Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B572
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DE AFIRMAÇÃO
ARTICULADOS
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PODER DISCRICIONÁRIO
RECURSO
Nº do Documento: SJ200403180005722
Data do Acordão: 03/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3490/03
Data: 10/07/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I. O locador que pretenda, pela via judicial, fazer repercutir no montante da renda devida pelo locatário o valor das obras realizadas no prédio urbano locado, e assim ser reembolsado das respectivas despesas nos termos e para os efeitos do artº 38°do RAU90, terá de alegar factos, devidamente discriminados e quantificados, susceptíveis de permitir a qualificação das obras realizadas no locado como "obras de conservação extraordinária - ónus da alegação, afirmação ou dedução.
II. O que tudo se reconduz a um problema de substanciação da causa de pedir, ou seja do acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido.
III. Não supre essa omissão a remessa para as obras, pretensamente levadas a cabo no arrendado, constantes de documentos avulsos juntos aos autos, já que não cumpre ao tribunal a tarefa de pesquisa e indagação oficiosa dos factos constitutivos do direito do autor, com substituição à parte no cumprimento do seu dever de iniciativa alegatória.
IV. O poder-dever cometido ao juiz de oficiosamente ordenar o suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, nos termos do art.º 265°, n° 2, do CPC95, convidando as partes ao aperfeiçoamento dos articulados (art.º 508°, n° 1, al.s a) e b) do mesmo Código) assume natureza essencialmente discricionária, que o juiz da causa exercitará ou não segundo o seu prudente arbítrio.
V. A não exercitação de tais poderes não é sindicável em sede de recurso - artº 679º do CPC95.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "A", residente na rua da Bandeirinha, n.º..., no Porto, intentou, com data de 26-6-2, acção ordinária contra os RR:
1ºs- B e mulher C, residente no Campo Mártires da Pátria, n.º..., Porto;
2ª- D, residente no Campo Mártires da Pátria, n°...°, Porto, e,
3ª- E, residente na Campo Mártires da Pátria, n°...., Porto,
solicitando:
a)- se decretasse a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A., usufrutuária do locado, e os 1ºs RR., decretando-se o imediato despejo dos 1.ºs RR. do locado e condenando-se a entregá-lo à A. devoluto de pessoas e bens.
b)- se condenassem os 1°s RR. a pagar à A. as rendas vencidas e não pagas até à data da propositura da acção, que ascenderiam a € 9.108, 28, as vincendas até entrega do locado, bem como os respectivos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos até efectivo pagamento de cada uma das rendas em dívida, contados desde a data de vencimento de cada uma das rendas mensais em dívida e que à data da propositura da acção ascenderiam a € 2.052,11;
c)- se decretasse a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A., usufrutuária do locado, e a 2ª Ré, decretando-se o imediato despejo e condenando-se a mesma a entregar o locado devoluto de pessoas e bens;
d)- se condenasse a 2ª Ré a pagar à A. as rendas vencidas e não pagas até à data da propositura da acção, que ascenderiam a € 3.130,48, as vincendas até entrega do locado, bem como os juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, juros esses contados desde a data de vencimento de cada uma das rendas mensais em dívida e que à data ascenderiam a € 1.113,828;
e)- se decretasse a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A., usufrutuária do locado, e a 3ª Ré, decretando-se o imediato despejo do locado, condenando-se a mesma a entregá-lo à A. devoluto de pessoas e bens;
f)- se condenasse a 3ª Ré a pagar à A. as rendas vencidas e não pagas até à data da propositura da acção que ascenderiam a € 12.144,71, as vincendas até entrega do locado, bem como os respectivos juros vencidos e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, juro contados desde a data de vencimento de cada uma das rendas mensais em dívida e que à data da propositura da acção ascenderiam a € 3.259,32.
Alegou, em resumo:
- é usufrutuária do prédio urbano sito no Campo Mártires da Pátria, n°....., da freguesia da Vitória, Porto;
- nessa qualidade, celebrou com os 1ºs RR., verbalmente um contrato de arrendamento, para fins habitacionais, relativo ao 1° andar do prédio, pala renda anual de € 1.871,16, a pagar em duodécimos, no próprio andar locado;
- de igual modo, na mesma qualidade, celebrou com a 2ª Ré idêntico contrato relativo ao 2º andar, pela renda anual de € 643,29;
- finalmente, celebrou com a 3ª Ré é idêntico contrato, relativo ao 3° andar, pela renda de € 2.494,92;
- em 1996, a A. foi notificada pela Câmara Municipal do Porto para proceder à realização de obras de conservação ordinária do imóvel, obras que, como a A., não tivesse recursos para tal, foram coercivamente realizadas pela edilidade camarária que, para o efeito, tomou posse administrativa do prédio;
- tais obras ascenderam a € 54.582,12 e foram dadas por concluídas em 18 de Março de 1997;
- no que toca à quota parte da responsabilidade da A. pela realização das obras, a mesma ascendeu a € 22.424,95, que a A. optou por pagar em prestações mensais com início em Abril de 1997, pelo que, de harmonia com o art.º 38º do RAU, tratou de aumentar o montante das rendas então em vigor, com início em 1 de Agosto de 1997, interpelando os RR.., dando-lhe conta da nova renda, o que fez aquando do recebimento das rendas vencidas nos meses de Maio, Junho e Julho de 1997;
- passando a renda devida pelos 1°s RR. a ser de € 154,32, a da 2.ª Ré de € 53,04 e a da 3ª R. de € 205,77;
- os RR. foram interpelados, por carta registada com aviso de recepção, para procederam ao pagamento das novas rendas, mas responderam que jamais pagariam à A. os valores solicitados, conduta que vêm mantendo até à presente data;
- é assim a A. credora dos 1ºs RR. da quantia de € 8.796,42 relativa às rendas vencidas desde 1 de Agosto de 1997 até 1 de Abril de 2002, bem como a quantia de € 311,86 dos meses de Maio e Junho de 2002 à razão de € 155,93/mês, às quais acrescem os respectivos juros;
- quanto à 2ª Ré, é credora da quantia de 3.023,28 de rendas vencidas desde o dia 1 de Agosto de 1997 até 1 de Abril de 2002, à razão de 57 meses x 53,04/mês, bem como a quantia de € 107,20 relativa às rendas vencidas dos meses de Maio e Junho de 2002, à razão de € 53,60/mês, à quais acrescem os respectivos juros.
- finalmente, no que toca à 3ª Ré, a A. é credora da mesma quantia de € 11.728,89 relativa às rendas vencidas desde 1 de Agosto de 1997 até Abril de 2002, à razão de 57 meses x € 205,77/mês, bem como a quantia de € 415,82 relativas aos meses de Maio e Junho de 2002, à razão de € 207,91/mês, a que acrescem os respectivos juros que à data da propositura da acção ascendem a € 3.259,32.
- a falta de pagamento das rendas constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento (art.º 64°, n° 1 a) do RAU).

2. Contestaram os 1ºs RR. e a 2ª Ré por excepção - invocando o caso julgado - e impugnando os fundamentos da acção e também a 3ª Ré, por excepção - invocado a ilegitimidade - e impugnando igualmente os fundamentos da acção.

3. Houve réplica da A., na qual esta veio requerer a intervenção principal provocada de F, marido da Ré E, incidente que foi admitido por despacho de fls.215, tendo o citado vindo declarar fazer seus os articulados da Ré E.

4. Com data de 24-2-03 - fls. 569 - foi pelo Mmo Juiz da 6ª Vara Cível da Comarca do Porto lavrado saneador no qual se julgou a petição inicial inepta por falta de causa de pedir, com a consequente anulação de todo o processado, e absolvição dos RR. da instância.
5. Inconformada com tal decisão, dela veio, a A. agravar, mas o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 7-10-03, negou provimento ao recurso.

6. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a A. agravar para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
A) - Da leitura dos articulados apresentados e dos documentos juntos aos autos resulta que os recorridos, quando da apresentação das respectivas contestações, compreenderam e interpretaram perfeita e convenientemente toda a petição inicial, quer no que a respectiva causa de pedir, quer no que aos pedidos formulados concerne;
B) - Encontra-se ainda junta aos autos certidão judicial de sentença já transitada em julgado que decidiu terem as obras em questão sido aceites pelos recorridos, tendo estes prometido pagar os novos montantes relativos as rendas;
C) - Mostra-se de tal modo a pretensa nulidade sanada, pelo que, nunca poderia a mesma ter sido conhecida oficiosamente pelo tribunal;
D) - Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido violou e/ou interpretou erradamente o disposto no n° 3 do art.º 193° e art.º 202º;
E) - De resto, sempre se dirá que, caso se entendesse, tal como nas sentenças recorridas, estarmos in casu perante uma omissão de um elemento essencial da causa de pedir, no que obviamente se não concede, sempre estaria o tribunal a quo vinculado ao poder-dever de convidar a recorrente a aperfeiçoar o respectivo articulado - ao abrigo do conjugadamente disposto nos art.ºs. 508°, 264° e 265°;
F)- Sendo que, em tal hipótese, e porque estaríamos perante a falta de alegação de um elemento essencial da causa de pedir, causadora de uma nulidade de todo o processo, deveria o tribunal, com vista a sanação da mesma, ter convidado a agravante a aditar aquele, o que, a não ter sucedido, configura uma irregularidade processual que expressamente se invoca;
G)- O que, a não ter sucedido, violou, entre outros, os princípios da colaboração, cooperação e economia processuais, bem como do inquisitório do tribunal, por referência ao art.º 508º;
H) - Por outro lado, foi ainda alegado pela recorrente, e confirmado pelos recorridos, que as obras realizadas coercivamente por iniciativa da "Câmara Municipal do Porto" foram ao abrigo do denominado regime especial de comparticipações para a recuperação de imóveis sujeitos a arrendamentos (recria);
I) - Preceituando o DL 197/1992 de 22/9 que regula aquele regime especial, no seu art.º 6º n° 2, que as obras da iniciativa das câmaras e ordenadas aos senhorios, como sucedeu in casu. São aquelas que constam do art.º 13º do R.A.U., quais sejam as de conservação extraordinária e de beneficiação;
J) - Sendo que, da leitura dos articulados resulta que foi alegado pela recorrente ter sido a mesma notificada pela "Câmara Municipal do Porto" no sentido de proceder a realização de obras no imóvel, as quais foram comparticipadas pelo "RECRIA", obras essas que, logicamente, só poderiam ser aquelas que se encontram previstas no art.º 13º do R.A.U. (estipulando o seu n.º 2 que a realização de tais obras da lugar a actualização das rendas regulada nos artigos 38º e 39º);
K) - Pelo que, inexiste de igual modo qualquer insuficiência da «causa petendi» que conduza a nulidade de todo o processo e subsequente absolvição dos recorridos da instância;
L) - Por último, e sem prescindir de tudo quanto supra se deixou alegado, sempre se dirá que in casu se mostrara indiferente a caracterização do tipo de obras realizadas no locado;
M) - Porquanto, atenta a redacção então em vigor dos artºs 14° e 15 do R.A.U., nas hipóteses em que o senhorio não realize as obras de conservação ordinária que lhe tenham sido administrativamente impostas, tendo as mesmas de ser realizadas pela Câmara, como sucedeu in casu, está legalmente previsto o aumento do valor da renda nos termos do artº 38º daquele mesmo diploma legal;
N)- Sendo que, tal interpretação veio a ser confirmada pelas alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 329-B/2000 de 22/12;
O) - Pelo que, na hipótese em apreço, se torna perfeitamente indiferente distinguir o tipo de obras realizada, inexistindo de igual modo qualquer nulidade de todo o processo

7. Contra-alegaram os RR B e mulher sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno as seguintes conclusões:
1ª- A agravante não tem razão ao referir que, quer o despacho-sentença, quer o douto acórdão, deveriam ter decidido no sentido de convidar a agravante a reformular a sua petição inicial;
2ª- A interpretação dada pelo douto despacho saneador, bem como pelo douto acórdão de que agora se recorre, foi a correcta e legal e outra não poderia nem poderia ser;
3ª- Não tem razão a agravante ao referir que os agravados sempre aceitaram as obras e de que tal já foi fixado por decisão anterior;
4ª- O que está em discussão nesta acção é o montante das rendas e não a falta de pagamento delas, em consequência das obras realizadas, e por não se saber que tipo de obras foram, logo o douto despacho saneador, bem como o douto acórdão decidiu bem sobre tal matéria;
5ª- O douto acórdão, ao decidir como decidiu, decidiu bem e dentro de um quadro perfeitamente legitimo e legal;
6ª- Ao não entender assim a agravante, não tem esta qualquer razão e nem lhe assiste qualquer fundamento para tal recurso.

8. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

9. Em matéria de facto relevante, limitou-se a Relação a remeter para os termos em que a acção foi proposta e se encontram enunciados em 1.

Passemos então ao direito aplicável.

10. Balizou a Relação o «thema decidendum» - ora renovado e reiterado em sede do presente agravo - pela forma seguinte:
a)- Foram ou não alegados os factos suficientemente integradores da causa de pedir?;
b)- Foi ou não violado o caso julgado?;
c)- Deveria ou não o M. Juiz ter convidado a recorrente a aperfeiçoar o seu articulado?

11. Causa de pedir e respectiva substanciação.
Convém lembrar que o que a A. pretendeu submeter ao escrutínio judicial com a interposição da subjacente acção radica essencialmente no montante («quantum») das rendas a exigir dos RR locatários em consequência das obras realizadas, não tanto na falta de pagamento atempado dessas rendas, este último motivo autónomo e típico de despejo por força do disposto no artº 64º nº 1, al. a) do RAU90.
O que, no fundo se pretende é apurar prioritariamente é se o aumento de rendas pela ora recorrente exigido aos ora agravados possui ou não cobertura legal.
E foi precisamente por não se saber ao certo que tipo de obras foram efectivamente realizadas pela A., na qualidade de senhoria, no prédio arrendado que o despacho saneador concluiu pela ineptidão da petição inicial por falta e/ou ininteligibilidade da causa de pedir adrede invocada.
Vem a propósito fazer uma breve alusão ao quadro jurídico normativo que preside à temática controvertida no seio da acção e do presente recurso.
Estatui o art.º 1031°, do Cód. Civil, na sua al. b), que incumbe ao locador a obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada, para o fim contratual a que se destina, do que logo emerge a obrigação, de banda do locador, de efectuar as reparações ou outras despesas essenciais ao gozo do objecto locado.
No artº 11°, e seus nºs 1 a 4, do RAU90 estabelece-se o que deve entender-se por «obras de conservação ordinária», por contraposição a «obras de conservação extraordinária» e a «obras de beneficiação».
Conceitos esses afinados, designadamente, e em anotação ao art. 11° do RAU90, pelo Exmo Consº Aragão Seia, in "Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7ª ed Act., pág 204.
"Per summma capita" pode dizer-se que as obras de conservação ordinária se destinam, em geral, a manter o prédio em bom estado de preservação e nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração, enconrando-se definidas no n° 2 daquele normativo, nesse âmbito se incluindo, entre outras, as que o art 9º do RGEU 51 (DL 3832 de 7-8-51) impõe sejam efectuadas uma vez em cada período de oito anos, com o fim de remediar as deficiências provenientes do uso normal das edificações e de as manter em boas condições de utilização.
Já quanto às obras de conservação extraordinária serão elas "as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior, quer dizer, por uso imprevisível ou inevitável e, em geral, as que não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassam, no ano em que se tornem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano".
Antes da entrada em vigor do RAU90, o regime jurídico das obras a realizar pelo senhorio no locado encontrava-se previsto nos arts. 16° a 21° da L 45/86, de 20/9 (não aplicável ao caso vertente dado que foi revogada pelo art.º 3°, n° 1, al. i) do DL 321-B/90, de 15/10, que aprovou o novo regime do Arrendamento Urbano, aí se distinguindo entre obras de conservação e obras de beneficiação.
O critério de distinção encontrava-se vertido no respectivo artº 16°, segundo o qual seriam "obras de conservação as obras de reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências e todas as intervenções que se destinem a manter ou a repor o prédio com um nível de habitabilidade idêntico ao existente à data da celebração do contrato, e as impostas pela Administração, face aos regulamentos gerais ou locais aplicáveis, para lhe conferir as características habitacionais existentes ao tempo da concessão da licença de utilização, sem prejuízo do estabelecido nos art.ºs 1043° e 1092° do C.Civil ".
Todas as demais intervenções constituíam "obras de beneficiação", salvo se fossem determinadas por defeitos de construção, por caso fortuito ou por caso de força maior.
Confrontando o regime estabelecido nesta lei, quanto a obras, com o do RAU90, verifica-se que, para este último, existem obras de conservação que, não sendo determinadas por defeito de construção nem por caso fortuito ou por força maior, são susceptíveis de repercutir na renda o que o senhorio gastou nelas. São as que, não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetuadas pelo senhorio, ultrapassem, no ano em que se tomem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse ano (nº 3, "in fine"do citado art. 11º).
Tal como a Relação bem salientou "pretendeu-se, com a introdução deste novo normativo, obviar à falta de equivalência de atribuições patrimoniais, em abuso de direito por parte do arrendatário que requer as obras ".
Pois bem: quando é que o senhorio poderá proceder ao aumento da renda, ao abrigo do art. 38°do RAU90?
Dispõe este preceito:
"1. O senhorio compelido administrativamente a realizar obras de conservação extraordinária ou de beneficiação do prédio pode exigir ao arrendatário um aumento de renda correspondente, por mês, a um duodécimo do produto resultante da aplicação da taxa referida no art. 79º ao custo total das obras.
2. A actualização referida no número anterior é exigível no mês subsequente ao da conclusão das obras e incorpora-se na renda para todos os efeitos, designadamente o do cálculo das actualizações anuais previstas no art. 32º" e seguintes.
3....".
Por sua vez prescreve o art. 13°:
"1. As obras de conservação extraordinária e de beneficiação ficam a cargo do senhorio quando, nos termos das leis administrativas em vigor, a sua execução lhe seja ordenada pela câmara municipal competente (...).
2. A realização das obras referidas no número anterior dá lugar à actualização das rendas regulada nos art.ºs 38º e 39º.
3. (...)"
Torna-se, pois, mister que senhorio que pretenda ser reembolsado dessas despesas, alegue factos, devidamente discriminados e quantificados, susceptíveis de permitir a qualificação das obras realizadas no locado como "obras de conservação extraordinária ".
O que tudo se reconduz a um problema de substanciação da causa de pedir, ou seja do "acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido" na definição de A. dos Reis (in "Comentário ao Código de Processo Civil", Vol. II, pág. 369),
Para o pretendido e eventual sucesso da lide, terá o autor o encargo - de satisfação necessária - de enunciar discriminadamente, além do mais, quais as obras concretamente por si empreendidas, sem o que não se torna possível ao tribunal emitir a final, o seu juízo jurídico-substantivo. Tudo sendo sabido que os factos que integram a causa de pedir têm que ser necessariamente articulados pelo demandante (ónus da alegação, afirmação ou dedução).
Ora, tal como as instâncias concluíram, nada esclareceu a A., ora recorrente, acerca das obras que foram efectivamente por si efectuadas no prédio locado, já que se limitou a alegar haver sido "notificada pela Câmara Municipal para proceder à realização de "obras de conservação ordinária" (sic).
O tribunal de 1ª instância tinha mesmo observado não ter a A. alegado factos que pudessem levar a concluir que as obras em causa não foram devidas a acção ou omissão ilícita sua, factor indispensável para que as mesmas pudessem vir a ser qualificadas, para efeitos do RAU90, como "obras extraordinárias".
É certo que a A. pretendeu remeter para as obras, pretensamente levadas a cabo no arrendado, constantes dos documentos juntos aos autos a fls. 435 e ss, mas a verdade é que não cumpre ao tribunal a tarefa de pesquisa e indagação oficiosa dos factos constitutivos do direito do autor eventualmente dispersos em documentos avulsos juntos com a petição, com substituição à parte no cumprimento do seu dever de iniciativa alegatória.
E, não havendo elementos que permitissem a qualificação abstracta das eventuais obras na categoria legal de "obras de conservação extraordinária", segundo umas das plausíveis soluções de direito - verdadeiro âmago ou cerne da «causa petendi» - jamais poderia o tribunal vir a coonestar a impetrada actualização de renda nos termos previstos no art.º 38° do RAU90.
Ainda que as meras e putativas «obras de conservação ordinária» fossem susceptíveis de gerar aumentos de renda - como ela própria alvitra - sempre impenderia sobre a A ora recorrente o ónus da devida substanciação da respectiva causa de pedir, com discriminação concreta de tais obras em ordem a uma correcta submissão ao princípio do contraditório.
Nem se diga que os RR. ora recorridos, interpretaram convenientemente a petição inicial, o que poderia dar lugar à contra-excepção do nº 3 do artº 193º do CPC.
Na esteira do aresto "sub-judice", "basta ler as contestações para se chegar à conclusão de que assim não é".

12. Trânsito em julgado.
Sustenta a recorrente que se encontra junta aos autos certidão de sentença - já transitada em julgado - pela qual se decidiu terem as obras em causa sido aceites pelos recorridos, tendo estes prometido pagar os novos montantes relativos às rendas (sic).
Ora - tal como o acórdão «sub-judice» bem salientou - o que a certidão de sentença judicial transitada em julgado, junta a fls. 400 ss., revela é que, em Outubro de 1997, a A. instaurou contra os RR. acção de despejo sob a forma sumária, tendo como causa de pedir a falta de pagamento de rendas habitacionais aumentadas por virtude de obras de conservação nos arrendados, e que a A., na qualidade de senhoria, foi administrativamente compelida a realizar, e como pedido a declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado com os RR. dos locados sitos no Campo dos Mártires da Pátria, 134, Porto, bem como a condenação dos mesmos em diversas quantias em dinheiro, por rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora e despesas de cobrança.
Tal acção foi julgada improcedente por sentença de 9-1-01, depois confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5-11-91.
A excepção dilatória de caso julgado (artºs 494º, al. i) e 497º, nº 2 do CPC) tem por finalidade "evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior".
Todavia, de harmonia com a doutrina e jurisprudência correntes, o caso julgado forma-se sobre o julgamento propriamente dito que não sobre os respectivos fundamentos.
Não pode pois chamar-se aqui à colação qualquer argumento, razão ou motivo em que essas instâncias hajam ancorado a solução de mérito a que chegaram e ao decidir como decidiram.
De resto, não invoca a recorrente nem demonstra a chamada "tríplice identidade" que o nº 1 do artº 498º do CPC95 reclama para a verificação da excepção dilatória do caso julgado.
E daí que tal excepção não possa surtir a eficácia preclusiva pretendida pela recorrente.

13. Alegada vinculação do tribunal "a quo" ao poder dever de convidar a recorrente a aperfeiçoar o respectivo articulado.
Que dizer?
É verdade que, como emanação do princípio da cooperação, a lei processual civil veio consagrar o poder-oficioso de o juiz ordenar o suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, nos termos do art.º 265°, n° 2, do CPC95, convidando as partes ao aperfeiçoamento dos articulados (art.º 508°, n° 1, al.s a) e b) do mesmo Código).
Trata-se, contudo, de um poder-dever de natureza essencialmente discricionária que o juiz da causa exercitará ou não segundo o seu prudente arbítrio.
E é sabido que "não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário" - conf. artº 679º do CPC95.
O que deva entender-se por despachos de mero expediente ou exercidos no uso de legal de um poder discricionário di-no-lo o nº 4 do artº 156º do CPC95: os primeiros "destinam-se a prover o andamento normal do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes"; os segundos são os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador ".
No nº 6 do artº 508º do mesmo corpo normativo estabelece-se mesmo "ex-professo" que " não cabe recurso do despacho que convide a suprir irregularidades ou insuficiências dos articulados" (sic).
Nada pois a sindicar quanto à alegada inércia do julgador relativamente a esta pretensa omissão.
14. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura, pelo que improcedem as conclusões da alegação da recorrente.

15. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar provimento ao agravo;
- confirmar, em consequência o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Março de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares