Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1714
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PAGAMENTO
ALEGAÇÕES
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: SJ20080624017146
Data do Acordão: 06/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

I – É materialmente competente o tribunal comum para conhecer do pedido de condenação do Município de Lisboa no pagamento do preço de um contrato de compra e venda de mobiliário, fornecido por um particular ao Município de Lisboa, sendo tal aquisição efectuada através do procedimento pré-contratual administrativo regulado pelo dec-lei 55/95, de 29 de Março .
II – A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento .
III – A invocação da prescrição presuntiva supõe o reconhecimento de que a dívida existiu, sendo que a tal o devedor contrapõe que essa dívida se acha extinta pelo pagamento, que a lei presume .
IV - Para pode beneficiar da invocada prescrição presuntiva, o réu terá de afirmar, claramente, que o pagamento reclamado já foi efectivamente realizado .
V – Essa afirmação não pode considerar-se implícita na simples invocação da prescrição presuntiva .
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :



Em 15-2-06, AA-Mobiliário, S.A., instaurou a presente acção ordinária contra o Município de Lisboa, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 16.534,03 euros, acrescida de 20.480,10 euros, de juros de mora de vencidos, e nos vincendos sobre aquela quantia, até efectivo pagamento .
Alegou que, no exercício da sua actividade vendeu ao réu diverso material de escritório, no valor de 16.534,03 euros, o qual deveria ter sido pago no prazo de um mês após as datas da emissão das facturas .
Apesar de ter enviado ao réu as respectivas facturas, que este recebeu, o certo é que o mesmo nunca as pagou .
O réu contestou, arguindo a incompetência material do tribunal e a prescrição presuntiva da dívida.
Houve réplica .

Foi proferido saneador sentença que, julgando o tribunal materialmente competente e improcedente a excepção da prescrição presuntiva, condenou o réu a pagar à autora a quantia de 16.534,03 euros, acrescida de juros de mora .


Apelou o réu, mas a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 29-11-07, negou provimento à apelação e confirmou a decisão recorrida .


Continuando inconformado, o réu pede revista, onde conclui :
1 – O litígio objecto dos presentes autos reporta-se ao pagamento da facturas emitidas na sequência do fornecimento de bens móveis pela ora recorrida, com base num contrato de fornecimento, precedido de um procedimento por negociação sem publicação prévia de anúncio, previsto e regulado, entre outros, nos artigos 32, nº1, al. c) e 92 do dec-lei nº 55/95, de 29 de Março .
2 – O dec-lei 55/95 é um diploma de direito público, cujas disposições, que regulam os tipos pré-contratuais nele previstos, são normas de direito público .
3 – Os contratos celebrados pelo ora recorrente estão, por força da alínea d) do art. 2º, do dec-lei 55/95, de 29 de Março, obrigatoriamente sujeitos aos procedimentos pré-contratuais nele previstos .
4 – Estando em causa prestações assacadas ao ora recorrente, no âmbito do contrato ( pagamentos ), a questão sub judice tem inequivocamente a ver com a respectiva execução .
5 – A circunstância de as relações jurídicas estabelecidas entre as partes serem de direito privado e de o contrato em questão não ser um verdadeiro contrato administrativo, não obsta à sua submissão à jurisdição dos tribunais administrativos, verificado o circunstancialismo dos autos .
6 – Nos contratos em que uma das partes é uma entidade pública e a respectiva celebração foi precedida de um procedimento pré-contratual de direito público, o conhecimento dos litígios que tenham por objecto questões relativas à sua execução, são da competência dos tribunais administrativos, por força do seu enquadramento na previsão da alínea e), do nº1, do art. 4 do ETAF.
7 – Foram interpretadas e erradamente aplicadas as alíneas e) e f) do nº1, do art. 4º do ETAF, aprovado pela Lei 13/02, de 19 de Fevereiro, razão pela qual deve ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que declare a competência dos tribunais administrativos para conhecer do litígio objecto dos presentes autos .
8 - Por outro lado, deve ser declarada a prescrição presuntiva prevista no art. 317, al. b) do C.C.

A autora contra-alegou em defesa do julgado .

Corridos os vistos, cumpre decidir .


A Relação considerou provados os factos seguintes :
1- No exercício da sua actividade, a autora vendeu ao réu diverso mobiliário de escritório .

2 – Para titular essas vendas a autora emitiu e enviou ao réu, que as recebeu, as seguintes facturas :
- nº 95 NVC4398 , de 27-12-95, no valor de 94.770$00 ( 472,71 euros );
- nº 96NVC460, de 16-12-96, no valor de 936.960$00 (4.673,54 euros);
- nº 96NVC465, de 16-12-96, no valor de 1.907.756$00 ( 9.515,85 euros) ;
- nº 96NVC535, de 26-12-96, no valor de 257.465$00 ( 1.374,01 euros);
- nº 96NVC2951, de 19-11-96, no valor de 99.824$00 ( 497,92 euros ) .

3 – Apesar de interpelado para o efeito, o réu não efectuou qualquer pagamento .

4 – O réu estava obrigado a pagar o montante titulado pelas facturas a um mês das respectivas datas da emissão .


São duas as questões a resolver :

1- Se deve ser declarada a competência material dos tribunais administrativos para conhecer do litígio objecto dos presentes autos .
2- Se deve operar a prescrição presuntiva .


Vejamos :

1.

Competência material :

Foi celebrado um contrato de compra e venda entre a autora e o réu, através do qual este adquiriu àquela diverso mobiliário, sendo que tal aquisição foi efectuada através do procedimento pré-contratual administrativo regulado no dec-lei 55/95, de 29 de Março .
As instâncias consideraram que o tribunal comum é o competente em razão da matéria para conhecer da acção .
O recorrente entende que o Tribunal Administrativo é o materialmente competente, em virtude das partes terem submetido o contrato ao regime previsto no dec-lei 55/95, de 29 de Março, sendo aplicável o disposto nos arts 4, nº1, al. e) e f) do ETAF, aprovado pela Lei 13/02, de 19 de Fevereiro .
Mas sem razão .
O mencionado dec-lei 55/95 veio concentrar o que se encontrava disperso em diversa legislação, adequando-o à legislação comunitária e tentando dar clareza, simplicidade e transparência às contas públicas .
No referido diploma nada se impõe às entidades privadas e apenas se estabelece o regime da realização de despesas públicas com locação, empreitadas de obras públicas, prestação de serviços e aquisição de bens, bem como o da contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição de bens móveis – art. 1º do dec-lei 55/95.
O art. 1, nº1, do ETAF preceitua que os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais .
O art. 4, do ETAF, dispõe :
1- Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto :
(...)
e) – Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento contratual regulado por normas de direito público .
f) – Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público .
Por sua vez, o art. 178, nº1, do Código do Procedimento Administrativo, define o contrato administrativo como “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa” .
Ora, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais – art. 212, nº3 da Constituição da República .
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211,nº1, da Constituição .
Daqui se extrai que são da competência dos tribunais judiciais todas as causas que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais .
O que significa dizer que a competência material dos tribunais judiciais se determina através de um critério de competência residual .
Também dos arts 66 do C.P.C. e 18, nº1, da LOFT se retira que a competência dos tribunais judiciais é residual .
Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração “ ( Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, pág. 439) .
Pois bem .
A relação contratual estabelecida entre recorrente e recorrida, da qual resultou a dívida reclamada por esta, não reveste natureza administrativa, por não se verificarem os mencionados requisitos .
Com efeito, na relação mantida, o recorrente actuou despojado de poderes de autoridade ou de restrições de interesse público, e à recorrida também não foram atribuídos direitos ou impostos deveres públicos perante o recorrente .
No caso concreto, o que se verifica é que houve um procedimento administrativo pré-contratual, como era exigido ao Município de Lisboa pelo aludido dec-lei 55/95, tendo a recorrida sido escolhida sem prévio concurso público.
Mas tal situação, só por si, não é suficiente para se poder afirmar que os tribunais administrativos sejam os materialmente competentes para conhecerem da falta de pagamento do mobiliário adquirido .
Não estão em causa questões relativas à validade de actos pré-contratuais, nem a interpretação, validade e execução do contrato de compra e venda .
O contrato está perfeito, operou-se a entrega do mobiliário e a respectiva transferência da propriedade .
Só falta o Município de Lisboa proceder ao pagamento do que é devido.
Por isso, não tem aqui aplicação as alíneas e) e f) do nº1, do art. 4, do ETAF.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 10-3-05, Proc. 21/03, “o que determina a competência material dos Tribunais Administrativos para o julgamento de certas acções, é o elas versarem sobre conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas, pelo que a declaração dessa competência pressupõe que se julgue que o conflito nelas desenhado é um conflito de interesses públicos e privados e que o mesmo nasceu e se desenvolveu no âmbito de uma relação jurídica administrativa .
Na distinção, sem sempre fácil, entre contratos administrativos e contratos de direito privado, importa considerar não só a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades do interesse público que esse ente prossiga – o que é fundamental - mas também as marcas da administratividade e os traços reveladores de uma ambiência de direito público existentes nas relações que neles se estabelecem “.
Não concorrendo no contrato em apreciação nenhuma destas características, é de concluir, como se conclui, ser o tribunal cível o materialmente competente para a apreciação e conhecimento do objecto da acção .

2.

Prescrição presuntiva :

Os arts 312 a 317 do C.C. disciplinam as chamadas prescrições presuntivas, para as quais se estabelecem prazos reduzidos .
Assim, o art. 317 , al. b), estabelece que prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou não os destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício individual do devedor .
A prescrição, que tem como fonte o decurso do prazo, pode ser extintiva ou presuntiva .
As prescrições extintivas conferem ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento da prestação e de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito .
Todavia, a obrigação não se extingue, antes se transforma numa obrigação natural, nos termos do art. 402 do C.C., pois o que se extingue é a possibilidade do credor vir exigir judicialmente o seu cumprimento .
Por sua vez, as prescrições presuntivas “ fundam-se na presunção de cumprimento (art. 312 do C.C.) . Explicam-se pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir, via de regra, quitação . Decorrido o prazo legal, presume-se que o pagamento foi efectuado, e daí que o devedor fique dispensado da sua prova, dado que, em virtude das razões expostas, isso poderia tornar-se difícil “ ( Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 964) .
A invocação da prescrição presuntiva supõe o reconhecimento de que a dívida existiu, sendo que a tal o devedor contrapõe que essa dívida se acha extinta pelo pagamento que a lei presume .
Está-se perante uma mera presunção, que tão só dispensa a prova do cumprimento .
Assim, para poder beneficiar da invocada prescrição presuntiva, o réu terá de afirmar claramente que o pagamento reclamado já foi efectivamente realizado .
Com efeito, é entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência que, para poder invocar coerentemente a prescrição presuntiva, o réu terá de alegar que deveu, mas já pagou ( Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. II, pág. 78 ; Ac. S.T.J. de 22-4-04, Col. Ac. S.T.J., XII, 2º, 41) .
Tal afirmação não pode considerar-se implícita na simples invocação da prescrição presuntiva.
Ora, o réu, na sua contestação, apesar de dispor de contabilidade organizada, limitou-se a invocar que atento o decurso do prazo, a dívida se encontrava prescrita, mas não alegou ter efectuado o pagamento, como lhe incumbia .
Daí que a prescrição presuntiva não possa operar, não merecendo censura o Acórdão recorrido .

Termos em que negam a revista .
Custas pelo recorrente .

Lisboa, 24 de Junho de 2008

Azevedo Ramos (relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira