Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7601/16.3T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
NORMAS DE INTERESSE E ORDEM PÚBLICA
NULIDADE DO CONTRATO
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / NEGÓCIOS CELEBRADOS CONTRA A LEI.
Doutrina:
- Abílio Neto, Código Civil Anotado, p. 893;
- António Pereira da Costa, Loteamento, Acessão e Usucapião: Encontros e Desencontros, Revista do CEDOUA, n.º 11, Janeiro de 2003, p. 95 e ss.;
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião – Loteamentos e Destaques Clandestinos, Scientia Juridica, Tomo LII, n.º 295, Janeiro/Abril 2003, p. 100 e ss. ; Posse e Usucapião, 3.ª Edição, p. 525 e ss.;
- Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, 2012, 3ª edição, p. 409;
- Menezes Cordeiro, ROA, 53º, 1993, p. 38;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, p. 269;
- Salazar Casanova, Usucapião, acessão industrial e construção clandestina, compilação do Centro de Estudos Judiciários, Usucapião, Acessão Industrial e Construção Clandestina, a Interação do Direito Administrativo com o Direito Civil, p. 87 e 94.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 294.º.
REGIME JURÍDICO DA ESTRUTURAÇÃO FUNDIÁRIA, APROVADO PELA LEI N.º 111/2015, DE 27 DE AGOSTO.
DECRETO N.º 16 731, DE 13-04-2009: - ARTIGO 107.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1;
- DE 06-03-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1;
- DE 30-04-2015, PROCESSO N.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1;
- DE 26-01-2016, PROCESSO N.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1;
- DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1;
- DE 01-02-2018, PROCESSO N.º 1011/16.0T8STB.E1.S2, TODOS IN WWW.DGSI.PT;


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 04-10-1972, SUMARIADO NO B. M. J., Nº 221, P. 280.
Sumário :
I - Em 1965, a divisão material do prédio rústico em dois prédios com área inferior à unidade de cultura e a doação de cada um pelo seu dono aos filhos, violava o disposto no art. 107.º do Decreto n.º 16 731, de 13-04-1929.

II - Os negócios jurídicos celebrados contra disposições legais de carácter imperativo, como são as disposições que se relacionam com a proibição de loteamentos ilegais, são nulos – art. 294.º do CC.

III - A tendência da jurisprudência, reportando a situações possessórias constituídas há longo tempo e ao instituto da usucapião, tem considerado que a usucapião se sobrepõe às normas do ordenamento territorial, assim tutelando a confiança e a estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo e pela publicidade da posse.

IV - No caso, o negócio jurídico que esteve na base da justificação notarial é uma doação verbal, nula por falta de forma, e a posse é exercida pelo “doador” e continuada pelos donatários desde 1965, sendo que se lhe aplica o regime da anulabilidade e não o da nulidade constante da Lei n.º 111/2015, de 27-08.

V - Em casos como o versado no recurso, os tribunais devem, casuística e não aprioristicamente, apreciar a validade dos actos de divisão e de fracionamento da propriedade rústica: a natureza da posse exercida pelos réus e da usucapião na estabilização e consolidação de posse no âmbito do direito real de propriedade, conduz à conclusão de que os réus adquiriram originariamente, por usucapião, o direito de propriedade sobre cada um dos referidos prédios.
Decisão Texto Integral:
Proc.7601/16.3T8STB.E1.S1

R-671[1]

Revista

 


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 


O Ministério Público intentou, em 9.11.2016, na Comarca de Setúbal – Instância Local – Secção Cível – J3, acção declarativa, com processo comum, contra:

 AA e mulher, BB;

 CC e mulher, DD.

 Pedindo que sejam anuladas as escrituras de justificação, outorgadas a 03.12.2014, pelos 1.ºs réus, e a 17.12.2014, pelos 2.ºs réus, através das quais declararam ser os únicos titulares do direito de propriedade, cuja aquisição por usucapião invocaram, sobre parcelas de terreno integradas em prédio rústico composto de terras de semeadura e árvores de fruto; a fundamentar o pedido, sustenta que os outorgantes declararam factos que não correspondem à verdade e que, com a outorga de tais escrituras, pretenderam os réus obter a desanexação de prédios com áreas inferiores à área de cultura mínima, em violação do disposto no artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil.

Os réus contestaram, alegando que o prédio em causa foi objecto de divisão e doação por volta de 1965 e que, desde então, exerceram a posse sobre a respectiva parcela, que adquiriram por usucapião, o que sustentam impor a improcedência da acção.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, após o que se identificou o objecto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.


***

 Foi proferida sentença – na qual se reconheceu a aquisição pelos réus, por usucapião, nos termos constantes das escrituras de justificação em causa, do direito de propriedade sobre as parcelas de terreno, por se ter entendido que o instituto da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento da propriedade rústica por ofensa da área de cultura mínima –, sendo a acção julgada improcedente e, em consequência, os réus absolvidos do pedido.


***

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, para o Tribunal da Relação de Évora, que por Acórdão de 25.1.2018 – fls. 66 a 75 - negou provimento à apelação e, em consequência, manteve a decisão recorrida.


***


Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, invocando fundamentação essencialmente diferente do Acórdão que confirmou a sentença e, a assim se não entender, contradição de Acórdãos da mesma Relação: no caso, o Acórdão de 25.5.2017, no Proc. N°1214/16.7T8STB, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado, e ainda recurso de revista excepcional dado os “interesses de particular relevância social” e  a relevância jurídica que justificam a sua apreciação, para resolução das divergências jurisprudenciais, com vista a “uma melhor aplicação do direito”, nos termos do art° 672° n°1 als. a) e b) do NCPC.

O recurso foi admitido nos termos do despacho liminar do Relator, por se considerar que a fundamentação do Acórdão recorrido é essencialmente diferente, o que obsta à dupla conforme impeditiva do recurso de revista, nos termos do art.671º, nº3 do Código de Processo Civil.


***

O Ministério Público alegando, formulou as seguintes conclusões:

I - O acórdão ora recorrido confirmou a sentença proferida em 1ª instância mas com diversa fundamentação, pelo que não ocorre uma situação de dupla conforme, sendo o mesmo recorrível nos termos do art° 671°, n°1, do NCPC.

 II – Se assim não se entender, deve o recurso ser admitido como revista excepcional, nos termos do art. 672°, n°1, als. a), b) e c) por se verificarem os respectivos pressupostos, nomeadamente a existência do acórdão contraditório proferido em 25/5/2017, na Relação de Évora, no Proc. nº1214/16.7T8STB.E1, já transitado.

III – As escrituras de justificação, embora não constituindo actos translativos da propriedade, não deixam por isso de constituir actos de fraccionamento, que só a partir desse momento é possível impugnar, porque só então é possível ter acesso a um documento escrito onde fica visível a violação das regras impeditivas do fraccionamento.

IV – Uma adequada interpretação do art° 1379°, n°3, do Código Civil, quando dispõe que “A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto…”, leva a concluir que o único acto “celebrado”, a partir do qual começa a correr o prazo para anulação do fraccionamento, só pode ser o da “celebração” da escritura de justificação onde é invocada a usucapião, dado que no início da posse não houve qualquer acto “celebrado”, mas apenas uma divisão material e uma doação verbal.

 V - Deve, por isso entender-se que, na realidade, o fraccionamento só se tornou operante com as escrituras de justificação, uma vez que só nesse momento os justificantes obtiveram título jurídico válido do fraccionamento realizado.

VI – Porém, mesmo seguindo o entendimento do acórdão recorrido, de que o fraccionamento ocorreu “através da doação verbal efectuada pelos pais dos réus em 1965, de cada uma das parcelas em que dividiram o prédio a cada um dos filhos”, então teria de ser apreciado se esse acto de fraccionamento, praticado em 1965, violava as normas então vigentes relativas ao fraccionamento.

VII. Dado que se encontrava em vigor em 1965 o disposto no art° 107° do Decreto n° 16 731, de 13/4/1929, que proibia, sob pena de nulidade, a divisão de prédio rústico em novos prédios de menos de meio hectare, como sucede no caso dos autos, o fraccionamento então realizado pelas doações verbais é nulo, podendo ser como tal declarado a todo o tempo.

VIII – Dispondo o art° 1287° do Código Civil, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art° 1376° do Código Civil, que impede o fraccionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

IX – Tal entendimento mostra-se reforçado quando se compara tal norma com a correspondente disposição do Código Civil de 1867, em cujo art. 530° se estabelecia o seguinte: “As disposições dos artigos antecedentes, com relação à prescrição de direitos imobiliários, só podem ter excepção nos casos em que a lei expressamente o declarar.”

X. O Código Civil vigente deixou de exigir para exclusão da usucapião uma excepção expressamente declarada, bastando-se com a existência de uma “disposição em contrário”, o que, manifestamente ocorre com a existência do art° 1376°.

XI – As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fraccionamento, por revestirem inequívoca natureza pública, devem prevalecer sobre as normas de direito privado relativo à usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional.

XII – Ao alterar a redacção do disposto no art° 1379°, n°1, do Código Civil, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fraccionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no art° 1376° do Código Civil e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fraccionamento.

XIII – O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n°111/2015, que pretendeu intervir “através da possibilidade de impedimento dos actos jurídicos que contrariem esses limites, com o objectivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias.”

 XIV – Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.4.2015 e de 26.1.2016 (Procs. N° 10495/08.9TMSNT.L1.S1 e n° 5434/09.2TVLSB.L1.S1), bem como dos acórdãos da Relação de Évora de 25.5.2017 e 26.10.2017 (Procs. n°1214/16.7T8STB.E1 e n° 7859/15.5T8STB.E1), tendo estes últimos decidido, em situação absolutamente idêntica, no sentido de que a usucapião não prevalece sobre as regras de proibição do fraccionamento.

XV – Uma vez que, na presente acção, cada uma das parcelas fraccionadas tem área inferior a 0,5 ha, - valor mínimo da unidade de cultura prevista na Portaria n°202/70 e igualmente inferior à área de 0,5 ha, prevista no art° 107° do Decreto n° 16731 de 13/4/1929, - não pode a usucapião ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre norma imperativa de proibição de fraccionamento, quer a contida no artº. 1376°, n°1, do Código Civil, quer a contida no art° 107° do Decreto n° 16731, de 13/4/1929.

 XVI – Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos arts. 286°, 294°, 1287°, 1376° e 1379° do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue inteiramente procedente a presente acção, assim se fazendo a devida Justiça!

 Os recorridos contra-alegaram, sustentando a irrecorribilidade da decisão, mas, caso se admita o recurso, entendem que a decisão deve ser confirmada.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1 – No dia 03 de Dezembro de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. EE em Setúbal, os 1ºs RR justificaram a posse do prédio rústico sito em ..., freguesia de Pinhal Novo, concelho de ..., composto de terras de semeadura e árvores de fruto, confrontando de Norte com FF, de Sul com caminho de serventia, de Nascente com HH, e de Poente com ..., com a área de 3.806,00 m2, inscrito na matriz sob parte do artigo 68 da Secção G e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º 8108/20150123.

2 - No dia 17 de Dezembro de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. EE em Setúbal, os 2ºs RR justificaram a posse do prédio rústico sito em ..., freguesia de …, concelho de ..., composto de terras de semeadura e árvores de fruto, confrontando de Norte com FF, de Sul com Rua ..., de Nascente com Herdeiros de GG, e de Poente com HH, com a área de 3.753,00 m2, inscrito na matriz sob parte do artigo 68 da Secção G e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ….

3 – Sendo ambos a destacar do prédio rústico composto de terras de semeadura e árvores de fruto, omisso no registo predial e inscrito na matriz sob o artigo 68º da Secção G daquela freguesia.

4 – Por volta de 1965, os donos do prédio identificado em 3., pais dos réus AA e CC, dividiram-no em várias parcelas que doaram verbalmente a cada um dos filhos.

5 – Tais parcelas, entregues a cada um dos réus maridos, correspondem aos prédios descritos nas escrituras de justificação.

6 - Desde aquela altura, cada um dos réus vedou a sua parcela e passou a cultivar nela diversos produtos hortícolas para consumo familiar.

7 – Cada um dos réus possui uma casa de habitação implantada na respectiva parcela de terreno.

8 – Os réus actuaram sempre à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de serem os donos de cada uma das parcelas que lhes foram entregues pelos pais.

2.1.2. Teor das escrituras de justificação:

a) Consta da escritura pública a que alude o ponto 1) de 2.1.1., além do mais, o seguinte:

Declararam os primeiros outorgantes:

Que são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: (…)

Que este prédio veio à posse dos primeiros outorgantes, por doação verbal que os pais do justificante marido, II e mulher, JJ, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, residentes (…), lhe efectuaram por volta do ano de mil novecentos e sessenta e cinco, sem que no entanto o mesmo ficasse a dispor de título formal que lhes permitisse o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial, mas desde logo, o mesmo entrou na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade nomeadamente cultivando-o, colhendo os seus frutos, limpando-o e fruindo como tal do imóvel, suportando os respectivos encargos.

Que assim, os justificantes estão na posse do identificado prédio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permitam fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.

Declararam os segundos outorgantes:

Que conformam todas as declarações prestadas pelos primeiros outorgantes”;

b) Consta da escritura pública a que alude o ponto 2) de 2.1.1., além do mais, o seguinte:

Declararam os primeiros outorgantes:

Que são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: (…)

Que este prédio veio à posse dos primeiros outorgantes, por doação verbal que os pais do justificante marido, II e mulher, JJ, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, residentes (…), lhe efectuaram por volta do ano de mil novecentos e sessenta e cinco, sem que no entanto o mesmo ficasse a dispor de título formal que lhes permitisse o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial, mas desde logo, o mesmo entrou na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade nomeadamente cultivando-o, colhendo os seus frutos, limpando-o e fruindo como tal do imóvel, suportando os respectivos encargos.

Que assim, os justificantes estão na posse do identificado prédio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permitam fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.

Declararam os segundos outorgantes:

Que conformam todas as declarações prestadas pelos primeiros outorgantes”.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber tal como na decisão recorrida – se o instituto da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fraccionamento da propriedade rústica, por ofensa da área de cultura mínima, curando, ainda, saber se as escrituras de justificação outorgadas pelos réus configuram actos de fraccionamento contrários ao disposto no artigo 1376.°, n.°1, do Código Civil.

A candente questão tem sido objecto de decisões dos Tribunais da Relação, sobretudo da Relação de Évora, e do Supremo Tribunal de Justiça.

Como se disse, está em causa saber se o instituto da usucapião – assente, em actos de posse prolongada, pública e pacífica, – prevalece sobre as regras de direito administrativo relacionadas como o fraccionamento de prédios rústicos de área inferior à área de cultura da área geográfica da localização dos prédios.

Não se discute que os dois prédios resultantes da decisão informal têm área inferior à da unidade de cultura – 0,5 hectares – estabelecida na Portaria nº202/70 de 21 de Abril – vigente para os terrenos hortícolas de regadio; assim como não se discute que as duas parcelas resultam de fraccionamento de um prédio rústico, levado a cabo pelo pai dos Réus maridos em 1965, tendo este, por doação verbal aos seus filhos, constituído duas parcelas que, desde aí, vêm sendo possuídas por eles e que, por escrituras públicas de 3.12.2014 e 17.12.2014 justificaram a posse dos prédios rústicos identificados em 1) e 2) da matéria de facto.

 As referidas parcelas correspondem aos prédios descritos nas duas escrituras de justificação. Assente, ainda, que desde 1965, cada um dos réus “donatários” vedou a sua parcela e passou a cultivar nela diversos produtos hortícolas para consumo familiar, possuindo cada um deles uma casa de habitação implantada na respectiva parcela de terreno.    

Na sentença apelada considerou-se relevante saber em que momento operou a divisão a que se referem os arts. 1376º,nº1, do Código Civil - “Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno” e 1379º, na redacção anterior à da Lei nº111/2015[2], de 27.8 –“1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.° e 1378.°, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.°, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos. 2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte. 3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ou do termo do prazo referido no n.°1.” – designadamente saber se a divisão ocorreu nas datas das escrituras, em Dezembro de 2014, ou, por ter sido invocada a usucapião, se ocorreu na data do início dos actos de posse retroagindo a 1965, sendo que a posse dos Réus se iniciou nessa data.

Concluiu a decisão que a divisão ocorreu com a divisão material do prédio, em 1965, e, apesar de ainda não estar em vigor a Portaria n.°202/70 de 21 de Abril, (pelo que o fundamento da anulação defendido pelo autor não seria aplicável), a matéria já se encontrava regulada no art. 107° do Decreto n.°16731, de 13.04.1929 (Reforma Tributária), que proibia a divisão de prédio rústico de superfície inferior a um hectare ou de que provenham novos prédios de menos de meio hectare, normativo que se manteve em vigor até à fixação das unidades de cultura para o território de Portugal Continental pela Portaria n°202/70, conforme resulta do n.°2, da Base XXXIII, da Lei n.°2116 de 14.08.1962 e artigos 1º e 2°, da citada Portaria), concluindo-se que embora “a Portaria n°202/70 não estivesse em vigor à data da efectiva divisão material do prédio, ainda assim o fraccionamento seria proibido nos termos do referido art. 107° do Decreto n.°16731, de 13.04.1929, por dele resultarem parcelas inferiores a 0,5ha.”, entendimento que se sufraga.    

Depois, quanto à questão primordial de “saber se o reconhecimento da usucapião prevalece sobe o fraccionamento ilegal do prédio” respondeu-se afirmativamente com apoio doutrinal e jurisprudencial. Foi citado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.2.2014, Processo nº314/2000.P1.S1, in www.dgsi.pt., pelo que a acção foi julgada improcedente com a inerente absolvição dos Réus do pedido.

O Acórdão recorrido confirmou a sentença ponderando:

 “O fraccionamento de um prédio rústico pressupõe, não apenas a sua divisão em duas ou mais parcelas, mas também a respectiva transferência para dois ou mais proprietários, ocorrendo aquando da prática do ato translativo da propriedade.

No caso presente, estão em causa as duas escrituras de justificação a que respeitam os pontos 1) e 2) de 2.1.1. e as alíneas a) e b) de 2.1.2., através das quais os réus outorgantes se declararam titulares do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em cada uma identificada, especificando que lhes foi doada verbalmente pelos pais do justificante marido, não dispondo de título que lhes permita inscrever a doação no registo, e invocando a respectiva aquisição por usucapião, mencionando factos integradores de actos de posse prolongada sobre a parcela em causa.”

Destarte, o Acórdão recorrido não acompanhou a fundamentação da sentença recorrida, antes adoptando fundamentação essencialmente diferente, considerou:

             “Que o fraccionamento do prédio rústico
não se operou com as escrituras de justificação outorgadas, mas sim através da doação verbal efectuada pelos pais dos réus em 1965, de cada uma das parcelas em que dividiram o prédio a cada um dos filhos, e subsequentes actos possessórios praticados pelos réus sobre a respectiva parcela.

Conclui-se, assim, que as escrituras de justificação não configuram, por si próprias, actos translativos da propriedade, pelo que não constituem actos de fraccionamento, nos termos e para os efeitos previstos no citado artigo 1379.°, n.°1, do Código Civil, não lhes sendo aplicável o regime estatuído do preceito.”

O Acórdão recorrido, na lógica de que nem sequer houve fraccionamento, por as escrituras não configurarem “por si próprias actos translativos de propriedade”, tendo nelas sido invocada a usucapião, nem sequer apreciou se os RR. adquiriram as parcelas por tal via originária. 

Como inicialmente dissemos, a questão em apreciação tem sido objecto de diferentes soluções na Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, assim.

Os acórdãos de 30.4.2015, Proc.10495/08.9TMSNT.L1.S1; de 26.1.2016 - Proc. 5434/09.2TVLSB.L1.S1 e 6.3.2014 – Proc. 314/2000.P1.S1 - pronunciaram-se no sentido de a usucapião não prevalecer sobre as normas jus-administrativas de proibição de fraccionamento; já os Acórdãos de 4.2.2014, Proc. 314/2000.P1.S1; de 6.4.2017 - Proc. 1578/11.9TBVNG.P1.S1 (com um voto de vencido) e, mais recentemente, o Acórdão de 1.2.2018, Proc.1011/16.0T8STB.E1.S2 – como os demais, acessível em www.dgsi.pt., afirmaram, antagonicamente, que a usucapião se sobrepõe àquele regime jurídico, podendo os possuidores adquirir o direito de propriedade mesmo em caso de violação das normas relativas ao fraccionamento.

Vejamos:

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”. 

A este propósito refere Menezes Cordeiro:

       

“A usucapião em termos materiais assenta na excelência de uma posse qualificada e longa, surgindo como fonte legitimadora do domínio. O possuidor mostrou merecer ser proprietário. Paralelamente, qualquer outro pretendente veio a colocar-se, pelo seu desinteresse, na posição inversa de não merecer mais a titularidade que, de facto, enjeitou.

  Em suma: a usucapião realiza a velha aspiração histórico-social de reconhecer o domínio a quem, de facto, trabalhe os bens disponíveis e lhes dê utilidade pessoal e social”. [artigo publicado na ROA, 53º (1993), pág. 38, em excerto transcrito no “Código Civil Anotado”, de Abílio Neto, pág. 893.]

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”. 

A usucapião é um meio de aquisição originária do direito de propriedade – o aqui em causa – ou de outros direitos reias de gozo, sendo relevante a posse com as características antes referidas. A posse conducente à usucapião do direito em que se baseia, correspondente a actuação do possuidor, deve ser uma “posse de excelência” e conduz inexoravelmente à aquisição do direito a que corresponde o exercício do possuidor, a menos que, nos termos do preceito citado haja “disposição em contrário”.

Será que a proibição de fraccionamento da propriedade, no caso em violação do art. 107º do Decreto nº16 731, de 13.4.2009, vigente em 1965, quando se procedeu à divisão do prédio rústico de que era dono o doador, pai dos Réus maridos, (normativo que proibia fraccionamentos de prédios rústicos resultando da divisão parcelas de área inferior à umidade de cultura – 0,50 hectares) – constitui restrição legal impeditiva da usucapião, nos termos do art. 1287º do Código Civil, malgrado a posse exercida pelo corpus e animus dos possuidores se manter para lá 20 anos (1965/2014)?

Será que a justificação notarial para reatamento do trato sucessivo, sendo invocada a usucapião assente em acto que na sua génese era ilegal, deve prevalecer sobre a divisão fundiária se esta for ilegal?

O artigo 294.º do Código Civil estabelece que “Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”

São normas de carácter imperativo as que se relacionam com a proibição de loteamentos ilegais.

Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, in “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado”, 2012, 3ª edição, pág. 409, citando Menezes Cordeiro, “as limitações ao fraccionamento de prédios rústicos sempre visaram evitar os vários inconvenientes de ordem económica, designadamente pela menor produtividade agrícola dos prédios quando estes se reduzem a proporções muito limitadas”.

E foi assim, adiantam, “por motivos estritamente relacionados com a viabilidade económica das explorações agrícolas, que se foram criando dificuldades ou mesmo impedimentos ao fraccionamento de prédios rústicos, designadamente de todos aqueles que conduzissem a parcelas inferiores a certos limites”[3].

Ao tempo da divisão informal, vigorava o artigo 1º do Decreto-Lei n.º46673, de 29 de Novembro de 1965 que definia – “Entende-se por loteamento urbano, para os efeitos deste diploma, a operação ou o resultado da operação que tenha por objecto ou tenha tido por efeito a divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva, e destinados à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais”

Na contraposição das normas de direito privado, como a usucapião, com as normas de natureza pública jus-administrativas, importa referir a judiciosa ponderação do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.1.2016:

“A conjugação destas normas de natureza administrativa referentes ao loteamento urbano e ao destaque com as disposições do Código Civil a respeito da usucapião não tem sido pacífica na doutrina.

 Assim, pode descortinar-se uma tendência que pugna pela irrelevância das referidas disposições, face à natureza originária da aquisição da propriedade (ou de outros direitos reais menores) que decorre do instituto da usucapião.

Defende-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás da posse (cfr. Dr. Durval Ferreira, apud “Posse e Usucapião – Loteamentos e Destaques Clandestinos”, in Scientia Juridica, Tomo LII, n.º 295, Janeiro/Abril 2003, pág. 100 e ss., sendo este artigo praticamente reproduzido pelo mesmo autor in “Posse e Usucapião”, 3.ª Edição, pág. 525 e ss).

Nesse sentido, no confronto entre o interesse público que as leis referentes ao destaque e ao loteamento visam satisfazer e o interesse público que também é a razão de ser da posse e da usucapião - na medida em que conferem certeza à existência de direitos sobre as coisas e respectiva titularidade –, será de atender a este último, sendo imputável à Administração o facto de não ter actuado atempada e preventivamente por forma a impedir a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território: “dormientibus non sucurrit jus” – Dr. Durval Ferreira, ob. cit., 102.

Defende-se, pois, que face ao direito constituído, seria violar o conteúdo normativo da usucapião, a sua norma, ajuizar-se sequer que a sua invocação ao abrigo do artigo 1287.º e ss. do Código Civil ou da posse que a causa, possa ser ilícita ou nula, justa ou injusta, ou que contrarie disposições de carácter imperativo, a ordem pública ou os bons costumes, inexistindo norma excepcional que estabeleça, precisamente, que certa e determinada posse não conduz à usucapião. Em sentido diverso, sustenta-se, por um lado, que se as normas relativas ao ordenamento do território proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, enquanto resultado, também proíbem os meios indirectos de lá chegar, e por outro, que carecendo a usucapião de invocação, e sendo esta um acto jurídico dependente da manifestação de vontade, esse acto jurídico está ferido de nulidade e não poderá, pois, atento o disposto nos artigos 294.º e 295.º do Código Civil, ter por efeito a aquisição da propriedade, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fraccionamento de prédios.

Nesta linha, assinala-se o acolhimento judicial que, muitas vezes, tem merecido a invocação da usucapião ou da acessão como meio de fuga às leis sobre ordenamento do território, e criticam-se os tribunais cíveis que ao analisarem a usucapião e a acessão industrial imobiliária desprezam a legislação sobre loteamentos, esquecendo que o ordenamento jurídico é composto por normas e princípios de diversa origem e tutelando interesses diferenciados que deve visto como um todo harmónico em que a solução passa pela análise de todos os ramos de direito (cfr. Dr. António Pereira da Costa, “Loteamento, Acessão e Usucapião: Encontros e Desencontros”, in Revista do CEDOUA, n.º 11, Janeiro de 2003, pág. 95 e ss).”

Não obstante as doutas considerações, assentes em questão de contornos factualmente diversos, não sendo de desconsiderar que o regime jurídico dos loteamentos e da propriedade não estão na disponibilidade incontrolada das relações jus-privatísticas, antes e por exigência da vida colectiva e por estarem relacionadas com o ordenamento do território, sofrem derrogações e limitações impostas pelo bem público, a tendência da Jurisprudência, sobretudo, reportando a situações possessórias constituídas há longo tempo e ao instituto da usucapião têm considerado que a usucapião se sobrepõe às normas ainda que violadas do ordenamento territorial, assim tutelando a confiança e a estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo e pela publicidade da posse.

Como se lê na compilação do Centro de Estudos Judiciários, “USUCAPIÃO, ACESSÃO INDUSTRIAL E CONSTRUÇÃO CLANDESTINA, A INTERAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM O DIREITO CIVIL”, na comunicação sob o tema “Usucapião, acessão industrial e construção clandestina” do Conselheiro Salazar Casanova, pág. 87:

“Não se duvidando de que o interesse público, no que respeita às transformações fundiárias em que não se pretenda a construção, é o do emparcelamento, a usucapião seria também aqui de excluir tanto mais que a anulabilidade apenas se pode alcançar na sequência de negócios jurídicos e não por via do controlo das situações possessórias.

 O interesse público, também aqui, prevaleceria contra a usucapião que se limitaria às situações possessórias consolidadas na sequência da não impugnação de negócios anuláveis.

 No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido a usucapião no caso de fraccionamento de prédio em parcelas com área inferior à unidade de cultura”.

No “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. III, em anotação ao art. 1379º, pág. 269, nota 6, pode ler-se:

“Se, através de um negócio jurídico nulo (v. g., por falta de forma) se realizar um fraccionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.°, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais (vide, neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Outubro de 1972, sumariado no B. M. J., nº 221, pág. 280). Embora as regras sobre fraccionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º3).

 Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião”.  

No caso, o negócio jurídico que esteve na base da justificação notarial, que visa estabelecer o trato sucessivo, nos termos dos artigos 116.º, n.º3 do Código de Registo Predial e 91.º do Código do Notariado, está um negócio jurídico de doação verbal, nulo por falta de forma – arts. 940º, nº1, e 947º, nº1, do Código Civil - e a posse exercida pelo “doador” continuada pelos “donatários”, desde 1965, sendo que se aplica o regime jurídico da anulabilidade, e não o regime da nulidade constante da Lei nº111/2015, de 27.8, inexistente na ordem jurídica, ao tempo das escrituras de justificação – Dezembro de 2014.

No citado Estudo do Conselheiro Salazar Casanova, à guisa de conclusão, na pág. 94, pode ler-se:

[…]

“107. Tudo isto evidencia a complexidade da matéria respeitante às operações urbanísticas na sua conjugação com sólidos institutos de direito civil como é a usucapião.

108. Afigura-se-nos que hoje o interesse público, no tocante ao direito do urbanismo. não parece centrar-se tanto na inviabilização absoluta dos actos de fragmentação da propriedade, mas antes na edificabilidade contra legem.

109. Há, no entanto, uma ideia base que tem atravessado a nossa legislação: impedir que construção clandestina se desenvolva a coberto de operações de divisão de propriedade.

110. Por isso, não se pode aprioristicamente, perante os casos que se deparam nos tribunais, considerar que a usucapião com base numa situação possessória desencadeada sobre parcela de um imóvel que foi dividido deve ser sempre decretada por não serem atendíveis os interesses que são prosseguidos pelo direito urbanístico; tão pouco deve ser sempre negada a usucapião, por se pressupor que a divisão de um imóvel, designadamente quando se geram parcelas com área inferior à unidade de cultura, se traduz sempre numa operação de loteamento.

111. Neste ponto de interacção da usucapião e do direito do urbanismo temos por certo que os tribunais, sensata e paulatinamente, vão continuar a prestar a sua colaboração para o aperfeiçoamento do Direito”.  

 

 Concordando que, casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos actos de divisão e fraccionamento da propriedade rústica, em casos como o versado no recurso: considerando a natureza da posse exercida pelos Réus e sendo a usucapião um instituto do direito privado com enorme relevância jurídica na estabilização e consolidação de situações baseadas numa posse digna de relevância no âmbito do direito real de propriedade e atendendo a que a protecção da segurança e a da confiança na actuação dos possuidores é inerente a um direito que, nascendo ex novo, sobrepuja e desconsidera actuações, ainda que ilícitas, que não afectam retroactivamente a posse relevante e boa para a usucapião, concluímos que os Réus adquiriram o direito de propriedade originariamente pela via da usucapião.

No caso dos autos, a posse dos recorridos, porque não titulada e não objecto de registo, é de má fé, ocorrendo a usucapião ao fim de 20 anos, já consumada à data da propositura da acção.

Decisão:

Nestes termos, nega-se a revista, ainda que com fundamentação não coincidente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

 Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público – arts. 527º do Código de Processo Civil e 4º, nº1, al. a), do Regulamento das Custas Judiciais.

                                 Supremo Tribunal de Justiça,  12 de Julho de 2018

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

 

__________________
[1] Relator- Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida
[2] Este diploma, em vigor desde 30.9.2015, estabeleceu o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária, dispondo, além do mais, o seguinte: “1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376° e 1378° (…). 2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público (…). 3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto (…).” A sanção é a nulidade dos actos de fraccionamento ilegais, caducando a acção no fim de três anos a contar da celebração do acto.  
[3] Citámos do Acórdão recorrido.