Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4249/05.1TBVCT.G2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
RISCO
CONCORRENCIA
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ PROVA - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE VEÍCULOS/ TRÂNSITO DE PEÕES
DIREITO COMUNITÁRIO - SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
Doutrina: - Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, l. °, pág.536.
- Calvão da Silva, RLJ, Ano 137, nº3946 (Setembro/Outubro 2007).
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 487.º, N.º2, 503.º, N.º1, 504.º, N.º1, 505.º E 570.º
CÓDIGO DA ESTRADA (DL N.º 114/94, DE 3-5, ALTERADO PELO DL N.º 2/98, DE 3-1, E PELO DL N.º265-A/2001, DE 28-9) - CE: - ARTIGOS 24.º, 25.º, 27.º, 101.º, N.º1.
Legislação Comunitária: DIRECTIVA 72/166/CEE DO CONSELHO, DE 24/4/1972: - 3.º, N.º1.
DIRECTIVA 84/5/CEE DO CONSELHO, DE 30/12/1983: - 2.º, N.º1.
DIRECTIVA 90/232/CEE DO CONSELHO, DE 14/5/1990: - 1.º-A (INTRODUZIDO PELO ART.4.° DA DIRECTIVA 2005/14/CE.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4/10/2007, PROCESSO N.º 07B1710, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 20/1/2009, PROCESSO N.º 08A3807, EM WWW.DGSI.PT
Jurisprudência Estrangeira: JURISPRUDÊNCIA COMUNITÁRIA:
- TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA, ACÓRDÃO DE 9/6/2011.
Sumário :
I) - Os artigos 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.

II) – O Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9.6.2011, proferido no Processo em que J... M... A... L..., M... C... O... F... B..., litigavam contra a Companhia de Seguros ... S.A, afirmou na sua decisão (Terceira Secção), onde se abordava a problemática assim sumariada – “Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Requisitos de redução – Contribuição da vítima para o seu próprio dano – Responsabilidade pelo risco – Disposições aplicáveis ao terceiro menor vítima de acidente”, que: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, e 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


           

AA intentou em 3.11.2005, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – com distribuição ao 1º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo ordinário – contra:

 BB-Companhia de Seguros, S.A.

Pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 39.423,00, acrescida de juros de mora, pedido depois ampliado para a quantia de € 290.423,00.

Em síntese, alegou que foi vítima de acidente de viação de que lhe resultaram danos e que aquele se deu por culpa exclusiva do segurado da Ré.

 Contestou a Ré, impugnando os factos descritos na petição e atribuindo a culpa do acidente à Autora.

 Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a Ré do pedido, mas a Autora recorreu para o Tribunal da Relação, que, por Acórdão oportunamente proferido, ordenou a ampliação da base instrutória e anulou a resposta ao quesito 8º, com a consequente repetição do julgamento (fls. 305 ss).


***

Realizando-se a audiência de discussão, na parte determinada superiormente, veio a ser proferida sentença que, de novo, julgou a acção totalmente improcedente e voltou a absolver a Ré.


***

 Inconformada, voltou a apelar a Autora, para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de 29.11.2011 – fls. 506 a 523 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.

***         

De novo inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            1. Porque a Autora tomou precauções no início da travessia da via e foi colhida imediatamente mal rodou sobre si e que o condutor do CP ao aperceber-se da presença da Autora deveria ter reduzido a velocidade e, se necessário parar, para que esta procedesse à travessia da faixa de rodagem em segurança e não accionou o sinal sonoro buzina para assinalar a sua presença deve ser considerado o único e exclusivo responsável pela eclosão do acidente.

2. Porque o comportamento do condutor do CP ao prosseguir a sua marcha perante a presença da Autora foi de molde a inquietá-la, e tendo em conta que ali existem duas faixas de rodagem no sentido do CP, levou-a a voltar a trás para se refugiar no passeio, também deve merecer reparo.

3. Porque o comportamento do condutor do CP, apesar de detectar a presença da Autora na faixa de rodagem, de seguir sempre e não reduzir a velocidade de que ia animado e não accionou o sinal sonoro buzina, é merecedor de censura.

4. A conduta do condutor do CP é também ela causadora do acidente dos autos e deve ser considerado senão o único e exclusivo responsável pela eclosão do acidente, pelo menos em maior grau.

5. Mas ainda que não seja possível demonstrar a culpa do veículo seguro na Ré — o que se não aceita — sempre a questão deveria ser resolvida no domínio da responsabilidade pelo risco devendo fixar-se a respectiva indemnização em conformidade.

6. Deveria ter-se em conta as recentes evoluções legislativas, nomeadamente ao nível da CE, sobre o seguro obrigatório de responsabilidade civil de circulação automóvel que tem acentua a tónica no risco da circulação em detrimento da fragilidade dos demais utilizadores das vias.

7. E se assim também não for entendido, e, excluída a responsabilidade com base na culpa e a responsabilidade pelo risco, o dever de indemnizar deverá existir mesmo em caso de culpa da lesada, nos termos já preconizados pelo douto Ac. Supremo Tribunal de Justiça, Proc.nº1710/07, 2ª se pronunciou no mesmo sentido.

8. - O douto acórdão recorrido violou o disposto no art. 570º do Código Civil.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e proferindo-se acórdão em conformidade com o exposto.

            A recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


***

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            1. No dia 22 de Março de 2004, cerca das 14h00m, na Av. ..., Viana do Castelo, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...CP, conduzido por CC (seu proprietário) e a Autora – (A);

2. O CC conduzia o CP na Av. ... no sentido de marcha nascente/poente – (B);

3. A Av. ... é composta duma faixa de rodagem com a largura de 9,30 metros, cujo trânsito é feito nos dois sentidos – (C);

4. O local do acidente configura uma recta e o tempo estava “bom” – (D);

5. A responsabilidade civil por danos causados pelo CP estava transferida para a Ré através de contrato de seguro titulado pela apólice nº..., em vigor à data dos factos – (E);

6. Na altura do acidente, não existiam na faixa de rodagem quaisquer passadeiras para peões – (1);

7. Depois de sair de uma habitação sita na Av. ..., nº .., a Autora iniciou a travessia da via da direita para a esquerda atento o sentido do CP, em direcção à entrada que dá acesso ao Shopping – Estação Viana – (2, 3 e 9);

8. Momentos antes do acidente o condutor do CP seguia a cerca de 45 km/h – (4 e 8);

9. O condutor do CP embateu na Autora – (5);

10. Por força do embate a Autora foi projectada a 10,5 metros – (6);

11. O CP deixou marcados sobre o pavimento rastos de travagem com uma extensão de 12,40 metros – (7);

12. Nas circunstâncias descritas em 7. a Autora atravessou totalmente a faixa de rodagem por onde circulava o CP (que era, de entre as duas destinadas ao trânsito no sentido nascente/poente, aquela situada mais a norte) e, quando o condutor deste se encontrava a cerca de 20 metros do local onde se viria a dar o embate, a Autora, repentinamente e sem olhar ao trânsito, voltou para trás e invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o CP. Perante esse comportamento da Autora, o condutor do CP travou e tentou desviar-se para a sua direita – (10, 11 e 12);

13. Em consequência do acidente, a Autora sofreu fractura da bacia em dois locais, um corte de 15 cm de comprimento no joelho da perna direita, um corte na cabeça do lado esquerdo, hematomas e escoriações nas duas pernas, assim como dores intensas em todo o corpo – (13);

14. A Autora foi socorrida no Centro Hospitalar do Alto Minho, onde permaneceu internada até ao fim do dia 23 de Março de 2004, altura em que regressou, numa ambulância, ao domicílio da sua irmã DD, em Subportela, permanecendo aí dois dias, sob vigilância médica – (14 e 15);

15. Porque a Autora mora sozinha e precisa de ajuda de terceiros, foi transportada para a casa do seu filho EE, sita na Urbanização de P..., na Rua ... n°…° Dtº, em C… – B…, onde ficou em repouso cerca de 6 semanas, sob vigilância médica do no Hospital de Santa Maria do Porto. Após essas 6 semanas regressou novamente à casa da sua irmã, em Subportela, onde ficou novamente em repouso absoluto. Nas semanas seguintes ao acidente a Autora permaneceu em descanso absoluto porque, além das dores que sentia, tinha a bacia fracturada – (16, 17 e 18);

16. Durante todo esse período e após o acidente, a Autora sofreu dores, incómodos, aborrecimentos e transtornos, tendo passado noites de desespero, angústia e aflição – (19);

17. Consolidadas as fracturas na bacia, em meados de Junho de 2004 a Autora foi submetida a tratamentos de fisioterapia na Clínica da Sr.ª Dr.ª FF, sita na A..., que se prolongaram por 2 meses consecutivos, todos os dias, período durante o qual a Autora sofreu a praticar os exercícios fisioterapeutas – (20 e 21);

18. Em consequência das lesões sofridas, a Autora ficou portadora de uma cicatriz no joelho da perna direita e das sequelas na bacia que vão durar para o resto da sua vida – (22 e 23);

19. Por via das lesões sofridas, a Autora ficou portadora de uma incapacidade permanente geral fixável em 20%, sendo que as sequelas de que ficou portadora são, em termos de rebate profissional, impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional – (24 e 25);

20. A Autora é cozinheira de primeira classe. No exercício dessa actividade a Autora aufere mensalmente a quantia de cerca de € 500,00 – (26 e 27);

21. Por causa do acidente a Autora esteve incapacitada para o trabalho durante 85 dias, período durante o qual nada recebeu – (28 e 29);

22. Em consultas e exames para tratamentos das lesões sofridas, a Autora despendeu € l75,00 – (31);

23. Em deslocações às consultas médicas, a Autora gastou € 48,00 – (32);

24. Em consequência do acidente, a Autora viu partidos os seus óculos, no valor de € 600,00, e viu inutilizados um casaco e uma saia, no montante total de € 100,00 – (33 e 34);

25. O local do acidente configura uma recta com traçado inclinado e a descer para quem circula no sentido em que o fazia o condutor segurado na Ré – (35);

26. Não obstante o condutor do CP ter travado e tentado desviar-se para a sua direita, não conseguiu evitar o toque na Autora com a parte esquerda da frente do seu veículo – (36).

            Fundamentação:

            Sendo pelas conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber se, no caso, mesmo que não se considere ter havido culpa exclusiva do condutor do automóvel envolvido na colisão com a Autora enquanto peão, se deve considerar a existência de concorrência entre a culpa da vítima e a responsabilidade objectiva inerente à circulação do veículo conduzido pelo segurado da Ré.

            Importa, antes de mais, precisar as relevantes vicissitudes do processo, já na fase recursória no contexto da apelação da Autora.

            No recurso de apelação da sentença, o Tribunal da Relação de Guimarães, ante a questão colocada, da concorrência da culpa do peão com o risco da circulação automóvel no domínio da responsabilidade civil, que a doutrina e jurisprudência nacionais maioritárias rejeitam, a Relação, no douto Acórdão de 18.11.2010 – fls. 413 a 446 –, ordenou a suspensão da instância, tendo suscitado junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias o reenvio prejudicial, ao abrigo do art. 267°, l a) do Tratado da União Europeia, relativamente às seguintes questões:

            “a) Em acidente de viação em que intervenham um veículo automóvel e um peão que atravessa a rua e do qual resultem, para o peão, danos pessoais e materiais, a exclusão de indemnização por tais danos quando o evento danoso seja imputável ao peão, segundo a interpretação dada aos referidos arts. 505° e 570°, do Código Civil português, é ou não contrária ao direito comunitário, particularmente aos nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE) introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), (todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis), considerando a jurisprudência do Tribunal de Justiça, no que concerne às circunstâncias em que pode de ser excluída a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade automóvel? 

b) – Em caso afirmativo, ou seja, sendo contrária ao direito comunitário tal exclusão da indemnização, é conforme às citadas directivas comunitárias a interpretação daquelas normas da lei civil portuguesa, segundo a qual há lugar à limitação ou redução dessa indemnização, tendo-se em conta a culpa do peão, por um lado, e o risco do veiculo automóvel, por outro, na produção do sinistro?”

 O Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo, entretanto, proferido um Acórdão em 9.6.2011, onde abordava a problemática assim sumariada – “Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Requisitos de redução – Contribuição da vítima para o seu próprio dano – Responsabilidade pelo risco – Disposições aplicáveis ao terceiro menor vítima de acidente” – Acórdão esse proferido no Processo em que GG, HH, litigavam contra a Companhia de Seguros II S.A, afirmou na sua decisão (Terceira Secção), perante a mesma questão prejudicial, que:

“A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, e 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”. (destaque e sublinhado nosso).

            Aquele Tribunal de Justiça comunicou à Relação de Guimarães, ter sido proferido o citado Acórdão, “no processo idêntico C-409/09” (GG et II), e indagou se se mantinha o reenvio prejudicial no processo agora em apreciação, tendo a Relação, depois de ouvidas as partes, comunicado que deixara de ter interesse o reenvio – ut. despacho de fls. 500.

            O Ex.mo Presidente daquele Tribunal de Justiça proferiu despacho – fls. 533 a 504 – em 25.11.20011, ordenando o cancelamento do processo no registo do Tribunal.

            Depois foi proferido o Acórdão recorrido que, confirmando a sentença apelada, negou provimento ao recurso, por ter considerado que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima.

Não obstante, a recorrente volta a suscitar a questão que esteve na base do reenvio prejudicial, sendo certo que agora há a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, afirmando que as Directivas citadas no seu Acórdão [no “processo idêntico” C-409/09] (GG et II) “…respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.

Tal vale por dizer, que os art. 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, se interpretados no sentido que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização por lesões sofridas por ela sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com as referidas Directivas Comunitárias por competir à legislação do Estado-membro regular o seu direito interno, já que, como acentua o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, “…resulta da Primeira, Segunda e Terceira Directivas, bem como da sua redacção, que estas não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado actual do direito da União, estes são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos (acórdão Carvalho Ferreira Santos, já referido, n. °32 e jurisprudência). Esta análise é corroborada, no que respeita aos danos sofridos pelos utilizadores não motorizados das estradas, pelas disposições do artigo 1.°-A da Terceira Directiva, retomadas no artigo 12.°, n.° 3, da Directiva 2009/103” – ut. item 26. do citado Acórdão a fls. 478/479.

No Acórdão do TJUE escreveu-se, em clara síntese, no item 32, qual a questão objecto do reenvio neste processo – “A este respeito, resulta da decisão de reenvio que os artigos 503.° e 504.° do Código Civil português prevêem uma responsabilidade objectiva em caso de acidente de viação, mas que, em conformidade com o artigo 505.° deste código, a responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.°, n.°1, do referido código é excluída quando o acidente for imputável à vítima. Além disso, quando um facto culposo da vítima tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, o artigo 570.° do Código Civil português prevê que, com base na gravidade desse facto, a referida pessoa pode ser total ou parcialmente privada de indemnização”.

Não se ignora a longa controvérsia sobre a questão de saber se pode haver concorrência entre a culpa da vítima e o risco de circulação do veículo automóvel envolvido, tradicionalmente merecedora de resposta negativa, mas que foi alvo de diferente ponderação e julgamento no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.10.2007 – Relator Conselheiro Santos Bernardino – Proc. 07B1710 – in www.dgsi.pt – aí se afirmando (citação parcial do sumário):

“ […]

5. O texto do art. 505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do Código Civil.

7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.”

A doutrina do Acórdão foi aplaudida na RLJ, Ano 137, nº3946 (Setembro/Outubro 2007), em comentário do Ex.mo Professor Calvão da Silva.

Abordando a mesma problemática, mais recentemente o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 20.1.2009 – Proc. 08A3807 – in www.dgsi.pt – de que foi relator o Conselheiro Salazar Casanova, aqui primeiro adjunto, concluiu: 

“I – Se o acidente for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.

II – Admitindo-se a concorrência da culpa com o risco no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último.

III – Se um peão inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel destinado exclusivamente ao trânsito automóvel, atravessando-se subitamente e à frente do condutor que não se pôde desviar dada a proximidade entre ambos, a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo motorizado está afastada pois tais factos comprovam que o acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado”.

Entendemos que o Código Civil, atentas as normas conjugadas dos arts. art. 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º não admite a concorrência da culpa da vítima com o risco provocado pelo veículo automóvel envolvido no acidente que causa danos num peão, não sendo de abstrair qualquer consideração sobre a culpa da vítima, o que vale por dizer que este Supremo Tribunal de Justiça, tal como a sua jurisprudência maioritária, não sufragam o entendimento do concurso entre a responsabilidade subjectiva do lesado baseada na culpa, e a responsabilidade objectiva (pelo risco) inerente à circulação automóvel.

 O citado Acórdão - Processo C-409/09 - considera que as normas citadas do Código Civil,  assim interpretadas não violam as três referidas Directivas.

Dito isto, importa saber se, no caso em apreço, a responsabilidade foi exclusiva da vítima ou se os factos consentem atribui-la ao condutor do veículo envolvido na colisão que provocou danos físicos e morais à Autora.

Provou-se que a colisão se deu no seguinte quadro factual:

O acidente ocorreu entre a Autora, como peão, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula ...CP, no dia 22.3.2004 pelas 14 horas, na cidade de Viana do Castelo na Avenida ... que é composta duma faixa de rodagem com a largura de 9,30 metros, cujo trânsito efeito nos dois sentidos. CC proprietário do CP conduzia-o na Av. ... no sentido de marcha nascente/poente.

O local do acidente configura uma recta e o tempo estava “bom”.

Na altura do acidente, não existiam na faixa de rodagem quaisquer passadeiras para peões. Depois de sair de uma habitação sita Avenida ..., n°…, a Autora iniciou a travessia da via direita para a esquerda atento o sentido do CP, em direcção  à entrada que dá acesso ao Shopping-Estação.

Momentos antes do acidente o condutor do CP seguia a cerca de 45 km /h.

O condutor do CP embateu na Autora que foi projectada a 10,5 metros.

O CP deixou marcados sobre o pavimento rastos de travagem com uma extensão de 12,40 metros.

 Nas circunstâncias antes referidas, a Autora atravessou totalmente a faixa de rodagem por onde circulava o CP (que era, de entre as duas destinadas ao trânsito no sentido nascente/poente, aquela situada da mais a norte) e, quando o condutor deste se encontrava a cerca de 20 metros do local onde se viria a dar o embate a Autora, repentinamente e sem olhar ao trânsito, voltou para trás e invadiu a faixa por onde circulava o CP.

Perante esse comportamento da Autora o condutor do CP travou e tentou desviar-se para a sua direita colidindo com a Autora.

Olhemos a actuação dos protagonistas em função dos factos.

Antes importa dizer que quaisquer utentes das vias públicas, sejam peões ou veículos, motorizados ou não, devem observar as normas constantes do Código da Estrada que postulam actuações prudentes e cautelosas, sabendo-se que a utilização da via pública e o tráfego nelas existente cria risco de acidente.

O art. 101º, nº1, do Código da Estrada (DL. 114/94, de 3 de Maio, alterado pelo DL. 2/98, de 3 de Janeiro e pelo DL. 265-A/2001, de 28.9) estatui que “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”. 

Age com culpa, na acepção ético-jurídica quem adopta um comportamento censurável, que nas concretas circunstâncias não seria o adoptado por uma pessoa medianamente prudente e cautelosa.

 “A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo.

É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor.” – Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, l. °-536.

A Autora agiu com negligência ao atravessar a Avenida, repentinamente sem curar de saber se o podia fazer com segurança, o que implicava que, antes de iniciar a travessia, atentasse na aproximação de algum veículo.

Não o fez, a Autora, como se provou, “atravessou totalmente a faixa de rodagem por onde circulava o CP (que era, de entre as duas destinadas ao trânsito no sentido nascente/poente, aquela situada mais a norte) e, quando o condutor deste se encontrava a cerca de 20 metros do local onde se viria a dar o embate a Autora, repentinamente e sem olhar ao trânsito, voltou para trás e invadiu a faixa por onde circulava o CP.”. (destaque nosso)

O veículo circulava a velocidade não violadora do CE, seu art. 27º já que seguia a 45km/h, nada resultando provado sobre se, apesar da velocidade ser inferior àquela a que é permitido circular dentro das localidades, era excessiva tendo em conta as circunstâncias do tráfego.

A causa do acidente foi o facto da Autora atravessar a via repentinamente e sem olhar ao trânsito, voltando para trás, o que induz que a decisão da travessia foi imponderada e tomada impulsivamente, não atentando na aproximação do automóvel que estava a cerca de 20 metros do local onde viria a dar-se a colisão.

 O seu comportamento foi descuidado e imprudente, não sendo compatível com o padrão de actuação, em abstracto, de uma pessoa prudente – o paradigma do bonus pater familias – art. 487º, nº2, do Código Civil.

Por sua vez o condutor do CP, circulando à velocidade referida, viu, subitamente, invadida a faixa de rodagem por onde circulava e, apesar de ter travado e se desviar para a direita, não conseguiu evitar a colisão.

Pese embora o rasto de travagem que o veículo deixou, com uma extensão de 12,40 metros, isso não revela, por si só, que a velocidade que imprimia ao veículo fosse excessiva.

A tentativa de evitar o acidente com a travagem brusca, ante o inopinado da travessia da Autora, desencadeou a manobra de emergência – travagem e desvio para a direita.

 Não se provou a que distância o condutor poderia ter avistado a Autora, sendo relevante o facto causal desta ao atravessar a via sem atentar no trânsito, porque se o tivesse feito estando o veículo já muito perto, a cerca de 20 metros do local onde viria a dar-se a colisão, tê-lo-ia avistado.

O condutor do CP não circulava a velocidade excessiva, considerando os normativos dos arts. 24º, 25º e 27º do CE, atendendo, sobretudo, a que estava obrigado a regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, pudesse em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade fosse de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (citado art. 24º).

Concluímos, assim, como as instâncias, que o acidente se deu por culpa exclusiva da Autora, cuja conduta foi causa adequada e determinante do acidente.

Assim sendo, não existindo qualquer presunção legal de culpa do condutor, e estando a Autora onerada com a prova da culpa do lesante, que não almejou – art. 342º, nº1, do Código Civil – a responsabilidade do segurado da Ré é excluída por força do art. 505º do Código Civil, que consigna –  “Sem prejuízo do disposto no art.570º, a responsabilidade fixada pelo nº1 do art.503º só é excluída quando o  acidente for imputável ao próprio lesado  ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

Destarte o recurso soçobra.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Autora/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

                                                 

  Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Maio de 2012

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale