Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
916/18.8T8STB.E1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: POSSE
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE DE CULTURA
NULIDADE
ANULABILIDADE
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
SANAÇÃO
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS.
Doutrina:
- Abílio Vassalo Abreu, Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião, Coimbra, p. 19;
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª ed., p. 232 e ss.;
- Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, p. 291;
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª ed., p. 525 e ss.;
- Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição Originária de Direitos através da Posse, p. 33;
- José Alberto Vieira, Direitos Reais, p. 405 a 409;
- Mónica Jardim e Dulce Lopes, Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque, Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, p. 810;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 470;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4.ª ed., vol. I, p. 263;
- Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed., p. 341-342.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1287.º, 1376.º E 1379.º.
DECRETO Nº 16731, DL N.º 16731, DE 13 DE ABRIL DE 1929: - ARTIGO 107.º.
LEI N.º 2116, DE 14 DE AGOSTO DE 1962.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-10-2004, PROCESSO N.º 04A2988;
- DE 27-06-2006, PROCESSO N.º 06A1471;
- DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1;
- DE 06-04-2017, PROCESSOS N.º1578/11.9TBVNG.P1.S1;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1011/16.OT8STB.E1.S2;
- DE 03-05-2018, PROCESSOS N.º 7859/15.5T8STB.S1;
- DE 12-07-2018, PROCESSOS N.º 7601/16.3T8STB.E1.S1;
- DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 600/16.1T8STB.E1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – A falta de escritura pública de doação ou de divisão do prédio de modo algum impede o conhecimento por terceiros interessados do exercício de atos de posse sobre o imóvel.

II – Estando adquirido definitivamente para os autos que é à vista de todos que os réus, sentindo-se como donos, vêm habitando a casa implantada no prédio, vêm agricultando o respetivo terreno e, bem assim, demarcaram e vedaram o terreno, está excluída a hipótese de se considerar como “oculta” a mesma posse.

III – A proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do art. 107º do Decreto nº 16731 e da Lei nº 2116 estabelecia a sanção de nulidade para a divisão de prédios rústicos de área inferior à estabelecida legalmente.

IV – Com o art. 1379º, conjugado com o art. 1376º, ambos do C. Civil, esta sanção passou a ser a de anulabilidade, tendo voltado a ser a de nulidade com a redação dada ao mesmo art. 1379º pela Lei nº 111/2015.

V – A usucapião é uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo; mas nem todos os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião, sendo o próprio Código Civil a excluir do âmbito deste instituto o direito de uso e habitação e as servidões prediais aparentes, bem como as coisas que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual.

VI – A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse.

VII – Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.

VIII – Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico.

IX – Igualmente não tem essa natureza o art. 1376º do CC, pelo que não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art. 1287º, pode obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação.

X – Estando em causa uma mera anulabilidade, sanável no caso de sobre o ato de divisão decorrer o prazo de três anos sem que seja proposta a ação constitutiva tendente a anulá-lo, a violação das regras legais cometida no fracionamento perde, nessa hipótese, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I – O Exmo. Magistrado do Ministério Público intentou contra AA e BB a presente ação declarativa com processo comum, pedindo que seja declarada a anulabilidade do negócio jurídico constante da escritura de justificação notarial celebrada em 31 de agosto de 2015, através da qual invocaram o direito de propriedade, adquirido originariamente por usucapião, do prédio rústico sito em …, freguesia do …, concelho de …, composto de terreno hortícola, com a área de 3500 m2, que confronta do norte com CC, do sul com DD, do nascente com Rua … e do poente com EE, inscrito na matriz predial sob parte do artigo 316, da secção G, anteriormente art.º 21 da secção G, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 592, da referida freguesia.


Alega, para tanto, e em síntese nossa, que, através da escritura de justificação notarial, os réus desanexaram o prédio aí referido do prédio rústico com a área de 0,7000 ha, composto de cultura arvense (área de 0,4500 ha), pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros e vinha com pomar de macieira (0,1500 ha), sendo tal fracionamento proibido e pelo art. 1376.º n.º 1 do CC e Portaria n.º 202/70 de 21.04, pelo que o negócio é anulável.


Os réus contestaram, pedindo a improcedência da ação.

Alegam, em síntese, que a ré mulher adquiriu o prédio por doação não titulada de seus pais, por volta dos anos 1969, altura em que estes procederam à divisão física do seu prédio rústico com a área de 7000 m2 em dois prédios distintos, com a área de 3500 m2 cada um; que desde então entraram na posse do prédio, habitando a casa nele implantada, aí desenvolvendo a exploração de produtos hortícolas para consumo familiar atuando os réus como seus donos, de forma contínua, pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém; que à data do início da posse, a Portaria nº 202/70, de 21 de abril ainda não vigorava, sendo, por isso, inaplicável; a divisão do prédio feita em 1969 não violou qualquer dispositivo legal.


Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido.

 

Interposta apelação pelo Magistrado do M. P., veio a Relação de Évora a proferir acórdão que a julgou improcedente, confirmando a decisão da 1ª instância.


Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este STJ, como revista excecional.


A Formação a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC proferiu acórdão que admitiu a revista como excecional, considerando verificada a invocada contradição de acórdãos quanto à questão de direito consistente em saber se a “usucapião prevalece, ou não, sobre a norma constante do art. 1376º, nº 1 do C. Civil, que impede a divisão da propriedade rústica em parcelas de área inferior à unidade de cultura”.


Nas alegações apresentadas, o recorrente, pugnando pela revogação do acórdão impugnado, formula as conclusões que seguidamente se transcrevem, expurgadas da parte relativa à admissibilidade da revista:

(…)

II - A não realização de escritura pública de divisão ou doação de fracções de um imóvel tem como consequência que a posse sobre tais fracções se exerce de forma oculta, porque assim se impede que possa ser conhecida pelo interessado Estado, não sendo, pois, de considerar posse pública, nos termos do artº 1262º do CC.

III - A posse não pública ou oculta, não pode constituir fundamento para a usucapião, como resulta claramente do disposto no artº 1297º do CC, pelo que “os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública” – e assim, no caso dos autos, dado que a posse só se tornou pública com a celebração da escritura de justificação, em 2015, só então se iniciou o prazo para a usucapião, que obviamente, ainda se não completou.

IV – Os negócios jurídicos de divisão e doação celebrados verbalmente em 1969 são nulos por violarem disposições legais de carácter imperativo, nos termos das normas conjugadas dos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º e 1376º do CC, bem como o artº 107º do Dec. nº 16 731 o qual já previa a sanção de nulidade para a sua violação.

V – Tais normas, impeditivas do fraccionamento de uma parcela com área inferior a ½ hectare, como sucede no caso dos autos, constituem obstáculo intransponível ao reconhecimento jurídico da usucapião, precisamente porque consubstanciam a existência das “disposições em contrário”, a que se refere o artº 1287º do CC.

VI - Tendo o acórdão recorrido considerado que o acto de fraccionamento ocorreu na data da divisão e doação verbais realizadas em 1969, deveria então ter apreciado se esses actos de fraccionamento violavam as normas proibitivas do mesmo, vigentes nessa data – o artº 107º do Decreto nº 16 731 - o que não fez.

VII - Quer a divisão, quer a doação realizadas nos autos não enfermam apenas de um vício de falta de forma, mas igualmente de um vício material ou substancial, dado que ambas violam a proibição de fraccionamento prevista no artº 107º do Decreto nº 16 731, de 13/4/1929, vigente no ano de 1969, uma vez que criam parcelas com área inferior à legalmente permitida em tal norma – constituindo, em consequência, negócios jurídicos feridos de nulidade.

VIII - O artº 1287º do CC não exige a existência de qualquer “norma excepcional taxativa” a excluir expressamente a usucapião – exige simplesmente que exista uma disposição em contrário, impeditiva de que a posse conduza ao reconhecimento da usucapião – e essa norma existe e já existia à data da divisão e doação verbais – o artº 1376º do CC e o artº 107º do Dec 16 731.

IX - A jurisprudência do STJ tem vindo a entender que não pode ser reconhecida a usucapião em situações de violação de disposições urbanísticas, bem como de normas da propriedade horizontal, sendo certo que se trata de áreas em que não existe igualmente qualquer “norma excepcional taxativa” a excluir a usucapião – pelo que tal entendimento é inteiramente transponível para as situações de fraccionamento ilegal, dado que, face a uma parcela com área inferior à legalmente permitida, estamos perante uma fracção que não tem condições de constituir uma unidade independente e distinta, sendo legalmente impossível a sua constituição como prédio autónomo.

X - Tal como sucede com uma fracção não independente no domínio da propriedade horizontal, também a parcela de prédio rústico ilegalmente fraccionado não pode ser susceptível de aquisição por usucapião, atento o disposto nos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º,1302º e 1376º do CC.

XI - Aceitando-se, no caso dos autos, que o fraccionamento ocorreu na data do acto de divisão material, em 1969, por força da jurisprudência uniforme do STJ, é à legislação vigente nessa data – o artº 107º do Dec. 16 731 – que deverá atender-se, tanto para a definição das áreas permitidas, como para o regime de nulidade aí previsto - pelo que a posse dos RR sobre a parcela em causa não poderá ser reconhecida como conduzindo à usucapião, por violar o disposto em tal norma e nos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º e 1376º do CC.

XII - Dispondo o artº 1287º do CC, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do artº 1376º nº 1 do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

XIII - Adoptando-se o entendimento de que o fraccionamento ocorre na data da divisão material/verbal, então o regime de nulidade que nessa data vigorava impõe que se considere tempestiva a acção proposta para além dos 3 anos posteriores a essa divisão verbal, dado que a nulidade é invocável a todo o tempo, nos termos do artº 286º do CC – pelo que a presente acção foi tempestivamente instaurada e a referida nulidade se não mostra sanada.

XIV - Afirmar a prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento significa manifestamente esvaziar de conteúdo o disposto no artº 1376º nº 1 do C. Civil, tornando-o na prática letra morta, face a uma mera decisão dos proprietários de dividir “de facto” um terreno cuja divisão a lei proíbe, bastando-lhes assim aguardar que o decurso do prazo da usucapião venha “legalizar” um acto cometido com violação de norma legal imperativa.

XV – O reconhecimento da usucapião com violação da proibição de fracionamento constitui, salvo melhor opinião, o reconhecimento de uma situação de abuso do direito, nos termos previstos no artº 334º do CC, uma vez que se mostra totalmente ilegítimo o exercício de um direito – a aquisição por usucapião – quando o titular não actua de boa-fé e antes visa obter um resultado que sabe perfeitamente que a lei lhe proíbe.

XVI - Se se considera que a usucapião não pode operar no caso de fracções de propriedade horizontal não autónomas por violação do artº 1417º do CC, por igualdade de razão deverá considerar-se que igualmente não opera a usucapião no caso de prédios rústicos fraccionados com violação do disposto nos artºs 1306º e 1376º do CC.

XVII – Determinando o artº 92º do Código do Notariado que “a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é admissível em relação aos direitos nela inscritos”, pelo que, não estando a parcela fraccionada inscrita na matriz à data da escritura de justificação, não deveria tal escritura ter sido outorgada, visto tal requisito constituir pressuposto essencial da sua celebração, como igualmente resulta do disposto no artº 98º nº 1 al. b) do Código do Notariado.

XVIII - As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fraccionamento, por revestirem inequívoco carácter imperativo, devem considerar-se impeditivas do reconhecimento da usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional – e do mesmo passo a possibilitar actuações em fraude à lei, nomeadamente ao disposto nos artºs 1287º e 1376º do CC.

XIX - Ao alterar a redacção do disposto no artº 1379º nº 1 do CC, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei nº 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no artº 1376º do CC e confirmou, sem qualquer dúvida, dever prevalecer a proibição de fracionamento sobre o instituto da usucapião.


Nas contra-alegações que apresentaram, os réus, invocando em sustentação da sua tese vária jurisprudência deste STJ, pugnam pela improcedência da revista.


Colhido os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as de saber se:

- A não realização de escritura pública de divisão ou doação de parcelas de um imóvel implica que seja oculta a posse sobre elas exercida, pelo que o prazo da usucapião apenas se inicia a partir da data da celebração da escritura de justificação, não tendo ainda decorrido - conclusões II e III;

- tendo ocorrido em 1969, por então se ter operado a divisão material do imóvel, o fracionamento em causa está ferido de nulidade – conclusões IV a XIII;

- a usucapião prevalece, ou não, sobre as regras de proibição do fracionamento de prédios rústicos – demais conclusões.


II – Vêm descritos como provados os seguintes factos:

1. Os Réus, casados sob o regime de comunhão geral de bens, outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de … FF, em …, exarada de fls. 144 a 145 verso do Livro de escrituras diversas n.º 283-A, no dia 31.08.2015.

 2. Na escritura id. em 1., os Réus declararam:

  2.1. “São donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte prédio:

       Prédio Rústico, sito em …, freguesia de …, concelho de …, composto de terreno hortícola, com a área de três mil e quinhentos metros quadrados, que confronta do norte com CC; sul com DD; do nascente com Rua …; e do poente com EE, inscrito na respetiva matriz sob parte do artigo 316 da secção G, anteriormente artigo 21 da Secção G, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número quinhentos e noventa e dois da referida freguesia.

   2.2. Que o prédio acima identificado encontra-se registado na mencionada Conservatória com aquisição a favor de GG e mulher HH, casados na comunhão geral de bens,…

   2.3. Que o prédio acima identificado, conjuntamente com a parte restante, formavam um único prédio pertencente aos acima identificados, GG e mulher HH, pais da aqui justificante mulher, atualmente já falecidos, os quais por volta do ano de mil novecentos e sessenta e nove, dividiram em dois novos prédios, tendo o prédio aqui justificado, sido doado à filha, a justificante AA, e a área restante reservada para os doadores.

  2.4. Que, a aqui justificante, embora não ficasse a dispor de título formal que lhe permitisse o respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, desde logo, entrou na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente cultivando-o, colhendo os seus frutos e usufruindo como tal do imóvel e suportando os respetivos encargos.

   2.5. Que assim, …, ora justificantes, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, passiva, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhe permita fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.”

 3. Na escritura id. em 1., II, JJ e KK declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.

 4. A área do prédio destacado é de 3500,00 m2 e o remanescente ficou com a mesma área.

   5. E o prédio 316 da secção G, da freguesia do …, tem a área de 7000 m2.

  6. O prédio n.º 316.º da secção G sobre o qual desanexação incide é composto de cultura arvense (área de 0,4500 ha), pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros e vinha com pomar de macieira (0,1500 ha).

7. Esta aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial, cujo prédio resultante foi inscrito sob o n°8…4/20151013 da freguesia de ….

8. A R. AA requereu, em 28.08.2015, no Serviço de Finanças de …, a instauração de processo de cadastro para constituição de prédio rústico distinto, a desanexar do art. rústico 316 da secção G, da freguesia do …, dando origem ao processo de cadastro n.º 1…1/2015.

 9. Este processo teve parecer desfavorável da Direcção-Geral do Território.

10. A R. mulher adquiriu o prédio justificado por doação não titulada, por volta do ano de 1969, de seus pais, GG e mulher, HH.

11. Altura em que os mesmos, procederam à divisão física do seu prédio rústico descrito sob o nº592 da freguesia de …, com a área de 7000 m2, em dois prédios distintos, com a área de 3500 m2 cada um.

 12. Doando um deles à sua filha R. AA, que veio a ser objeto da justificação formalizada pela escritura ora em crise.

  13. Tendo a R. desde logo, entrado na posse do mesmo, habitando a casa implantada no prédio.

  14. Desenvolvendo uma exploração de produtos hortícolas para consumo familiar.

   15. Demarcando e vedando o seu prédio.

   16. Atuando os RR com convicção de que eram os proprietários do mesmo, há mais de vinte anos.

  17. De forma continuada, pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém.



III – É agora altura de abordar as questões suscitadas, dando-se conta de que se seguirá de perto na análise de algumas das questões o acórdão deste STJ de 21.02.2019.[1]


Da natureza da posse e início do prazo da usucapião:


Sustenta o recorrente, ao longo das conclusões II e III, que a posse exercida pelos réus sobre o prédio tem de ser qualificada como oculta em virtude de não ter sido celebrada escritura de doação ou divisão do prédio rústico originário, pelo que, sendo insuscetível de gerar usucapião, o prazo desta apenas começou a correr com a celebração da escritura de justificação, data em que a posse terá passado de oculta a pública, o que manifestamente leva a que tal prazo não se tenha ainda completado.


Vejamos.

Posse oculta é, na sequência da definição de posse pública, feita no art. 1262º do CC, aquela que se exerce em moldes tais que obstaculizam o seu conhecimento pelos interessados.

O recorrente qualifica como oculta a posse exercida pelos réus, fundado em ilação que extrai do facto de a divisão material do prédio, feita na sequência de doação verbal, não ter sido materializada em escritura pública de outorga desse negócio jurídico.

E, nessa linha, tendo presente a regra do art. 1297º do CC, conclui que só a partir da celebração da escritura de justificação notarial a posse se terá tornado pública, de sorte a que só então se terá iniciado o prazo de usucapião, cuja completude manifestamente não se verifica ainda.


É tese que não podemos acolher.

Desde logo é apodítico que a falta de escritura pública de doação ou de divisão do prédio de modo algum impede o conhecimento por terceiros interessados do exercício de atos de posse sobre o imóvel.

Por outro lado, os factos julgados como provados, sem que o autor tenha impugnado a decisão que sobre eles foi proferida na 1ª instância, desmentem e excluem, de modo determinante, a qualificação da posse ensaiada pelo recorrente.

Dizem eles, a este propósito, o seguinte:

13. Tendo a R. desde logo, entrado na posse do mesmo, habitando a casa implantada no prédio.

14. Desenvolvendo uma exploração de produtos hortícolas para consumo familiar.

15. Demarcando e vedando o seu prédio.

16. Atuando os RR com convicção de que eram os proprietários do mesmo, há mais de vinte anos.

17. De forma continuada, pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém.” (sublinhado nosso)

Ou seja, está adquirido definitivamente para os autos que é à vista de todos que os réus, sentindo-se como donos, vêm habitando a casa implantada no prédio, vêm agricultando o respetivo terreno e, bem assim, demarcaram e vedaram o terreno, o que não só contraria mas exclui a hipótese de considerar como “oculta” a mesma posse.

E isto faz cair por terra a ideia sustentada pelo recorrente de que o início do prazo para usucapir só teria começado a correr a partir da data da celebração da escritura de justificação.

Assim, sem necessidade de mais justificações que se revelariam despiciendas, soçobra a tese do recorrente a este respeito.

 


Da divisão material/fracionamento do prédio e sua invalidade:

 

O autor defendeu na p. i. e ao longo do processo que o ato de fraccionamento ilegal ocorreu com a celebração, em 31 de Agosto de 2015, da escritura de justificação e tendo como aplicáveis as normas do art. 1376º do CC e do art. 1º da Portaria nº 202/70, pediu que se declarasse a anulabilidade do negócio firmado através desse ato notarial.

Aceitando agora o recorrente que o fracionamento ocorreu, não com a outorga da escritura pública de justificação, mas, de acordo com o entendimento unânime deste STJ, com os atos de divisão material do prédio que tiveram lugar em 1969, sustenta que, ao invés do que fizeram as instâncias, importa ter presente e retirar as consequências do vício então cominado para a divisão ilegal, que era, segundo o art. 107º do Decreto n° 16731, de 13/4/1929, a nulidade, cognoscível a todo o tempo e oficiosamente.

Mas, salvo o devido respeito por opinião diversa, não lhe assiste razão.

Isto porque o art. 107º do Decreto n° 16731, de 13/4/1929 que estabelecia ser “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare” não é aplicável ao caso dos autos, em que a divisão material do prédio ocorreu, como o autor aceita, em 1969.

O dito regime quanto à natureza do vício cominado, mantido na sua essência pela Lei nº 2.116, de 18.4.62[2],[3], veio a ser alterado pelo Código Civil de 1966 que estabeleceu no art. 1379º, nº 1 serem “anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º …”[4]

E é este o regime aplicável em 1969, já que o Código Civil entrou em vigor em 1 de Junho de 1967[5].

Deste modo, e como bem se fez notar na sentença, se existir, o vício a considerar sempre será o da anulabilidade, e não o da nulidade.


Da usucapião e das regras sobre a proibição do fracionamento de prédios rústicos:


Sustenta o recorrente, em síntese nossa, que a usucapião não prevalece sobre a divisão ilegal de prédio rústico, sob pena de se esvaziar de conteúdo o disposto no art. 1376º, nº 1 do Código Civil[6], e que o reconhecimento da usucapião com violação da proibição de fracionamento ilegal equivale à aceitação do exercício abusivo do direito – art. 334º - por parte do respetivo titular.

Também quanto a este ponto se não pode acolher a sua tese.


Atentemos, antes de mais, nas normas jurídicas que à data do fracionamento – 1969 – regulavam a matéria.

O citado art. 1379º, para além do seu nº 1 acima transcrito, prescrevia no nº 3: “A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto (…)”

Por seu lado, o nº 1 do art. 1376º dispõe que “Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País (…)”

Como se assinala na sentença, à data, ainda não estava em vigor a Portaria nº 202/70, mas isso não leva a que deva considerar-se que o fraccionamento era livre por, após a entrada em vigor da Lei nº 2116 de 14.08.1962 e na sequência da sua Base I, não ter sido fixada, pelo Governo, a unidade mínima de cultura para o distrito de Setúbal.

Deve entender-se, a nosso ver, que, à semelhança do que antes acontecia, nomeadamente na vigência dessa Lei, se mantinham as áreas estabelecidas no art. 107º do Decreto nº 16.731, como mínimo a respeitar no fracionamento dos prédios rústicos, exceto no tocante aos distritos de … e …, para os quais haviam sido entretanto fixadas áreas de cultura mínima pelas Portarias nºs. 20302, de 7.01.1964 e 20623 de 6.06.1964.

Trata-se de conclusão que se impõe a partir da regra enunciada no nº 2 da Base XXXIII da citada Lei nº 2116 de seguinte teor: “Depois de fixada, em regulamento especial para cada zona do País, a unidade de cultura de que trata a base I, deixam de ser aplicáveis, na zona abrangida, os artigos 106.º e 107.º do Decreto 16731, de 13 de Abril de 1929.[7] (sublinhado nosso).

Em face deste regime legal e tendo em conta que a parcela, cuja aquisição, por usucapião, os réus justificaram, não atinge a área mínima de ½ hectare, é de concluir que a divisão do prédio assim operada viola a regra imperativamente fixada no art. 1376º, nº 1, o que gera, como acima dissemos, a anulabilidade do negócio e não, como pretende o recorrente, a sua nulidade.


Atentemos agora na figura da usucapião e na sua eventual prevalência sobre a posse fundada em divisão ilegal de terrenos aptos pra cultura.

 

A usucapião é, como se sabe, uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo – art. 1287º.

Porém, só é boa para usucapião a posse que observe certas características, não valendo como sustentáculo desta forma de aquisição de direitos reais a que se tenha constituído com violência ou ocultamente; apenas se cessar essa violência ou se se tornar pública a posse terá início o decurso do prazo da usucapião – arts. 1297º e 1300º, nº 1 –, a significar que só a posse pública e pacífica pode desencadear o funcionamento deste instituto.[8]

Ainda, a aquisição por usucapião não funciona “ipso iure”, sendo necessária a sua invocação por parte daquele a quem aproveita, manifestando, por via judicial ou extrajudicial, a vontade de usucapir o direito a que se refere a sua posse – arts. 303º e 1292º; e uma vez invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse – art. 1288º.[9]

   Porém, nem todos os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião, como claramente resulta da ressalva feita no art. 1287º, segundo o qual “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (…)” (sublinhado nosso)

     Encontram-se “disposições em contrário” no próprio Código Civil, delas sendo exemplo os seus arts. 1293º e 1548º, nº 1, que excluem do âmbito deste instituto o direito de uso e habitação e as servidões prediais não aparentes.

     Disposição em contrário é ainda o art. 202º, nº 2 que exclui do objecto das relações jurídicas “todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.”

     Estando fora do objecto da posse privada, os direitos reais sobre tais coisas não podem, naturalmente, ser adquiridos por usucapião.[10]

        

     No campo dos atos de fracionamento, levados a cabo com violação de normas de natureza imperativa reguladoras da gestão do património, vem sendo defendido por alguma da nossa doutrina a inadmissibilidade de invocação da usucapião como meio de superar os obstáculos legais criados à realização desses fracionamentos.

     Nesta senda e como outros direitos reais de gozo que não podem ser adquiridos por usucapião, Fernando Pereira Rodrigues[11] indica os relativos a parcela de terreno de um prédio rústico que tenha sido loteado em violação da norma imperativa do art. 54º, nº1, da Lei nº 91/95, de 2.09 que, na sua versão original, ferida de nulidade “os negócios jurídicos entre vivos de que resultem ou possam vir a resultar a constituição da compropriedade ou a ampliação do número de compartes de prédios rústicos, quando tais actos visem ou deles resulte parcelamento físico em violação ao regime legal dos loteamentos urbanos.”

     Prossegue este autor dizendo que “o reconhecimento da autonomia jurídica da dita parcela, mediante recurso à figura da usucapião, redundaria na violação de normas imperativas, designadamente daquelas que visam a recuperação de áreas degradadas.

      (…) a usucapião é um meio alternativo de constituição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo através da posse, no pressuposto de que essa aquisição, em abstrato, também poderia ter lugar através de outro meio legal de aquisição, designadamente o negócio jurídico ou o contrato.

    (…) não pode funcionar como válvula de escape para se adquirir o bem que de outro modo nunca seria suscetível de aquisição.

     Não pode a usucapião ser vista, em qualquer circunstância, como um processo singular de aquisição de direitos que, de outra forma, não poderiam ser adquiridos em face do direito constituído.

      Deste modo, não só os bens expressamente excluídos por lei da usucapião não podem ser usucapidos, como também, não podem ser objeto de usucapião aqueles outros que, por natureza, ou por disposição da lei, estão excluídos do comércio jurídico.

      (…) se um prédio rústico, em termos legais, não podem ser objeto de fracionamento, não pode o mesmo operar-se mediante invocação da usucapião, ainda que no plano da realidade empírica ele se verifique.

     No mesmo sentido opinam Mónica Jardim e Dulce Lopes.[12]


      Mas este não é entendimento que colha unanimidade na nossa doutrina.

      Mesmo em casos de posse fundada em negócio de que resulte um fracionamento proibido por lei e que por esta seja cominado com o vício da nulidade – o que no caso dos autos não acontece, como vimos -, há que ponderar e ter em conta posições doutrinárias diversas sobre a matéria.

      Afirmam Mota Pinto[13] e Castro Mendes[14] que a possibilidade de invocação perpétua da nulidade do negócio pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva.

      No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela[15] escrevem que o não estabelecimento de um prazo para a arguição da nulidade “não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião”.

   Também no dizer de Oliveira Ascensão “A usucapião representa (como aliás a ocupação e a acessão) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular”[16].

     Ainda segundo Abílio Vassalo Abreu[17], “o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa”.  

      Finalmente, Durval Ferreira[18], tratando a matéria com profundidade – em capítulo com a epígrafe “Usucapião e Lei do Ordenamento do Território” –, faz notar que a aquisição do direito por usucapião é originária, genética e endógena, na medida em que tem por causa, tem na sua génese, apenas a posse; esta e a “aquisição do direito por usucapião são originárias, agnósticas e bastam-se com certo senhorio de facto, tal como é, por certo lapso de tempo.

E ainda que, visando a usucapião satisfazer o interesse público “da certeza da existência dos direitos reais sobre as coisas e da respetiva titularidade e de a conseguir através da respetiva prova – «pela posse» (…)”, o possuidor que invoca a usucapião apenas tem de se preocupar com a posse que alega e respetiva demonstração.

Salienta ainda o facto de não existir nos diplomas legais sobre loteamentos, destaques ou fracionamento de prédios rústicos “a disposição em contrário”, exigida pelo art. 1287º para que a posse exercida por certo lapso de tempo não faculte ao possuidor a aquisição do direito por usucapião.

E porque esta se funda diretamente na posse, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes tenham incidido sobre a coisa, este autor conclui que a ilegalidade do fracionamento de prédio rústico carece de idoneidade para interferir (excluindo-a) na aquisição, por usucapião, de parcela de terreno resultante daquela divisão.


A nossa jurisprudência sobre o tema adota, em larga maioria[19], esta segunda posição, considerando que a usucapião prevalece sobre fracionamento ilegal de terreno apto para cultura, como nos dão conta os acórdãos deste STJ de 19.10.2004[20]; de 27.06.2006[21], de 4.02.2014[22]; de 6.04.2017[23], de 1.03.2018[24], de 3.05.2018[25], de 12.07.2018[26] e de 8.11.2018[27].


Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, possuindo, por isso, autonomia e independência em relação a certos vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse, afigura-se-nos também a nós que mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de interferir negativamente - excluindo-a - na faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.

No dizer claro e certeiro do já citado acórdão deste STJ de 27.06.2006:

“Invocada a usucapião, como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial.

O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.

Daí que, pode concluir-se, porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, aquela invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento, de resto há muito sanada (art. 1379º-2 e 3 C. Civil), careçam de qualquer potencialidade ou idoneidade para interferir na operância da invocada forma de aquisição da parcela, tal como se mostra formulada na reconvenção (no mesmo sentido, o ac. deste STJ de 19/10/04, Proc. 04A2988, ITIJ).”


Acresce notar que, em face do já citado art. 1287º, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, só deixa de facultar ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, se houver disposição em contrário; e não se descortina que, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma disponha em sentido idêntico aos já referidos arts. 1293º e 1548º, nº 1, ou seja, negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico.[28]

(…) disposição legal em contrário será aquela que estabeleça, precisamente, que certa e determinada posse não conduz a usucapião.

Disposição “que no plano do «senhorio de facto», da realidade empírica exclua a sua existência ou a sua relevância perante os preceitos legais e normativos (…) da posse e do usucapião.[29]

Não tem esta natureza o art. 1376º, devendo ainda dizer-se que a afirmada prevalência da usucapião sobre o fraccionamento ilegal, ao invés do que sustenta o recorrente, de modo algum esvazia de sentido este preceito.

Constitui fundamento legal para, através das competentes acções constitutivas, o Estado obter a declaração de nulidade (ou anulabilidade) dos negócios que contrariem a regra de proibição que contém, desde que exerça o correspondente direito a tempo de evitar que a posse emergente do negócio viciado dê lugar, mercê do decurso do tempo, à aquisição do direito de propriedade por usucapião.



Ademais no caso dos autos, como acima salientámos já, o fracionamento ilegal que despoletou o início da posse nem sequer é sancionado com o vício da nulidade.

É-lhe aplicável, como vimos, o art. 1379º, na redação anterior à ora vigente, que, no seu nº 1, feria de mera anulabilidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º, e no nº 3 estabelecia a caducidade da ação de anulação que não fosse proposta no prazo de três anos a contar da celebração do ato.

Em causa está, pois, uma mera anulabilidade que ficou sanada pelo decurso do prazo de três anos sem que fosse proposta a ação constitutiva tendente a anular o negócio, a significar que a violação das regras legais cometida no fracionamento perde, nestes casos, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito.

Assim, no dizer da Pires de Lima e Antunes Varela[30], em comentário ao art. 1379º, na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08, “se através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrária ao disposto nos artigos 1376º e 1379º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinados por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no nº 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião."

Deste modo, e considerando a data em que ocorreu o ato material da divisão – 1969 - que esteve na base do início da posse dos réus sobre a parcela de terreno em causa e o lapso de tempo entretanto decorrido com manutenção ininterrupta dessa mesma posse, tem de concluir-se que esta determinou, independentemente do vício de anulabilidade efetivamente verificado – e há muito sanado -, a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa.


Tudo o que acabámos de expor mostra, sem necessidade de outras considerações, a falta de razão do recorrente quando atribui aos réus abuso do direito, sendo por demais evidente que se não verificam os requisitos desta figura jurídica caracterizada no art. 334º.

Assim, a revista improcede.


IV – Julga-se a revista improcedente, mantendo-se, pelo exposto, o acórdão recorrido.

Sem custas, uma vez que o M. P. delas está isento.


Lisboa, 30.05.2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relator)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

___________

[1] Acessível em www.dgsi.pt, Proc. nº 7651/16.OT8STB.E1.S3, relatado por quem relata este e subscrito por um dos Adjuntos que subscreve o presente acórdão.
[2] O nº 1 da sua Base I estabelecia que “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada pelo Governo para cada zona do País”.
E o nº 2 da mesma Base cominava com a “nulidade” os atos de divisão contrários ao disposto no nº 1.
[3] Mantiveram-se, na vigência desta lei, as áreas estabelecidas no art. 107º do Decreto nº 16.731, como mínimo a respeitar no fracionamento dos prédios rústicos,
[4] cuja redacção, alterada pelo art. 59º da Lei nº 111/2015, de 27.08, é agora a seguinte: “são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º”.
[5] Cfr. art, 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de novembro de 1966
[6] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[7] Neste mesmo sentido cfr. o art. 2º da Portaria nº 202/70
[8] Cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, pág. 232 e segs. e José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 405 a 409
[9] Cfr. Carvalho Fernandes, obra citada, pág. 237 – 239, José Alberto Vieira, obra citada pág. 422, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, pág. 65 e Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3ª edição, pág. 341-342.
[10] Neste sentido, Carvalho Fernandes, obra citada, pág. 233 e Fernando Pereira Rodrigues, “Usucapião, Constituição Originária de Direitos através da Posse”, pág. 33
[11]  Obra citada, pág. 32 e segs.
[12] Em “Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque”, em Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, pág. 810, conforme citação feita no já referido acórdão deste STJ de 8.11.2018
[13] “Teoria Geral do Direito Civil, pág. 470
[14] Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pág. 291, nota 731.
[15] Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, pág. 263
[16] “Direitos Reais”, Lisboa 1971, pág. 337 
[17] “Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião”, Coimbra, pág. 19, conforme citação feita no acórdão deste STJ de 1.03.2018, relatado pela Cons. Rosa Tching e subscrito pela ora relatora como adjunta no proc. nº 1011/16.OT8STB.E1.S2, acessível em www.dgsi.pt
[18]Posse e Usucapião”, 3ª ed., págs. 525 e segs.
[19] Conforme se refere no já citado acórdão deste STJ de 8.11.2018, estando em causa a violação de regras de direito do urbanismo, ligadas, por exemplo, ao regime dos loteamentos urbanos, este STJ decidiu pela inviabilidade de invocação da usucapião, nos acórdãos de 26.01.16, Relator Cons. Sebastião Póvoas, Proc. 5434/09, de 30.04.15, Cons. Salazar Casanova, Proc. 10495/08, de 7.06.2011, Relator Cons. Nuno Cameira, Proc. nº 197/2000, também acessíveis em www.dgsi.pt
[20] Relator Cons. Azevedo Ramos, Proc. nº 04A2988, acessível em www.dgsi.pt
[21] Relator Cons. Alves Velho, Proc. nº 06A1471, acessível em www.dgsi.pt
[22] Relator Cons. Fernandes do Vale, Proc. nº 314/2000.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[23] Relator Cons. Nunes Ribeiro, Proc. 1578/11.9TBVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[24] Relatora Cons. Rosa Tching, Proc. 1011/16.OT8STB.E1.S2, acessível em www.dgsi.pt 
[25] Relatora Cons. Fátima Gomes, Proc. nº 7859/15.5T8STB.S1, acessível em www.dgsi.pt
[26] Relator Cons. Fonseca Ramos, Proc. nº  7601/16.3T8STB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[27] Relator Cons. Abrantes Geraldes, Proc. nº  600/16.1T8STB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[28] Isto mesmo é salientado nos já referidos acórdãos deste STJ de 6.04.2007 e de 1.03.2018.
[29] Durval Ferreira, obra citada, pág. 534
[30] Obra citada, pág. 269