Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3227
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: SUBTRACÇÃO DE MENOR
SEQUESTRO AGRAVADO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
INTERPRETAÇÃO DAS SENTENÇAS
DIREITO AO SILÊNCIO DO ARGUIDO
DOLO
INDEMNIZAÇÃO
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
IMPOSIÇÃO DE DEVERES
Nº do Documento: SJ200801100032275
Data do Acordão: 01/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO ARGUIDO E PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário :
1 – A Relação, sendo um tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto. Essas conclusões ou ilações escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar.

2 – O direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, ou seja, abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e a questão da culpabilidade, que comporta excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 desse art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais.

3 – Tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio.

4 – Como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica, pois não obstante a sua característica de acto de autoridade, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil.

5 – Se no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância se escreve que o colectivo de juízes decidiu absolver o arguido da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal, mas na fundamentação da decisão se tiverem por verificados dois crimes: de sequestro agravado e de subtracção de menor, em concurso aparente entre esses dois crimes e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena, é esta luz que deve ser interpretado o dispositivo.

6 – E se o arguido ao recorrer para a Relação não impugnou a decisão da 1.ª instância quanto à verificação do crime de subtracção de menor, se vier a cair a condenação pelo crime de sequestro, desaparecendo o concurso de infracções, só resta determinar a pena a aplicar por aquele crime.

7 – Mostrando-se preenchidos os crimes de subtracção de menor e de sequestro, verifica-se um concurso aparente a punir no quadro do crime de sequestro.

8 – No crime de subtracção de menor censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela, estabelecendo-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio.

9 – Prevêem-se três situações delituosas: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado, isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele.

10 – Há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda, residindo aqui a tónica criminosa, pois, na retenção sem justa causa.

11 – Estando assente que foi o arguido notificado da sentença judicial que regulou o exercício do poder paternal da menor e determinou, a atribuição ao assistente, pai desta, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente, bem sabendo que a isso estava obrigado, verifica-se o crime de subtracção de menor.

12 – O Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05), entendeu que se verificava, no caso, concurso aparente entre um crime de sequestro agravado e um crime de subtracção de menor a punir no quadro do crime de sequestro, com o dolo genérico, em relação a este último, a consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.

13 – Não se ofereceram então dúvidas sobre a verificação do dolo do agente que levara a menor da presença da mãe, que exercia o poder paternal, contra a vontade desta, inesperadamente, para local desconhecido onde a mantém, impedindo os contactos, sem a menor se poder movimentar livremente, através da sua mãe, utilizando-a como instrumento de vingança, sofrimento e dor, contra esta e sua família, procurando, assim, levar a mãe da menor a reatar o relacionamento amoroso, ameaçando-a de, em caso negativo nunca mais voltar a ver a filha. Ou seja, o agente agiu com a intenção de privar a menor da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço, para poder utilizar essa situação como um elemento de pressão que levasse a mãe daquela a realizar um desejo seu (reatamento da vida em comum), condicionada por aquele confinamento.

14 – Mas, tal não acontece, mostrando-se afastado o dolo de seuqestro, quando, como no caso presente, a própria decisão recorrida entendeu que:
– O «arguido previu e quis agir com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor ao assistente, pessoa que sabia que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente (…) Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios»;
– «A circunstância de o recorrente ter recebido a menor da mãe, pouca importância tem, a partir do momento em que nenhuma lei ou decisão judicial conferiu ao arguido e sua mulher o direito de a levar e de a conservar consigo nas circunstâncias em que o fez, desconhecendo se o pai estava de acordo com a entrega e mais tarde, retiveram-na sabendo que fora atribuído o poder paternal ao pai, o assistente»;
– «Por outro, e fundamentalmente, porque o arguido e sua mulher, negaram o acesso dos pais (pai e mãe) à menor não deixando sequer vê-la, não a apresentando ao tribunal nem ás autoridades, agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor»;
– Levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais. Deste modo quis fazer nascer laços de amor da criança para com eles, com o decorrer do tempo, fazendo-se passar por pais, apagando a personalidade da menor, mudando-lhe até o nome, tudo para poder alegar o interesse superior da menor. Para justificar a sua actuação, criou através da ficção uma realidade familiar à menor, que não existia.»

15 – Então está bem patente o dolo do crime de subtracção de menor, na modalidade de recusa da sua entrega a quem estava legitimamente confiado. O arguido e mulher mantiveram a menor fora do alcance do assistente e das autoridades judiciais e policiais, somente como forma de consumarem o crime de subtracção de menor, mas não se deve afirmar a existência de um dolo genérico autónomo e próprio do crime de sequestro, mas um intensíssimo dolo em relação ao crime de subtracção de menor.

16 – Os desenvolvimentos no processo de regulação do poder paternal, documentados no processo, permitem concluir que a menor foi cuidada neste tempo e que o recorrente persiste na sua tentativa de obstar ao exercício efectivo pelo assistente do poder paternal.

17 – Faltando o elemento subjectivo do crime de sequestro não pode manter-se a condenação do arguido por esse crime, o que não significa, como se viu, que deva ser de todo absolvido da acusação oportunamente formulada contra si.

18 – Afastada a prática do crime de sequestro, afastado fica o concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente continua punível, mas agora no quadro exclusivo do crime de subtracção de menor, pelo que haverá que individualizar judicialmente a pena.

19 – De acordo com a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao art.249.ºdo C. Penal, a conduta do arguido é hoje punível com prisão de 1 a 5 anos, mas de acordo com o disposto no n.º 4 do art.2.º do mesmo diploma, aplicar-se-á a pena prevista na redacção vigente à data da prática dos factos: prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

20 – Não é de optar pela pena de multa, dadas as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta que não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta, não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa.

21 – Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente e o dolo directo e intensíssimo, estando provado, neste domínio e em síntese, que o arguido:
* Impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultado o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência, apesar de saber que este tinha juridicamente a sua guarda e direcção, e que lhe incumbia educar e tratar a filha, com quem deveria viver, privando pai e filha da companhia um do outro.

* Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão.

* Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Sabia que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
* Isto quando logo em 27.2.2003 o pai da menor manifestou ao Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e de ficar com a menor à sua guarda e cuidados e imediatamente procurou a filha, deslocando-se à residência do arguido, logo que conheceu o local onde esta se encontrava aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência, o nunca lhe foi permitido, mesmo durante o Processo de Regulação do Poder Paternal, cujo desfecho lhe foi favorável, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, mensal e em determinadas alturas, semanalmente, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
* O arguido, não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor.
* O pai da menor, quis e quer, desde que o soube ser o pai, assumir-se realmente como tal, não pode, como desejava, dar-lhe os cuidados e atenção de pai, apresentá-la à sua família, inseri-la no seu agregado familiar, quando organizou a sua vida nessa perspectiva. Sendo grande a sua tristeza, angustia e desespero, ao ver-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva, filha por causa da actuação do arguido e esposa,
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: o arguido agiu sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. Não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor e adoptou uma atitude de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do pai em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha”.
* Pretendia o recorrente, com a sua conduta, evitar a entrega da menor ao pai e ficar com ela como se sua filha fosse. Mas, como se refere no acórdão recorrido, «ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem » (…) «Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança.»
As condições pessoais do agente e a sua situação económica: o arguido é sargento do Exército e é casado.
A conduta anterior ao facto e posterior a este: o arguido não tem antecedentes criminais;

22 – A esta luz as enormes exigências de prevenção geral de integração e de intimidação impõem a aplicação de uma pena que coincide com o limite máximo da respectiva moldura penal abstracta: 2 anos de prisão, pena que é consentida pelo muito intenso dolo com que o arguido agiu.

23 – A circunstância de só o arguido ter recorrido da condenação confirmada pela Relação significa eu não lhe pode, por isso, ser aplicada uma pena mais grave do que a que lhe fora infligida pela Relação: 3 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, com as condições mencionadas, o que dispensa o Supremo Tribunal de Justiça de analisar que se seria ou não de suspender a execução da pena de prisão. Com efeito, tem entendido, este Supremo Tribunal de Justiça que em recurso só trazido pelo arguido, este não pode ser penalizado mais gravemente do que na decisão recorrida, por virtude do princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP, tal como vem entendendo.

24 – Assim a pena de 2 anos que agora se aplica pelo crime de subtracção de menor, vai suspensa na sua execução por 2 anos, subordinada ao cumprimento pelo arguido dos seguintes deveres, nos termos do n.º 1 do art. 51.º do C. Penal:
– Apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença.
– Cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal.

25 – Não se retoma o estabelecimento do objectivo fixado, pela Relação, para a apresentação da menor (o de os técnicos promoverem a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores), pois que os desenvolvimentos posteriores do processo de regulação de poder paternal, documentados nestes autos, com as dificuldades sentidas pela competente Secção Cível da Relação de Coimbra na definição precisa do tempo e modo da aproximação da menor ao assistente seu pai, significa que a manutenção desse dever iria interferir no procedimento que vem sendo seguido no processo de regulação do poder paternal.

26 – Agiu, assim, ilicitamente o arguido, pelo que estando demonstrados os danos causados pela sua conduta, não podia o mesmo deixar de ser condenado no pagamento de uma justa indemnização.

Decisão Texto Integral:


1.
O Tribunal Colectivo de Torres Novas decidiu absolver o arguido AA da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1 al. c) do C. Penal, mas condená-lo como autor material de um crime de sequestro do art. 158.º n.ºs 1 e 2 als. a) e e) do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão e condená-lo no pagamento ao assistente da quantia de 30.000 acrescida dos juros moratórios legais vencidos desde a notificação para contestação acrescida ainda da quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença devida por danos não patrimoniais ocorridos até à entrega efectiva da menor; bem como na quantia também a apurar em sede de liquidação de sentença devida para ressarcimento dos danos não patrimoniais causados à menor CC contados até à sua cessação.
Dessa decisão recorreram para a Relação de Coimbra, o Ministério Público, sustentando a diminuição da pena para 4 anos de prisão e o arguido impugnando a matéria de facto apurada, a fundamentação da decisão e a condenação pelo crime referido.
Aquele Tribunal Superior (proc. n.º n.º 317/04.5TATNV.C1) concedeu parcial provimento aos recursos e decidiu manter a decisão recorrida na parte em que condena o arguido como autor material do crime de sequestro dos art.º 158º, n.ºs 1 e 2, als. a) e e)do C. Penal mas reduzindo a pena a 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos na sua execução, com as condições de o arguido apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, no prazo a fixar por estes, com vista a que estes técnicos promovam a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores, facto a ser certificado pelo IRS, que juntará, ao processo, relatório; apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença; cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal, tudo isto acompanhado e sob controlo do IRS.
No mais foi mantida a sentença recorrida, designadamente quanto à condenação em indemnização.
Inconformados, recorrem o arguido e o Ministério Público.
O arguido suscita as seguintes questões: (i) erro notório na apreciação da prova (conclusão 1.ª); (ii) oposição entre os factos provados (conclusão 2.ª); (iii) nulidade do acórdão (conclusões 3.ª e 11.ª); (iv) inconstitucionalidade da interpretação feita da norma do n.º 1 do art. 343.º do CPP (conclusão 4.ª); (v) verificação do crime de sequestro (conclusões 5.ª a 20.ª); (vi) conflito de deveres (conclusão 21.ª); (vii) erro sobre a ilicitude (conclusões 22.ª e 23.ª); (viii) dolo (conclusões 24.ª e 25.ª); (ix) atenuação especial da pena (conclusão 26.ª); (x) medida concreta da pena (conclusões 27.ª a 29.ª) e (xi) condenação na indemnização civil (conclusões 30.ª a 32.ª)

O assistente BB respondeu concluindo que não ocorreu qualquer nulidade, que foi cometido o crime de sequestro agravado, e que deve manter-se na íntegra o acórdão recorrido.

Na sua resposta, o Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluiu que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, sem prejuízo do entendimento assumido no seu recurso e ser confirmado, quanto ao mais, o douto acórdão recorrido.

Por sua vez, o Ministério Público pôs em causa, na motivação do seu recurso, a questão do objectivo fixado pelo Tribunal a quo para o dever de apresentação da menor imposto ao arguido.

Distribuídos os autos neste Tribunal, teve vista o Ministério Público que, sem prejuízo de alegações orais, antecipou, no que respeita ao recurso do Ministério Público e pelos fundamentos dele constantes, que entende merecer o mesmo provimento, por não poder subsistir a condição de suspensão da execução da pena por duas razões: ao condicionar a suspensão à actividade de terceiros (pedopsiquiatras e IRS), impõe uma regra de conduta que não está na disponibilidade do condenado; caso se entenda que este segmento é uma ordem dirigida exclusivamente aos pedopsiquiatras e IRS, certo é, como consta da motivação do recurso, que a mesma pode colidir com a actividade que lhes for determinada na sede própria para defesa dos interesses da menor (regulação do poder paternal).

Quanto ao recurso do arguido, acompanhou a resposta do Ministério Público na Relação (fls. 2299-2306), aditando que o pretendido reexame da matéria de facto, mormente a verificação dos vícios do art.º 410, n.ºs 1 e 2 do CPP, apreciados pela Relação, escapa aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal.
Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP e juntos documentos respeitantes à regulação de poder paternal.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência.

Cumpre, pois, conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

As primeiras questões suscitadas pelo arguido prendem-se com a crítica da decisão tomada pelas instâncias quanto à questão de facto.

2.1.1.
Erro notório na apreciação da prova e oposição entre os factos provados
Sustenta o recorrente que se verificou erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal a quo, que considerou não provados os factos alegados nos art.ºs 6°, 9°, 10º, 14°, 17°, 22° e 23° da contestação, que resulta da própria fundamentação do acórdão recorrido, que pressupõe a prova de tais factos e que o art. 410.º 2 c) do CPP permite que este Supremo Tribunal de Justiça conheça desse erro notório (conclusão 1).
E alega que se verifica oposição entre os factos provados em 3. 2, 5. 68, 69, 70, 72, 76, 77, 78, 79, 80 e 81 e o provado em 34 (conclusão 2).

É jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal (cfr. v.g., o AcSTJ de 08/02/2007, proc. n.º 159/07-5, www.stj.pt) que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação.

Mesmo em relação às decisões na al. d) do art. 432.º o âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal é fixado na própria alínea e não no art. 434.º do CPP, o que significa, que, mesmo relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito.

Nos recursos interpostos da 1.ª Instância, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação, que, nos termos do art. 428.º, n.º 1 conhece de facto e de direito, e o recorrente já se dirigiu à Relação.

Com efeito, e como este Tribunal tem insistentemente proclamado, em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427.º do CPP). E só excepcionalmente – em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» – é que é possível recorrer directamente para o STJ (art.ºs 432.º, d), e 434.º).

Ora, como resulta do exposto, o presente recurso – proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) – visa, no ponto em causa, fundamentalmente, o reexame de matéria de facto e não exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art.º 434.º do CPP) que, no caso do Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação, se chamada a intervir) dos factos provados.

E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso – manteve-os, definitivamente, no rol dos «factos provados».

De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do PP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).

Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).

Hoje, pretendendo-se impugnar um acórdão final do tribunal colectivo:

– se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça;

– ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º).

Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.

O que significa que está fora do âmbito legal do actual recurso a reapreciação da matéria de facto, mesmo com base em vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.

Para mais quando, como no caso, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal ora recorrido, não se vislumbram vícios a que fosse mister dar resposta.

2.1.2.

Nulidade do acórdão recorrido e inconstitucionalidade da interpretação feita do art. 343.º, n.º 1 do CPP.

Defende o arguido que o acórdão recorrido é nulo pois decidiu com base em matéria de facto que não está provada e não foi sequer incluída na acusação, sendo nulo por força do disposto no art. 379.°, n.º 1, al. b) do CPP (conclusão 3) e o condena com base em teorizações acerca da vida e da personalidade da menor que, não só não estão provadas como resulta dos autos, a sua desadequação à realidade (conclusão 11).

Parte do seguinte trecho da decisão recorrida (fls. XL):

«Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança» (fls. 2193).

Vejamos, pois.

Em primeiro lugar esse trecho tem de ser contextualizado.

Situa-se na análise da culpa do arguido, e da sua pretensão de ter agido na defesa do interesse da menor, das razões que invocou para ter agido assim.

Imediatamente antes escreveu-se:

«O recorrente agiu com dolo intenso.

O seu comportamento é passível de um forte juízo de censura (leia-se Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2006, in www.stj processo 05P3127 JST000) já que ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento, com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem, revelou um profundo desprezo por um ser humano completamente desprotegido e indefeso (confira Acórdão citado).

E não se invoque quaisquer fundamentos sentimentais, morais ou emocionais, para justificar a conduta; acresce que para considerar a conduta do arguido semelhante à de pai teria de demonstrar que tinha o especial dever de zelar pelo bem-estar e segurança da menor.

Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança» (realçado e sublinhado agora)

Como diz o Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão citado) tem de se valorar o comportamento de não revelar o paradeiro da menor, mantendo-a privada da protecção e carinho paternos e causando sofrimento ao pai.

E não valem aqui as teorias do enamoramento e do encantamento (leia Albertoni A Génese) para se criar uma figura, inexistente quer na fenomenologia natural quer no mundo do direito – o pai afectivo. As figuras do pensamento moral e emocional são valiosas mas fogem ao mundo do direito.»

E continua a decisão recorrida por mais de 5 páginas, discorrendo sobre o que se deve entender pelo interesse da criança (fls. 2153 a 2158).

Tinha, pois, a decisão recorrida que apreciar a alegação a propósito desenvolvida pelo recorrente na sua motivação de recurso (cfr. designadamente fls. 2116, dos autos – IV do acórdão), o que implicava apreciar e decidir sobre os motivos da sua conduta.

Manteve-se, assim, o Tribunal recorrido nos limites do objecto do recurso, tal como foi configurado pelo próprio recorrente, pelo que, diferentemente do que sustenta o recorrente, não se socorreu de matéria de facto não provada, nem incluída na acusação.

Socorreu-se tão só da matéria de facto dada como provada na 1.ª Instância, dentro do objecto da discussão da causa que é, não se esqueça, delimitada pelo n.º 4 do art. 339.º do CPP («4 - Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º.»).

Por outro lado, a Relação, sendo um Tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto.

Com efeito, vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça que essas conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto directamente provada, são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar (AcSTJ de 22/02/2007, proc. n.º 147/07-5. No mesmo sentido os AcSTJ de 30/11/2000, proc. n.º 2808/00-5, de 22/02/2001, proc. n.º 4129/00-5, de 05/04/2001, proc. n.º 961/01-5, de 11/10/2001, proc. n.º 2363/01-5, de 18/10/2001, proc. n.º 2147/01-5, de 16/05/2002, proc. n.º 1384/02-5, de 16/05/2002, proc. n.º 1382/02-5, de 12/12/2002, proc. n.º 3722/02-5 e de 16/01/2003, proc. n.º 3569/02-5, todos com o mesmo relator).

Ora, não só não impugna o recorrente essas ilações, limitando-se a dizer que não é matéria provada, como não alega sequer que assim tenha sido alterada a matéria de facto directamente provada e não meramente desenvolvida, como é consentido.

O que bastaria para afastar a sua crítica.

Deve, no entanto, dizer-se que não vê este Supremo Tribunal de Justiça que, no caso, as afirmações da decisão recorrida a que se refere o recorrente, desenvolvimentos da matéria de facto directamente apurada, a alterem.

Com efeito, vem, além do mais provado que:

«59- A situação de afastamento, ocultação e recusa de entrega da menor é de tal modo prolongada, que a parte considerável e essencial da sua infância se está a desenvolver fora da convivência da família biológica desta.
60- O demandado e esposa vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, como bem entendem, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, seu representante legal e a quem compete decidir sobre a vida daquela e contra a vontade presumida da menor.
61- Fazem-no bem sabendo que aquela não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar, impedindo-a de ser deslocada para onde o seu pai bem entende em conformidade com os interesses da FILHA, o qual tem o poder-dever de cuidar dela e sempre esteve, em oposição aos demandados, que nenhuma decisão administrativa ou judicial têm que lhes legitimasse a sua actuação.
62- Mais, impedindo a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai.
63- Impedindo a menor de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe.
64- Mantendo a menor oculta, longe de lugares públicos, privando-a da sua liberdade, retendo-a fora da esfera de actuação, inclusive, das autoridades judiciária e policial, que ainda ao presente a tentam localizar.
65- Privando-a de frequentar um infantário, com o propósito de obstar a que a menor seja entregue ao Progenitor, como era já exigível, face à idade que tem, de lhe ser propiciado o convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação.
66- O arguido e esposa sabem que quanto mais prolongarem no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso será para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
67- Invocando fazê-lo no interesse da menor.»

Afastada a arguida nulidade do art. 379.°, n.º 1, al. b) do CPP, cumpre ponderar a arguição de inconstitucionalidade da interpretação feita do n.º 1 do art. 343.º do CPP.

Entende o recorrente, já se disse, que essa interpretação viola o art. 32.° da Constituição, no sentido de o exercício do direito ao silêncio pelo arguido demonstrar “uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança” (conclusão 4).

Mas não fundamenta essa posição, limitando a afirmar que esse trecho do acórdão se fundou no seu silêncio.

Ora, a transcrição feita da decisão recorrida logo demonstra o infundado de tal arguição.

Como se viu da contextualização feita, o acórdão recorrido não extrai a consideração dessa personalidade do recorrente do exercício do direito ao silêncio pelo arguido, mas sim, como é dito expressamente, da conduta do arguido, tal como resulta da matéria de facto provada.

Com efeito, lembre-se que no trecho em causa se escreveu: «como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em…». (realçado e sublinhado agora)

Ou seja, o juízo do Tribunal recorrido sobre a personalidade do arguido resultou da apreciação e interpretação das circunstâncias de facto provadas e não do facto de este ter feito uso do seu direito ao silêncio.

Não vê aonde e como fez o Tribunal recorrido interpretação e aplicação inconstitucional da norma do art. 343.º n° 1 do CPP, desfavorecendo-o recorrente por ter optado por não prestar declarações em julgamento. Nem o recorrente nos elucida. O que, só por si, levaria a improcedência desta alegação.

Diga-se, ainda, que a mesma alegação não levaria, em todo o caso ao efeito pretendido.

Dispõe, com efeito, aquele n.º 1 que o presidente do tribunal informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê­lo.

Mas já o art. 61.º do mesmo diploma elenca, entre os direitos do arguido o de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar [n.º 1, al. c)]. Mas logo limita esse direito ao prescrever o dever de responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais [n.º 3, al. b)].

De salientar, pois, que o direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, como dispõe a norma do n.º 1, al. c) do art. 61.º do CPP.

Na verdade, também lembra o Tribunal Constitucional que o «direito ao silêncio» conhece, no domínio do Código de Processo Penal, algumas excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 do art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais.

Acrescenta – AcTC n.º 695/95 de 05.12.1995 – «nestes termos e no seu recorte legal, o direito ao silêncio do arguido abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e sobre a questão da culpabilidade, deixando a lei, em princípio de fora, a questão da sua identidade e dos antecedentes criminais do arguido. (…) Consagra-se aqui o direito ao silêncio do arguido no que respeita aos factos que lhe são imputados e, bem assim, caso tenha feito quaisquer declarações sobre eles, silenciar posteriormente outras questões sobre o seu conteúdo. Este direito ao silêncio está directamente relacionado com o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da Constituição). Com efeito, o interrogatório do arguido – exceptuadas as declarações finais antes do encerramento da audiência de julgamento, em que é perguntado se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa (artigo 361º do CPP) – pode vir a ser utilizado como um meio de prova: as declarações do arguido podem constituir um importante meio de obter a verdade material dos factos, ponto é que se respeite a livre determinação da sua vontade.»

E no AcTC n.º 127/07 de 27.2.2007, tratando das perguntas sobre a identidade e os antecedentes criminais, escreve-se «gozando o arguido do direito ao silêncio não só quanto aos factos que lhe forem imputados como também quanto ao conteúdo das declarações que sobre eles prestar, pode esta obrigatoriedade de responder às perguntas sobre a identificação e sobre os antecedentes criminais feitas nesta fase processual violar tal direito? A resposta não pode deixar de ser negativa. Em primeiro lugar, não pode aqui afirmar-se a violação da presunção de inocência do arguido: não se trata agora de utilizar as declarações deste como meio que pode influenciar a prova, o que sempre poderia afectar a sua dignidade pessoal, que o processo penal tem sempre de preservar, mas tão-somente de recolher elementos indispensáveis sobre a situação criminal do arguido, uma vez que o processo não está ainda em condições de ter adquirido tais elementos, na sua forma oficial, isto é, através da requisição do respectivo certificado de registo criminal.» (sublinhado agora)

O mesmo Tribunal, ponderou o alcance desse direito, limitando-o, no caso de livre valoração e depoimentos indirectos e concluiu que o art. 129º, nº 1 (conjugado com o art. 128º, nº 1) do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional. (AcTC n.º 440/99 de 8/7/1999)

Ora, como se viu, o trecho do acórdão recorrido, de que parte o recorrente, não se prende com os factos de que é acusado ou declarações que prestou anteriormente sobre eles, núcleo essencial protegido pelo direito ao silêncio, mas sim sobre a sua personalidade.

E situou-se o Tribunal recorrido na senda da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça de que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio (cfr. AcSTJ de 21/02/2006, Proc. º 260/06-5 e de 24/10/2001, Proc. nº 2762/01-3).

Tem entendido, este Supremo Tribunal, que:

– Na avaliação da personalidade não está em causa o direito ao silêncio, em ordem a extrair deste um juízo desfavorável relativamente àquela. Porém usando o arguido daquele direito, fica impedido o tribunal de se socorrer de elementos que poderiam levá-lo a uma atitude de compreensão em termos de culpa, susceptível de se repercutir na medida da pena e no prognóstico do seu comportamento futuro, com interesse para as exigências de prevenção especial e da própria necessidade da pena. (AcSTJ de 30/10/1996, Proc. nº 59/96)

– Resultando da factualidade provada e respectiva motivação que o arguido, usando do direito ao silêncio, não prestou quaisquer declarações em julgamento, e não podendo, obviamente, ser prejudicado por isso, certo é que impediu, desse modo, que o tribunal tivesse um melhor acesso à sua personalidade, condições de vida sócio-familiares, e perspectivas de reinserção social. (AcSTJ de 10/03/2004, Proc. nº 258/04-3)
– Um arguido que mantém o silêncio em audiência, não pode ser prejudicado, pois não é obrigado a colaborar e goza da presunção de inocência, mas prescinde assim de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal. Daí que quando tal suceda não possa pretender que foi prejudicado pelo seu silencia. (AcSTJ de 20/10/2005, Proc. nº 2939/05-5)
– O privilégio contra a auto-incriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado, a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória. Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática e actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto. (AcSTJ de 05/01/2005, Acs STJ XIII, 1, 159)
– Esta exigência de interiorização nada tem a ver com a problemática da não exigência de auto-incriminação, que se funda no facto do arguido não dever ser obrigado a concorrer para a descoberta da verdade servindo de meio de prova (direito de defesa). No entanto, se o arguido decidir não contribuir para a descoberta da verdade, também não pode pretender que o tribunal reconheça o que ele próprio não foi capaz de reconhecer. (AcSTJ de 27/04/2006, Proc. nº 794/06-5)
– Um arguido que mantém o silêncio em audiência, não pode ser prejudicado, pois não é obrigado a colaborar e goza da presunção de inocência, mas prescinde assim de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal. Daí que quando tal suceda não possa pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio. (AcSTJ de 14/06/2006, Proc. nº 2175/06-5)
– O uso do silêncio a perguntas feitas por qualquer entidade, designadamente no decurso do julgamento, não pode prejudicar o arguido, pois é um direito consagrado na lei (arts. 61.°, n.º l, al. c), e 343.º, do CPP). Todavia, ao não falar, o arguido prescinde de poder gozar de circunstâncias atenuantes de relevo, como sejam a confissão e o arrependimento. Por outro lado, embora a mentira do arguido não seja sancionada penalmente, também não é um direito que lhe assiste, pelo que a tentativa de enganar a investigação e de prejudicar gravemente outra pessoa cuja responsabilidade é menor representa uma conduta processual censurável. (AcSTJ de 14/07/2006, Proc. nº 3163/06-5).
Não merece, pois, a pretendida censura, o decidido recorrido.
2.2.

É a seguinte a factualidade apurada (transcrição):

Factos provados
1- CC nasceu no dia 12 de Fevereiro de 2002 e encontra-se registada como filha de DD (por óbvio e manifesto lapsus calami na sentença escreveu-se Rute) e do assistente BB. Doc de fls. 46 cuja certidão se encontra junta a fls. 505
2- Em 28 de Maio de 2002, a referida DD entregou a menor CC ao casal constituído pelo arguido AAe EE. Doc. De fls. 46 cuja certidão se encontra junta a fls. de fls. 509.
3- Nos autos do Processo de Regulação do Poder Paternal nº 1.1A9/03.3TBTNV, do 2° Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Novas, foi proferida sentença, datada de 13 de Julho de 2004, que determinou, a atribuição ao assistente BB, pai da menor CC, do desempenho do poder paternal. Doc. de fls. 46 cuja certidão se encontra junta a fls. 507 a 529.
4- Desde essa data, é o assistente BB que detém o exercício da autoridade paternal sobre a menor CC, a qual ficou confiada à sua guarda e cuidados. (Matéria de direito)
5- Tendo sido devidamente notificados da sentença que regulou o poder paternal da menor CC, referida em 3), o arguido e sua esposa EE interpuseram recurso de tal, decisão. (doc. fls. 531)
6 - No entanto, foi proferido despacho no processo referido em 3) que decidiu não admitir tal recurso, porquanto se considerou que o arguido e EE e AA não tinham legitimidade para impugnarem a decisão, que regulou o exercício do poder paternal. (doc. de fls. 532)
7 - Actualmente e contra a vontade do pai da menor CC, o assistente BB, aquela vive com a arguida EE, em parte incerta. (despacho de fls. 1124 e Doc. 384, 409, 420, 1315, 1320 e 1321, despacho de fls. 1386)
8 - Sendo certo que o arguido AA conhece o lugar onde a menor, CC se encontra. (informação da PJ de fls. 1533)
9 - Desconhecendo-se se o arguido e EE continuam a morar juntos com carácter de habitualidade, bem como se o arguido AA vive diariamente com a menor CC. (confrontar os doc. de fls. 352 a 359, 364 a 372, 384 e 632, 633 (diligências efectuadas nos autos de regulação do poder paternal) – fls. 487-– fls.494 – fls.409, despacho de fls. 420
10 - Por outro lado, o arguido e esposa alteraram, em termos práticos de tratamento, o nome de CC para A...F... como lhe chamam e intitulam-se de seus pais. (certidão da sentença de regulação do Poder paternal; consta ainda da ficha clínica da menor de fls. 1520, 1522 e 1523).
11 - O arguido AA e EE, recusam-se a entregar a menor CC ao assistente BB.
12 - Tal sucedeu, nomeadamente, em de Julho de 2004, junto às instalações militares onde o arguido AA trabalha, no Entroncamento, altura em que o assistente BB solicitou arguido AA que lhe entregasse a menor CC.
13- Tendo-lhe este dito que a menor estava de férias com a arguida EE não revelando o local.
14 - E não obstante as diversas tentativas encetadas pelo assistente BB, este, mercê da actuação conjugada do arguido AA e EE, nunca logrou que lhe fosse entregue a menor CC.
15 - Ora porque o arguido mudava regularmente de residência, entre o Entroncamento, Torres Novas, quer porque quando o assistente BB tocava à campainha da porta onde estavam a residir o arguido AA e a esposa não obstante existir ruído e luz no interior da residência, ninguém abria a porta.
16 - O arguido também não permitiu que a mãe da menor CC, DD, a visitasse (Doc. de fls. 30 e decisão da regulação do poder paternal de fls. 51).
17 - Foi expedida carta precatória para o Tribunal do Entroncamento, para se proceder à entrega da menor CC, porquanto o arguido AA e EE estariam a viver naquela localidade. (doc. de fls. 563 a 470 )
18 - Após terem sido contactados pelo Instituto de Reinserção Social, a fim de serem esclarecidos da entrega da menor CC ao assistente BB, o arguido AA e EE, em circunstâncias não concretamente apuradas, mudaram a sua residência para Torres Novas. (doc. de fls. 572 a 577)
19 - Frustrada aquela entrega, foi designado o dia 10 de Fevereiro de 2005, pelas 14 horas, no Tribunal de Torres Novas para o arguido e EE comparecerem acompanhados da menor CC, a fim de se proceder à entregada mesma.(doc. de fls. 582 )
20 - O arguido e EE não compareceram porquanto não foi possível notificá-los porque os mesmos tinham mudado novamente de residência, para o Entroncamento, e estariam no Alentejo, naquele dia. (doc. de fls. 587, 592 e 593)
21 - Foi designado o dia 25 de Fevereiro de 2005, pelas 11 horas, no Tribunal de Torres Novas, para o arguido e EE comparecerem acompanhados da menor CC a fim de se proceder à entrega da mesma. (doc. de fls. 110 a111.)
22 - Da marcação desta data para a entrega da menor foi o arguido AA notificado pessoalmente, não tendo sido possível notificar pessoalmente a EE. (doc. de fls.609 e 610 e 617).
23- O arguido e a esposa EE não compareceram nesse dia (doc. de fls. 618 e 619).
24 - Foi designado o dia 09 de Março de 2005, pelas 14 horas, no Tribunal de Torres Novas, para o arguido e EE comparecerem acompanhados de CC, a fim de se proceder à entrega da mesma. (doc. de fls. 618 )
25 - No dia 9 de Marco de 2005 apenas compareceu o arguido AA, não trazendo consigo a menor nem prestando informações sobre o paradeiro da mesma ou da esposa EE. (doc. de fls. 628 )
26 - Quanto à arguida EE, desconhece-se o paradeiro da mesma, sendo certo que o arguido vem mudando de residência para, sucessivos locais, entre Torres Novas e o Entroncamento.
27 - Nomeadamente já foi indicada como residência do arguido a Rua da Barbias, Rua da Várzea e a Urbanização Cancelado Leão, todas em Torres Novas, e a Rua Engenheiro Ferreira Mesquita, quer no nº 2, quer no nº 10, no Entroncamento. (doc. de fls. 681 a 690 meramente exemplificativos de todo o processado.)
28 - Pelo que o assistente BB desconhece o paradeiro da menor CC, não sabendo onde a mesma mora, não podendo educá-la, proteger a mesma e tê-la consigo, na sua casa.
29 - Os esforços já desenvolvidos para que a menor CC seja entregue à guarda e aos cuidados do assistente BB foram sempre obviados pela actuação do arguido e EE, quer com a denegação expressa da tradição da menor para o assistente, quer com o ocultamento do local onde a mesma se encontra, mudando por diversas vezes de residência.
30 - O arguido previu e quis agir do modo acima descrito, animado da mesma resolução, na execução de plano acordado com a esposa EE, com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor CC ao assistente BB, pessoa que sabiam que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente; a quem sabiam que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro.
31- Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios, ficando onde o arguido determinasse, nomeadamente em casa deste, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento.
32- Com a intenção conseguida de, contra a vontade do assistente a quem a guarda e cuidados fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação.
33- Atenta a actuação do arguido e esposa, o assistente estava impedido de se aproximar e de a levar para junto de si.
34- Sabia ainda, o arguido, que a sua conduta era proibida e punível da por lei penal, tendo capacidade de se determinar de acordo com as prescrições legais não se inibiu de as levar a cabo.
Do PIC
35- A menor nasceu fruto de um relacionamento ocasional e esporádico havido entre o pai e a mãe, uma cidadã brasileira.
36- O que levou o demandante a suspeitar não ser o pai da menor.
37- Mas sempre afirmou, em declarações prestadas em Tribunal, que assumiria a paternidade se, efectuados testes hematológicos, estes indicassem ser ele o pai da criança. (Doc. fls. 13.datado de 11.07.2002)
38- O que veio a suceder em Fevereiro de 2003, imediatamente após tomar conhecimento dos resultados daquele exame Hematológico, por termo de perfilhação (quando a menor tinha apenas 1 ano de vida). (doc. de fls. 15 e 16, datados de 24.02.03, fls. 18 datado de 30.04.03 “rectificação” do termo de perfilhação.)
39- O Demandante desde logo (27.02.03) manifestou junto do Senhor Procurador Adjunto dos Serviços do Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e mais ficar com a menor à sua guarda e cuidados. (Doc. de fls. 21 ficha de atendimento nos serviços do MºPº da Sertã datado de 27.02.03, onde refere desconhecer o paradeiro da menor).
40- Para o que imediatamente procurou a filha junto da mãe, que a tinha supostamente em seu poder, no entanto aquela com informações erróneas e equivocas, ocultou ao Demandante o paradeiro da menor, tendo aquele após sucessivas insistências junto do M. P. da Sertã, vindo a saber que a filha se encontrava a residir com os demandados em Torres Novas, desconhecendo, contudo, na altura as circunstâncias e motivos de tal situação. (doc. de fls. 22, nova ficha de atendimento nos serviços do MºPº da Sertã datado de 12.06.03 onde fornece a localização da menor sendo consignado pelo respectivo MºPº a instauração do correspondente PA com o n.º11.03 posteriormente com data de autuação de 13.06.03 com o n.º 73.03 TASRT conf. fls. 23 a 28)
41- Logo que conhecido o local onde se encontrava a sua filha, o Demandante procurou-a na casa de residência do referido casal, em Estrada da Várzea, nº ..., 1° Esq., Cancela do Leão, Torres Novas, ali se deslocando aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência.
42- No entanto, contactado o arguido e esposa, primeiro telefonicamente e depois pessoalmente, nunca estes permitiram, que contactasse com a filha, não o recebendo, mantendo para tanto a Porta exterior fechada, conquanto para o fim vezes houve que viu serem desligadas as luzes, não reagindo ao toque da campainha.
43- Não obstante, o Demandante, aguardou o desfecho do Processo de Regulação do Poder Paternal, convicto de que viria por essa via, como veio, a suceder, ser-lhe-ia reconhecido o direito de ter a sua filha junto de si.
44- Continuando, a deslocar-se sucessivamente, várias vezes ao mês, de sua residência em Cernache do Bonjardim, Sertã, ora a Torres Novas, ora ao Entroncamento, aqui domicilio Profissional do Demandado, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
45- Mas, não obstante a sentença proferida, que gerou no demandante uma enorme alegria, este confrontou-se após com o desmoronar do seu sonho, com a recusa peremptória directamente comunicada pelo demandado AA, em procederem à entrega da menor.
46- Confrontou-se ainda com a subsequente e constante alternância de residência, do demandado e esposa e com a ocultação por estes da Menor em parte incerta, longe do seu alcance e das autoridades judiciárias, policiais e dele pai que continuou sempre, pelos seus meios, a tentar localizar a filha, continuando para tanto a percorrer em viatura própria consecutivamente largas centenas de Quilómetros, mensal e em determinadas alturas, semanalmente.
47- Desde que soube ser o pai da menor CC, que o Demandante anseia tê-la junto de si, criá-la, educá-la e inseri-la no seio da sua família.
48- Por desespero solicitou aos demandados, quando os contactou pessoalmente, uma fotografia da filha, para que pudesse, ao menos, olhá-la diariamente, ao que estes não atenderam.
49- Adoptando estes uma atitude de desdém, de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do Demandante em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha; - ''que havia muitos pressupostos por definir” e, afirmando processualmente "que ele nunca quis saber da filha”.
50- O Demandante quis e quer, desde que o soube ser, assumir-se realmente como o pai da menor CC, ainda hoje espera adormecê-la, acordá-la, levá-la à escola, alimentá-la, tratá-la na doença, passeá-la, brincar com ela, apresentá-la aos tios, primos e avós, dar-lhe a conhecer a sua realidade, inseri-la no seu agregado familiar composto por si, a sua companheira já de há alguns anos e o filho menor desta, a quem trata por o meu pequenito.
51- Gosta muito de crianças
52- Tem construído a sua vida familiar perspectivando englobar nela a sua filha CC, mudou de casa para recebê-la, mobilou e decorou um quarto só para ela.
53- A sua frustração e sentimentos de impotência, foram-se acentuando ao longo dos meses, transmudando-se em tristeza, angústia e desespero, ao ver­-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva filha tudo mais agravado com as sucessivas reviravoltas na actuação do arguido e esposa.
54- Sentimentos, mais agravados e acentuados após a regulação do poder paternal, quando constatou que o mandado de entrega da menor remetido à P.S.P., do Entroncamento, não era cumprido, apesar de ter deslocado várias vezes ao posto daquelas Forças de Segurança, na esperança de obter noticias animadoras, embora sempre em vão.
55- Sente-se impotente, desesperado, desacreditado, humilhado, rebaixado e atentado nos seus direitos, de protecção da vida familiar, face à ineficácia e inviabilização na concretização de uma decisão que estipula que a sua filha deveria estar junto dele e não está, causada pelo modo de agir do arguido e esposa, ao afastarem e ocultarem a menor, como bem entendem e para onde querem, recusando e impedindo a sua entrega, bem sabendo estar obrigados a entregá-­la.
56- Em consequência o Demandante passou a ser uma pessoa reservada e fechada sobre si mesmo, evita falar na sua filha e em toda a situação à sua volta, porque sofre ao ver-se privado, como era seu direito, de acompanhar o processo de crescimento e desenvolvimento da sua filha.
57- Sonha com a menor, imagina a sua voz, os seus gestos, frequentemente chora e pede à companheira para o ajudar por não aguentar mais a espera em ter consigo a menor.
58- Estes danos morais são sofridos de forma paulatina e diariamente, mantendo-se ao presente, agravando-se à medida que o tempo vai decorrendo sem que a sua filha seja encontrada e lhe seja entregue.
59- A situação de afastamento, ocultação e recusa de entrega da menor é de tal modo prolongada, que a parte considerável e essencial da sua infância se está a desenvolver fora da convivência da família biológica desta.
60- O demandado e esposa vêm tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, como bem entendem, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, seu representante legal e a quem compete decidir sobre a vida daquela e contra a vontade presumida da menor.
61- Fazem-no bem sabendo que aquela não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar, impedindo-a de ser deslocada para onde o seu pai bem entende em conformidade com os interesses da FILHA, o qual tem o poder-dever de cuidar dela e sempre esteve, em oposição aos demandados, que nenhuma decisão administrativa ou judicial têm que lhes legitimasse a sua actuação.
62- Mais, impedindo a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai.
63- Impedindo a menor de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe.
64- Mantendo a menor oculta, longe de lugares públicos, privando-a da sua liberdade, retendo-a fora da esfera de actuação, inclusive, das autoridades judiciária e policial, que ainda ao presente a tentam localizar.
65- Privando-a de frequentar um infantário, com o propósito de obstar a que a menor seja entregue ao Progenitor, como era já exigível, face à idade que tem, de lhe ser propiciado o convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação.
66- O arguido e esposa sabem que quanto mais prolongarem no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso será para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
67- Invocando fazê-lo no interesse da menor.
Da contestação (para além dos referidos na acusação):
68- A menor foi registada como sendo filha de DD e de pai incógnito. (doc. de fls. 11)
69- Aquando da entrega ao arguido e esposa a menor foi acompanhada de uma declaração com o seguinte teor:
“ Entrego-a ao Sr. AA e Sra. D. EE, casados um com o outro, para que seja adoptada plenamente pelos mesmos, integrando-se na sua família, extinguindo-se desta forma as relações familiares existentes entre mim DD e CC.
Desde já dou autorização aos referidos Sr. AAe Sra. D. EE para a abertura do respectivo processo de adopção e para todos os actos que levem ao bom termo do mesmo” (sentença de regulação do poder paternal e doc. de fls.1197).
70- No momento em que o arguido recebeu a menor era desconhecida a paternidade. (confronto de fls. 11 e 1197)
71- Passando o arguido e esposa a tratá-la por filha e pelo nome de A...F....
72- Em 20 de Janeiro de 2003 requereram a adopção da menor no tribunal Judicial da Comarca da Sertã.(Proc. 80/03. 7TBSRT) doc. de fls. 1198
73- Desde o dia 28 de Maio de 2002 que a menor tem sido acompanhada por médico pediatra (conforme consultas constantes do documento de fls.1520 a 1523.)
74- Sendo levada às consultas, em regra pelo arguido e esposa, conjuntamente.
75- Com data de 10 Outubro de 2004 foi elaborado o relatório médico subscrito pelo Dr. Aníbal Teixeira do qual consta que:
A menor nas datas das consultas de pediatria era uma criança saudável, sem problemas de desenvolvimento físico/motor.(doc. de fls.1201 e vº.)
76- Em finais de 2003 início de 2004 a SS de Santarém entendeu que menor estava bem integrada na família do arguido tendo estabelecido laços de afectividade e vinculação sendo o arguido e esposa considerados idóneos para adopção.(documento de fls.1249).
77- Com data de 14.10.2004 o Prof. Dr. O...P... fez constar em relatório que: "A criança CC identifica-se social, cultural, afectiva e psicologicamente com a família constituída por AAe EE, não apresentando identificação significativa com os progenitores biológicos, como já seria de esperar cientificamente.
Consequentemente, a ruptura com os padrões de referência da identidade actual e o impacto de outros padrões, desconhecidos e irreconhecíveis, para a criança, exerce influência negativa, não só em termos do processo de desenvolvimento habitual, assim como a possibilidade de fomentar um plano de desenvolvimento psicológico interior com carácter dissociativo, colocando em perigo a integridade psicológica identitária da criança"
78- O C.R.SS, desde Setembro de 2003 que acompanha o arguido e esposa com o casal candidato à adopção, tendo instaurado o processo de confiança judicial de menor, a favor daqueles em 09 de Março de 2004. (doc. de fls. 1208)
79- Em 18 de Outubro de 2004, o Prof. Dr. E...S... era de parecer que retirar a menor do seio familiar do arguido e esposa ---- assume uma exposição grave da CC ao perigo que me cumpre assinalar.(doc. de fls. 1209 e 1210)
80- Na sessão de julgamento entendeu que retirar, sem mais, a menor do seio onde se encontra (pressupondo que se encontra com o arguido e esposa nos termos por eles relatados e sem observação da menor - por opção técnica) seria dilacerante não se podendo branquear 93% da sua vida.
81- O arguido vem invocando que não entrega a criança ao seu progenitor por entender que tal põe em perigo o interesse da menor.
82- Tendo, após a decisão da regulação sobre o poder paternal, solicitado a opinião de várias pessoa e entidades sobre tal questão.
83- Em 03.12.2004 o Tribunal Judicial do Entroncamento rejeitou o requerimento para proceder à entrega da menor, por erro na forma de processo (doc. de fls. 1218.)
84- O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados:
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente, no que concerne à menor CC, as circunstâncias em que se encontra dado que, desde Outubro de 2004 apenas foi vista duas vezes pelo seu pediatra, (Novembro de 2005 e Novembro de 2006 acompanhada nesta última data pelo arguido) desconhecendo-se o seu paradeiro tal como o da esposa do arguido, apesar de constantemente procurada e se ter diligenciado junto das autoridades competentes, PSP do Entroncamento, de Torres Novas e Polícia Judiciária.
2.3.1.

Condenação pelo crime de sequestro

Alega o arguido que se não verifica o crime de sequestro, pois, a menor nunca foi impedida pelo recorrente de se movimentar livremente. O recorrente nunca confinou a menor a um determinado local, impedindo a sua locomoção. Não existe pois o elemento objectivo do tipo previsto no art. 158.º do C. Penal (conclusão 5). O bem jurídico protegido é a capacidade de cada um se fixar ou movimentar livremente no espaço físico, contra a ilícita restrição e não a “liberdade de querer”, como entendeu o acórdão recorrido (conclusão 6).

O seu comportamento – diz – não preenche o tipo legal de crime de sequestro previsto e punido pelo art. 158° n.° 2 al. a) do C. Penal, pois apesar de a acusação afirmar (31) que: “os arguidos, ao agirem do modo acima descrito, previram e quiseram, ainda, animados da mesma resolução, em conjugação de esforços, na execução do plano congeminado por ambos, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente BB, seu pai, pelos seus próprios meios ficando onde os arguidos determinassem, nomeadamente em casa destes, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento, com a intenção conseguida de contra a vontade da menor e do assistente, a quem a guarda e cuidados, fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação e que atenta a actuação dos arguidos AA e EE, o assistente estava impedido de se aproximar e de a levar para junto de si” foi considerado provado que: “31 - Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios, ficando onde o arguido determinasse, nomeadamente em casa deste, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento. 32 - Com a intenção conseguida de, contra a vontade do assistente a quem a guarda e cuidados fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação”. Não se verificando, assim, que a menor se encontre privada de liberdade, contra a sua vontade. Sendo certo que a vontade presumível da menor aponta no sentido de permanecer com o arguido e sua mulher, que tem como pais (conclusão 7).

A menor foi entregue pela progenitora ao recorrente e sua mulher, para adopção com 3 meses de idade, quando não tinha qualquer vínculo com o assistente, que nem sequer assumira a paternidade. Naquelas circunstâncias, de objectivo abandono, a menor era uma criança em risco, que carecia de quem dela cuidasse. Logo, a vontade presumida da menor não pode ser a de se opor a que o recorrente a acolhesse, por tal presunção não se coadunar com o bom senso e com as regras da experiência comum (conclusão 8).

A vontade presumida e efectiva da menor era a de estar com quem lhe proporcionasse a satisfação das suas necessidades, tratando-a como filha. Os cuidados parentais desejados e imprescindíveis a uma criança de tenra idade foram prestados pelo recorrente e sua mulher (conclusão 9). Ao receber a menor de quem exercia em exclusivo o poder paternal, o recorrente não actuou ilicitamente. Naquele momento em que o progenitor era desconhecido, era irrelevante o desconhecimento da sua opinião quanto à entrega (conclusão 10).

Não está demonstrado que o recorrente tenha preparado a menor “para a despersonalização”. Resulta dos factos provados a falta de fundamento de uma tal afirmação (conclusão 12). A mudança do nome próprio da menor quando ela tinha 3 meses não é a expressão de qualquer crime (conclusão 13). O recorrente agiu de modo lícito, designadamente em respeito pela Convenção sobre os Direitos da Criança, pela Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças, pelos artigos 1878.°, 1885°, 1915.°, 1918.°, 1974.° e 1978.° do Código Civil e pela Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (conclusão 14).

Tendo concluído pela verificação dos pressupostos legais, o Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém intentou um pedido de confiança judicial da menor, a favor do recorrente e da sua mulher, muito antes de existir uma qualquer decisão no processo e Regulação do Poder Paternal, conforme facto provado 78. E, até hoje, nenhuma decisão existe que divirja da opinião dos técnicos (conclusão 15).

Quem, como o recorrente, exerce a guarda de facto sobre uma criança, tem o dever especial de exercer, no interesse da menor, os poderes-deveres integrados no poder paternal (conclusão 16), enquanto que o crime é uma acção ilícita, culposa e típica, o que não acontece com a sua acção que não é típica, sempre foi lícita e não culposa, orientada à protecção daquela que desde os 3 meses tem como filha, falhando, por conseguinte, os pressupostos para que possa subsumir na tipicidade do crime de sequestro (conclusões 17, 19 e 20).

No que se refere ao dolo, defende que não privando a menor da sua liberdade, antes dela cuidando e exercendo os poderes-deveres inerentes ao poder paternal, inexiste o elemento subjectivo do tipo legal de crime de sequestro (conclusão 18), mas sim o exercício da guarda de facto sobre a menor (conclusão 19), pois que tendo a guarda de facto da menor, tem o especial dever de dela cuidar (conclusão 20).

Não tendo privado a menor de liberdade ambulatória, não representou que a sua conduta pudesse configurar um crime e nem agiu contra o Direito, voluntária e conscientemente (conclusão 24), e considerando o acórdão recorrido que a intenção de recorrente foi a de criar uma profunda relação de amor com a menor, não sendo admissível a ideia de um dolus in re ipso, é evidente a inexistência de dolo pelo recorrente (conclusão 25).

Defende, depois, o recorrente que agiu no cumprimento do dever de proteger os superiores interesses da menor, pelo que se verifica a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 36.° 1 do C. Penal (conclusão 21).

Sustenta, finalmente, que sempre se deveria considerar que se estaria perante um erro sobre a ilicitude, que seria desculpável, no concretismo da acção, já que “age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável’ (art. 17° n.º 1 do Código Penal), e não se podem censurar (conclusão 22).

O arguido recebeu a menor da mãe, num momento em que era desconhecida a paternidade e sempre dela cuidou e bem tratou. Da conduta do arguido apenas resultou que a menor tivesse podido crescer em ambiente familiar normal. È inexistente o dolo na medida em que o arguido apenas visa proporcionar amor, lar e desenvolvimento harmonioso à menor “quis fazer nascer laços de amor” e visou “criar as condições para estabelecer uma profunda relação de amor da criança para com eles”. Verifica-se imediação entre a acção dos progenitores e a resolução do arguido. Logo, não tem qualquer justificação a condenação do recorrente por um crime que não cometeu (conclusão 23).

Vejamos se lhe assiste razão.

2.3.2.

Antes, importa relembrar as circunstâncias do caso, o âmbito do recurso e as suas possíveis consequências.

É certo que, como se relatou, no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância o colectivo de juízes decidiu «absolver o arguido AAda prática como autor material de um crime de subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, al. c) do Código Penal.»

Mas essa decisão, tal como acontece com os contratos e com as leis, deve ser interpretada no seu contexto legal e processual, na sua lógica e não apenas lida, tomando-se em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, factores básicos da sua estrutura, de acordo com as regras dos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil.

Como vem entendendo pacificamente este Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica (AcSTJ de 28.6.1994, proc. n.º 85826, de 28.1.1997, proc. n.º 823/96, de 4.6.98, proc. n.º 367/98). «Não obstante a sua característica de acto de autoridade, a sentença, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil» (AcSTJ de 13-12-2000, proc. n.º 3459/00-7. No mesmo sentido, mais recentemente os AcSTJ de 24.1.2002, proc. n.º 3036/01-5, com o mesmo relator e de 29.7.2005, proc. n.º 2531/05-3).

Ora, o arguido foi acusado pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de sequestro agravado do art. 158.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e e), do C. Penal e de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal.

E o acórdão de 1.ª Instância teve por verificados os dois crimes (sequestro agravado e subtracção de menor); pronunciando-se detalhadamente sobre o preenchimento dos elementos do tipo legal deste último (subtracção de menor – fls. 1622 a 1625) para entrar depois na questão de saber se se tratava de um concurso efectivo ou real ou de um concurso aparente entre esses dois crimes que teve por verificados, e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena» (fls. 1625 a 1627).

Com efeito, entendeu e decidiu a 1.ª Instância o seguinte:

«Quanto ao imputado crime de subtracção de menor;

Nos termos do disposto no artigo 249 1 als. a) e c):

Comete o crime de subtracção de menor quem:

– subtrair menor ( al. a);

– se recusar a entregar menor à pessoa que sobre ele exercer o poder paternal ( al. c).

Quanto a este crime diga-se o seguinte:

Visa este artigo, mais do que a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menores, a própria protecção dos menores, na medida em que se entende ser a pessoa a quem é atribuído tal poder a mais capaz de o exercer, naquele interesse;

Assim, este crime terá sempre por objecto um menor.

A subtracção, por seu turno, consiste em retirar um menor do domínio de quem o tenha ou deva ter legitimamente a seu cargo.

Por princípio significará isto uma separação espacial entre o menor e o titular dos poderes (embora não seja suficiente a verificação dessa separação, pois tem de acrescer, além disso, a impossibilidade do exercício dos poderes: Esta separação deve ainda durar há algum tempo”, pag.615 da mesma obra.

Ora, a recusa de entrega de menor à pessoa que sobre ele exercer o poder paternal supõe que se verifique uma situação que consubstancie uma privação fáctica do exercício do poder paternal. Do que se trata, neste caso, é de garantir que a pessoa legitimada assuma o integral exercício dos seus poderes.

Refira-se, ainda que este tipo legal de crime exige que o agente actue com dolo.

Ora, a primeira questão que se suscitaria relativamente a este crime era a de saber se o assistente, à data da prática dos factos, era a titular do poder paternal da menor CC.

Está assente que o arguido e esposa foram notificados da sentença que regulou o exercício do poder paternal da menor CC, datada de 13 de Julho de 2004 (Proc. n 1149/03. 3TBTNV, do 2° Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Novas) a qual determinou, a atribuição ao assistente BB, pai da menor CC, o desempenho do poder paternal e, como já anteriormente referido, não obstava a tal a interposição de recurso apresentado pelo arguido (indeferido por se entender não ter legitimidade para tal) devidamente esclarecido de que, a admitir-se tal recurso, sempre se teria efeito meramente devolutivo, porque legalmente obrigatório (art.º 185 da O.T.M.).

E para que não se esqueça, diga-se que o conteúdo do poder paternal está definido no artigo l878.º do Código Civil o qual reza que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los ainda que nascituros e administrar os seus bens”.

Daqui decorre que o poder paternal é um conjunto de poderes deveres conferidos ao pais para prosseguirem os interesses dos filhos aí se integrando a guarda ou custódia do menor e concluindo-se que tratando-se de um crime permanente, a consumação só termina com a possibilidade do assistente poder exercer o poder paternal, ou da menor atingir a maioridade.

Nos autos, é manifesto que o arguido vem praticando factos do crime de que vem pronunciado.

No entanto há que aferir se o concurso em causa é ou não aparente (…)»

Assim, o acórdão da 1.ª Instância, apesar da redacção de parte do seu dispositivo, não pode deixar de ser interpretado de acordo com os seus fundamentos: teve aquele tribunal por preenchidos os dois tipos de crime (sequestro agravado e subtracção de menor), mas em concurso aparente e não efectivo, como constava da acusação, pelo que a punição só teria lugar pelo crime mais grave.

Não se tomando, para já posição sobre o núcleo essencial do recurso do arguido: saber se se verifica o crime de sequestro agravado, deve notar-se que não merece censura a decisão da 1.ª Instância quando teve por verificado o crime de subtracção de menor e considerou que o concurso (a verificar-se) com o crime de sequestro, era aparente e não efectivo ou real, na senda do AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05, citado pelo acórdão da Relação de Coimbra (ver também na doutrina Leal-Henriques e Simas Santos, C. Penal, II, em anotação ao art. 249.º, M. Cobo del Rosal, L.C. Carbonell Mateu, Derecho Penal, Parte Especial, vol. II, pág. 52).

Na verdade, no art. 249.º do C. Penal censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela.

De harmonia com o preceituado no art.° 122.° do Código Civil é menor quem não quem tiver menos de 18 anos e que sofre, por via disso, de uma incapacidade legal, a chamada incapacidade por menoridade.

A mesma lei civil, para obviar a essa insuficiência, reuniu um conjunto de normas destinadas a suprir tal incapacidade (art. 124.°):

— directamente pelo poder paternal (art. 1877.° e ss do C. Civil);

— subsidiariamente pela tutela (art. l 921.° e ss do C. Civil).

Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (loc. cit.) neste artigo estabelece-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio (no mesmo sentido, cfr. Cobo del Rosal…, loc. cit.).

Das três situações delituosas previstas em tal normativo: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado (isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele), verifica-se, no caso, a recusa de entrega de menor.

Com efeito, como referem os BB citados, «há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda.

A tónica criminosa reside aqui, pois, na retenção sem justa causa.»

Sujeitos passivos são, assim, os pais, tutores e os que tem a guarda de facto (Cobo del Rosal, … loc. cit.).

Mesmo que se entendesse que só podia ser sujeito activo deste crime, quem tivesse uma relação com o menor, não se podia esquecer que, como resulta da matéria de facto, o arguido tinha a guarda de facto da menor, tida em conta, aliás, pelo Tribunal Constitucional, ao reconhecer-lhe legitimidade para recorrer da decisão proferida no processo de regulação do poder paternal (AcTC n.º 52/2007 de 30.1.2007, proc. n.º 134/05)

E está assente que foi o arguido notificado da sentença de 13.7.2004 que regulou o exercício do poder paternal da menor CC (proc. n.º 1149/03. 3TBTNV, do 2° Juízo do Tribunal de Torres Novas) e determinou, a atribuição ao assistente BB, pai da menor CC, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente.

Mas, de todo o modo, deve salientar-se que o recorrente, no seu recurso para a Relação de Coimbra, não impugnou este entendimento e decisão da 1.ª Instância, com ele se conformando.

Com efeito, só discordou da condenação como autor do crime de sequestro, do qual pediu para ser absolvido (conclusão 14 da sua motivação).

Daí que a Relação se tenha limitado a apreciar a questão que lhe fora posta: saber se o arguido cometera ou não o crime de sequestro agravado pelo qual fora condenado, sem, adequadamente, apreciar a parte restante dessa mesma decisão.

2.3.3.

Isto posto, importa abordar a questão de saber se deve manter-se a condenação do arguido pelo crime de sequestro agravado, tal como o entenderam as Instâncias.

A questão já foi posta perante este Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05).

Aí se entendeu, de acordo com o sumário publicado (proc. n.º 05P3127 em http://www.stj.pt) que: «(III) A circunstância de a vítima do sequestro ser um menor não obsta à verificação do crime, por razões de protecção da sua dignidade de pessoa humana, que não pode ser instrumentalizada e tratada como coisa. (IV) Assim, é de presumir que o incapaz, se já possuísse a capacidade de efectivar a sua liberdade de deslocação, se oporia ao acto de impedimento da sua locomoção por terceiro. (V) Tratando-se de progenitores não unidos pelo matrimónio que não vivam maritalmente verifica-se a presunção legal de que a mãe tem a guarda do menor – art. 1911.º, n.º 2, do CC. (VI) No caso de concurso aparente, havendo várias normas punitivas, terá de prevalecer uma delas, excluindo a outra ou outras, através, designadamente, dos princípios da especialidade e da consumpção. (VII) O crime de sequestro consome o de subtracção de menor, na medida em que a incriminação da privação da liberdade abarca a lesão do interesse do menor ao ser retirado da pessoa dele encarregada.»

Ou seja, entendeu-se que se verificavam, em concurso aparente, os crimes de subtracção de menor e de sequestro, a punir no quadro do crime de sequestro.

Mas, tendo presente a jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal de Justiça importa ver se se verificam, no caso, os elementos do tipo legal do crime de sequestro.

Escreveu-se na decisão recorrida, além do mais, o seguinte:

«OS ELEMENTOS TÍPICOS DO CRIME DE SEQUESTRO
O recorrente foi condenado pela prática do crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º n.ºs 1 e 2 als. a) e e) do Código Penal — privação da liberdade por mais de 2 dias praticada contra pessoa particularmente indefesa, no caso, em razão da idade.
Sobre este ponto o tribunal deu como provado que
É o assistente BB que detém o exercício da autoridade paternal sobre a menor CC, a qual ficou confiada à sua guarda e cuidados e a decisão sobre o poder paternal foi devidamente notificada ao arguido e sua mulher EE. Actualmente e contra a vontade do pai da menor CC, o assistente BB, a menor vive com a arguida EE, em parte incerta, sendo certo que o arguido AA conhece o lugar onde a menor, CC se encontra, desconhecendo-se se o arguido e EE continuam a morar juntos com carácter de habitualidade, bem como se o arguido AA vive diariamente com a menor CC. O arguido e esposa alteraram, em termos práticos de tratamento, o nome de CC para A...F... como lhe chamam e intitulam-se de seus pais. O arguido AA e EE, recusam-se a entregar a menor CC ao assistente BB. Tal sucedeu, nomeadamente, em de Julho de 2004, junto às instalações militares onde o arguido AA trabalha, no Entroncamento, altura em que o assistente BB solicitou ao arguido AA que lhe entregasse a menor CC, tendo-lhe este dito que a menor estava de férias com a arguida EE não revelando o local, e não obstante as diversas tentativas encetadas pelo assistente BB, este, mercê da actuação conjugada do arguido AA e EE, nunca logrou que lhe fosse entregue a menor CC. Ora porque o arguido mudava regularmente de residência, entre o Entroncamento, Torres Novas, quer porque quando o assistente BB tocava à campainha da porta onde estavam a residir o arguido AA e a esposa não obstante existir ruído e luz no interior da residência, ninguém abria a porta. O arguido também não permitiu que a mãe da menor CC, DD, a visitasse. Foi expedida carta precatória para o Tribunal do Entroncamento, para se proceder à entrega da menor CC, porquanto o arguido AA e EE estariam a viver naquela localidade, mas após terem sido contactados pelo Instituto de Reinserção Social, a fim de serem esclarecidos da entrega da menor CC ao assistente BB, o arguido AA e EE, em circunstâncias não concretamente apuradas, mudaram a sua residência para Torres Novas. Frustrada aquela entrega, foi designado o dia 10 de Fevereiro de 2005, pelas 14 horas, no Tribunal de Torres Novas para o arguido e EE comparecerem acompanhados da menor CC, a fim de se proceder à entrega da mesma, o arguido e EE não compareceram porquanto não foi possível notificá-los porque os mesmos tinham mudado novamente de residência, para o Entroncamento, e estariam no Alentejo, naquele dia. Foi designado o dia 25 de Fevereiro de 2005, pelas 11 horas, no Tribunal de Torres Novas, para o arguido e EE Gomes comparecerem acompanhados da menor CC a fim de se proceder à entrega da mesma e foi o arguido AA notificado pessoalmente, não tendo sido possível notificar pessoalmente a EE. O arguido e a esposa EE não compareceram nesse dia. Foi designado o dia 09 de Março de 2005, pelas 14 horas, no Tribunal de Torres Novas, para o arguido e EE comparecerem acompanhados de CC, a fim de se proceder à entrega da mesma, porém, nesse dia apenas compareceu o arguido AA, não trazendo consigo a menor nem prestando informações sobre o paradeiro da mesma ou da esposa EE. O assistente BB desconhece o paradeiro da menor CC, não sabendo onde a mesma mora, não podendo educá-la, proteger a mesma e tê-la consigo, na sua casa. Os esforços já desenvolvidos para que a menor CC seja entre à guarda e aos cuidados do assistente Baltazar, Nunes foram sempre obviados pela actuação do arguido e EE, quer com a denegação expressa da tradição da menor para o assistente, quer com o ocultamento do local onde a mesma se encontra, mudando por diversas vezes de residência. O arguido previu e quis agir do modo acima descrito, animado da mesma resolução, na execução de plano acordado com a esposa EE, com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor CC ao assistente BB, pessoa que sabiam que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente; a quem sabiam que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro. Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios, ficando onde o arguido determinasse, nomeadamente em casa deste, ora em Torres Novas, ora no Entroncamento, com a intenção conseguida de, contra a vontade do assistente a quem a guarda e cuidados fora atribuída, lhe coarctarem a sua liberdade de movimentação. Atenta a actuação do arguido e esposa, o assistente estava impedido de se aproximar e de a levar para junto de si. Sabia ainda, o arguido, que a sua conduta era proibida e punível da por lei penal, tendo capacidade de se determinar de acordo com as prescrições legais não se inibiu de as levar a cabo. (…)
A circunstância de o recorrente ter recebido a menor da mãe, pouca importância tem, a partir do momento em que nenhuma lei ou decisão judicial conferiu ao arguido e sua mulher o direito de a levar e de a conservar consigo nas circunstâncias em que o fez, desconhecendo se o pai estava de acordo com a entrega e mais tarde, retiveram-na sabendo que fora atribuído o poder paternal ao pai, o assistente Baltazar.
Por outro, e fundamentalmente, porque o arguido e sua mulher, negaram o acesso dos pais (pai e mãe) à menor não deixando sequer vê-la, não a apresentando ao tribunal nem ás autoridades, agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor. Pelo contrário, ao agir contra a vontade presumida da menor, que seria de oposição ao impedimento da sua deslocação, procedeu como se ela fosse uma coisa.
Levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais. Deste modo quis fazer nascer laços de amor da criança-vítima para com eles, com o decorrer do tempo, fazendo-se passar por pais, apagando a personalidade da menor, mudando-lhe até o nome, tudo para poder alegar o interesse superior da menor.
Para justificar a sua actuação, criou através da ficção uma realidade familiar á menor, que não existia. E a circunstância de o recorrente se encontrar preso não acarreta a impossibilidade de manter a menor sequestrada, já que a manutenção dessa situação ocorreu com a comparticipação da sua mulher, que se manteve em lugar desconhecido com a menor, agindo em conluio com o recorrente.
Em conclusão: o recorrente cometeu o crime de sequestro previsto e punido no artigo 158. °, nºs 1 e 2, alíneas a) e e), do Código Penal.
(Compare com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2006, in www.stj.pt processo 05P3127 JSTJ000)» (realçado agora)

Os contornos do caso sujeito sugerem que a análise da verificação dos elementos do tipo comece pelo elemento subjectivo, pelo tipo subjectivo de ilícito.
Concordamos com a doutrina quando proclama a suficiência, para verificação de tal crime, do dolo genérico, da consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.
«A estrutura da conduta é basicamente dolosa, no dizer de Muñoz Conde, a vontade de impedir a alguma pessoa uso da sua liberdade ambulatória. O Tribunal Supremo exigiu a concorrência do que denominou de “dolo específico”, termo com que parecia referir-se a um elementos subjectivo do injusto, cuja ocorrência carece de base legal; não é mais do que o dolo de detenção ilegal, isto é, a consciência e vontade de levar a cabo uma privação de liberdade proibida pela Lei; em todo o caso, tal construção não tinha outro objectivo do que negar a incriminação culposa da conduta, o que é de subscrever.» (Cobo del Rosal, …, ob. cit., pág. 47, em tradução do Relator).
«Bastando-se o crime (de sequestro) com o preenchimento do dolo genérico, consistente na intenção de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.» (Leal-Henriques e Simas Santos, ob. cit., pág. 333. No mesmo sentido, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, I, pag. 409).
No caso decidido, anteriormente por este Supremo Tribunal, pelo já referido AcSTJ de 2.1.2006 (proc. n.º 3127/05) era, em síntese, o seguinte o quadro de facto relevante:
Um casal que vivia em comunhão de leito, mesa e habitação, mas que não eram casados entre si, teve uma filha a 8.2.2002. Tendo a mulher posto a termo à relação e levado a menor consigo, o arguido foi visitar a menor com consentimento da mãe e, após ter brincado com a filha cerca de cinco a dez minutos, sem nada que o fizesse prever, sem mais nem menos e sem uma palavra, o arguido agarrou a menor nos braços e pôs-se em fuga daquele local, em correria, sem o consentimento e contra a vontade da mãe desta. Desde então a menor nunca mais foi vista encontrando-se, actualmente, em local que só o arguido conhece impedindo este, o contacto entre ela e a família, em especial com a mãe, retendo-a em local desconhecido, sem possibilidade da menor se movimentar livremente, através da sua mãe, privando-a do carinho desta e do leite materno que ainda bebia e utilizando-a como instrumento de vingança, sofrimento e dor, contra esta e sua família. Posteriormente àquele acto o arguido ligou, por diversas vezes, para o telemóvel da mãe da menor, pedindo-lhe para reatarem a vida em comum, fazendo-lhe promessas que ela não aceitou e dizendo-lhe, em tom ameaçador, "não quiseste voltar para mim nunca mais vês a tua filha", "se não voltas para mim vais sofrer muito mais porque não voltas a ver a filha", " a tua família ainda não sabe o que é sofrer e tu também não", isto numa atitude de vingança e com o propósito de forçar o reatamento da vida em comum, ao que aquela não anuiu. O arguido quis infligir uma dor suplementar à BB, criando-lhe o receio de não mais ver a filha, de modo a fazer com que ela reatasse a vida em comum, o que ela não aceitou.

E face a tal quadro, não oferece dúvidas, neste caso, a verificação do dolo que vimos integrar o elemento subjectivo do crime de sequestro. O agente levara a menor da presença da mãe, que exercia o poder paternal, contra a vontade desta, inesperadamente, para local desconhecido onde a mantém, impedindo os contactos, sem a menor se poder movimentar livremente, através da sua mãe, utilizando-a como instrumento de vingança, sofrimento e dor, contra esta e sua família, procurando, assim, levar a mãe da menor a reatar o relacionamento amoroso, ameaçando-a de, em caso negativo nunca mais voltar a ver a filha.
Ou seja, o agente agiu com a intenção de privar a menor da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço, para poder utilizar essa situação como um elemento de pressão que levasse a mãe daquela a realizar um desejo seu (reatamento da vida em comum), condicionada por aquele confinamento.
Mas, no presente caso, as condicionantes do elemento subjectivo do crime de sequestro, são diversas.
Como se viu acima, a decisão recorrida, designadamente nas partes que se realçaram, entendeu que o «arguido previu e quis agir com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor CC ao assistente BB, pessoa que sabia que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente; a quem sabiam que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro. Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios» (…)
«A circunstância de o recorrente ter recebido a menor da mãe, pouca importância tem, a partir do momento em que nenhuma lei ou decisão judicial conferiu ao arguido e sua mulher o direito de a levar e de a conservar consigo nas circunstâncias em que o fez, desconhecendo se o pai estava de acordo com a entrega e mais tarde, retiveram-na sabendo que fora atribuído o poder paternal ao pai, o assistente Baltazar.
Por outro, e fundamentalmente, porque o arguido e sua mulher, negaram o acesso dos pais (pai e mãe) à menor não deixando sequer vê-la, não a apresentando ao tribunal nem ás autoridades, agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor. (…)
Levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais. Deste modo quis fazer nascer laços de amor da criança para com eles, com o decorrer do tempo, fazendo-se passar por pais, apagando a personalidade da menor, mudando-lhe até o nome, tudo para poder alegar o interesse superior da menor.
Para justificar a sua actuação, criou através da ficção uma realidade familiar à menor, que não existia.»
Está aqui bem patente o dolo do crime de subtracção de menor, na modalidade de recusa da sua entrega a quem estava legitimamente confiado: os arguidos mantiveram a menor fora do alcance do assistente e das autoridades judiciais e policiais, somente como forma de consumarem o crime de subtracção de menor.
Sublinhe-se que o Tribunal recorrido reconheceu que:
– o arguido «quis agir com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor CC ao assistente BB, pessoa que sabia que juridicamente tinha a sua guarda e direcção»
– «previu e quis, ainda, reter a menor CC consigo»
– «o arguido e sua mulher agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor»
– o arguido «levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais»
– «quis fazer nascer laços de amor da criança-vítima para com eles» «fazendo-se passar por pais»
– «criou através da ficção uma realidade familiar à menor, que não existia
Isso mesmo resulta, aliás, não só do texto da decisão recorrida quando apreciou ou elementos do tipo de crime de sequestro, como da matéria de facto directamente provada.
Com efeito, as instâncias tiveram como expressamente provado que:
– Os esforços já desenvolvidos para que a menor CC seja entregue à guarda e aos cuidados do assistente BB foram sempre obviados pela actuação do arguido e EE, quer com a denegação expressa da tradição da menor para o assistente, quer com o ocultamento do local onde a mesma se encontra, mudando por diversas vezes de residência (facto n.º 29)
– O arguido previu e quis agir do modo acima descrito, animado da mesma resolução, na execução de plano acordado com a esposa EE, com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor CC ao assistente BB, pessoa que sabiam que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente; a quem sabiam que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro (facto n.º 30)
– O demandado e esposa vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, como bem entendem, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, seu representante legal e a quem compete decidir sobre a vida daquela e contra a vontade presumida da menor (facto n.º 60)
– Fazem-no bem sabendo que aquela não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar, impedindo-a de ser deslocada para onde o seu pai bem entende em conformidade com os interesses da FILHA, o qual tem o poder-dever de cuidar dela e sempre esteve, em oposição aos demandados, que nenhuma decisão administrativa ou judicial têm que lhes legitimasse a sua actuação (facto n.º 61)
– Mais, impedindo a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai (facto n.º 62)
– Impedindo a menor de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe (facto n.º 63).
– Mantendo a menor oculta, longe de lugares públicos, privando-a da sua liberdade, retendo-a fora da esfera de actuação, inclusive, das autoridades judiciária e policial, que ainda ao presente a tentam localizar (facto n.º 64).
– Privando-a de frequentar um infantário, com o propósito de obstar a que a menor seja entregue ao Progenitor, como era já exigível, face à idade que tem, de lhe ser propiciado o convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação (facto n.º 65)
– O arguido e esposa sabem que quanto mais prolongarem no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso será para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta (facto n.º 66)
– Invocando fazê-lo no interesse da menor (facto n.º 67)
Não se deve, pois, afirmar a existência de um dolo genérico autónomo e próprio do crime de sequestro, mas um intensíssimo dolo em relação ao crime de subtracção de menor.
Mesmo a afirmação de que a menor «não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar», refere-se a uma outra questão que se coloca no crime de sequestro: a possibilidade de incidir sobre um incapaz que não tem ou manifesta vontade de se deslocar e é relacionada no mesmo facto provado com a intenção de impedir a menor «de ser deslocada para onde o seu pai bem entende» «o qual tem o poder-dever de cuidar dela e sempre esteve, em oposição aos demandados, que nenhuma decisão administrativa ou judicial têm que lhes legitimasse a sua actuação» (facto n.º 61) e no facto seguinte (facto n.º 62) e com a vontade de impedir «a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor» e de «conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe» (facto n.º 63).
Como a circunstância de manter «a menor oculta, longe de lugares públicos, privando-a da sua liberdade» «se destina a retê-la fora da esfera de actuação, inclusive, das autoridades judiciária e policial» (facto n.º 64).
Ou a privação de «frequentar um infantário» tem o objectivo de «obstar a que a menor seja entregue ao Progenitor» (facto n.º 65)
Ou seja, as referências à limitação de deslocamento da menor têm todas o mesmo e único propósito de obstar à sua entrega ao assistente.
Os desenvolvimentos no processo de regulação do poder paternal, que se documentaram neste processo, permitem concluir que a menor foi cuidada neste tempo e que o recorrente persiste na sua tentativa de obstar ao exercício efectivo pelo assistente do poder paternal.
E faltando o elemento subjectivo de tal crime, ocioso se torna a indagação dos restantes elementos.
Procede assim, a impugnação do recorrente quanto ao crime de sequestro agravado, pelo qual foi condenado.
Mas não significa isso, como se viu, que deva ser de todo absolvido da acusação oportunamente formulada contra si.
O acórdão de 1.ª Instância teve por verificados os dois crimes: sequestro agravado e subtracção de menor, em concurso aparente, a punir só no quadro do crime de sequestro, por ser o mais severamente punível.
Decisão cujo acerto já se analisou e que não foi impugnada pelo recorrente quanto à verificação do crime de subtracção de menor, nem, por tal razão reexaminada pela Relação.

Afastada a prática do crime de sequestro por não verificado o elemento subjectivo, afastado fica o concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente continua punível, mas agora no quadro exclusivo do crime de subtracção de menor, pelo que haverá que, mais adiante, individualizar judicialmente a pena.
2.3.4.
Atenuação especial da pena e medida da pena

Sempre com relação ao mesmo crime de sequestro, e para além das questões já referidas respeitantes à causa de exclusão da ilicitude do art. 36.° 1 do C. Penal (conclusão 21), do erro desculpável sobre a ilicitude (conclusão 22), suscitou ainda as seguintes questões:

Atenuação especial da pena (conclusão 26.ª – o recorrente agiu determinado por motivo honroso: a salvaguarda do interesse da menor. Assim, seria aplicável o art. 72.° do C. Penal que prevê a atenuação especial da pena, e que o Tribunal a quo descurou).

Medida concreta da pena [o Tribunal a quo errou na determinação da medida concreta da pena, por não ter atendido à moldura penal abstractamente aplicável – 4 meses a 6 anos e 7 meses –, quer por não ter considerado o modo de execução, os sentimentos manifestados e a conduta anterior e posterior do recorrente (conclusão 27); não foi causador de qualquer “sofrimento” pelo assistente, se sofre tal é-lhe imputável em exclusivo, pois não assumiu a paternidade da menor e não requereu o processo de regulação do poder paternal sobre a menor (conclusão 28), como teria feito o homem médio colocado na sua posição (conclusão 29)].

Mas o conhecimento de tais questões fica prejudicado pela posição que se tomou quanto à prática do crime de sequestro.

2.3.5.

Indemnização civil

Sustenta o arguido que a sua actuação não causou danos à menor, que tem uma boa saúde física e mental, conforme atestaram os técnicos que tiveram intervenção neste processo, e que está bem inserida na família do recorrente, tendo sido essa conduta que supriu as faltas dos progenitores e evitou que a menor sofresse com o abandono de que foi alvo (conclusão 30).

Defende que não actuou ilicitamente, não causou danos, não teve intenção ou consciência de os causar e nem é imputável à sua conduta de bom samaritano e de pai extremoso qualquer sofrimento do assistente ou da menor, pelo que não há fundamento para a condenação do recorrente no pagamento de qualquer indemnização (conclusão 31), pelo que deverá ser absolvido do crime de sequestro e, consequentemente, deverá o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente por não provado (conclusão 32).

No entanto, esta tese não procede.

Desde logo, como se viu o recorrente, se bem que deva ser absolvido da prática do crime de sequestro agravado, por virtude do provimento parcial do seu recurso, agiu ilicitamente praticando um crime de subtracção de menor. Ora, na essência, a sua pretensão depende da sua pretensão de não haver agido ilicitamente.

Depois, a sua alegação não se revê na matéria de facto provada.

Continua o recorrente a não querer compreender que a sua persistência na manutenção de uma situação de facto, que vem prolongado no tempo, se traduziu e traduzirá em problemas e danos presentes e futuros para o assistente e para a menor, independentemente da intenção com que agiu, mas que, como se afirma na decisão recorrida, teve e tem em conta essencialmente a sua vontade de integrar a menor na sua família, como se fosse sua filha, sem curar da sua verdadeira identidade pessoal e familiar e dos seus verdadeiros interesses definidos pelo seu pai.

Sempre impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultando o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência. Pretendeu não entregar a menor ao pai que sabia ter juridicamente a sua guarda e direcção, a quem sabia que incumbia educar e tratar e com quem aquela deveria viver, não permitindo que a menor pudesse viver com o assistente, privando pai e filha da companhia um do outro.

Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, como bem entende, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, seu representante legal e a quem compete decidir sobre a vida daquela e contra a vontade presumida da menor. E fá-lo bem sabendo que esta não tem capacidade de decisão quanto à sua permanência num lugar ou à mudança para outro lugar, impedindo-a de ser deslocada para onde o seu pai bem entende em conformidade com os interesses da filha.

Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe (facto n.º 63). Privou-a de frequentar um infantário, com o propósito de obstar a que a menor fosse entregue ao Progenitor, como era já exigível, face à idade que tem, de lhe ser propiciado o convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação (facto n.º 65). Sabe que quanto mais prolongarem no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso será para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
Está ainda provado, como se viu, que:
– Logo em 27.2.2003 o assistente manifestou ao Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e mais ficar com a menor à sua guarda e cuidados e imediatamente procurou a filha. Logo que conhecido o local onde esta se encontrava a sua filha, procurou-a na casa de residência do arguido, ali se deslocando aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência. Mas o arguido e esposa nunca permitiram que contactasse com a filha.
– O assistente aguardou o desfecho do Processo de Regulação do Poder Paternal, convicto de que viria a ser-lhe-ia reconhecido o direito de ter a sua filha junto de si, mas continuando, a deslocar-se sucessivamente, várias vezes ao mês, de sua residência em Cernache do Bonjardim, Sertã, ora a Torres Novas, ora ao Entroncamento domicilio profissional do arguido, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
– Não obstante a sentença proferida, o arguido comunicou-lhe a recusa peremptória em procederem, ele e a mulher, à entrega da menor. O pai continuou sempre, pelos seus meios, a tentar localizar a filha, continuando para tanto a percorrer em viatura própria consecutivamente largas centenas de quilómetros, mensal e em determinadas alturas, semanalmente.
– Desde que soube ser o pai da menor, que o assistente anseia tê-la junto de si, criá-la, educá-la e inseri-la no seio da sua família. E mesmo a fotografia da filha que solicitou ao arguido e sua mulher, quando os contactou pessoalmente, lhe foi negada.
– O arguido e sua mulher adoptaram uma atitude de desdém, de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do assistente em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha; – ''que havia muitos pressupostos por definir” e, afirmando processualmente "que ele nunca quis saber da filha”.
O assistente quis e quer, desde que o soube, ser o pai, assumir-se realmente como tal, ainda hoje espera adormecê-la, acordá-la, levá-la à escola, alimentá-la, tratá-la na doença, passeá-la, brincar com ela, apresentá-la aos tios, primos e avós, dar-lhe a conhecer a sua realidade, inseri-la no seu agregado familiar composto por si, a sua companheira já de há alguns anos e o filho menor desta. Tem construído a sua vida familiar perspectivando englobar nela a sua filha CC, mudou de casa para recebê-la, mobilou e decorou um quarto só para ela.
A sua frustração e sentimentos de impotência, foram-se acentuando ao longo dos meses, transmudando-se em tristeza, angústia e desespero, ao ver-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva filha, tudo mais agravado com as sucessivas reviravoltas na actuação do arguido e esposa. Sentimentos, mais agravados e acentuados após a regulação do poder paternal, quando constatou que o mandado de entrega da menor remetido à P.S.P., do Entroncamento, não era cumprido, apesar de ter deslocado várias vezes ao posto daquelas Forças de Segurança, na esperança de obter noticias animadoras, embora sempre em vão. Sente-se impotente, desesperado, desacreditado, humilhado, rebaixado e atentado nos seus direitos, de protecção da vida familiar, face à ineficácia e inviabilização na concretização de uma decisão que estipula que a sua filha deveria estar junto dele e não está, causada pelo modo de agir do arguido e esposa, ao afastarem e ocultarem a menor, como bem entendem e para onde querem, recusando e impedindo a sua entrega, bem sabendo estar obrigados a entregá-la. Em consequência o assistente passou a ser uma pessoa reservada e fechada sobre si mesmo, evita falar na sua filha e em toda a situação à sua volta, porque sofre ao ver-se privado, como era seu direito, de acompanhar o processo de crescimento e desenvolvimento da sua filha. Sonha com a menor, imagina a sua voz, os seus gestos, frequentemente chora e pede à companheira para o ajudar por não aguentar mais a espera em ter consigo a menor. Estes danos morais sofridos diariamente, mantiveram-se, agravando-se à medida que o tempo vai decorrendo sem que a sua filha tivesse sido encontrada e lhe tivesse sido entregue. A situação de afastamento, ocultação e recusa de entrega da menor é de tal modo prolongada, que a parte considerável e essencial da sua infância se está a desenvolver fora da convivência da família biológica desta.
Consta dos autos um relatório técnico em que se refere: "A criança CC identifica-se social, cultural, afectiva e psicologicamente com a família constituída por AAe EE, não apresentando identificação significativa com os progenitores biológicos, como já seria de esperar cientificamente. Consequentemente, a ruptura com os padrões de referência da identidade actual e o impacto de outros padrões, desconhecidos e irreconhecíveis, para a criança, exerce influência negativa, não só em termos do processo de desenvolvimento habitual, assim como a possibilidade de fomentar um plano de desenvolvimento psicológico interior com carácter dissociativo, colocando em perigo a integridade psicológica identitária da criança.
Não se vê que, neste quadro, possa o recorrente, para impugnar a atribuição da falada indemnização, sustentar que o pai abandonou a menor; que não agiu ilicitamente e que da sua actuação não resultaram danos para a menor e seu pai.
É assim patente a falência da pretensão do recorrente, tal como ele a formula.

2.4.

Recurso do Ministério Público

Sustenta o Ministério Público que o acórdão recorrido, ao subordinar a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão ao dever de o arguido apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo (conclusão 1ª), estabelecendo como objectivo desse dever o de aqueles técnicos promoverem a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores (conclusão 2ª), integrou no âmbito daquele dever de apresentação uma obrigação que se não mostra adequada ás finalidades da punição e cujo cumprimento não é razoável que se exija ao condenado - art°s 50° n°2 e 51° n°2 do Código Penal (conclusão 3ª).

Tanto mais que está ainda pendente um processo de regulação do poder paternal relativo à menor e os procedimentos apropriados à defesa e prossecução do superior interesse daquela deverão ser equacionados e decididos pelo magistrado competente para conhecer daquele processo (conclusão 4ª).

Correctamente bastaria a imposição ao arguido do dever de apresentar a menor aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS nos termos ordenados pelo juiz competente, sem a fixação de qualquer objectivo, no presente processo, à actuação daqueles técnicos (conclusão 5ª).

O Ministério Público neste Tribunal acompanhou este entendimento, como se relatou.

Importa começar por contextualizar a determinação da impugnada condição de suspensão da execução da pena.

«Considerando o disposto no artigo 71 ° do Código Penal, e atendendo a que as exigências de prevenção especial e geral são particularmente fortes, tender-se-ia a ter por adequada, por primeira e inusitada adesão, a pena de 6 anos de prisão, aplicada na 1ª instância, douta e explicitamente fundamentada (Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2006, in www.stj.pt processo 05P3127 JSTJ000)

Mas se tal pena, no jogo das finalidades da sanção é a adequada, tudo muda de figura quando entra no cenário a vítima, neste caso uma menor de cinco anos de idade.

O clamado interesse superior da criança não pode ser indiferente, aqui no processo-crime, designadamente para a fixação da pena.

Como se foi dizendo o arguido, com a sua mulher, criaram um estágio de ruptura, na ficção de um estágio de enamoramento, que visa a sua satisfação pessoal, o seu desejo de serem pais. Não agiram no interesse da criança pois, como se disse, no momento em que a criança se encontrar consigo mesma terá consciência de que nada do que a rodeava era verdadeiro, nem sequer o próprio nome.

Impõe-se, por isso, repor o estado de encantamento, retirar o cenário de ilusão criado, para se colocar a menor na realidade, causando o menor dano na sua personalidade.

Para tal, a menor precisa de ter acesso não só aos personagens da sua vida real (o seu pai e a sua mãe) como aqueles outros (o arguido e a sua mulher) que aleitaram o mundo onde ela se foi criando, até agora.

O arguido foi actor-encenador privilegiado do teatro da vida da criança-vítima e, por tal, tem de fazer parte da nova cena onde a vida, tal como é na realidade, vai irromper no ser da criança-vítima.

O interesse superior da criança impõe-se neste momento obrigando a que a pena a aplicar ao arguido não seja impeditiva da reposição do estágio de encantamento, mas, outrossim, seja garantia de que ele, o arguido, terá um papel primordial nessa reposição.

A pena a aplicar será de tal modo que por um lado garanta as necessidades de punição e prevenção e, por outro, acautelem o papel do arguido na passagem da criança para esse estágio de encantamento.

Não cabe neste processo estabelecer-se qualquer tipo de regulamentação do exercício do poder paternal, nem ter em conta quaisquer aspectos emocionais ou morais que tal situação envolva.

Aqui a pena terá em vista fazer cessar o sequestro, sem deixar impune o arguido, autor do crime.

Assim, o arguido terá de deixar a prisão para participar na recuperação da menor – a pena a aplicar será suspensa por isso, e certos de que a ameaça da pena é capaz de garantir os objectivos da punição, pois que não se conhece outra deformação da personalidade ao arguido, se não esta que conduziu o arguido a um conflito profundo com o direito e à prática de um crime vitimizador de uma criança, roubando-lhe uma infância vivida na normalidade.

Para a pena ser suspensa não poderá ser superior a três anos – artigo 50º do Código Penal.

Mas a suspensão visa garantir a realização do interesse superior da criança-vítima e, por isso, estará sujeita a condições que permitam o fim das situações fictícias alimentadoras do crime.

Nestes termos o arguido, terá de:

1 – Apresentar, a criança-vítima aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, para que estes, definam o melhor momento em que promovam a explicação á menor acerca da sua real identidade (que ela é a CC e não a ficcionada A...F...) e a dos seus progenitores (que o pai, é o aqui assistente) de modo a que, procurando minimizar os traumas causados á menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo. Sendo obrigação do arguido apresentar a criança logo que os pedopsiquiatras e técnicos exigirem, estará a violar uma das condições da suspensão da pena, se não o fizer.

Os pedopsiquiatras e técnicos do IRS terão de informar o Tribunal da data que indicaram ao arguido para a realização da diligência e apresentar relatório com o resultado da explicação.

2 – Apresentar a criança vítima nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença.

3 (4, por lapso material do acórdão recorrido) – Cumprir todas as decisões que envolvam a criança-vítima que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal.

Tudo isto acompanhado e sob controlo do IRS.»

Dispõe o art. 51.º do C. Penal que a suspensão da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, indicando exemplificativamente alguns desses deveres (n.º 1) e estabelecendo impositivamente que esses deveres não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (n.º 2).

Começando por esta última exigência, não se vê que a mesma seja desrespeitada pelo dever imposto ao recorrente de apresentar, a criança-vítima aos pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, o único segmento do dever se se dirige àquele.

Situam-se no mesmo nível dos restantes deveres de apresentação da criança e cumprimento das decisões proferidas pelo tribunal que regula o exercício do poder paternal e que não foram impugnadas pelo Ministério Público.

Deveres “reforçados” pela sua natureza de condições de suspensão da execução da pena.

Mas abordando directamente o objectivo que foi fixados àquelas apresentação: «para que estes, definam o melhor momento em que promovam a explicação à menor acerca da sua real identidade (que ela é a CC e não a ficcionada A...F...) e a dos seus progenitores (que o pai, é o aqui assistente) de modo a que, procurando minimizar os traumas causados à menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo» e que o Ministério Público impugna, importa reconhecer que o mesmo foi estabelecido, explicitamente como forma de “minimizar os traumas causados à menor pelo mundo ficcionado pelo arguido, a coloque no seu real mundo”, ou seja, como um dever destinado a reparar o mal do crime.

Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (op. cit. I, pág. 686) «através dos deveres e regras de conduta que são impostos para reparar o mal do crime e facilitar a reintegração do condenado na sociedade contribui-se para que ele observe uma conduta correcta durante o período da suspensão, evitando-se, ao mesmo tempo, os danos causados pelo cumprimento de uma pena privativa da liberdade. »

«Por outro lado, com a imposição de certas obrigações que servem para reparar o mal do crime pode compensar-se a situação de favor em que se traduz a não execução da pena privativa da liberdade.»

«Aos deveres previstos neste artigo [51.º] (destinados a reparar o mal do crime) e às regras de conduta previstas no art. 52.° (destinadas â facilitar a reintegração do condenado na sociedade), podem acrescer as obrigações previstas no n.” 2 do art. 54.° (que interessem ao plano de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado), sempre que seja imposto o regime de prova.»

No caso, como se viu, o Tribunal recorrido teve este dever como muito importante na reparação do mal do crime e a colaboração do recorrente nele como importante na ultrapassagem dos danos e dificuldades que causou à menor com o seu comportamento. Tão importante que, começando por entender que, em princípio, a pena de prisão efectiva cominada na 1.ª Instância se mostrava justa e adequada, a modificou na sua medida para permitir a sua suspensão e assim a colaboração do recorrente.

Moveu-se, assim, a Secção Criminal da Relação de Coimbra no âmbito das suas competências penais, tanto mais que salvaguardou nas restantes condições a supremacia das decisões tomadas no foro da regulação do poder paternal.

No entanto, os desenvolvimentos posteriores do processo de regulação de poder paternal, que se mostram documentados nestes autos, com as dificuldades sentidas pela competente Secção Cível da Relação de Coimbra na definição precisa do tempo e modo da aproximação da menor ao assistente seu pai, prejudicam a manutenção desse dever que iria interferir no procedimento que vem sendo seguido no processo de regulação do poder paternal.

Daí que não devesse manter-se esse dever, como pretende o Ministério Público, mas por razões diversas.

De todo o modo, tendo este Supremo Tribunal de Justiça entendido que se não verifica o crime de sequestro agravado, tem-se por prejudicada esta questão, uma vez que não subsiste a pena aplicada pelas instâncias, havendo que estabelecer agora a pena pelo crime de subtracção de menor.

2.5.

Dispunha o artigo 249.º do C. Penal (subtracção de menor), à data da prática dos factos, que quem se recusasse a entregar menor à pessoa que sobre ele exercer poder paternal ou tutela, ou a quem ele esteja legitimamente confiado era punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias [n.º 1 al. c)].

Agora, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a pena passou a ser de prisão de 1 a 5 anos [n.º 1 al. c)], salvo se o agente for ascendente, adoptante ou tiver exercido a tutela sobre o menor, caso em que continua a ser de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias (n.º 2).

Não cabendo o recorrente na previsão do actual n.º 2 do art. 249.º do C. Penal, a pena aplicável, de acordo com a nova redacção desse artigo, seria a de prisão de 1 a 5 anos.

Em obediência à regra prescrita no art. 2.º, n.º 4 do C. Penal, sem necessidade de estabelecer os cômputos penais, de acordo com ambas as redacções do art. 249.º do mesmo diploma, se aplicará a lei vigente à data da prática dos factos, por dela resultar necessariamente um regime mais favorável ao agente.

A primeira operação consiste na escolha da pena cominada para o crime de subtracção de menor, cometido pelo recorrente: prisão ou multa:

Prevê-se no art. 70.º do C. Penal que, sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Essas finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal).

Ora, as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa.

Impõe-se, assim, a opção pela pena de prisão.

A pena aplicável é a de prisão até 2 anos.
Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente, que já analisaram a propósito dos danos causados com a sua conduta, e o dolo directo e intensíssimo.
Está provado, neste domínio e em síntese, que:

Impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultado o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência, apesar de saber que este tinha juridicamente a sua guarda e direcção, e que lhe incumbia educar e tratar a filha, com quem deveria viver, privando pai e filha da companhia um do outro.

Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão.

Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Privou-a de frequentar um infantário, com o consequente convívio com outras crianças, apreender regras de convivência social, adquirir conhecimentos, facultar-lhe um são, harmonioso e sereno desenvolvimento e uma boa educação e formação, sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
Isto quando logo em 27.2.2003 o pai da menor manifestou ao Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e de ficar com a menor à sua guarda e cuidados e imediatamente procurou a filha, deslocando-se à residência do arguido, logo que conheceu o local onde esta se encontrava aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência, o nunca lhe foi permitido, mesmo durante o Processo de Regulação do Poder Paternal, cujo desfecho lhe foi favorável, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, mensal e em determinadas alturas, semanalmente, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
O arguido, não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor.
O pai da menor, quis e quer, desde que o soube ser o pai, assumir-se realmente como tal, não pode, como desejava, dar-lhe os cuidados e atenção de pai, apresentá-la à sua família, inseri-la no seu agregado familiar, quando organizou a sua vida nessa perspectiva. Sendo grande a sua tristeza, angustia e desespero, ao ver-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva, filha por causa da actuação do arguido e esposa, sentimentos agravados e acentuados após a regulação do poder paternal, quando constatou que o mandado de entrega da menor remetido à PSP, não era cumprido, apesar dos seus esforços. Em consequência o assistente passou a ser uma pessoa reservada e fechada sobre si mesmo, evita falar na sua filha e em toda a situação à sua volta, porque sofre ao ver-se privado, como era seu direito, de acompanhar o processo de crescimento e desenvolvimento da sua filha. Sonha com a menor, imagina a sua voz, os seus gestos, frequentemente chora e pede à companheira para o ajudar por não aguentar mais a espera em ter consigo a menor. Estes danos morais são sofridos de forma paulatina e diariamente, mantendo-se ao presente, agravando-se à medida que o tempo vai decorrendo sem que a sua filha seja encontrada e lhe seja entregue. A situação de afastamento, ocultação e recusa de entrega da menor é de tal modo prolongada, que a parte considerável e essencial da sua infância se está a desenvolver fora da convivência da família biológica desta.
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: o arguido agiu sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. Não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor e adoptou uma atitude de desdém, de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do pai em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha”.
Pretendia o recorrente, com a sua conduta, evitar a entrega da menor ao pai e ficar com ela como se sua filha fosse. Mas, como se refere no acórdão recorrido, «ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem, revelou um profundo desprezo por um ser humano completamente desprotegido e indefeso» (…) «Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança.»
Como refere ainda o acórdão recorrido, «tudo isto para se reflectir que o que o arguido criou para a menor, não foi um estado de encantamento mas um verdadeiro estado de ruptura que, longe de ser no interesse da menor é a forja das desilusões quando a criança se encontrar com ela própria e constatar que até o seu próprio nome era falso.» (…) «Mesmo que este mundo de encantamento fosse o de melhor aparência, o dos ricos, o dos afagos, o do pretenso amor, o choque com a realidade, a perplexidade da criança, quando, e necessariamente acontecerá, se confrontar com a realidade, é de ruptura total, é o de aperceber-se que nunca existiu como ela própria. E isto não é, não pode ser, no interesse da criança.» «O arguido para criar esse mundo ficcionado que lhe permitia reter a menor-vítima não se coíbe de entrar em conflito directo com as normas aceites pela comunidade, com o direito, criando ele a lei que rege esse mundo, aplicando essa lei e executando as normas.»
As condições pessoais do agente e a sua situação económica: o arguido é sargento do Exército e é casado.
A conduta anterior ao facto e posterior a este: o arguido não tem antecedentes criminais;
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele e que se vieram de abordar.
A esta luz, entende este Supremo Tribunal de Justiça que as enormes exigências de prevenção geral de integração e de intimidação impõem a aplicação de uma pena que coincide com o limite máximo da respectiva moldura penal abstracta: 2 anos de prisão, pena que é consentida pelo muito intenso dolo com que o arguido agiu.
A medida da pena infligida imporia a consideração da suspensão ou não da sua execução, face ao limite constante do n.º 1 do art. 50.º do C. Penal e ao poder-dever que esse normativo impõe ao Tribunal.
Mas, a circunstância de só o arguido ter recorrido da condenação confirmada pela Relação e não poder, por isso, ser-lhe aplicada uma pena mais grave do que a que lhe fora infligida pela Relação: 3 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, com as condições mencionadas, dispensa o Supremo Tribunal de Justiça desse exercício.

Com efeito, tem entendido, este Supremo Tribunal de Justiça que em recurso só trazido pelo arguido, este não pode ser penalizado mais gravemente do que na decisão recorrida, por virtude do princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP, tal como vem entendendo (ver, por todos, no mesmo sentido, para o caso de anulação de julgamento, o AcSTJ de 15.11.2007, proc. n.º 3761/07-5, com o mesmo relator e o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 236/07 e 502/07, julgando inconstitucional, por violação do art. 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do art. 409.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo arguido).
Assim a pena de 2 anos que agora se aplica pelo crime de subtracção de menor, vai suspensa na sua execução por 2 anos, subordinada ao cumprimento pelo arguido dos seguintes deveres, nos termos do n.º 1 do art. 51.º do C. Penal:
– Apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença.
– Cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal.
3.
Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso trazido pelo arguido, absolvendo-o da prática do crime de sequestro agravado, mas aplicando-lhe a pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, pelo crime de subtracção de menor, subordinada ao cumprimento pelo arguido dos deveres acima indicados e concedendo provimento ao recurso do Ministério Público, no mais confirmando a decisão recorrida.
Custas no decaimento pelo arguido, com a taxa de justiça de 8 Ucs.
Custas quanto ao pedido cível pelo arguido.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2007

Simas Santos (Relator)
Rodrigues da Costa
Arménio Sottomayor
Souto de Moua