Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
88/14.7T8OVR.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO PARCIAL
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
FIANÇA
EXCUSSÃO DOS BENS DO DEVEDOR
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PARCIALMENTE CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA / RELAÇÕES ENTRE O CREDOR E O FIADOR.
Doutrina:
- ANA PRATA, O contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, Almedina, 1999;
- FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, 2009.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.º 4 E 674.º, N.º 3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 81.º, N.º 4 E 102.º, N.º 3, ALÍNEA C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 640.º, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-04-2015, PROCESSO N.º 27333/10, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-12-2015, PROCESSO N.º 940/10, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-03-2016, PROCESSO N.º 11000/13;
- DE 22-03-2018, PROCESSO N.º 10864/15;
- DE 19-12-2018, PROCESSO N.º 22335/15.
Sumário :

I- Em matéria de facto, o Supremo apenas poderá intervir no juízo decisório ínsito no acórdão recorrido se, e na medida em que, do mesmo decorra alguma ofensa de disposição expressa que exija uma certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

II- Assim o determina o disposto no art. 662º, nº 4, do CPC, relativamente ao modo como a Relação reaprecia a impugnação da decisão da matéria de facto, complementado com o que decorre do nº 3 do art. 674º.

III- Deste modo, o STJ não se poderá pronunciar sobre a invocada impugnação factual, porquanto não se constata qualquer erro na apreciação das provas e na fixação dos factos por ofensa de disposição expressa de lei que exija a produção de um específico meio de prova, sendo de rejeitar o recurso, neste segmento.

IV- A factualidade provada (pontos 9 a 13) não permite concluir que a FF se recusou, de modo definitivo, a celebrar a escritura pública relativa ao contrato-promessa de compra e venda das fracções autónomas do edifício a construir.

V- A resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação, dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, e da perda do interesse que o credor tinha na prestação – interesse esse que tem de ser apreciado objectivamente.

VI- O incumprimento do contrato só ocorreu com a recusa operada pelo Administrador da Insolvência, em representação da FF para todos os efeitos de carácter patrimonial, como decorre do artº 81º, nº 4 do CIRE.

VII- Tendo havido incumprimento por parte do Administrador da Insolvência, nos termos artº 102º, nº 3, al. c) do CIRE os Autores têm o direito de exigir o valor da prestação do devedor insolvente, na parte por este ainda não cumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente ainda não realizada por aquela.

VIII- Os RR/Fiadores, ao assumirem a obrigação de principais pagadores, renunciaram ao benefício da excussão (artº 640º, al. a) do CCivil). Deste modo, o credor (Autores) tem o direito de exigir dos fiadores a satisfação do seu crédito, aferido nos termos do artº 102º, nº 3, al. c) do CIRE, independentemente da excussão dos bens do devedor.

Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça     

        

          I- Relatório:

1-AA, NIF ..., residente na Rua ..., nº…., ..., ...,

2 - BB, NIF …, residente na Rua ..., nº…, 4ºesq. recuado, ...,

3 - CC, NIF ..., residente na rua ..., nº…, ..., ..., ...,

4 - DD, NIF …, residente na Rua …, nº…, ..., ..., e

5 - EE, NIF …, residente na Praceta ..., nº…, ... Esq., ..., ...,

instauraram a presente acção contra

1 - FF, LDA, NIPC ..., com sede na Rua …, nº…, ..., ...,

2 - GG, NIF …, residente na Rua …, nº…, ent. 2, ..., ...,

3 - HH, NIF ..., residente na Rua ..., nº…, 1ºdt., …,

4 - II, NIF …, residente na Rua ..., nº…, 2ºesq., ..., e

5 - JJ, NIF …, residente na Rua ..., nº…, 2ºesq., ...,

pedindo que:

a) Seja declarado válido o contrato-promessa identificado na petição inicial;

b) Os réus sejam condenados a reconhecer a validade do referido contrato-promessa;

c) Seja proferida decisão que produza ao efeitos da declaração negocial dos réus faltosos, valendo tal decisão como título bastantes da compra e venda das fracções descritas no articulado inicial, pelo preço de 425.000,00 € - do qual se encontra em dívida o valor de 22.888,59 pelos autores -, transferindo-se, assim, por essa via para estes adquirentes a propriedade dos imóveis dos autos;

d) Os réus sejam condenados a pagar aos autores a quantia de 22.500,00 €, calculada até à presente data, relativa à indemnização prevista na cláusula 6ª do contrato-promessa de compra e venda, que deverá ser actualizada em função do decurso de cada mês de atraso, quantia esta acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa legal em vigor, desde 30/6/2013 até efectivo e integral pagamento.

Na pendência dos autos, ocorreu a insolvência da ré FF, Lda, bem como, numa fase subsequente, do réu HH, tendo sido proferido despacho em 26.09.2016, em face da insolvência da referida sociedade, a determinar que o respectivo administrador informasse se pretendia cumprir o contrato-promessa dos autos.

Por requerimento de 20/3/2017, veio o Sr. administrador informar que recusava o cumprimento do referido contrato, o que determinou a prolação do despacho de 3/5/2017, sendo os autores notificados para esclarecerem se pretendiam o prosseguimento dos autos contra os restantes réus e a reformulação das pretensões deduzidas em sede de articulado inicial.

Em face do aludido despacho e da impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa, atenta a posição assumida pelo Sr. administrador de insolvência, os autores, por requerimento de 17/5/2017, vieram informar que pretendiam o prosseguimento dos autos contra o 2º, 3º, 4º e 5º réus, pedindo, consequentemente, que:

a) Seja declarado válido o contrato-promessa a que os autos se reportam;

b) O 2º, 3º, 4º 4 5º réus sejam condenados a reconhecer a validade do referido contrato-promessa;

c) O 2º, 3º, 4º e 5º réus sejam condenados a pagar aos autores o valor correspondente ao total já pago por conta do cumprimento do contrato-promessa, o que totaliza 402.111,41 €, acrescido de juros de mora contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

d) O 2º, 3º, 4º e 5º réus sejam condenados a pagar aos autores a quantia de 70.500,00 €, calculada até à presente data, relativa à indemnização prevista na cláusula 6ª do contrato-promessa de compra e venda, que deverá ser actualizada em função do decurso de cada mês de atraso, quantia esta acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa legal em vigor, desde 30/6/2013 até efectivo e integral pagamento.

Veio a ser proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

a) Julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide relativamente aos réus FF, Ldª, e HH;

b) Declarar válido o contrato-promessa a que os autos se reportam, condenando os réus GG, II e JJ a reconhecer esse facto;

c) Condenar os réus GG, II e JJ a pagarem aos autores a quantia de 395.00,00 € (trezentos e noventa e cinco mil euros), a título de sinal entregue pelos promitentes-compradores, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.

d) Condenar os réus GG, II e JJ a pagarem aos autores a quantia de 70.500,00 € (setenta mil e quinhentos euros), a título de cláusula penal, nos termos supra-expostos, acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa legal em vigor, desde 30/6/2013 até integral pagamento.

e) Absolver os réus GG, II e JJ do demais peticionado;

f) Condenar os autores e os réus no pagamento das custas a que deram causa, na proporção do decaimento;

g) Ordenar o registo e notificação da presente sentença.

Desta sentença apelaram os Réus para o Tribunal da Relação do Porto.

O Tribunal da Relação alterou a matéria de facto e absolveu os réus quanto aos pedidos formulados sob as alíneas c) e d) do requerimento de 17.05.2017, mantendo a sentença recorrida no restante.

Do acórdão da Relação vieram os Autores interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões de alegações:

A) O Acórdão em recurso, proferido na pendência do presente processo julgou parcialmente procedente a apelação apresentada e alterou a matéria de facto, o que determinou a alteração da decisão recorrida, determinando-se, em consequência, a absolvição dos RR./Recorridos no que tange aos pedidos formulados sob as alíneas c) e d) do requerimento apresentado pelos ora Recorrentes em 17.05.2017, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

B) O presente recurso para o STJ é admissível nos termos do disposto no n° 1 do art. 671° do Código de Processo Civil e, a contrario, nos termos do n° 3 do mesmo normativo processual.

C) O Acórdão em crise considera como não provada a matéria constante do item 7 dos factos provados, não aceitando a fundamentação da douta sentença, a qual se baseia na conjugação de vários elementos probatórios, concretamente, o contrato-promessa de compra e venda das fracções, as fotocópias dos cheques juntos à p.i., o depoimento das testemunhas KK, LL e MM.

D) O Acórdão ignora que as cópias dos cheques estão assinados pelos ora Recorridos, atestando o recebimento das respectivas quantias, que o mero confronto de tais assinaturas com as que constam do contrato promessa de compra e venda e contrato de fiança permite verificar a conformidade das mesmas assinaturas; que as assinaturas apostas nas cópias dos cheques (docs. n°s 5 a 8 juntos com a p.i.) provam, de forma inequívoca, a recepção pela R. FF das quantias titulada nos ditos cheques.

E) A impugnação efectuada pelos Recorridos do art. 1º da p.i. não abrange as assinaturas apostas no aludido contrato-promessa.

F) O Acórdão considera que a declaração de quitação de € 275.000,00 vincula a Ré FF (cláusula 3a do contrato-promessa), porquanto considera no ponto 5 dos factos provados a existência de tal contrato-promessa, nos termos e condições dele constantes e cujo teor dá por reproduzido, mas também considera que não foi feita prova da realidade dessa declaração, através de outros meios de prova.

G) Tal contradição não pode, obviamente, ser aceite, pois a declaração emitida pela R. FF constitui prova inequívoca de que recebeu os referidos € 275.000,00, não existindo qualquer prova do contrário.

H) O Acórdão enferma, ainda, de outra contradição, na análise da prova testemunhal, relativamente ao item 7 dos factos provados, uma vez que, por um lado, considera que as testemunhas já identificadas não assistiram quer à outorga do contrato-promessa, quer do definitivo de compra e venda, nem conhecem os termos reais do aludido contrato-promessa, nem o preço que foi declarado na escritura pública, e, pelo outro, considera com base nas mesmas testemunhas que o negócio celebrado foi apenas uma permuta e que não houve pagamento de sinal algum em dinheiro, aquando da outorga do contrato-promessa.

I) O item 7 dos factos provados deve ser mantido no seus exactos termos no conjunto dos factos provados, conforme se encontra explicitado na douta sentença.

J) Da factualidade aditada pelo Tribunal da Relação do Porto à matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1ª instância (itens 21 e 22 dos factos provados) não se pode retirar a ilação de que a insolvência da Ré FF ou de que a recusa do Sr. Administrador da Insolvência relevam, têm interesse para a decisão a proferir no processo.

L) A questão de Direito levantada pelos RR. na audiência de julgamento de 29.09.2017 e constante das conclusões 17a a 19a dos ora Recorridos, ou seja, que inexiste incumprimento definitivo e culposo por parte da afiançada dos Recorrentes (ora Recorridos) geradora de responsabilidade para estes, em virtude do contrato não ter sido cumprido por recusa de cumprimento por parte do Administrador da insolvência, não corresponde à realidade dos autos, porquanto os ora Recorrentes (AA.), ao interporem a presente acção, nada mais fizeram senão peticionar a execução específica do contrato promessa, nos termos do art. 830° do Código Civil.

M) A questão de Direito levantada pelos RR. na audiência de julgamento de 29.09.2017 foi inoportuna, por violação do disposto no n° 1 do art. 573° do CPC.

N) Ao tempo da declaração de insolvência da Ré FF já existia incumprimento definitivo e culposo desta do contrato-promesa de compra e venda, gerando-se a inevitável responsabilidade dos ora Recorridos, fiadores e garantes das obrigações assumidas pela Ré FF.

O) A Ré FF recusou-se a cumprir o contrato-promessa, conforme consta dos factos assentes a fls. 25 da douta sentença.

P) Existe incumprimento definitivo e culposo e não simples mora no cumprimento, como pretende o Acórdão em crise, pelo que a douta sentença deve ser integralmente mantida, no que concerne às conclusões c) e d) da sua decisão.

Q) A reapreciação da decisão da matéria de facto pelo Acórdão não pode postergar o princípio fundamental da livre apreciação da prova pelo Tribunal de 1ª instância, salvo se este Tribuna tiver cometido erros clamorosos (o que não foi manifestamente o caso) na apreciação do valor probatório dos concretos meios de prova (n° 5 do art. 607° do CPC).

R) A enumeração dos factos provados e a respectiva motivação, constantes da douta sentença, foram elaboradas de modo pleno, objectivo, circunstanciado e justificado, pelo que a resposta dada à matéria controvertida mostra-se devidamente fundamentada, nada impondo decisão diversa da proferida em 1ª instância.

S) O Acórdão em crise regista, a fls. 418, outra contradição estrutural, quando, por um lado, afirma que não foi pedida a resolução do contrato-promessa nenhuma das partes e, pelo outro lado, defende que o antecessor dos ora Recorrentes não gozava do direito de pedir tal resolução.

T) Foi feita prova bastante do incumprimento pela R. FF dos termos do contrato-promessa, o que se repercute na esfera dos fiadores (ora Recorridos).

U) A interpelação feita pelo Tribunal de 1ª instância ao Sr. Administrador da Insolvência, em 26.09.2016, revestiu a forma de uma interpelação para cumprimento (o que pressupõe um incumprimento), tendo a recusa deste determinado a alteração do pedido inicial, pelos AA., na sequência do facto superveniente ocorrido, ou seja, da insolvência da Ré FF.

V) A epígrafe do art. 102° do CIRE - "Negócio não cumpridos"- pressupõe a verificação de situações de incumprimento contratual.

X) Tendo em consideração toda a fundamentação explicitada anteriormente, que ora se dá por reproduzida, deve o presente recurso ser considerado procedente, mantendo-se, em consequência, a douta sentença proferida pela 1ª instância, nos seus exactos termos, em virtude da violação do disposto na alínea a) do n° 1 e no n° 3 do art. 674° do Código de Processo Civil, do art. 830° do Código Civil e do art. 102° do CIRE.

Os Réus não apresentaram contra-alegações.

II- Apreciação do Recurso:

Objecto do Recurso

Questão Prévia

         Os Recorrentes alegam a existência de contradições na alteração da matéria de facto operada pela Relação, alegando o seguinte:

C) O Acórdão em crise considera como não provada a matéria constante do item 7 dos factos provados, não aceitando a fundamentação da douta sentença, a qual se baseia na conjugação de vários elementos probatórios, concretamente, o contrato-promessa de compra e venda das fracções, as fotocópias dos cheques juntos à p.i., o depoimento das testemunhas KK, LL e MM.

D) O Acórdão ignora que as cópias dos cheques estão assinados pelos ora Recorridos, atestando o recebimento das respectivas quantias, que o mero confronto de tais assinaturas com as que constam do contrato promessa de compra e venda e contrato de fiança permite verificar a conformidade das mesmas assinaturas; que as assinaturas apostas nas cópias dos cheques (docs. n°s 5 a 8 juntos com a p.i.) provam, de forma inequívoca, a recepção pela R. FF das quantias titulada nos ditos cheques.

E) A impugnação efectuada pelos Recorridos do art. 1º da p.i. não abrange as assinaturas apostas no aludido contrato-promessa.

F) O Acórdão considera que a declaração de quitação de € 275.000,00 vincula a Ré FF (cláusula 3a do contrato-promessa), porquanto considera no ponto 5 dos factos provados a existência de tal contrato-promessa, nos termos e condições dele constantes e cujo teor dá por reproduzido, mas também considera que não foi feita prova da realidade dessa declaração, através de outros meios de prova.

G) Tal contradição não pode, obviamente, ser aceite, pois a declaração emitida pela R. FF constitui prova inequívoca de que recebeu os referidos € 275.000,00, não existindo qualquer prova do contrário.

H) O Acórdão enferma, ainda, de outra contradição, na análise da prova testemunhal, relativamente ao item 7 dos factos provados, uma vez que, por um lado, considera que as testemunhas já identificadas não assistiram quer à outorga do contrato-promessa, quer do definitivo de compra e venda, nem conhecem os termos reais do aludido contrato-promessa, nem o preço que foi declarado na escritura pública, e, pelo outro, considera com base nas mesmas testemunhas que o negócio celebrado foi apenas uma permuta e que não houve pagamento de sinal algum em dinheiro, aquando da outorga do contrato-promessa.

I) O item 7 dos factos provados deve ser mantido no seus exactos termos no conjunto dos factos provados, conforme se encontra explicitado na douta sentença.

J) Da factualidade aditada pelo Tribunal da Relação do Porto à matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1ª instância (itens 21 e 22 dos factos provados) não se pode retirar a ilação de que a insolvência da Ré FF ou de que a recusa do Sr. Administrador da Insolvência relevam, têm interesse para a decisão a proferir no processo.

 Das conclusões de recurso não resulta qualquer impugnação directa da factualidade dada como provada, mas antes a impugnação da fundamentação da mesma efectuada pelo Tribunal da Relação, sendo imputada a esta, por um lado uma contradição, por outro lado uma errada apreciação dos documentos e por último, quase um “excesso de pronunciamento” de facto com a consignação da materialidade provada em 21 e 22, quando estes factos resultam do conhecimento oficioso do tribunal, nos termos do artigo 5º, nº 2, alínea c) do CPC.

As alegadas “contradições”, apenas poderiam ser objecto de arguição de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea c) do CPC, não tendo, porém, os Recorrentes arguido tal vício.

Vejamos a factualidade posta em causa pelos Recorrentes (pontos 5º, 7º, 21º e 22º)

O primeiro (ponto 5º) traduz o que consta do documento de fls 33 a 35; o 7º (7 – Do valor acima referido já se encontra liquidada a quantia de  395.000,00 € (art. 7º da petição inicial)) foi dado como não provado, sendo que a materialidade constante do mesmo estava sujeita a prova livre; e os pontos 21 e 22, contêm materialidade de conhecimento oficioso.

Importa dizer que decorre do nº 4 do artº 662º que das decisões da Relação previstas no nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Esta regra da irrecorribilidade para o STJ enquadra-se no contexto de que cabe a este Tribunal a competência especial para apreciar as questões de direito, deixando para as instâncias a circunscrição da matéria de facto.

O Supremo apenas poderá intervir no juízo decisório ínsito no acórdão recorrido se e na medida em que do mesmo decorra alguma ofensa de disposição expressa que exija uma certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Assim o determina o disposto no art. 662º, nº 4, do CPC, relativamente ao modo como a Relação reaprecia a impugnação da decisão da matéria de facto, complementado com o que decorre do nº 3 do art. 674º.

Trata-se de matéria que tem sido objecto de frequentes arestos do Supremo de que é exemplo o acórdão de 17-12-2015, processo 940/10, disponível em www.dgsi.pt.

Tendo isto em atenção e o preceituado no artigo 674º, nº3 do CPC, o STJ não se poderá pronunciar sobre a invocada impugnação factual, porquanto não se constata qualquer erro na apreciação das provas e na fixação dos factos por ofensa de disposição expressa de lei que exija a produção de um específico meio de prova.

Impõe-se, em consonância, rejeitar o conhecimento deste segmento do objecto da revista.

Questões a decidir

A- O contrato-promessa foi incumprido com a interpelação feita pelo Tribunal de 1ª instância ao Sr. Administrador da Insolvência, em 26/09/2016, e com a recusa deste, operada por requerimento de 20/03/2017?

B- Quais as consequências do incumprimento por parte do Administrador da Insolvência relativamente aos RR/Fiadores?

 

 Fundamentação:

Foi a seguinte a fundamentação de facto da sentença proferida em 1ª instância:

Factos provados:

1 – Os autores são herdeiros de NN, falecido em … de .. de .…, no estado de casado com OO, em 1ªs núpcias de ambos, no regime da comunhão geral de bens (art. 1º da petição inicial).

2 – São também herdeiros de OO, falecida em … de … de …, no estado de viúva de NN (art. 2º da petição inicial).

3 – As heranças abertas por óbito de NN e OO não foram objecto de qualquer acto de partilha de bens (art. 3º da petição inicial).

4 – Por escritura pública celebrada em 1 de Março de 2006, no Cartório Notarial da Licenciada PP, NN e OO venderam à sociedade FF, Ldª, ora ré, o prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº... e inscrito na respectiva matriz sob o art. 1107 (art. 4º da petição inicial).

5 – Paralelamente, os mesmos outorgantes celebraram um contrato-promessa de compra e venda e contrato de fiança, em que intervieram na qualidade de fiadores os ora réus GG, HH, II e JJ, mediante o qual a sociedade ré prometeu vender a NN e este prometeu comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, três fracções autónomas do edifício em construção no prédio anteriormente referido, correspondentes a dois apartamentos do tipo T3 e um apartamento do tipo T4, sendo um T3 no primeiro andar e o outro T3 e o T4 no último andar do dito edifício, nos seguintes termos e condições: reproduz-se integralmente o teor do documento escrito junto de fls 33 a 35 dos autos (art. 5º da petição inicial e art. 6º da contestação).

6 – O preço convencionado foi de 425.000,00 €, tendo sido atribuído ao T3 do 1º andar o preço de 125.000,00 € e ao outro T3, bem como ao T4, o preço de 150.000,00 €, cada (art. 6º da petição inicial).

7 – Do valor acima referido já se encontra liquidada a quantia de 395.000,00 € (art. 7º da petição inicial).

8 – Era o pai dos autores quem liquidava as despesas de electricidade e água da obra de construção do edifício supra-referido, as quais ascendiam, à data da propositura da acção, a 7.111,41 € (art. 9º da petição inicial).

9 – Em 30 de Maio de 2013, foi emitido o alvará de utilização nº 90/2013 (art. 13º da petição inicial).

10 – A sociedade ré não notificou o promitente-comprador para proceder à outorga da escritura de compra e venda das fracções supra mencionadas, nem no prazo de 30 dias após a emissão da licença de utilização, nem posteriormente (arts. 14º e 15º da petição inicial).

11 – E, até à presente data, não expressou a sua declaração de vontade no sentido de vender as fracções autónomas objecto do contrato-promessa de compra e venda (art. 16º da petição inicial).

12 – Os autores chegaram a diligenciar junto dos réus para que estes marcassem a referida escritura (art. 18º da petição inicial).

13 – O que, todavia, aqueles não concretizaram, não tendo a escritura de compra e venda sido outorgada até à data (arts. 19º e 20º da petição inicial).

14 – O prazo de execução da obra findava em 13 de Outubro de 2005 e a ré FF requereu atempadamente a prorrogação do prazo da licença de construção junto da competente Câmara (art. 12º da contestação).

15 – Por deliberação de 17 de Novembro de 2005, a Câmara de ... declarou a nulidade do licenciamento e ordenou a cassação da licença de construção, o que foi cumprido (art. 13º da contestação).

16 – O fundamento da deliberação consistiu no facto de o local de implantação do prédio constituir “espaço industrial” e não “espaço urbano da categoria A”, segundo o P.D.M. válido e eficaz para o concelho de ... (art. 14º da contestação).

17 – Nos anos seguintes, a edilidade procedeu à revisão e aprovação de alterações ao P.D.M. do concelho de ... (art. 16º da contestação).

18 – Em 2010, a ré FF viu reunidas as condições no PDM do concelho que permitiriam a edificação no prédio que havia adquirido aos antecessores dos autores, identificado em 4 (art. 17º da contestação).

19 – Em 2010, a ré FF apresentou à aprovação um projecto de licenciamento inteiramente diverso e distinto daquele nº3148/05, cumprindo agora as regras de toda a regulamentação urbanística, designadamente aquela do concelho de ..., a que corresponde o processo nº4521/2010 (art. 18º da contestação).

20 – O prédio edificado no imóvel (terreno) que a ré FF adquiriu aos antecessores dos autores é completamente diverso e distinto, coincidindo unicamente na mancha de implantação no solo e na cércea (art. 19º da contestação).

O Tribunal da Relação alterou a decisão quanto à matéria de facto, nos seguintes termos:

Ponto 5- “Em 27.02.2006, mediante documento escrito junto de fls 33 a 35 e cujo teor se dá por reproduzido, a sociedade FF, Lda, o NN e os réus, celebraram um contrato-promessa de compra e venda e contrato de fiança, em que intervieram na qualidade de fiadores os ora réus GG, HH, II e JJ, mediante o qual a sociedade ré prometeu vender a NN e este prometeu comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, três fracções autónomas do edifício em construção no prédio anteriormente referido, correspondentes a dois apartamentos do tipo T3 e um apartamento do tipo T4, sendo um T3 no primeiro andar e o outro T3 e o T4 no último andar do dito edifício, nos termos e condições dele constantes’’.

 Ponto 7- “não provado”.

E aditou à matéria os seguintes factos provados:

Ponto 21- “A Ré FF foi declarada insolvente no processo 2749/15.4T8STS, da 1ª Secção de Comércio, J4, de Santo Tirso, por sentença de 01.10.2015, transitada em julgado e nomeado administrador da insolvência QQ”.

Ponto 22- “O Sr. Administrador da Insolvência da Ré FF recusou o cumprimento do contrato de fls. 33 a 35, por requerimento de 20/3/2017, o que determinou a prolação do despacho de 3/5/2017”.

III- O Direito

A- O contrato-promessa foi incumprido com a interpelação feita pelo Tribunal de 1ª instância ao Sr. Administrador da Insolvência e com a recusa deste, operada por requerimento de 20/03/2017?

 

Alegam os Recorrentes que: “Ao tempo da declaração de insolvência da Ré FF já existia incumprimento definitivo e culposo desta do contrato-promesa de compra e venda, gerando-se a inevitável responsabilidade dos ora Recorridos, fiadores garantes das obrigações assumidas pela Ré FF. (…) Existe incumprimento definitivo e culposo e não simples mora no cumprimento, como pretende o Acórdão em crise, pelo que a douta sentença deve ser integralmente mantida, no que concerne às conclusões c) e d) da sua decisão.

Vejamos:

Os Autores intentaram esta acção contra a ré FF, promitente vendedora, e contra os demais réus fiadores, na qual formularam os pedidos de que os réus sejam condenados em ver reconhecida a validade do contrato promessa que invocaram na petição inicial; que seja declarado que a decisão do tribunal produz os efeitos da declaração negocial dos faltosos, isto é, que seja executado especificamente o contrato.

Como resulta do probatório (pontos 21 e 22), na pendência dos autos, ocorreu a insolvência da ré FF, bem como, numa fase subsequente, do réu HH. Em face da insolvência da referida sociedade, foi notificado o respectivo Administrador para informar se pretendia cumprir o contrato-promessa dos autos. Por requerimento de 20/3/2017, veio o Administrador da Insolvência (AI) informar que recusava o cumprimento do referido contrato, tendo os Autores reformulado o seu pedido, desistindo da execução específica do contrato.

A factualidade provada (pontos 9 a 13) não permite concluir que a FF se recusou, de modo definitivo, a celebrar a escritura pública relativa ao contrato-promessa de compra e venda das fracções autónomas do edifício a construir.

Com efeito, o facto de a FF não ter marcado a escritura de compra e venda não conduz, automaticamente, a uma situação de incumprimento.

A resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, ou da perda do interesse que o credor tinha na prestação – interesse esse que tem de ser apreciado objectivamente.[1]

Com efeito, por regra, se as obrigações do contrato não forem cumpridas em tempo pelo devedor este incorre numa situação de mora. E o credor, para converter a mora em incumprimento definitivo, tem de interpelar o devedor, intimando-o a cumprir a prestação, dentro de prazo razoável, fixado de acordo com as circunstâncias concretas do contrato a celebrar, com a advertência, muito clara, de que a falta da prestação, no prazo estabelecido, o fará incorrer em incumprimento definitivo da obrigação[2].

A perda do interesse do credor, como motivo que gera o incumprimento definitivo, encontra-se prevista no artº 808º, nº 1, 1ª parte do CCivil. Para que ocorra uma situação de perda de interesse susceptível de justificar a assunção de atitude resolutiva por parte do credor, torna-se necessário que a situação de retardamento no cumprimento da prestação em que o devedor se colocou ocasione um objectivamente perspectivado desinteresse daquele na execução do contrato. Tal perda de interesse é apreciada objectivamente (art. 808º, n° 2 CCivil), não operando de modo imediato e automático. Para o efeito, mostra-se necessária uma declaração resolutiva dirigida ao devedor (interpelação admonitória)[3].

Regressando aos autos, impunha-se, assim, aos autores alegar e pr... os factos objectivos e concretos que fundassem a perda do interesse, bem como a prova de que interpelaram admonitoriamente o devedor com a fixação de um prazo cominatório para a outorga do contrato prometido.

Factos que os Autores não lograram provar.

Com feito, dos pontos 9 a 13 apenas se deu como provado que a  FF não notificou o promitente-comprador para a realização da escritura, nem no prazo de no prazo de 30 dias após a emissão da licença de utilização, nem posteriormente e que os autores chegaram a diligenciar junto dos réus para que estes marcassem a referida escritura, o que não sucedeu até à data.

Assim, o contrato-promessa estava em vigor, aquando da propositura da presente acção. E o seu incumprimento só veio a ocorrer, com a recusa do cumprimento por parte do Administrador da Insolvência, operada ao abrigo do disposto no artº 102º do CIRE.

Como decorre deste dispositivo, sob a epígrafe “Negócios em curso” “em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

Assim, perante um contrato-promessa não totalmente cumprido, passa para o Administrador da Insolvência a opção de cumprir ou recusar o cumprimento do contrato.

Por essa razão, o Tribunal de 1ª instância, entendendo que o contrato estava em curso, veio a notificar o Administrador da Insolvência (AI) para se pronunciar sobre o seu cumprimento ou recusa. Deste modo, o incumprimento do contrato só ocorreu com a recusa operada pelo (AI), em representação da FF para todos os efeitos de carácter patrimonial, como decorre do artº 81º, nº 4 do CIRE.

Pelo exposto, nesta parte, improcede o recurso.

B- Quais as consequências resultantes do incumprimento do contrato por parte do (AI), relativamente aos RR/fiadores?

Nos termos do contrato-promessa (clausula 8ª) os aqui RR, na qualidade de terceiros outorgantes, obrigaram-se irrevogavelmente como fiadores e principais pagadores, perante o segundo outorgante, ao pagamento de todas e quaisquer quantias que a este viessem a ser devidas pela primeira outorgante (FF), ou por quem assuma a posição contratual da mesma com fundamento no contrato-promessa, mesmo que este venha a ter alterações, aditamentos ou adendas.

O fiador assegura a realização de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se, pessoalmente com o seu património, perante o credor (artº 627º do CCivil).

Da cláusula 8ª resulta que os fiadores, ao assumirem a obrigação de principais pagadores, renunciaram ao benefício da excussão (artº 640º, al. a) do CCivil). Deste modo, o credor (Autores) tem o direito de exigir dos fiadores o cumprimento da obrigação ou a satisfação do seu crédito, independentemente da excussão dos bens do devedor.

Como resultou provado, ocorreu o incumprimento do contrato-promessa por recusa do (AI).

 As consequências desta recusa são pormenorizadamente abordadas no artº 102, nº 3 do CIRE. Nos termos da al. c), a parte contratante tem o direito de exigir o valor da prestação do devedor insolvente, a parte por este ainda não cumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente ainda não realizada por aquela. Este valor é considerado crédito sobre a insolvência.

No entanto, o valor deste crédito ainda não é líquido. Com efeito, como decorre do probatório não ficou demonstrado o pagamento de qualquer quantia por parte dos antecessores dos Autores relativa ao contrato-promessa. O que resultou dos autos (fundamentação da Relação) foi que o negócio celebrado foi uma permuta entre o prédio referido no ponto 4 propriedade dos falecidos pais dos autores e três dos apartamentos a que se refere o contrato-promessa celebrado pelo documento particular referido no ponto 5.

Todavia, não se apurou concretamente qual o valor atribuído a esse imóvel permutado com os apartamentos. Valor que terá de ser apurado em liquidação, os termos dos arts. 359º e 609º, nº 2 do CPC .  

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em conceder parcial provimento à revista, condenando-se os Réus/Fiadores GG, II e JJ no pagamento do crédito dos Autores, aferido nos termos do artº 102º, nº 3, al. c) do CIRE, a ser apurado em liquidação de sentença.

Custas pelos Recorrentes e Recorridos, na proporção do decaimento que vier a ser apurado em liquidação.

 

Lisboa, 18 de Junho de 2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo

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[1] Sobre o incumprimento do contrato-promessa, vide FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, 2009; ANA PRATA, O contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, Almedina, 1999.

[2] Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 19/12/2018, Revista 22335/15, 7ª secção; de 22/3 de 2018, Revista 10864/15, 1ª secção.

[3] Neste sentido, acórdão do STJ de 08-03-2016, Revista 11000/13, 1ª secção; acórdão do STJ de 14-04-2015, Revista 27333/10, 1ª secção, in www.dgsi.pt.