencadear, nos contratos unilaterais e bilaterais, e como veremos melhor mais à frente, um duplo efeito forçoso, ou seja, extintivo (para a obrigação assumida) e exoneratório (para o devedor).”

O recorrente liga a alegação de incumprimento definitivo da sua prestação à actuação do chamado EE, concedente da exploração do estabelecimento comercial de café, sustentando que, por culpa deste, lhe foi impossível honrar o contrato celebrado com a Autora.

O recorrente relaciona, ainda, esta questão do incumprimento, com a confissão que considera que os chamados fizeram na contestação do incidente da intervenção principal provocada, e a não alteração da resposta ao quesito 19º[1] (por si pedida no recurso de apelação).

Aquele quesito tem a seguinte redacção: “O 1º Réu não teve qualquer possibilidade de proceder ao levantamento dos bens que possuía, nomeadamente a máquina e moinho de café?”

 Mereceu a resposta - “Não provado”.

Implicita, que devendo este Tribunal considerar confessados factos que comprovam a sua impossibilidade de cumprimento do contrato, deveria ser modificada a resposta àquele quesito, assim se alterando o julgamento da matéria de facto pela Relação.

Tal pretensão é inviável, desde logo, por não haver confissão dos factos e, depois, mesmo que tivesse havido, o Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de revista, só nos casos excepcionais dos arts. 722º, nº2 e 729º, nº2, do Código de Processo Civil, tem competência para modificar a matéria de facto, casos excepcionais que não ocorrem in casu, por não estar em causa a violação de normas de direito probatório material.

Concluímos, assim, que não houve confissão dos chamados e também que o recorrente não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia – art. 799º, nº1, do Código Civil – já que não provou que o incumprimento do contrato se ficou a dever a uma causa estranha à sua vontade.

Sustenta o Réu que o contrato que celebrou com a Autora/recorrida é um contrato de adesão, estando sujeito ao regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (ccg).

O contrato em relação ao qual apenas se tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo que é proposto dentro do tipo contratual desejado pelas partes, exprime a estipulação de contrato de adesão.

 Contrato de adesão – “Aquele em que um dos contraentes, não tendo a menor participação na preparação das respec­tivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado” - Antunes Va­rela, “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, 262.

Contrato de adesão – “É aquele em que uma das partes, normalmente uma empresa de apreciável dimensão, formula unilate­ralmente as cláusulas negociadas (no comum dos casos, fazendo-as constar de um impresso ou formulário) e a outra parte aceita essas condições, mediante a adesão ao modelo ou impresso que lhes é apresentado, não sendo possível modi­ficar o ordenamento negocial apresen­tado.” – Mota Pinto, “Teoria Geral de Direito Civil”, 3ª edição.

Tais contratos contêm por via de regra -  “Cláusulas  preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo que venham a ser celebrados nos moldes próprios dos chamados contratos de adesão” – Galvão Telles, “Direito das Obrigações”- 6ª edição, 75.

O art.1.º do DL. 446/85, de 25.10, instituiu o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, e, na redacção do DL. 249/99, de 7.7, estatui:

1 - As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.

2 - O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.

3 - O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.”.

 

Para que se considere a existência de um contrato de adesão não é bastante que algumas cláusulas sejam pré-ordenadas, unilateralmente pelo proponente; importa que o núcleo essencial modelador do regime jurídico contratualmente acordado, constitua um bloco que o aderente aceita ou repudia, sem qualquer possibilidade de negociação.

O recorrente deveria ter alegado e provado que as cláusulas inseridas no contrato sub judice foram previamente e exclusivamente elaboradas pela Autora (que seria a proponente) e, como destinatário, (aderente) não pôde influenciar no seu conteúdo.

De modo algum fez tal prova que lhe competia – art. 342º, nº1, do Código Civil.

Assim, não se tratando de um contrato de adesão, não tendo o Réu feito prova da ausência de negociação individual do clausulado e, nem sequer alegando violação do dever de informação por parte da Autora, não pode pretender que as cláusulas a que alude nas conclusões 15ª a 18ª das conclusões das alegações, encerrem violação do regime das ccg.

Finalmente, sustenta o recorrente que a Autora/recorrida actua abusando do direito de resolução do contrato, face ao fundamento invocado – não aquisição da quantidade café acordada como mensalmente obrigatória.

Aduz que, “…nos termos do contrato o Recorrente comprometeu-se a consumir a quantidade mensal mínima de 47 kg (quilogramas). No entanto, deu-se como provado quesito 20° da base instrutória no qual se perguntava: “O 1º Réu consumiu em média cerca de 20,5 kg (491 kg/24 meses e não 483 kg como alegado na p.i) mensais da quantidade de café sem que a Autora tenha, desde Maio de 2003 até Maio de 2005, manifestado o propósito de resolver o contrato’’. 

Ora, continua o recorrente – fls. 740 verso - resulta assim que o 1º Réu consumiu em média, cerca de 20,5 kg mensais da quantidade de café, ou seja, desde o início do  contrato, o Réu jamais adquiriu as quantidades mínimas a que se obrigou com a Autora, sem que esta tenha, desde Maio de 2003 até Maio de 2005, manifestado o propósito de resolver o contrato.

Tal facto criou desde logo uma legítima expectativa no Recorrente de ser indiferente para a Autora que ele consumisse as quantidades contratualizadas ou quantidades inferiores, perante a atitude da Autora que não fez qualquer reparo ou reclamação. Deste modo, a indemnização articulada pela Autor a este título é manifestamente excessiva face aos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito da Autor, o que consubstancia abuso de direito da Autora e recorrida AA S.A, nos do artigo 334° do Código Civil.”

Nesse sentido, citou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.2005 (sob o número convencional TTRP00038086, in www.dgsi.pt).

 

Vejamos.

Dispõe o art. 334º do Código Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

 O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa específica situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

 “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé. – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, 3, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

 Uma das vertentes em que se exprime tal actuação manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou –  “venire contra factum proprium”.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objec­tiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.

Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536.

 Para que pudesse considerar-se abusivo esse exercício, importaria, “in casu”, demonstrar factos, através dos quais se pudesse, considerar-se que a Autora teria excedido, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido; ou que com a sua pretensão violava expectativas incutidas na Ré.

            O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.

É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido”, em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.


 Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.

            No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória –  “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

O abuso do direito –  “como válvula de escape” – só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.

 Como escreve Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745:

 “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium –  é, porém, contrariado pelo segundo.”

In casu”, para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, será necessário saber se a conduta do pretenso abusante – aqui a Autora – foi no sentido de criar, razoavelmente, no Réu uma expectativa factual, sólida, de poder confiar na manutenção do “status quo” que exprimia incumprimento pontual do contrato.

                A conduta da Autora, para ser integradora do “venire” teria, objectivamente, de trair o “investimento de confiança” feito pelo Réu, importando que os factos demonstrassem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, uma clara injustiça.
 Como, lapidarmente, ensina Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
 “ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
     2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
     3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
    4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”

O Acórdão citado pelo recorrente foi relatado pelo aqui Relator, ao tempo Desembargador no Tribunal da Relação do Porto, em recurso em que se discutia um contrato de conteúdo semelhante ao que apreciamos.

Eis o sumário:

“ I - Actua com abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, a empresa que contratou fornecer café, em exclusivo a um restaurante, ao resolver o contrato alegando incumprimento, se desde o início do acordo negocial, e por cerca de três anos não reage ao facto de o consumidor não adquirir a quantidade mínima de café a que se vinculara, o que foi sempre do seu conhecimento.

II - O facto de ter havido tolerância para com o incumprimento é decisivo, para enquadrar a conduta abusiva pois, se tal passividade da Ré fosse esporádica não teria relevo, mas perdurando pelo tempo que perdurou, e dada a natureza do contrato, quando a Autora o resolveu, agiu, contraditoriamente, com a sua conduta inicial, passando a considerar infractor aquilo que antes não considerara, podendo considerar, assim traindo a expectativa da Ré de que tal actuação não seria considerada pela Autora como violadora do contrato”.

Não enjeitando os fundamentos da decisão do referido Acórdão, importa afirmar que o quadro factual aí tido em causa e aquele que emerge da factualidade sub judice não são sobreponíveis. No caso do Acórdão citado pelo recorrente, durante toda a vigência do contrato a vendedora nada objectou ao facto do comprador não ter adquirido as quantidades de café a que se obrigara.

No caso de onde o recurso dimana, a realidade dos factos é diversa não sendo de molde a incutir no Réu complacência com o não cumprimento do contrato, em termos de confiança e observância da regra da boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil –, entendida esta como comportamento leal, correcto, sólido e factualmente esperado, tendo em conta a pregressa execução do contrato e o padrão de actuação da parte aparentemente lesada.

A proibição do venire contra factum proprium, uma das modalidades do abuso do direito, ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural.

Ora, no caso, o contrato foi celebrado pelas partes, em 19.5.2003, para valer pelo prazo de cinco anos, obrigando-se o recorrente, além do mais, a consumir o mínimo mensal de 47 kg do café que a Autora venderia. O contrato foi resolvido pela Autora, em 13.2.2006, com o fundamento de não ter o recorrente adquirido a quantidade de café contratualizada.

Mas o recorrente não pode afirmar que a resolução com o fundamento invocado foi para si uma surpresa e que a Autora compactuou com o incumprimento ao longo da vigência do contrato.

Com efeito, a Autora, por escrito em 8.07.2004, advertiu o Réu para o facto de não estar a consumir a quantidade de café contratada e interpelou-o para a necessidade de passar a fazê-lo. Em 6 de Setembro de 2005, a Autora deu conta ao 1º Réu que o estabelecimento, “Café M...”, não se encontrava a consumir café “B...”, solicitando que fosse  informada sobre a atitude que o Réu pretendia tomar em face do contrato assinado.

Independentemente dos motivos que o Réu tivesse para não comprar as quantidades de café, o certo é que, um ano e dois meses após o início de vigência do contrato, a Autora deu conta ao recorrente de não estar a cumprir o contrato, reiterando essa advertência em 26.9.2005, só vindo a resolver o contrato em 13.2.2006.

Não tinha o recorrente qualquer expectativa de que a Autora transigia com o continuado incumprimento do contrato (ante, diríamos, os dois alertas que lhe fez) mas, não obstante isso, o Réu persistiu numa situação de incumprimento, não sendo pois expectável que a Autora não resolvesse o contrato.

Assim sendo, não tendo a Autora condescendido com a inexecução do contrato – que tem cariz continuado, inerente à modalidade de contrato de fornecimento – não pode o Réu invocar actuação abusiva do direito por não ter sido violada qualquer sua expectativa tutelável induzida pela Autora.

Em suma, a resolução do contrato não evidencia por parte da Autora violação, sequer clamorosa do direito do Réu, por não ter violado qualquer confiança que lhe tivesse sido incutida, na perspectiva de complacência com o continuado incumprimento do contrato.

Muito embora a fiadora Ilídia tenha interposto recurso do Acórdão da Relação e alegado conjuntamente com o Réu, o certo é que nas conclusões das alegações nenhuma censura se faz ao Acórdão, no que à sua condenação respeita.

 Todavia, mantendo-se a condenação do Réu, por ela afiançado, nenhum fundamento existe para a eximir da sua condenação como fiadora.

Pelo quanto dissemos o recurso soçobra.

Decisão.

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

     

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Janeiro de 2013

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale
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[1] O recorrente pretendeu ainda a alteração das respostas aos quesitos 11º e 12º, que têm, respectivamente, a seguinte redacção: “Acontece que o EE, em Julho do mesmo ano, mudou as fechaduras do locado, sem dar conhecimento ao 1º Réu e impedindo, por conseguinte, o acesso deste ao mesmo?”.
 “O 1º Réu contactou então o aludido EE, dizendo-lhe que a situação não poderia manter-se, ao que este respondeu que só consentiria em que o 1º Réu regressasse ao locado, caso este lhe entregasse a quantia de € 25.000,00 condição que punha para manter o contrato?”. Mereceram, ambos, a resposta “não provado”, não tendo a Relação modificado tais respostas no sentido propugnado pelo recorrente que pretendia respostas afirmativas.