Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/16.0T8VLF-A.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: LETRA
PRESCRIÇÃO
QUIRÓGRAFO
AVAL
FIANÇA
REQUERIMENTO EXECUTIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
TÍTULO DE CRÉDITO
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE EXECUÇÃO / TÍTULO EXECUTIVO ESPÉCIES DE TÍTULOS EXECUTIVOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, p. 74;
- Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Títulos de Crédito, Vol. III, p. 168;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, ed. Reimpressa AAFDL 1988/89, p. 77 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 703.º, N.º 1, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-09-2001, PROCESSO N.º 01B2089;
- DE 02-10-2001, PROCESSO N.º 02B1003;
- DE 21-09-2010, PROCESSO N.º 1825/07.1TBCVL-A.C1.S1;
- DE 27-05-2014, PROCESSO N.º 268/12.0TBMGD-A.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Como resulta do disposto na alínea c) do artigo 703º do Código de Processo Civil, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo.

II. O aval, como os outros negócios cambiários, tem uma relação subjacente que pode ser de natureza e configuração variável. A circunstância de, as mais das vezes, tal relação se configurar como uma fiança, não permite que assim se entenda na falta da referida alegação, na medida em que aval e fiança são figuras de natureza distinta.

III. Não se pode, assim, presumir que na base do aval está um negócio extracambiário de fiança, pelo que, mesmo nos casos em que a prestação do aval, tem como relação subjacente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, se a obrigação cambiária do avalista prescrever, torna-se necessário alegar e demonstrar que o avalista pretendia obrigar-se como fiador pelo pagamento da obrigação principal.

IV. Daí que, operando-se a extinção da obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, e não tendo o exequente alegado factos concretos demonstrativos de que os avalistas se assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações do avalizado, seja de concluir que as letras prescritas não se mostram suficientes para figurarem como títulos executivos, nos termos do artigo 703º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I. Relatório


1. Por apenso à execução que AA e BB instauraram contra os executados, CC e DD, vieram estes deduzir oposição através dos presentes embargos, alegando, em síntese, que não assinaram as letras exequendas e que estas não se mostram assinadas pelo sacador nem pelo sacado, que também não as aceitou.

Mais alegaram que, a entender-se que eles assinaram aqueles títulos, então, sempre se deverá concluir que prestaram aval ao sacador, aqui exequente, e não ao sacado.

Arguiram a ilegitimidade da exequente BB, por a mesma não constar dos títulos dados à execução, e a prescrição das letras dadas à execução.

E, não obstante admitirem que o filho deles deve dinheiro ao exequente, negaram que alguma vez tivessem garantido qualquer dívida dele.


2. Os exequentes/embargados contestaram, sustentando a validade dos títulos dados à execução e pugnando pela improcedência dos embargos.

3. Proferido despacho saneador, nele julgou-se procedente quer a invocada exceção de ilegitimidade, absolvendo-se a exequente BB da instância, quer a exceção de prescrição.

Identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, determinou-se o exame pericial à assinatura da executada DD.


4. Realizado julgamento, foi proferida sentença que, julgando improcedentes os embargos, determinou o normal prosseguimento da execução.

5. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os embargantes para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 20.02.2019, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgou procedentes os embargos e extinta a execução, por falta de título executivo.


6. Inconformado com esta decisão, o exequente/embargado dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Recorrido e recorrentes eram amigos de longa data,

2. Em virtude de um empréstimo que o recorrido fez aos filhos dos recorrentes, estes, para garantirem o pagamento do montante em causa, deram o aval ao recorrido em três letras.

3. O filho dos recorrentes nunca pagou qualquer quantia,

4. Os avalistas, ainda que interpelados para o pagamento, efectuaram qualquer pagamento mesmo que interpelados.

5. O que levou ao início do presente litígio judicial.

6. Acresce dizer, as letras avalizadas e dadas como título executivo não passaram das relações imediatas,

7. E as letras, ainda que prescrita a obrigação cambiária, podem ser títulos desde que sejam alegados os factos constitutivos da relação subjacente.

8. As letras foram efectivamente assinadas,

9. Existe um aval,

10. Todos os elementos essenciais para a execução intentada estão presentes no título dado como título executivo,

11. E constam do requerimento inicial.

12. Da prova produzida, resulta de forma clara que os recorrentes se assumiram avalistas do recorrido,

13. Não sendo tal relação colocada em causa.

14. Sendo até confirmado pelo Douto Acórdão que toda a prova foi correctamente valorada.

15. Ora, no requerimento inicial foi dito que exequentes e executados eram amigos de longa data,

16. Foi dito que o filho dos executados passava por dificuldades económicas,

17. Foi dito que o exequente acedeu ceder a quantia solicitada,

18. E, mais importante e relevante, foi dito que os exequentes acederam e assinaram as letras na qualidade de avalistas para garantirem a dívida do filho.

19. Destes três últimos pontos é possível concluir que a relação subjacente ao aval é a garantia da dívida do filho, sem mais.

20. Acresce ainda que o recorrido não tem de provar o negócio subjacente,

21. Apenas de alegar o facto constitutivo,

22. O que é feito, dizendo que o aval foi dado para garantia da dívida contraída pelo filho dos recorrentes.

23. Assim, todos os requisitos estão cumprimentos para que o título dado à execução seja um título bastante para fundar a presente execução,

24. Cumprindo todos os requisitos exigidos pelo disposto na alínea c) do artigo 703.º do Código de Processo Civil,

25. Contrariamente ao que é interpretado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que, salvo melhor opinião e com todo o respeito por quem de forma diferente pensa, de forma errada entende que não foram alegados os elementos subjectivos.

26. Dito isto, cumpre apenas dizer que se fará acostumada justiça revogando o acórdão proferido, substituindo o mesmo por outro que julgue como improcedente o recurso de apelação e ordene o normal prosseguimento da execução até final».


7. Os embargantes responderam, pugnando pela improcedência do recurso.


8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se, estando prescritas as letras dadas à execução, podem as mesmas, enquanto quirógrafos, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Factos Provados:


1) AA e BB instauraram acção executiva, que corre termos neste Tribunal como processo nº 125/16.0T8VLF, a 03 de Junho de 2016, contra os aqui oponentes CC e DD, na qual reclamam o pagamento de € 37.241,08, e aos quais os presentes autos se encontram apensos.


2) No requerimento executivo que deu início à acção referida em 1., consta no seguimento da menção “Factos” o seguinte:

«1.º Exequente e os executados eram amigos de longa data. 2.º Em momentos de conhecida dificuldade de EE, este abordou o exequente para que lhe este lhe emprestasse algum dinheiro para pagamento de algumas dívidas, mediante a promessa que lhe seria devolvida a totalidade do dinheiro num curto prazo. 3.º Dada a relação de proximidade e de confiança existente entre ambos, o exequente acedeu em emprestar a quantia que lhe foi pedida, mais concretamente, o montante de quatro milhões de escudos, que na moeda corrente equivale a € 20.000,00 (vinte mil euros). 4.º Para garantia da presente situação foram emitidas três letras, com aceite e aval, constando em todas elas o ora exequente AA enquanto sacador, o EE enquanto sacado e ainda os executados DD e CC enquanto avalistas. 5.º A primeira das referidas letras, no valor de um milhão e quinhentos mil escudos, a que na moeda agora corrente corresponde a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), foi emitida em 19-01-98 e tinha o seu vencimento a 28-06-98 e, como local de pagamento, estava definido a cidade da …, domicílio do exequente. 6.º A segunda das referidas letras, no valor de um milhão de escudos, a que na moeda agora corrente corresponde a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), foi emitida em 19-01-98 e tinha o seu vencimento a 28-09-98 e, como local de pagamento, estava definido a cidade da …, domicílio do exequente. 7.º Por fim, a terceira das referidas letras, no valor de um milhão e quinhentos mil escudos, a que na moeda agora corrente corresponde a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), foi emitida em 19-01-98 e tinha o seu vencimento a 28-12-98 e, como local de pagamento, estava definido a cidade da …, domicílio do exequente. 8.º Com o vencimento das letras deveria o ora executado EE proceder o pagamento da mesma, todavia o mesmo não se verificou para nenhuma delas. 9.º Mediante tal situação o exequente interpelou, por diversas vezes, os ora executados, relembrando os mesmos que as letras já se haviam vencido e que deveriam proceder ao pagamento das mesmas. 10.º Todavia não foi realizado qualquer pagamento, seja da quantia total seja um qualquer pagamento parcial. 11.º Perante tal situação e vendo frustrada a sua pretensão, não tem o exequente outra alternativa que não seja o recurso à presente acção executiva. 12.º Dado que a letra tinha data de vencimento e que nenhum dos executados efectuou o pagamento da quantia em dívida nessa data do vencimento das letras, os mesmos entraram em mora. 13.º Dado o exposto, desde o vencimento das referidas letras são devidos juros de mora por parte dos executados, que calculados à taxa legal em vigor, até ao dia de hoje se cifram na quantia de € 17.234,52 (dezassete mil duzentos e trinta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos). 12.º A dívida em causa é certa, líquida e exigível. 13.º A letra, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, é título executivo bastante para fundar a presente execução. 14.º Para efeitos da presente acção executiva constam como executados os avalistas uma vez que, segundo o disposto no artigo 32.º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, 15.º Ou seja, e citando Ferrer Correia "a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores." 16.º Pelo exposto, tem legitimidade o exequente para intentar a presente acção seja contra o sacado e seja contra os avalistas».


3) Na acção referida em 1), os exequentes encontram-se munidos de três documentos, juntos, respectivamente, a fls. 8 e 9, 10 e 11, e 12 e 13 dos autos apensos, cujos originais encontram-se juntos aos presentes autos a fls. 77.


4) No documento junto a fls. 77, documento 1) está aposta na sua face a menção “ACEITE”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA OU CARIMBO DO SACADOR”, encontra-se a menção manuscrita “AA” seguido da menção manuscrita “…”; no respectivo seguimento das menções impressas “LOCAL E DATA DE EMISSÃO, VENCIMENTO E IMPORTÂNCIA” encontra-se a menção manuscrita “…, 19/01/98, 19/06/98 e 1.500.000.00”; no seguimento da menção impressa “VALOR” encontra-se a menção manuscrita “um milhão e quinhentos mil escudos”; no seguimento da menção impressa “NO SEU VENCIMENTO PAGARÁ(ÃO) V. EX.ª(S) POR ESTA ÚNICA VIA DE LETRA A” encontra-se a menção manuscrita “Minha pessoa ou à minha ordem a quantia de 1500.000.00 escudos”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA DO SACADO” encontra-se a menção manuscrita “EE”; no seguimento da menção impressa “LOCAL DE PAGAMENTO/DOMICILIAÇÃO” encontra-se a menção manuscrita “…”; e no seguimento da menção impressa “ASSINATURA DO SACADOR” não se encontra qualquer menção.


5) No verso do documento, sob a menção manuscrita Dou o meu aval ao sacador”, encontram-se apostas as assinaturas “DD” e “CC”.


6) No documento junto a fls. 77, documento 2) está aposta na sua face a menção “ACEITE”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA OU CARIMBO DO SACADOR”, encontra-se a menção manuscrita “AA” seguido da menção manuscrita “…”; no respectivo seguimento das menções impressas “LOCAL E DATA DE EMISSÃO, VENCIMENTO E IMPORTÂNCIA” encontra-se a menção manuscrita “…, 19/01/98, 28/12/98 e 1.500.000.00”; no seguimento da menção impressa “VALOR” encontra-se a menção manuscrita “um milhão e quinhentos mil escudos”; no seguimento da menção impressa “NO SEU VENCIMENTO PAGARÁ(ÃO) V. EX.ª(S) POR ESTA ÚNICA VIA DE LETRA A” encontra-se a menção manuscrita “Minha pessoa ou à minha ordem a quantia de 1500.000.00 escudos”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA DO SACADO” encontra-se a menção manuscrita “EE”; no seguimento da menção impressa “LOCAL DE PAGAMENTO/DOMICILIAÇÃO” encontra-se a menção manuscrita “…”; e no seguimento da menção impressa “ASSINATURA DO SACADOR” não se encontra qualquer menção.


7) No verso do documento, sob a menção manuscrita Dou o meu aval ao sacador” encontram-se apostas as assinaturas “DD” e “CC”.


8) No documento junto a fls. 77, documento 3) está aposta na sua face a menção “ACEITE”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA OU ARIMBO DO SACADOR”, encontra-se a menção manuscrita “AA” seguido da menção manuscrita “…”; no respectivo seguimento das menções impressas “LOCAL E DATA DE EMISSÃO, VENCIMENTO E IMPORTÂNCIA” encontra-se a menção manuscrita “…, 19/01/98, 29/09/98 e 1.000.000.00”; no seguimento da menção impressa “VALOR” encontra-se a menção manuscrita “um milhão de escudos”; no seguimento da menção impressa “NO SEU VENCIMENTO PAGARÁ(ÃO) V. EX.ª(S) POR ESTA ÚNICA VIA DE LETRA A” encontra-se a menção manuscrita “Minha pessoa ou à minha ordem a quantia de 1000.000.00 escudos”, no seguimento da menção impressa “NOME E MORADA DO SACADO” encontra-se a menção manuscrita “EE”; no seguimento da menção impressa “LOCAL DE PAGAMENTO/DOMICILIAÇÃO” encontra-se a menção manuscrita “…”; e no seguimento da menção impressa “ASSINATURA DO SACADOR” não se encontra qualquer menção.


9) No verso do documento, sob a menção manuscrita Dou o meu aval ao sacador” encontram-se apostas as assinaturas “DD” e “CC”.


10) O filho dos exequentes, EE, deve dinheiro ao exequente.


11) «A emissão dos documentos juntos a fls. 77 dos presentes autos apenas se veio a concretizar pelo facto dos embargados pretenderem que os pais de EE, ora executados, DD e CC, registassem documentalmente o seu compromisso de pagarem a dívida do filho» ( após alteração efetuada pelo Tribunal da Relação).


12) Consta do relatório do exame pericial de polícia científica de fls. 70 a 74 dos autos no seguimento da menção “CONCLUSÃO” que “Com base nas evidências observadas na comparação das amostras problema e de referência, e em face aos resultados obtidos: Conclui-se como muito provável que a escrita suspeita da assinatura (docs 1 a 3) seja da autoria de DD”.


13) O executado CC assinou as letras em causa com consciência que não sabe assinar e de que dos seus documentos de identificação consta que não assina.

14) «À data da emissão das letras o exequente tinha conhecimento das dificuldades económicas que EE atravessava e que os ora executados tinham algumas posses» (após alteração efetuada pelo Tribunal da Relação). 


Factos não provados:


a) O filho dos exequentes EE foi declarado insolvente.

b) O crédito do exequente está reconhecido na insolvência.



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se única e exclusivamente com a questão de saber se, estando prescritas as letras dadas à execução, podem as mesmas, enquanto quirógrafos, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, à luz do atual art. 703º, nº1 al. c) do CPC, vigente à data da instauração da execução (03.06.2016), e segundo o qual podem servir de base à execução «os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».  


No sentido afirmativo pronunciou-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, considerando que, não obstante a prescrição das obrigações cambiárias, encontrando-se as letras exequendas no domínio das relações mediatas, podiam as mesmas servir de título executivo, porquanto o exequente não só alegou, no requerimento inicial, os factos constitutivos da relação subjacente à subscrição de cada uma destas letras – ou seja, que as quantias nelas tituladas correspondem aos montantes por ele mutuados ao sacado, EE -, como logrou provar que os executados/embargantes, DD e CC, apuseram as suas assinaturas nestas letras pelo facto de serem pais do EE e «terem assumido o aval da dívida».

Deste modo, julgou improcedentes os presentes embargos de executado, determinando o prosseguimento da execução.


O acórdão recorrido, apesar de sufragar o entendimento de que, tal como resulta da al. c) do art 703º do CPC, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo, divergiu da posição assumida pelo Tribunal de 1ª Instância, considerando que:

«O aval, como os outros negócios cambiários, tem uma relação subjacente que pode ser de natureza e configuração variável. A circunstância de, as mais das vezes, tal relação se configurar como uma fiança, não permite que assim se entenda na falta da referida alegação, na medida em que aval e fiança são figuras de natureza distinta», pelo que, «não tendo sido alegada no requerimento executivo a relação jurídica subjacente aos avales constantes das letras dadas à execução, e mostrando-se estas prescritas, tudo se passa como se não houvesse título executivo, impondo-se a extinção da execução».

Termos em que decidiu revogar a sentença recorrida, julgando procedentes os embargos e extinta a execução, por falta de título executivo. 


Contra este entendimento reage o recorrente, defendendo que, tendo alegado no requerimento inicial, que exequentes e executados eram amigos de longa data, que o filho destes passava por dificuldades económicas e que os executados acederam e assinaram as letras na qualidade de avalistas para garantirem a dívida do filho, tanto basta para concluir que a relação subjacente ao aval é a garantia da dívida contraída pelo filho dos executados.


Vejamos.


Constitui ponto assente nos autos que, de acordo como o disposto no art. 70º da LULL, as letras dadas à execução encontram-se prescritas, daí decorrendo a perda do direito à ação cambiária.

Mas a verdade é que, como refere Antunes Varela[2], a prescrição da obrigação cambiária não implica a prescrição da obrigação fundamental subjacente à emissão das letras prescritas, pelo que estas deixam de ser títulos constitutivos da relação cambiária para passarem a valer como títulos certificativos da relação obrigacional subjacente.

Ou seja, as letras prescritas, perdem a natureza de títulos de crédito cambiários, passando a constituir meros documentos particulares quirógrafos da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente.  

Reconhecida essa dívida, o credor fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, nos termos do art. 458º, nº1 do C. Civil, que estabelece a inversão do ónus da prova da existência da relação negocial ou extranegocial subjacente à emissão do título.

Assim, se o declarante alegar e provar que esta relação não existe, «a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida» [3].  

De salientar, como nos dá conta o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 27.09.2001 (processo 01B2089) [4] que, na ação executiva, a causa de pedir é «o facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo o título (executivo) ou documento mais do que especial condição (probatória, necessária e suficiente) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acção, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito».

Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2014 (processo 268/12.0TBMGD-A.P1.S1)[5], «a causa de pedir não é, assim, o documento que corporiza o título executivo, mas antes a relação substantiva que está na base da sua emissão».

E, segundo a doutrina[6] e a jurisprudência[7], é precisamente esta autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime de reconhecimento de dívida (art. 458º, nº1 do C. Civil) que leva a admitir que as letras prescritas, enquanto meros quirógrafos da obrigação causal ou subjacente, possam valer como título executivo, desde que, tal como impõe o citado art. 703, nº1, al. c) do CPC, o exequente alegue no requerimento inicial os factos constitutivos da relação subjacente à sua emissão.

A ratio da admissibilidade do título de crédito prescrito como título executivo enquanto mero quirógrafo consiste, assim, no facto de o documento constituir um reconhecimento de dívida, assinado pelo devedor, o que tudo significa que o título prescrito só pode ser usado como quirógrafo no âmbito das relações imediatas, quando está no âmbito das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador-primeiro endossado, etc), isto é, nas relações em que os sujeitos cambiários são concomitantemente os sujeitos das convenções extracartulares [8].

Daí colocar-se, desde logo, a questão de saber se, constando do verso das letras exequendas a expressão manuscrita “Dou o meu aval ao sacador ”, seguida da oposição das assinaturas dos embargantes “DD” e “CC”, pode ser feita a prova de que estes avales foram prestados a favor do sacado/aceitante.

Isto porque, sendo o aval o ato pelo qual uma pessoa estranha ao título (um terceiro) ou um signatário da letra garante, por algum dos co-obrigados no título, o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora (cfr. art. 30º da LULL), evidente se torna estarmos perante uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não à relação extracartular.

Pronunciando-se sobre esta questão e não obstante reconhecer a dificuldade de qualificar como imediata esta relação entre sacador e os avalistas do sacado/aceitante, na medida em que «relação imediata é a que se estabelece por efeito de uma convenção executiva», que, neste caso, está justamente em discussão, defende Oliveira Ascensão[9] que, destinando-se «a autonomia cambiária a proteger a segurança da circulação e a posição de terceiros de boa fé, nenhuma preocupação dessa ordem está em causa quando o sacador se dirige contra o avalista e demonstra que o aval não foi dado em favor dele, mas em favor do aceitante», admitindo, por isso, que, desde que se esteja no domínio das relações imediatas, é sempre possível invocar a verdadeira situação e fazê-la prevalecer sobre a que consta do título.

Neste mesmo sentido pronunciaram-se os Acórdãos do STJ, de 02.10.2001 (processo 02B1003) e de 21.09.2010 (processo nº 1825/07.1TBCVL-A.C1.S1) [10], afirmando-se neste último que «não tendo as letras entrado em circulação, quedando-se no âmbito das relações imediatas, não valem os princípios cambiários da liberalidade, abstracção e autonomia, sendo admitida a prova de quem foi o beneficiário dos avales dados», entendimento seguido pelo acórdão recorrido e que igualmente se perfilha.

Deste modo e porque, no caso dos autos, ressalta do factos dados como provados sob o ponto 11 ter o sacador/exequente logrado fazer a prova extra-literal de que os avales resultantes da aposição das assinaturas dos embargantes DD e CC no verso das letras dadas à execução foram prestados a favor do sacado EE e não “ao sacador”, como delas constam, importa, finalmente, indagar qual a relação subjacente a estes mesmos avales, ou seja, qual o negócio ou a relação jurídica que se estabeleceu entre os avalista e o avalizado e que determinou a prestação dos avales, constituindo a causa da aposição dos avales nas letras exequendas.

É que, como ensina Pedro Pais de Vasconcelos [11], «subjacente ao aval pode existir, ou uma liberalidade, se for obsequioso, ou um crédito sobre o avalista, se este estiver extracartularmente obrigado a avalizar», podendo, por isso, a relação subjacente ao aval ser de natureza e configuração muito variável.  

No caso dos autos o que o sacador /exequente alegou e logrou provar foi tão somente que o filho dos executados, «EE, deve dinheiro ao exequente» (ponto 10); que «A emissão dos documentos juntos a fls. 77 dos presentes autos apenas se veio a concretizar pelo facto dos embargados pretenderem que os pais de EE, ora executados, DD e CC, registassem documentalmente o seu compromisso de pagarem a dívida do filho» (ponto 11) e que «À data da emissão das letras o exequente tinha conhecimento das dificuldades económicas que EE atravessava e que os ora executados tinham algumas posses» (ponto 14).

Ora, ainda que se admita que, economicamente, o aval possui um fim semelhante à fiança[12], visando, em regra e na maioria dos casos, garantir o cumprimento da obrigação de pagamento da letra se aquele a favor de quem for prestado o aval a não pagar, a verdade é que o aval e a fiança não deixam de ser figuras jurídicas de natureza distinta, que não se confundem.

Como decorre do art. 32º, da L.U.L.L, o aval constitui uma obrigação autónoma, que não está dependente da validade da obrigação garantida, nem da existência da obrigação do avalizado, apresentando-se, por isso, despida das características de subsidiariedade e acessoriedade típicas da fiança (cfr. arts. 627º e 634º, ambos do C. Civil).

E porque assim é, tal como adverte Oliveira Ascensão[13], não se pode presumir que na base do aval está um negócio extracambiário de fiança, pelo que, mesmo nos casos em que a prestação do aval, tem como relação subjacente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos avalistas de se obrigarem como fiadores, se a obrigação cambiária do avalista prescrever, torna-se necessário alegar e demonstrar que o avalista pretendia obrigar-se como fiador pelo pagamento da obrigação principal.

Daí que, operando-se a extinção da obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, e não tendo o exequente alegado factos concretos demonstrativos de que os avalistas se assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações do avalizado, seja de concluir que as letras prescritas não se mostram suficientes para figurarem como títulos executivos, nos termos do art. 703, nº 1, al. c) do CPC.

Assim sendo e porque no caso dos autos, o sacador/exequente não alegou, no requerimento executivo, que os executados /avalistas, CC e DD, se quiseram obrigar como fiadores pelo pagamento da obrigação do sacado/aceitante, EE, nenhuma censura merece o acórdão recorrido ao concluir que «não tendo sido alegada no requerimento executivo a relação jurídica subjacente aos avales constantes das letras dadas à execução e mostrando-se estas prescritas, tudo se passa como se não houvesse título executivo, impondo-se a extinção da execução» e, consequentemente, ao decidir pela procedência dos embargos.


Termos em que improcedem as todas as razões invocadas pelo recorrente.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas da revista ficam a cargo do recorrente.



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Supremo Tribunal de Justiça, 12 de setembro de 2019

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

Catarina Serra

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In, “ Manual de Processo Civil”, pág. 74.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil”, Vol. I, 4ª ed., pág. 440; Pessoa Jorge in “Direito das Obrigações”, Vol. I, pág. 226; Pais de Vasconcelos, “Garantias extracambiárias do cheque e negócios unilateriais” in Estudos de Direto Bancário, pág. 292 e “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. I, pág. 253; Menezes Cordeiro, in, “Direito das Obrigações”, Vol. I, pág. 565. 
[4] Acessível in www dgsi.pt/stj.
[5] Acessível in www dgsi.pt/stj.
[6] Cfr. Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva depois da Reforma”, 5ª ed. , pág. 77; Miguel Teixeira de Sousa, in “Acção Executiva Singular”, pág. 69; Amâncio Ferreira, in, “ Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., pág. 46.
[7] Cfr. entre outros, os  Acórdãos do STJ, de 27.09.2001, de 30.10.2003, de 09.03.2004, de 16.12.2004, de 15.09.2011, de 10.11.2011 e de 27.05.2014, todos acessíveis in www.dgsi.pt/stj.
[8] Cfr. Abel Delgado, in, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª ed., em anotação ao art. 17º. Dito de outro modo e nas palavras de Pais de Vasconcelos, in “Direito Comercial - Títulos de Crédito”, ed. Reimpressa AAFDL 1988/89, págs. 77 e segs., «As relações imediatas, no título, designadamente na letra, são as relações existentes entre os obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva». 
[9] In “ Direito Comercial – Títulos de Crédito”, Vol. III, pág. 168.
[10] Acessíveis  in www.dgsi.pt/stj.
[11] In “Direito Comercial- Títulos de Crédito”, ed. Reimpressa AAFDL 1988/89, págs. 77 e segs.
[12] Neste sentido, cfr. Engrácia Antunes, in “ Os Títulos de Crédito – Uma introdução”, 2009, págs. 81 e 82.
[13] In obra citada, pág. 175.