Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A314
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: PROCURAÇÃO
REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
CONTRATO DE MANDATO
MANDATO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PODERES ESPECIAIS
VENDA
PROMESSA DE VENDA
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: SJ200305130003141
Data do Acordão: 05/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 230/02
Data: 10/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Seja como negócio unilateral ou integrado no contrato de mandato, a procuração é uma declaração receptícia cujos destinatários, segundo a orientação clássica, são os terceiros com quem o representante contrata em nome do representado, devendo ser interpretada de acordo com as regras contidas nos Art 236 - 238 do C.C.
II - Quem tem poderes para vender determinado prédio "pelo preço e condições que entender", tem também, em princípio, poderes para o prometer vender, visto que estes últimos, porque instrumentais em relação à finalidade pretendida e para o qual se concedem os poderes, cabe perfeitamente no seu âmbito sem exceder os referidos limites.
III - Sob o ponto de vista económico, hoje em dia, o contrato-promessa aparece-nos cada vez mais como um negócio de garantia, pelo que, não obstante a autonomia jurídica em relação ao contrato prometido, a finalidade prática que hoje domina a realização do contrato-promessa, sobretudo no domínio do negócio imobiliário, aproxima-os de tal modo que aquilo que deve acentuar-se é a sua complementaridade mais que as suas diferenças.
IV - Assim, visto que os princípios gerais não afastam, por princípio, os poderes por prometer vender daquele que os tem por vender, será em última análise a interpretação de concreta procuração que deverá permitir encontrar a vontade real do mandante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório:

No Tribunal Judicial de Paredes de Coura, A, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra, B.
Resumidamente alega:
- A Ré é legítima dona e possuidora de um prédio rústico, denominado "Rossio da Serra Lapada e Souto", com cerca de 32.610 m2, sito no lugar de Antas, freguesia de Rubiães, Paredes de Coura.
- Por contrato celebrado em 13/10/98, a Ré, representada por C, munido de procuração que lhe foi conferida em 17/4/97 pela Ré e se encontra documentada a fls 45 destes autos e a fls. 28 e 28v. do apenso de arresto, prometeu vender ao A. e este, representado por sua mãe, D, prometeu comprar-lhe o referido terreno pelo preço de 7.000.000$00, como tudo consta do contrato escrito junto ao apenso de arresto a fls. 14 e 15, que aqui se reproduz.
- o A. a título de sinal e princípio de pagamento pagou logo a quantia de 5.500.000$00, ficando os restantes 1.500.000$00 de serem pagos na data da celebração da escritura, que seria celebrada logo que o A. entendesse, devendo notificar a Ré com a antecedência mínima de 10 dias.
- Ficou ainda convencionado que o não cumprimento do contrato importaria o direito à sua execução específica, nos termos do Art. 830 do C.C.
- A Ré, não obstante avisada várias vezes, recusa-se a celebrar a escritura de compra e venda.
Pede por conseguinte:
- Se declare válido o contrato promessa em causa;
- Se declare que a Ré faltou ao seu cumprimento.
- Se condene a Ré ao seu cumprimento específico, autorizando-se a feitura dos respectivos registos prediais e ordenando-se o cancelamento de quaisquer outros registos relativos ao prédio em litígio que prejudiquem o direito que o A. pretende fazer valer.

- Subsidiariamente, para o caso de a execução específica se tornar inviável, pede a condenação da Ré a restituir ao A. o dobro da quantia paga como sinal, ou seja, 11.000.000$00.

- Em qualquer caso, pede ainda a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização pelos prejuízos sofridos, a liquidar em execução de sentença.

Citada a Ré veio contestar, alegando no essencial que a procuração outorgada a favor do C, não lhe conferia poderes para celebrar qualquer contrato-promessa de compra e venda com referência ao identificado prédio, mas apenas lhe dava poderes para vender.
Por conseguinte o eventual contrato-promessa não pode nunca obrigar a Ré.

Foi concedido à Ré o benefício do apoio judiciário (cf. despacho de fl 149).
Foi elaborado despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi lida a decisão sobre a matéria de facto, que não foi alvo de reclamações:

Preferida, de seguida, sentença final, foi a acção julgada parcialmente procedente (apenas improcederam os pedidos que se reportam aos registos prediais e à indemnização a liquidar em execução da sentença).
Condenou-se ainda a Ré na multa de 100.000$00 por litigância de má-fé e uma indemnização ao A. que vier a ser liquidada nos termos do Art. 457 nº 2 do CPC.

Inconformada, recorreu a Ré para o Tribunal da Relação (Guimarães), tendo o recurso sido admitido como de apelação.

Apreciada a apelação acordou-se na Relação de Guimarães julgá-la improcedente, mantendo a decisão recorrida.

É deste douto acórdão que a Ré pede revista.
Admitida esta e corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Conclusões:

Apresentadas tempestivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:
a) A procuração outorgada com poderes para venda não contém poderes implícitos para celebrar contratos-promessa de compra e venda;
b) A procuração é um acto formal, confinando-se estritamente ao seu valor literal e expresso por imperativo de segurança jurídica:
c) O contrato promessa celebrado pelo procurador C está ferido de ineficácia por se tratar de negócio celebrado no quadro da representação sem poderes;
d) A procuração tem como declaratário único o procurador e não eventuais terceiros.
e) A Ré não tinha que manifestar a quem quer que seja, após a revogação da procuração, a ausência de poderes do procurador para celebrar contratos promessa, por inútil.
f) Violou, pois, o acórdão recorrido, por erro de interpretação e aplicação o disposto nos Arts. 268 do C.C. e o Art. 456 do C.P.C.

Nas suas contra-alegações, defende o recorrido a confirmação do acórdão sob censura.

Os Factos:

São os seguintes os factos dados como provados pelas instâncias:

1- A Ré é dona e possuidora de um prédio rústico denominado "Rossio da Serra Lapada e Souto", composto por terreno de pinhal, mato, eucaliptal e pastagem. com a área de 32.010 m2, sito em Antas, freguesia de Rubiães, Paredes de Coura .... inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1938 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura sob o nº 572 de Rubiães (A/ dos factos assentes);

2 - Em 28/12/99 o A. remeteu à Ré carta registada com AR, datada de 27/12/99, comunicando-lhe o propósito de celebrar a escritura pública no Cartório Notarial de Caminha para o que a avisaria com a devida antecedência, salvo se no prazo de 25 dias outra coisa fosse decidida, dispondo-se, contudo, o A. a fazer a escritura em qualquer cartório, situado em local à escolha da Ré, em dia e hora que lhe conviesse e que lhe transmitiria com a antecedência mínima de 8 dias.
(B/dos factos assentes);
3 - Não tendo obtido resposta, o A. enviou nova carta, em 20/1/2000, notificando a Ré da marcação da escritura para o dia 14/2/2000, no Cartório Notarial de Caminha, não tendo a Ré comparecido; (C/os factos ass.)
4 - Em 1/3/2000, o A. notificou judicialmente a Ré para celebrar a escritura, tendo a mesma dito que não se dispõe a celebrar tal escritura (D/dos factos assentes);
5 - Em 17/4/1997, a Ré declarou constituir seu bastante procurador C, ao qual concedeu poderes para vender o prédio referido em A/, pelo preço e condições que entender (E/ dos factos assentes);
6 - Em 04/11/98, por notificação judicial avulsa, a Ré revogou a procuração referida em E, intimando o C a devolver-lhe, ou ao seu novo procurador, essa procuração (F/dos factos assentes).
7 - A Ré não ratificou nem pretende ratificar qualquer negócio celebrado pelo C; (G/dos factos assentes).
8 - Por decisão proferida em 24/3/2000, foi julgada procedente a providência cautelar nº 19/00, apensa aos presentes autos ... (H/dos factos assentes).
9 - Por acordo de 13/10/98 reduzido a escrito conforme exemplar que constitui fls 14 e 15 dos autos apensos, C declarou prometeu vender, em nome da Ré, o prédio rústico descrito em A/ ao A., tendo D, declarado prometer comprar-lhe em nome do A. pelo preço de 7.000.000$00. (resposta ao quesito 1º);
10 - Desse preço de 7.000.000$00, a D, em representação do A.,entregou como princípio de pagamento a quantia de 5.500.000$00 ao C e ficou acordado que o restante valor da venda, 1.500.000$00 seria pago pelo A. no acto da escritura pública de compra e venda, mais tendo ficado acordado que o não cumprimento do acordado importava a execução específica (respostas aos quesitos 2º, 3º e 4º);
11 - A escritura de compra e venda seria celebrada mediante aviso prévio do A. ou sua mãe, de 10 dias, no Cartório Notarial escolhido por eles (resposta ao quesito 5º);
12 - Verbalmente foi acordado o prazo de 90 dias para ser celebrada a escritura, período refutado suficiente para a Ré, ou o seu procurador, reunirem documentação suficiente para o acto e para contactarem os confinantes do prédio (resposta ao quesito 6º);
13 - O A. e sua mãe informam o C para outorgar a escritura, declarando este, a partir de 4/11/98 que os seus poderes para tanto tinham cessado, por revogação da procuração pela Ré (resposta ao quesito 7);
14 - Dá-se aqui reproduzido o que consta da procuração referida em E/ (resposta ao quesito 9º);
15 - Os primeiros contactos do A. para a compra do prédio foram estabelecidos com a mediadora imobiliária (Imoverse), a qual facultou ao A. o contacto com o C. (resposta ao quesito 15º);
16 - A Ré, no decurso de diversos contactos pessoais com o A., durante vários meses, nunca invocou a falta de poderes de representação para celebrar contratos-promessa, nem o fez depois de ter recebido as cartas remetidas pelo A. e sua mãe (respostas aos quesitos 22 e 23º).

Fundamentação

A questão essencial suscitada é a de saber se, no caso concreto os poderes concedidos ao procurador da Ré para vender determinado prédio rústico, a autorizavam a outorgar em nome da Ré o contrato promessa de compra e venda de 13/10/98.

Como resulta do disposto no Art 262 do C.C., a procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente poderes representativos.
O C.C. de 1966 trata autonomamente a representação e o contrato de mandato por via do qual alguém fica vinculado para com outrem a, por sua conta, praticar um ou mais actos jurídicos (Art 1157 do C.C.), o que vem mostrar que o legislador quis fazer absoluta separação entre as duas figuras jurídicas. Tal não obsta, porém a que possam associar-se.
De facto, a procuração pode existir autonomamente em relação ao mandato, caso em que o procurador não está vinculado à prática de qualquer acto jurídico, estando no entanto habilitado a praticá-los.
Estamos então perante um negócio jurídico unilateral.
Mas a procuração pode também surgir associada ao mandato, surgindo assim o mandato com representação, no âmbito do qual, por regra, o mandatário tem o dever de agir não só por conta mas também em nome do mandante. (Art 1.178 do C.C.)

Seja como negócio unilateral ou integrada no contrato de mandato, a procuração é uma declaração receptícia cujos destinatários, segundo a orientação clássica são os terceiros com quem o representante contrata em nome do representado, como parece resultar do disposto nos Arts. 260 e 266 do C.C.
Como observa Ferrer Correia, citado por Manuel Januário da Costa Gomes "Em tema de Revogação do Mandato Civil « é o representado que vai suscitar a confiança do terceiro na correspondência à sua vontade da autorização representativa", fazendo-o umas vezes directamente - dirigindo-se ao terceiro ou fazendo publicar a procuração - outros por meio de um anúncio - o representante - que transmitirá ao terceiro o conteúdo da autorização representativa ».
Portanto, para o referido Professor a procuração configura-se "como declaração unilateral de vontade procedente do representado e dirigida ao Terceiro".
Não falta porém, quem, divergindo desta orientação, defenda que o verdadeiro destinatário da procuração é o representante por ser o seu destinatário natural, que não poderá prevalecer-se dos poderes conferidos enquanto não receber a procuração ou tiver conhecimento desses poderes. É a posição assumida pelo autor da obra acima citada.
Não obstante, reconhece serem os terceiros com quem o representante opera a razão de ser da procuração "... embora a relação de representação respeite apenas ao representado e ao representante, é perante terceiros que a mesma está mediatamente destinada a operar... (cf fl. cits pag. 237).

Seja como for, como declaração negocial que é a procuração há-de ser interpretada de acordo com as regras contidas nos Arts. 236 e 238 do C.C.

Ora, no caso dos autos está provado que a Ré outorgou procuração ao C, conferindo-lhe poderes "para vender pelo preço e condições que entender o prédio rústico nº 1938 ..." ou seja o prédio identificado na alínea A/ da especificação.
Estamos, pois, perante uma procuração com poderes especiais para a venda de um concreto prédio rústico, o que obviamente indica estarmos perante um mandato com representação, com poderes especiais o que se refere o Art 1159 nº 2 C.C.

Como se provou, ao abrigo dos poderes acima referidos, o procurador da Ré, em 13/10/98, outorgou em nome dela, com a procuradora do A. o contrato-promessa documentado nos autos, por via do qual prometeu vender ao A. e este prometeu comprar o prédio rústico identificado na procuração emitida pela Ré, pelo preço de 7.000.000$00, tendo logo no acto recebido do A. a importância de 5.500.000$00 da qual deu quitação, ficando a restante parte do preço se ser pago no acto da escritura de compra e venda a realizar em data a indicar pelo A., que teria de avisar a Ré com a antecedência de 10 dias da data e cartório escolhidos.
Finalmente, conferiram ao contrato execução específica nos termos do Art 830 do C.C.

É certo que também se provou que em 4/11/1998 a Ré revogou a procuração acima referida, mas isso é completamente irrelevante quanto à eficácia do negócio em relação a ela, visto que o mencionado negócio se efectivou em plena vigência do mandato representativo em causa, razão porque produziu todos os seus efeitos na esfera jurídica da Ré (cf. Art. 258 e 1178 do C.C.)

Também se teve como provado (alínea G dos factos assentes) que a Ré não ratificou nem pretende ratificar qualquer eventual negócio celebrado pelo C (o procurador). Todavia, também esta matéria é irrelevante, uma vez que, tendo o negócio sido realizado em plena vigência da procuração em causa, o negócio logo transitou para a esfera jurídica da Ré, como se disse, sem necessidade de qualquer ratificação.

Portanto, a única questão que subsiste é a de saber se o procurador, ao celebrar em nome da Ré o dito contrato promessa de compra e venda excedeu ou não os limites dos poderes que aquela lhe conferira, os quais, como se disse o autorizavam a vender "pelo preço e condições que entender" o prédio que, afinal, apenas prometeu vender.

A resposta passará não só pela interpretação dos princípios legais em vigor, como também pela interpretação do negócio concreto em questão.

Sob o ponto de vista estritamente jurídico a questão é controvertida na jurisprudência, mas pensamos que, quem tem poderes para vender determinado prédio, também os tem para prometer vender, visto que estes últimos, porque instrumentais em relação à finalidade pretendida e para a qual se conferiu os poderes, cabem perfeitamente no seu âmbito sem exceder os referidos limites, a menos que sejam expressamente excluídos.

Costuma apontar-se em desabono desta orientação que o contrato-promessa de compra e venda e o contrato de compra e venda são realidades completamente distintas e autónomas, não só quanto ao seu objecto, como quanto aos seus efeitos e regime jurídico, designadamente no que respeita ao não cumprimento.
E é certo, realmente que os dois contratos são diferentes e têm autonomia entre si.
Só que, nem por isso o contrato-promessa de compra e venda deixa de ser uma realidade instrumental em relação à compra e venda. Sem este contrato ficaria aquele reduzido a uma realidade inútil.
Situa-se no domínio do chamado "iter negotti" e visa assegurar o contrato definitivo ou contrato prometido cujo conteúdo deixa já definido.
Como observa Calvão da Silva (cf. Sinal e Contrato-Promessa - Coimbra 1988 - 175), o contrato promessa é instrumental e preparatório do contrato definitivo sendo inúmeras as razões que determinam as pessoas a recorrer a este tipo contratual.
"Pense-se nos inúmeros casos em que as partes querem celebrar o contrato definitivo, mas falta qualquer documento ou formalidade burocrática necessários, cuja obtenção ou realização demora algum tempo; pense-se nos casos em que as partes querem celebrar o contrato definitivo, mas o potencial comprador não dispõe, de momento, do capital para a compra e o potencial vendedor não quer vender a crédito; pense-se nos casos em que as partes querem celebrar o contrato definitivo, mas o prédio ou o andar urbano para habitação não está concluído ou constituído em regime de propriedade horizontal; pense-se nos casos em que as partes querem celebrar o contrato definitivo, mas o olienante não tem o registo da propriedade em seu nome e o potencial adquirente quer que aquele registe previamente para só depois definitivamente contratar ... etc, etc.
Em situação deste tipo, nos quais as partes querem celebrar o contrato definitivo e estão de acordo quanto aos elementos e condições do contrato, apenas o não celebrando nesse momento por impossibilidade material ou jurídica, as partes garantem e asseguram a celebração, no futuro, do contrato definitivo, através da conclusão de um contrato-promessa.
A vontade das partes quanto ao contrato definitivo está em situações desta natureza definitivamente formada, conforme os seus interesses, sem reserva de ulterior avaliação das suas conveniências, havendo lugar ao diferimento ou dilação da sua celebração por esta não lhes ser material ou juridicamente possível - ou até conveniente - no momento" no mesmo sentido, escreve o Prof. Almeida Costa (cf. Direito das Obrigações - 4º Ed. 259/260) "Afigura-se que, em nossos dias, mercê das circunstâncias económicas e financeiras, só muito raro o contrato-promessa encontrará justificação no facto de as partes ainda não terem uma última decisão quanto à conveniência do contrato prometido, quer dizer, não pretenderem comprometer-se definitivamente. Na verdade, ao menos do lado que, entre nós, a lei protege de modo especial, o que se, deseja com a obtenção da promessa é, por sistema, garantir a celebração do contrato visado".

Na verdade, sob o ponto de vista económico, hoje em dia, o contrato-promessa aparece-nos como um negócio de segurança ou de garantia.

Vê-se assim que, não obstante a autonomia jurídica dos dois contratos (que impede a integração automática do contrato-promessa no âmbito dos poderes acessórios a que se refere o Art. 1159 nº 2 do C.C.), a finalidade prática que hoje domina a realização do contrato-promessa, sobretudo no domínio do negócio imobiliário, aproxima-os de tal modo que, aquilo que deve acentuar-se para os efeitos que aqui nos interessa, é a sua complementaridade, mais que as suas diferenças.
É, de tal modo isto é assim, que não faltam autores que negam ao contrato definitivo "carácter e função negocial, atribuindo-lhe o valor de mera documentação e formalização do acordo formado no contrato-promessa..." do qual "nasceria a obrigação (de confessar e) de criar a documentação condicionante dos efeitos contratuais do próprio contrato" enquanto outros, aceitando embora a autonomia dos contratos em causa, concebem o contrato definitivo apenas como "um negócio jurídico (embora) reprodutivo do contrato-promessa" (cf. Calvão da Silva, ob. cf - 176/77-)

Consequentemente perante esta realidade actual e notória, não vemos qualquer óbice substancial a que, no plano dos princípios jurídicos, seja de admitir que quem tem poderes para celebrar um concreto contrato de compra e venda, tenha implicitamente poderes para outorgar prévio contrato-promessa preparatório e garante daquele.
Pelo contrário, o que nos parece é que a realidade económica e social acima referenciada aponta no sentido indicado, em termos de princípio geral alicerçado nas regras da experiência e do senso comum, bem como nos princípios da boa-fé negocial que a lei impõe aos contratantes.

Portanto, aceite o principio geral acima enunciado, a resposta sobre se, no caso concreto, o procurador detinha ou não os referidos poderes implícitos tem de ser encontrada na interpretação da procuração em causa e do negócio concreto realizado pelo procurador, tendo em conta o enquadramento fáctico apurado.

Ora, como já vimos a procuração em questão concedia ao procurador / mandatário poderes para vender determinado prédio "pelo preço e condições que entender".
E por outro lado, provou-se que, não obstante, no contrato promessa se tivesse deixado o prazo para a realização do contrato-prometido ao critério do promitente comprador, acordou-se verbalmente um prazo de 90 dias para celebrar a escritura definitiva, período esse que foi o julgado suficiente para a Ré ou o seu procurador reunirem a documentação suficiente para o acto e para contactar os confinantes do prédio (resposta ao quesito 6º).
Ficou também, provado que, embora a Ré tenha revogado a procuração em causa em 4/11/98, quando foi contactada pessoalmente por diversas vezes pelo A., durante vários meses, nunca invocou a falta de poderes de representação para celebrar contratos-promessa, nem o fez depois de ter recebido as cartas remetidas pelo A. e pela sua mãe (respostas aos q. 22º e 23º).
Assim, deste enquadramento factual, a primeira coisa que ressalta com manifesta relevância é o facto de a Ré não estar em condições jurídicas de realizar, desde logo, a escritura de compra e venda, visto que, como resulta da resposta ao quesito 6º, não tinha ainda reunido os necessários documentos e era ainda necessário contactar as confinantes do prédio, naturalmente para indagar da sua intenção de exercerem o direito de preferência.
Daí os 90 dias de prazo verbalmente convencionados.
Portanto é legítimo concluir que foram razões imputáveis à Ré, que impediram a efectivação do contrato definitivo, logo após as prévias e normais negociações com o potencial comprador.
Que mais, então, devia fazer um procurador diligente, senão garantir o negócio querido pela mandante/Ré celebrando o contrato-promessa em lide, no qual ficou garantida, quanto possível a efectivação do contrato definitivo, com a estipulação da execução específica e a cobrança da quase totalidade do preço convencionado? Tanto mais que dispunha de poderes irrestritos para a celebração da compra e venda, já que a podia levar a cabo nas condições que entendesse.
Ora, uma das condições para a realização do negócio querido pela Ré, era a prévia outorga do contrato-promessa, visto que o contrato prometido não podia, desde logo ser celebrado por motivos imputáveis à Ré, como se viu.
Portanto, no caso concreto, pode dizer-se que o mandatário usou um meio adequado (nas circunstâncias, diríamos mesmo necessário - não se trata, evidentemente de uma necessidade jurídica, mas essencialmente de ordem prática -) para alcançar a finalidade pretendida pela mandante/Ré - isto é, a venda do prédio em questão.

Assim sendo, querendo a Ré inequivocamente a venda, nem se entende a razão pela qual a Ré rejeita o meio adequado a alcançá-la, a não ser por desinteligências posteriores com o mandatário, as quais, ainda que não indagadas no processo, surgem suficientemente explícitas no articulado da contestação.
Certo é, porém que tais desentendimentos, sejam eles quais forem, são completamente alheios ao A. e não relevam em termos da vinculação da Ré ao negócio celebrado pelo procurador num período de vigência plena da procuração.
De resto, que as razões da Ré não estavam na "falta de poderes", pode deduzir-se da factualidade resultante das respostas aos quesitos, 22º e 23º, por não ser natural, em termos dos princípios da boa-fé, que nos diversos contactos que o A. ou a sua mãe mantiveram com ela, nunca a Ré tinha aludido a essa falta de poderes como razão para o não cumprimento do contrato-promessa em questão.

Perante este circunstancionalismo de facto, parece-nos que um declaratário normal colocado na posição do mandatário ou na do promitente comprador, teria interpretado a procuração em causa, como concedendo poderes para celebrar o contrato-promessa em causa, visto que os poderes para vender foram conferidos ao mandatário para os exercer nas condições que entendesse, e no caso concreto, como se disse, era condição (ao menos em termos práticos) da venda, a realização prévia do contrato-promessa.
Tal interpretação tem assim, na nossa opinião, apoio nos factos e na própria letra do documento interpretado.
Por outro lado, o mesmo circustancionalismo factual, aponta no sentido de que a vontade negocial da Ré não foi minimamente afectada ou desviada com a realização do contrato-promessa, que antes aparece como o meio adequado preparatório e garante da realização integral dessa vontade, e foi, aliás resultado de a Ré não estar, no momento, em condições de realizar imediatamente o contrato definitivo.

De resto, se mais não fosse, seria pelo menos abusivo e contra os princípios da boa-fé que a Ré pudesse prevalecer-se da (eventual) falta de poderes para um acto que se realizou por razões que lhe são imputáveis e que, aliás, não desvirtuam em nada a finalidade do mandato conferido.
Tal actuação, a entender-se haver falta de poderes, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, excederia manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou mesmo pelo fim social ou económico do direito.

De facto, alega a Ré que não conferiu poderes para o procurador outorgar o contrato-promessa em lide, apenas o mandatou para vender o prédio. Por isso, e só por isso o negócio não a vincula.
A Ré só queria vender o prédio em causa. Não queria prometer vendê-lo.
Ora sendo apenas esta a argumentação da Ré mal se entende a sua oposição quando o que o A. pretende é exactamente concretizar a venda prometida, a venda que afinal a Ré disse querer...

Finalmente, e ainda para o caso de se entender ter ocorrido excesso de poderes por parte do mandatário (que apenas por mera hipótese de trabalho se admite), parece que teria plena aplicação ao caso dos autos a regra do Art. 1163 do C.C., a qual, como ensina A.Varela "quanto ao excesso, restringe no mandato com representação, o disposto no Art. 268, na medida em que dispensa, no caso nele previsto, a rectificação do negócio (cf. C.C.Anotado).
Ora, o certo é que a Ré, já depois de ter revogado a procuração e por isso o mandato (Art 1179) e durante vários meses, foi contactada pelo A. designadamente através das cartas especificadas em B/ e C/, no sentido de celebrar a escritura prometida.
Foi-lhe, pois, comunicado inequivocamente a execução do mandato, sendo certo que não deu qualquer resposta a essas cartas, mantendo silêncio quanto á actuação do mandatário, que agora nesta acção, alega ter exercido os limites do mandato.
Não se tendo pronunciado sobre a questão quando lhe foi comunicada a execução do mandato e se pretendeu o cumprimento do contrato prometido, dentro dos prazos, que para o efeito o A. lhe concedeu, terá de ter-se como aprovada a conduta do mandatário.
É esse o valor do silêncio da Ré no caso concreto e na hipótese considerada, atendendo ao disposto no Art. 1163 do C.C.

Consequentemente, também nesta hipótese estaria a Ré vinculada ao cumprimento do contrato-promessa.

Diz a Ré que após a revogação da procuração não tinha de manifestar a quem quer que seja a ausência de poderes do procurador, por inútil.
Esquece-se a Ré que a "morte" de "Inês", isto é da procuração, ocorreu apenas após a celebração do contrato-promessa. Portanto como estava plenamente vigente na altura da sua outorga, fazia todo o sentido que a Ré se pronunciasse sobre a actuação do mandatário, alegando o excesso logo que soube do contrato, se assim o entendia.
A sua omissão, têm, como se disse, as consequências já referidas.

Alega finalmente a recorrente que não ratificou o negócio em lide. Mas como o não tinha de fazer face ao disposto no Art. 1163 do C.C., isso é também irrelevante.

Quanto à condenação como litigante de má-fé, concorda-se inteiramente com o douto acórdão recorrido, cuja fundamentação, nessa parte se perfilha.

Decisão
Termos em que se nega revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Maio de 2003.

Moreira Alves,
Alves Velho,
Camilo Moreira.