Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
042042
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FEREIRA DIAS
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ19920429042042
Data do Acordão: 04/29/1992
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: ASSENTO DR 157/92 Iª SERIE A DE 10-07-1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O TRIBUNAL PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário : A inibição da faculdade de conduzir, estatuída no artigo 61.º do Código da Estrada, constitui uma medida de segurança
Decisão Texto Integral:
Acordam, em tribunal pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:

1 - AA, casado, fogueiro, com os demais sinais dos autos, veio, a fl. 276, interpor recurso para o tribunal pleno do Acórdão de fls. 271 e seguintes deste Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1991, com o fundamento de haver decidido, em oposição com o Acórdão deste Tribunal de 8 de Outubro de 1969, proferido no processo n.º 32987, que, contrariamente a este aresto, a inibição da faculdade de conduzir constitui uma pena acessória e não uma medida de segurança.

Está, assim, o acórdão recorrido em oposição, sobre a mesma questão de direito, com o Acórdão de 8 de Outubro de 1969, este último transitado em julgado.
2 - Seguiu o processo os seus regulares termos.

A fls. 16 e seguintes decidiu-se, por acórdão de 27 de Novembro de 1991:
Que existia oposição sobre a mesma questão de direito;
Que foram ambos os acórdãos relatados no domínio da mesma legislação, já que, durante o intervalo da sua prolação, não ocorreu modificação legislativa que interferisse, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida;

E que o recurso prosseguisse os seus termos.

A fls. 20 e 22 mostram-se juntas as alegações escritas, respectivamente, do recorrente e do ilustre representante do Ministério Público.

Em ambas as doutas e bem elaboradas peças processuais os seus signatários mostram-se concordes no sentido de que a inibição da faculdade de conduzir concretiza uma medida de segurança, devendo lavrar-se assento nessa conformidade.
3 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Não se vê motivo para discordar, nos termos do n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, do acórdão da secção que reconheceu a existência de oposição.

A questão problematizada no presente recurso equaciona-se, em síntese, em averiguar e julgar se a inibição da faculdade de conduzir consignada na lei estradal reveste a dignidade de uma medida de segurança ou se, ao invés, envolve a grandeza de uma pena acessória, como sufraga o acórdão agravado.
Desde já se tem de sublinhar que tal proposta questão não tem apenas carácter académico, mas é de grande relevo de natureza prática, atenta a diferente terapêutica a utilizar em determinados planos, nomeadamente nos aspectos da suspensão da execução da pena, no caso de amnistias, e na determinação da autoridade competente para operar a sua aplicação.
Preceitua o artigo 61.º do Código da Estrada, sob a epígrafe «Inibição do direito de conduzir», o seguinte:
1 - São inibidos definitivamente de conduzir e para tal fim privados das respectivas licenças:
a) ...

b) ...


c) ...


2 - Serão inibidos temporariamente da faculdade de conduzir e privados das respectivas licenças:

a) ...

b) ...


c) ...


d) ...


3 - ...


4 - ...


5 - ...


6 - ...


Além do preceito acabado de descrever, há que ter em conta a Lei n.º 3/82, de 29 de Março, em que expressamente se permite se decrete também a medida em apreço a todos aqueles que conduzam veículos sob a influência do álcool e em casos de habituação alcoólica.

Destes normativos legais se infere que a nossa lei autoriza que, ao lado das penas a aplicar aos condutores que, com culpa, tenham desencadeado acidentes, os tribunais possam aplicar-lhes outras sanções que, não sendo penas no verdadeiro sentido jurídico da palavra, pois delas se distinguem, são medidas que se destinam à prevenção criminal, tendo como silhar a perigosidade do delinquente.
Que natureza jurídica revestem tais medidas ou previdências?
Vejamos, em rápido bosquejo, o que a esse respeito tem sido perfilhado através da história doutrinal e jurisprudencial.

Várias têm sido as posições defendidas:

Pinheiro de Farinha, in Scientia Juridica, ano V, 1956, a pp. 177 e seguintes, protege a tese de que a inibição da faculdade de conduzir assumiria a natureza de pena complementar ou acessória, nos casos do n.º 2 do artigo 61.º, de efeito da pena nos casos do artigo 46.º, n.º 2, alíneas a) e b), e n.os 1 e 2, alíneas c) e d), e 4 do mesmo artigo e, finalmente, de medida de segurança nos casos previstos no artigo 46.º, n.º 2, alínea a), n.º 1, alínea e), e ainda no artigo 61.º, n.º 1, alíneas b) e c).

Cavaleiro de Ferreira, in Direito Penal, parte IV, a p. 202, defende que a interdição de conduzir seria um efeito da pena quando contribuísse uma incapacidade resultante de uma ou várias condenações penais - casos das alíneas a), b), c) e e) do n.º 2 do artigo 46.º - e medida de segurança nos restantes casos, designadamente os previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 61.º
Victor Faveiro, in Prevenção Criminal, admite a proposição de que a apreensão da carta é uma verdadeira pena acessória, podendo, porém, em certas hipóteses, ser considerada como medida de segurança aplicável administrativamente.
Maia Gonçalves sustenta no seu Código Penal, 1968, a p. 14, que a medida em estudo constitui uma pena acessória.
Há também quem tenha firmado o princípio de que, em certos casos - quando a inibição se encontra confrontada com a prática de crimes estradais -, estamos em presença de uma medida de segurança e, quando assim não suceder, a inibição reveste a natureza de uma medida de polícia (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Novembro de 1983, in Colectânea, ano VIII, 1983, 5, p. 81).
Finalmente, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça vem, desde há muito, perfilhando, una voice sine discrepante (segundo cremos, só o acórdão recorrido outro entendimento assumiu), que a inibição da faculdade de conduzir integra a natureza de uma medida de segurança.
Em tal sentido, os Acórdãos deste alto Tribunal de 8 de Abril de 1959, in Boletim, n.º 86, p. 288, 14 de Outubro de 1959, in Boletim, n.º 90, p. 423, 18 de Maio de 1960, Boletim, n.º 97, p. 218, 22 de Fevereiro de 1961, Boletim, n.º 104, p. 224, 29 de Julho de 1964, Boletim, n.º 139, p. 172, 13 de Março de 1968, Boletim, n.º 175, p. 191, 8 de Outubro de 1969, Boletim, n.º 190, p. 233, 2 de Março de 1971, Boletim, n.º 205, p. 140, 1 de Outubro de 1989, Boletim, n.º 190, p. 207, e tantos outros, cuja enumeração seria fastidiosa.
4 - Como flui de tudo quanto patente ficou, reina a maior perplexidade sobre a natureza jurídica do instituto da inibição da faculdade de conduzir.
Quid juris?

A Constituição da República, nos seus artigos 27.º, n.º 2, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 30.º, n.os 1, 2, 3 e 5, admite para a punição de crimes as penas e medidas de segurança.

Em obediência a tal catequese constitucional e no seu desenvolvimento, veio o Código Penal de 1982, que presentemente nos rege, estatuir nos seus artigos 40.º e seguintes duas importantes consequências jurídicas do crime: reacções criminais, sanções criminais ou penas e medidas de segurança.
Figueiredo Dias, a propósito do aspecto em foco, ensina, na sua docência catedrática, que, no que respeita às penas, podem estas apresentar duas facetas: as penas principais e as penas acessórias.
Constituem as primeiras todas aquelas que, encontrando-se expressamente previstas para cada tipo de crime, podem ser fixadas pelo juiz na sentença condenatória independentemente de quaisquer outras (cf. artigos 40.º e seguintes do Código Penal).
Fazem parte das segundas - penas acessórias - todas aquelas que não podem ser cominadas na sentença condenatória sem que simultaneamente tenha sido aplicada uma pena principal: o caso da demissão e da suspensão temporária da função pública e a interdição de profissões, actividades ou direitos (cf. artigos 65.º e seguintes do citado diploma).
Por outra banda e ainda no que concerne às penas acessórias, distinguem-se assim dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências - necessárias ou pendentes de apreciação judicial - determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas.
E parece que o Código Penal de 1982 terminou com o carácter necessário da produção de efeitos das penas (artigos 65.º do Código Penal e 30.º, n.º 4, da Constituição da República), chamando aos efeitos não necessários «penas acessórias», dando a estas um sentido e um conteúdo não apenas de intimidação mas de defesa contra a perigosidade individual.
Requisitos da aplicação das penas acessórias em geral são os seguintes:
1.º A condenação do agente numa pena concreta superior a dois anos (cf. artigo 66.º, n.º 3, do Código Penal); e

2.º Que a violação justificativa da pena acessória tenha de ser vista não apenas do lado do crime cometido - esse sancionado com a pena principal - mas também à luz do reflexo que este crime produz sobre a função que o agente exerce.
Por último, se assinalará que o nosso Código Penal regula nos artigos 66.º e seguintes como penas acessórias tão-somente a demissão da função pública, a suspensão temporária da função pública e a interdição do exercício de profissões, actividades ou direitos.
No entanto, isto não significa que, através de leis extravagantes, o direito não possa criar outras formas de penas acessórias, como, aliás, já se mostram criadas, nomeadamente no domínio da economia nacional (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, no âmbito fiscal, etc.)
Referentemente às medidas de segurança emolduradas no Código Penal e em leis extravagantes, dir-se-á que elas podem abarcar medidas detentivas ou privativas da liberdade - o internamento de inimputáveis - e medidas não detentivas - a interdição de profissões (cf. Lições de Direito Penal, 2, parte geral, 1988, a pp. 6 e seguintes, do citado professor).
Ainda no atinente às medidas de segurança, demos a palavra a Cavaleiro de Ferreira que, no seu Direito Penal Português, II, parte geral, edição de 1982, a pp. 356 e seguintes, escreve:
Consideramos medidas de segurança as medidas destinadas a prevenir a futura delinquência, e que têm como pressuposto a perigosidade criminal.
Quanto às medidas de segurança não privativas da liberdade, aponta três espécies:
A liberdade vigiada;

A caução de boa conduta; e


A interdição do exercício de profissões e a expulsão do território nacional.
E que ao lado da interdição do exercício de uma profissão, em casos especiais, a legislação proíbe o exercício de um direito ou de uma actividade.

De frequente aplicação é, neste particular, a inibição do direito de conduzir automóveis.
Esta inibição constitui uma inabilidade ou incapacidade (privação de um direito), que pode tomar a natureza de pena (enquanto efeito da pena), ou de medida de segurança.
Será efeito da pena, quando constitui uma incapacidade resultante de uma ou várias condenações penais.
Será medida de segurança, quando a interdição é decretada judicialmente, autonomamente ou como acessória de uma pena, e não em consequência de condenações anteriores.
5 - Estas as traves mestras que nos hão-de nortear na resolução da ardua quaestio submetida à cognição deste alto Tribunal.
Postas fora da peleja as teorias que atribuem à inibição do direito de conduzir a qualidade de efeitos penais da condenação ou de medida de política, a primeira pelas razões de que os efeitos penais não são pelo Código Penal expressamente reconhecidos, fazendo parte das penas, e a segunda pela circunstância de cortar cerce o direito que ao arguido assiste ao recurso para os tribunais, o que altamente o prejudicaria, o nosso estudo passará a ficar restringido à opção pela pena acessória ou pela medida de segurança.
Operando uma profunda meditação, a orientação que o nosso espírito melhor acolhe vai no sentido de outorgar à inibição do direito de conduzir o carisma jurídico de uma medida de segurança, pela seguinte ordem de considerações:
Em primeiro lugar, porque, como atrás se deixou exarado, para que estivéssemos em fase de uma pena acessória, consignada no artigo 69.º do Código Penal, necessário se tornaria que o arguido tivesse sido condenado numa pena, em concreto, superior a dois anos de prisão, nos termos do n.º 3 do artigo 66.º do citado diploma, requisito exigível para a observação de todas as penas acessórias (cf. Figueiredo Dias, in loc. citada, a p. 176).
Ora, no caso sub judice, o arguido mostra-se penalizado com a pena de um ano de prisão.
Isto seria o bastante para afastar, por carência de tão importante pressuposto, o ponto de vista de que nos achamos em presença de pena acessória.
Por outro lado, a pena acessória implica sempre a prática e a condenação por um crime anterior.
Acontece, porém, que há situações legais em que se torna necessária a decretação da inibição do direito de conduzir sem que, contudo, o arguido haja perpetrado qualquer infracção.
Assim, nesses casos também se teria de arredar a existência de uma pena acessória, já que esta implica sempre, nos termos dos cânones legais, a prática e a condenação por uma infracção anterior.
Mas há mais.

Em segundo lugar, uma questão de uniformização da jurisprudência.
Não será despiciendo anotar que este Supremo Tribunal, desde há mais de 30 anos, vem, sem variação ou mudança, propugnando na direcção de que a inibição do direito de conduzir constitui uma medida de segurança.

Ora, não se enxergam, a nosso ver, quaisquer argumentos - nem eles foram indicados no douto acórdão agravado - com a viabilidade bastante para desencadear o seu desmoronamento, tudo, antes, apontando no sentido da sua perfectibilidade e manutenção.
Decidir, pois, de modo diverso, rompendo com a uniformidade da jurisprudência, sem causa legítima, consituiria contrariar a uniformização da ciência do direito, a certeza desse mesmo direito e a segurança jurídica.
Por último, também não podemos olvidar que a própria lei, em todas as disposições em que faz alusão ao direito de inibição de conduzir o cognomina de medida de segurança [cf. artigos 46.º, n.º 2, alínea f), do Código da Estrada e 12.º, 13.º e 14.º da Lei n.º 3/82, de 29 de Março], circunstância que, não constituindo, é certo, um indício inteiramente peremptório - dado o préstimo tantas vezes imperfeito das classificações jurídicas pelo legislador efectuadas -, todavia, não menos verdadeiro é que ela não deixa, pelo menos, de impressionar, na medida em que o intérprete tem o dever de presumir que o legislador não só consagrou as soluções mais acertadas como soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Perante todo este cenário, há que dele extrair o seguinte guião: a inibição do direito de conduzir, no actual direito constituído, forma a essência de uma medida de segurança, em função da perigosidade do arguido, derivada de uma anterior condenação ou de qualquer outro estado legal.
E nem se diga, ex adverso, que tal regra colide com a nova orientação prescrita na revisão do Código Penal quando, na redacção dada ao artigo 69.º, expressamente a situa no território das penas acessórias, pelos seguintes motivos:
Por um lado, porque se trata de mero jus constituendo (há-de passar muita água debaixo das pontes até à sua publicação e entrada em vigor);
Por outro lado, pelas razões que aduzimos atrás, em primeiro lugar, quanto à impossibilidade de encaixilhar a inibição do direito de conduzir nas penas acessórias (cf. com interesse o n.º 2 do artigo 66.º da revisão).
Procede, assim, toda a dialéctica utilizada pelo recorrente e pelo ilustre magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.
6 - Nestes termos e pelos fundamentos expendidos, revoga-se o douto acórdão na parte em que considerou que a inibição do direito de conduzir consigna uma pena acessória e fixa-se a jurisprudência, extraindo o seguinte assento:
A inibição da faculdade de conduzir, estatuída no artigo 61.º do Código da Estrada, constitui uma medida de segurança.
Sem custas.

Cumpra-se o disposto no artigo 769.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Lisboa, 29 de Abril de 1992.


Manuel da Rosa Ferreira Dias - Afonso Manuel Cabral de Andrade - Armando Pinto Bastos - Beça Pereira - Jaime Ribeiro de Oliveira - António Cerqueira Vahia - Miguel Montenegro - Martins da Fonseca - Mário Horácio Gomes Noronha - Agostinho Pereira dos Santos - Rui Azevedo de Brito - Fernando Adelino Fabião - António César Marques - António Máximo da Silva Guimarães - Noel Silva Pinto - Bernardo Guimarães Sá Nogueira - Rui Alfredo Tato Marinho - Vassanta Porombo Tambá - Ricardo António da Velha - Victor Manuel Lopes Sá Pereira - Luís Vaz de Sequeira - José Alexandre Lucena do Valle - António de Noronha Tavares Lebre - José Magalhães - (Ilegível) - (Ilegível) - Manuel de Oliveira Matos (vencido, conforme declaração anexa) - Brochado Brandão (vencido, conforme declaração que anexo) - Mário Sereno Cura Mariano - José Saraiva (vencido, conforme declaração que junto) - Estelita de Mendonça (vencido, nos termos do voto do Exmo. Sr. Conselheiro Dr. José Saraiva) - Alberto Baltazar Coelho (vencido, nos termos da declaração do Ex. Colega José Saraiva) - Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Fernando Lopes de Melo (vencido, nos termos constantes da declaração de voto que junto) - José Henriques Ferreira Vidigal - Joaquim de Carvalho (vencido, conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Brochado Brandão) - João Figueiredo de Sousa (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Brochado Brandão) - José Maria Sampaio da Silva (vencido, por entender que a inibição da faculdade de conduzir, aplicada cumulativamente com outra sanção criminal em função do conhecimento de uma infracção penal, tem natureza de sanção acessória referida à culpa pela prática do facto).

Declaração de voto


Os quadros onde se movimenta a dogmática de ilicitude penal, e que presidem ao seu entendimento e medida, alteram-se radicalmente entre 1969 (acórdão fundamento) e 1991 (acórdão recorrido). Sumariamente, e a benefício de melhor desenvolvimento, pelo seguinte.

No plano constitucional, a lei de 1933 só referia a existência de penas e medidas de segurança, mas a actual contém uma filosofia inteiramente distinta, designadamente no que nos ocupa, e é o campo geral dos direitos, liberdades e garantias. Para não falar de esta última ser muito mais desenvolvida e pormenorizada. E tudo isso não pode deixar de informar a dúvida que nos ocupa e que tem a ver com a distinção de conceitos de penas, penas acessórias e outras medidas restritivas.
Igualmente, a própria lei penal anterior (Código Penal antigo, suas modificações até 1974) tinha a sua filosofia neste campo. Enquanto a actual, além de uma motivação completamente distinta, inova com outros tipos de reacção. Por exemplo, medidas não detentivas, entre elas a probation e, recentemente, a restrição do uso do cheque (muito afim, diga-se, à inibição de conduzir que nos ocupa).
Mais elucidativamente ainda: a sistematização pontual da lei antiga (v., entre outros, os artigos 54.º e seguintes do capítulo I do título II) muito pouco sugeria acerca da distinção. Já a actual (artigos 91.º e seguintes dos capítulos I e seguintes do título VI) sugere uma solução à questão, o que, por si só, revela não se tratar do domínio da mesma legislação.
Uma coisa é fixar conceitos, se isso for objecto da decisão. Outra, bem diversa, afirmar, decidindo, e para efeitos do artigo 763.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que se impõe harmonizar no domínio da indicação da mesma legislação. E isso não sucede na hipótese.
Abreviadamente, e resumindo, eis porque, na ausência de um pressuposto necessário, entendo não haver lugar à emissão do assento, considerando-se o recurso findo. - Brochado Brandão.

Declaração de voto


As penas têm a função de reprovar, castigar e também a função de prevenção e readaptação.

As medidas de segurança têm apenas a função de prevenção e readaptação.
As primeiras pressupõem um acto punível, uma infracção a reprovar.
As segundas pressupõem apenas um estado de perigosidade - de pessoas ou de coisas.

Tendo ambas de comum a função de prevenção e readaptação, só as penas têm a função de reprovação, castigo de um acto.
Assim, são penas - principais ou acessórias - as medidas que têm por função reprovar e castigar uma infracção; e são medidas de segurança as medidas que têm por função apenas a prevenção de infracções, por existência de um estado de perigosidade.
As primeiras destinam-se a punir actos praticados; as segundas apenas a prevenir actos futuros.
Daí que a inibição de conduzir automóveis possa ser uma pena ou uma medida de segurança, conforme os casos.
Será uma pena se decretada para pedir uma infracção.
Será uma medida de segurança se decretada, não em consequência de uma infracção, mas apenas em consequência de um estado de perigosidade.

No caso em apreço [artigo 61.º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada], a inibição da faculdade de conduzir é imposta aos condenados por crime cometido ao exercício da condução. É imposta pela prática de um crime, independentemente da existência de estado de perigosidade, pelo que tem a natureza de pena (acessória), e não de medida de segurança - o que decidiria, salvo o devido respeito pela opinião contrária. - José Saraiva.

Declaração de voto


Mantenho a posição que subscrevi como adjunto - o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves é o outro adjunto - no acórdão recorrido (lavrado com unanimidade de votos) (cf. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 1990, processo n.º 40543, sumariado na Actualidade Jurídica, n.º 5, p. 3, em que sou o relator). No actual direito constituído, a inibição do direito de conduzir é uma pena acessória, não se justificando, portanto, a revogação do acórdão recorrido na parte em discussão nem que se fixe a jurisprudência no sentido de que a mesma inibição reveste sempre a natureza jurídica de uma medida de segurança.

O que no acórdão agora votado se afirma quanto à revisão do Código Penal (v. o capítulo IV «Penas acessórias e efeitos das penas» do título III «Das consequências jurídicas do facto» do livro I «Parte geral» do projecto de Fevereiro de 1991, principalmente o seu artigo 69.º «Proibição de conduzir veículos motorizados», cf. também a secção IV «Medidas de segurança não privativas da liberdade» do capítulo VI «Medidas de segurança» do mesmo título, designadamente os seus artigos 101.º «Cessação da licença de condução de veículo motorizados» e 102.º «Interdição da concessão de licença») - revisão essa (presidida pelo Prof. Figueiredo Dias) diferente do título VI da parte geral do projecto de decreto-lei publicado nas pp. 3127 e seguintes do Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 95, de 29 de Maio de 1985, que provavelmente não demorará tanto tempo a ser publicada como no mesmo acórdão é sugerido - evidencia bem que a inibição do direito de conduzir não reveste sempre a natureza da medida de segurança.
Tal revisão constitui já o reconhecimento de que a natureza de «pena acessória» é no caso destes autos (artigo 61.º, n.º 2, do Código da Estrada) a melhor solução de jure constituindo, sendo-o por isso também de jure constituto na resolução do que o próprio acórdão agora votado qualifica como «árdua questão» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
É bastante elucidativo o que se pode ler no n.º 2.3 do Acórdão n.º 224/90, de 26 de Junho de 1990, do plenário (com unanimidade) do Tribunal Constitucional, in Diário da República, 1.ª série, de 8 de Agosto de 1990, de que é relator o Exmo. Conselheiro Mário de Brito. Destaca-se principalmente o que aí se afirma quanto ao Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril (cf. a p. 3264 do mesmo Diário da República).
Ainda elucidativo é o facto de no n.º 1 do artigo 12.º do recente Decreto-Lei n.º 454/91, no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Dezembro de 1991, se considerar «sanção acessória» a interdição temporária do uso de cheque (cf., no mesmo sentido, o deputado Costa Andrade, na reunião de 6 de Junho de 1991, in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 7 de Junho de 1991, e o Acórdão n.º 155/91 do Tribunal Constitucional de 24 de Abril de 1991, no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Setembro de 1991, também relatado pelo conselheiro Mário de Brito).
Do n.º 2 do artigo 66.º do referido projecto de revisão do Código Penal - que estabelece a proibição do exercício das profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública, por um período de dois a cinco anos, a quem no exercício dessa actividade comete crime punido com pena de prisão superior a três anos - não resulta «a impossibilidade de encaixilhar a inibição do direito de conduzir nas penas acessórias» (como aliás já se verifica entre os artigos 69.º e 97.º do Código Penal e o artigo 61.º do Código da Estrada).
Haverá apenas que concluir que estamos perante duas normas distintas: uma geral (a do citado artigo 66.º) e outra especial (a do referido artigo 69.º) - esta para quem conduzir veículos motorizados.
Compreende-se perfeitamente que o legislador considere necessárias estas duas normas, perante a diferença de situações abrangidas pelas mesmas.
No actual direito constituído, a proibição de condução de veículos motorizados pode dar lugar nalguns casos a uma pena acessória e noutras a medida de segurança (não privativa de liberdade).
Constitui pena acessória quando o condenado na proibição de veículos motorizados for punido por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário ou por um crime praticado com utilização de veículo ou cuja execução tiver sido por este facultada de forma relevante (artigo 61.º, n.º 2 e 4, do Código da Estrada).
Dá lugar à referida medida de segurança quem for condenada por crime praticado na condução de veículo motorizado ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, ou dele for absolvido só por falta de imputabilidade; é cassada pelo tribunal a licença de condução quando, em face do facto praticada e da personalidade do agente, houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie, ou dever ser considerado inapto para a condução de veículo motorizado (artigos 61.º, n.os 1 e 4, e 46.º, n.º 2 e 4, ambos do mesmo Código - cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 224/90, de 26 de Junho de 1990, in Diário da República, 1.ª série, de 8 de Agosto de 1990).
Nestes termos e pelos fundamentos expendidos, manteria o acórdão recorrido na parte em que considerou que a inibição do direito de conduzir constitui uma pena acessória e ficaria a jurisprudência pela forma seguinte:
No actual direito constituído, a inibição do direito de conduzir reveste nalguns casos a natureza jurídica de pena acessória e noutros a de medida de segurança.
Lopes de Melo.


Declaração de voto


Vencido por entender que, no caso concreto, a interdição do direito de conduzir consubstancia um efeito acessório da pena, não uma medida de segurança (que, às vezes, se configura neste domínio), a qual normalmente se destina a estabelecer um contramotivo à perigosidade do réu; esta finalidade seria impensável, do ponto de vista da prevenção, na maioria dos casos, em que se aplica a referida interdição por períodos muito curtos; além disso, sempre tal qualificação se nos afigura mais harmónica com o actual sistema jurídico-penal. - Manuel de Oliveira Matos.