Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11403/15.6T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
ABUSO DE DIREITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO DE EMPREITADA
GARANTIA AUTÓNOMA
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / ACTOS JURÍDICOS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DE OBRIGAÇÃO / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
-A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª Edição, 1996, Volume I, 495, 563 e 564;
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 132;
-Cunha e Sá, O Abuso do Direito, 456;
-Diogo Leite de Campos, A Subsidiaridade da Obrigação de Restituir no Enriquecimento, 325;
-J. M. Coutinho, Do Abuso de Direito, 1983, 42 e ss.;
-M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, 423 e ss.;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado e Comentado, Volume I, 2.ª Edição, 277;
-Vaz Serra, RLJ, 111, 296 ; Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85, 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 297.º, N.ºS 1 E 3, 334.º E 473.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 217.º, N.º 4.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS D) E E), 627.º, N.º 1 E 635.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-11-1984, IN BMJ, 341, 418;
- DE 10-12-1991, IN BMJ, 412, 460;
- DE 14-05-1996, IN CJ/STJ, 1996, II, 70.
Sumário :
I - O abuso do direito é um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça: não basta, para que se verifique, que o titular do direito exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, antes sendo necessário que esses limites sejam manifestamente excedidos, i.e., que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos (art. 334.º do CC).

II - Não constitui abuso de direito a conduta do beneficiário de garantias autónomas, no valor total de € 853 664,90, válidas até à recepção definitiva de uma empreitada a realizar por uma sociedade, que, depois de ter reclamado, no âmbito do PER desta última, um crédito de € 112 816,00 (ressalvando, desde logo, que essa quantia constituía “uma mera previsão do custo das reparações a efectuar”), propõe acção declarativa contra o garante com vista a accionar as garantias que lhe foram prestadas naquele montante total.

III - O instituto do enriquecimento sem causa depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; (iii) que seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; e (iv) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (art. 473.º do CC); cabendo a quem o invoca o ónus de alegar e demonstrar estes requisitos, nomeadamente o nexo causal entre o enriquecimento do demandado e o seu empobrecimento.

IV - Estando provada a causa para a transferência patrimonial (pagamento de determinada quantia com base nas garantias prestadas), não há enriquecimento sem causa.

V - As garantias bancárias on first demand prestadas por terceiros a favor de um credor do devedor sujeito a PER mantêm-se válidas e incólumes com a aprovação do plano de insolvência (art. 217.º, n.º 4, do CIRE).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

  

l. AA - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, anteriormente denominado BB – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, gerido e legalmente representado pela CC – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento SA, anteriormente designada DD - ... Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra o Banco EE, S.A., invocando créditos emergentes de garantias autónomas emitidas pelo R. a favor do A., cujo pagamento este accionou, recusando o R. o cumprimento dessas garantias.

Conclui pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia global de € 853.664,90, acrescida de juros de mora até integral pagamento, os quais ascendem, na data da instauração da acção, a € 35.993,10.


2. Contestou o R., aceitando ter prestado as garantias bancárias em causa, mas alegando terem as mesmas caducado em virtude do decurso do respectivo prazo e em consequência das negociações concluídas e aprovadas em processo especial de revitalização do ordenador, sendo que sempre constituiria abuso de direito do A. vir reclamar a totalidade do valor garantido, quando naquele processo especial de revitalização da ordenante reclamou desta créditos apenas no valor de € 112.816,00.

Conclui pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos formulados.


3. Foi proferido despacho saneador.

Procedeu-se ao julgamento e veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o R. do pedido.

Inconformado, o Autor AA - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 9 de Março de 2017, revogou a sentença e condenou o Réu a pagar ao A. a quantia de 853.664,90 Euros, acrescida de juros de mora, desde 02.10.2014, até integral pagamento.


4. Inconformado, o Réu, Banco EE, S.A., recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1ª. O presente recurso de revista é interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que, dando guarida a um tema novo introduzido pela Recorrida na 2a Instância, revogou a Sentença da 1ª Instância e condenou o Recorrente (anteriormente absolvido) a pagar à Recorrida mais de € 850.000,00.

2ª. O tema novo introduzido pela Recorrida em sede de 2a Instância consistiu na invocação da nulidade das disposições do Plano homologado no PER da Ordenante (de que o Recorrente era garante), face ao art. 217°.4 do CIRE.

Sobre esta questão, fizeram-se três reflexões,

3ª. Na petição inicial e de acordo com os documentos que a acompanharam, bem como ao longo de todo a tramitação processual durante a 1ª Instância, a Recorrida jamais pôs em causa a validade, eficácia e aplicação das disposições do Plano homologado no referido PER.

4ª. Por isso, a Recorrida aceitou sempre (em sede de 1ª Instância) que o prazo de validade das Garantias que se apreciam nos autos tivesse sido diminuído de cinco anos para dois anos e meio (nisso consistiu uma das disposições do Plano).

5ª. A única questão em que as partes estavam em desacordo dizia respeito ao momento em que esse prazo de dois anos e meio se iniciava: -a data da recepção provisória da obra (como estava contratualmente previsto e como o Recorrente sempre defendeu), ou a data do trânsito em julgado da decisão que homologou o Plano da Ordenante (como defendeu a Recorrida).

6ª- Nas alegações de recurso para a Relação, os factos (e, de entre eles, a causa de pedir) e o enquadramento jurídico mudaram completamente: - Afinal, a disposição do Plano de Recuperação da Ordenante que incluía as garantias bancárias em causa era nula, por força do art. 217°.4 do CIRE, assunto que jamais fôra abordado durante a 1ª Instância.

7ª. Ora, os Tribunais da Relação são, por regra, tribunais de recurso, não podendo conhecer de questões novas, que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

8ª. Não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida.

9ª. Nesta conformidade, entende o Recorrente que o Tribunal da Relação do Porto violou os arts. 3°. 3, 147°. 1, 552°. l. d) e e), 609°.1 e o art. 615°. l. d) (parte final) e e), todos do CPC, nulidades estas (as do último comando normativo citado) que, assim, se arguiram nos termos do art. 674° . l. c) do CPC.

10ª. Na verdade, parece inadmissível que, na petição inicial, a Recorrida tenha sustentado uma tese fáctica e jurídica baseada na válida eficácia das disposições do Plano em relação às garantias e, no recurso para a Relação, a então Recorrente (que nem parecia a Autora), tenha sustentado uma tese fáctica e jurídica baseada na nulidade dessas mesmas disposições desse mesmo Plano.

12ª. Mesmo admitindo-se que o Tribunal da Relação do Porto podia conhecer do tema, por o mesmo ser essencialmente jurídico, tal tribunal não atendeu aos factos em que as partes estavam de acordo, os quais se deram como provados, que permitiam concluir, com segurança, que a Recorrida dera o seu assentimento manifesto às disposições do Plano, concretamente, dera o seu assentimento à diminuição para metade do prazo de validade das garantias.

13ª. Ao dar o seu assentimento às disposições do Plano, as mesmas são-lhe aplicáveis, não podendo a Recorrida suscitar a questão que suscitou perante o Tribunal da Relação do Porto.

14ª. O Tribunal da Relação do Porto violou o princípio do dispositivo, o princípio do pedido e o princípio da substanciação.

15ª. Ao pretender, no recurso de apelação, a declaração de nulidade das disposições do Plano, quando, na petição inicial, confirmara a validade das mesmas, tal implica que a Recorrida se situou fora dos limites que ela mesma traçou e, consequentemente, que as leis processuais lhe impunham.

16ª. Subsidiariamente (sobre este tema), o Recorrente defendeu que as medidas aprovadas no PER da Ordenante não afectaram, nem a existência jurídica, nem o montante dos direitos de crédito da Recorrida.

17ª. Da matéria de facto dada como provada, resulta qua a singela alteração que se introduziu na dimensão jurídica das garantias foi de natureza temporal ou cronológica: - a duração das suas validades.

18ª. E tal condicionante não é intolerável, nem excessiva, justificando-se em prol da revitalização de todos os devedores com os Planos de Recuperação e tendo em consideração os objectivos que estiveram na origem da legislação aprovada a propósito do PER.

19ª. Assim se podendo concluir que o plano aprovado não colide com o art.º. 217°. 4 do CIRE.

 20ª. Na contestação, o Recorrente alegou (fundamentadamente, mas de forma supletiva) que o accionamento judicial das garantias correspondia a um autêntico abuso de direito e a uma violação dos princípios da boa-fé e da ordem pública.

21ª. Na verdade, no PER da Ordenante, a Recorrida reclamou o crédito de € 112.816,00 (o que resulta da matéria de facto dada como provada), mas, na presente acção, a mesma Recorrida somou os LIMITES MÁXIMOS POSSÍVEIS das três garantias e pediu a condenação do Recorrente no pagamento dessa soma aritmética, no valor de € 853.664,90.

22ª. Ora, o recorrente obrigou-se a pagar ao Beneficiário, todas as quantias devidas pelo Ordenante, ATÉ aos limites contantes dessas mesmas garantias: ATÉ € 414.228,14 nas 1ª e 3ª garantias e ATÉ € 25.208,61 na 2ª garantia. Não se obrigou a pagar essas quantias. Obrigou-se a pagar as quantias que fossem devidas até esses montantes, o que é substancialmente diferente.

23ª. Na reclamação de crédito no PER da Ordenante (matéria que está dada como provada nos presentes autos), a Recorrida alegou que após a conclusão da obra verificaram-se diversas anomalias (conforme consta de um relatório), que a reparação destas anomalias foi assumida pela Devedora, que esta não procedeu às reparações necessárias, pelo que a Recorrida viu-se forçada a recorrer a empreiteiro externo para proceder à reparação dos defeitos detectados e que tal reparação importava no montante global de € 112.816,00, o qual se discriminou.

25ª. Por isso, é irrelevante (e corresponde a um subtil aproveitamento) invocar que, no art.º. 13° dessa reclamação, se referiu que o orçamento consubstanciava uma mera previsão do custo das reparações, quando, antes, a Recorrida dissera que já se vira forçada a recorrer a empreiteiro externo para proceder às reparações dos defeitos detectados.

26ª. Com esse subtil argumento do art.º 13° da Reclamação, a Recorrida pretende que o seu crédito cresça de € 112.816,00 para € 853.664,90, o que representa um aumento absurdo de mais de 700%.

 27º. O art. 13ª da Reclamação foi apenas incluído nessa peça para justificar a inexistência de qualquer recibo de pagamento desses € 112.816,00.

27ª. Portanto, as quantias em dívida à Recorrida (cujo pagamento foi garantido) são as que ela reclamou em sede judicial própria, ou seja, no PER do Ordenante, no dito valor de € 112.816,00.

28ª. Confrontados os valores, não há dúvidas: - Estamos perante um autêntico caso de abuso de direito.

29ª.- A autonomia da garantia (mesmo esta on first demand) não é absoluta, mas limitada, pois que os fundamentos da recusa podem ter por base a sua relação com o beneficiário.

30ª. As excepções que emanam da relação de garantia autónoma propriamente dita podem ser usadas pelo garante contra o beneficiário, podendo aquele recusar o cumprimento da prestação quando tal cumprimento represente uma violação da ordem pública e (ou) um abuso evidente e isso não colide com a circunstância de, nesta garantia autónoma, o garante não poder, por regra, opor ao garantido (beneficiário) os meios de defesa ou excepções decorrentes das relações credor-devedor no contrato-base (a chamada "relação principal").

31ª. Pretender receber (ao desejar accionar, sem mais, as Garantias pelos seus montantes máximos possíveis) € 853.664,90 equivale a um absoluto abuso de direito e a uma pretensão manifestamente contrária à ordem pública e aos bons costumes, já para não dizer a um verdadeiro enriquecimento sem causa.

32ª. Apesar de a garantia à primeira solicitação ser uma figura contratual que proporciona vantagens, atentas as suas características de rapidez e facilidade de execução, tal figura também gera desvantagens, na medida em que é propícia a atitudes abusivas das partes interessadas.

33ª. A garantia, apesar de ser on first demand, envolve o risco de ser solicitada injustamente ou de forma abusiva e tal não deve ser permitido pelos tribunais, na medida em que o beneficiário não é titular de um poder arbitrário e ilimitado, não podendo o garante ficar sempre e necessariamente nas mãos do credor, sem qualquer protecção contra condutas impróprias.

34ª. Da prova documentalmente produzida nos autos extrai-se, com segurança, liquidez e total inequivocidade, que o accionamento das garantias correspondeu a uma pretensão manifestamente contrária à ordem pública e aos bons costumes, porque ao actuar como actuou (pedindo muito mais do que era devido), a Recorrida excedeu os limites impostos pela boa-fé, sendo ainda certo que a sua conduta não esteve de acordo com os padrões da diligência e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.

35ª. Quanto à questão do abuso de direito, o Tribunal da Relação do Porto, depois de reproduzir em três longas páginas parte da Sentença de 1ª. Instância, a propósito das excepções permitidas ao cumprimento das Garantias, limitou-se a sentenciar: -Nenhuma destas excepções sucedendo in casu, resta ao Apelado cumprir face à natureza das obrigações assumidas.

36ª. O Tribunal da Relação do Porto sentenciou sem fundamentar e decidiu sem explicar. Teve uma única ideia, um único pensamento. As excepções não se verificam no caso em apreço e, por isso, revogo e condeno.

37ª. O Tribunal da Relação do Porto disse que não havia abuso de direito por parte da Recorrida pelo seguinte: - Porque não.

38ª. Ao não se ter pronunciado acerca de uma questão sobre a qual se devia ter pronunciado, ocorreu a nulidade que se invocou, nos termos dos arts. 615°. 1. d) (primeira parte) e 674°. 1. c) do CPC.

39ª. E, face ao exposto, o Venerando Tribunal de que se recorre violou o art. 334° do CC, por erro de interpretação ou de aplicação da norma.

Conclui pedindo que o presente recurso obtenha provimento e, por via disso, seja proferido acórdão que revogue a decisão do Tribunal da Relação do Porto, julgando a acção improcedente e absolvendo o recorrente do pedido.

Subsidiariamente, deve igualmente o presente recurso obter provimento e, por força da verificação do abuso de direito, deve ser proferido acórdão que revogue a decisão do Tribunal da Relação do Porto, julgando a acção apenas parcialmente procedente, condenando-se a recorrente a pagar, apenas a quantia de 112.816,00 Euros, absolvendo-se a mesma do restante.

 

5. Contra-alegou o Autor, formulando conclusões no sentido de ser mantida integralmente a decisão recorrida.


O Tribunal da Relação admitiu o recurso (fls. 374) sustentando não ter sido cometida qualquer nulidade.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


Foram dados como provados os seguintes factos:


1 - O “AA - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado”, anteriormente denominado “BB – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado”, é um fundo de investimento imobiliário;

2 - A “CC – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A.”, anteriormente denominada “DD - … Fundos de Investimento Imobiliário, S.A.”, sociedade gestora de fundos de investimento imobiliário, encontra-se incumbida da sua gestão, representando-o;

3 - Em 20 de Março de 2007 o Banco EE emitiu a favor do Autor a Garantia Bancária n.º 1…-02-1…9, junta a fls. 14 e que se dá por reproduzida (doc. nº 1 da petição inicial);

4 - A referida garantia autónoma garantia responsabilidades até ao montante de € 414.228,14 (quatrocentos e catorze mil duzentos e vinte e oito euros e catorze cêntimos);

5 - A referida garantia autónoma apresentava-se válida até à recepção definitiva da empreitada a realizar pela sociedade FF - sociedade de Construções do C …., S.A.., “nos termos do contrato de empreitada”;

6 - Em 27 de Outubro de 2008 o Banco réu emitiu nova garantia autónoma a favor do autor com o número 1…-02-1…03 conforme documento junto a fls. 15 que se dá por reproduzido (doc. nº 2 junto com a petição inicial);

7 - A garantia bancária em causa garantia responsabilidades até ao montante de € 25.208,62 (vinte e cinco mil duzentos e oito euros e sessenta e dois cêntimos);

8 - Essa garantia era válida até à recepção definitiva da empreitada a realizar pela sociedade FF - sociedade de Construções do C …, S.A.;

9 - Foi ainda emitida em 10 de Outubro de 2008, pelo Banco réu a favor do autor a garantia autónoma com o número 1…-02-1…15, junta a fls. 16 e que se dá por reproduzida (doc. nº 3 junto com a petição inicial);

10 - A garantia bancária em causa garantia responsabilidades até ao montante de € 414.228,14 (quatrocentos e catorze mil duzentos e vinte e oito euros e catorze cêntimos);

11 - Essa garantia era igualmente válida até à recepção definitiva da empreitada a realizar pela sociedade FF - sociedade de Construções do C …, S.A.;

12 - Com a emissão das supra identificadas garantias bancárias, o Réu, obrigou-se a pagar ao Autor, beneficiário das mesmas, mediante simples interpelação escrita e sem interferência do ordenador (a sociedade “FF - sociedade de Construções do C …, S.A..”) toda e qualquer quantia devida por este, não tendo que apreciar a justiça ou direito da pretensão do Autor e não podendo recusar o pagamento sob a alegação que não se encontrava demonstrado o incumprimento do ordenado (docs. citados);

13 - Por carta datada de 16 de Setembro de 2014 (doc. de fls. 17 e 18, doc. nº 4 da petição inicial), o Banco Réu comunicou que no seguimento de comunicação do mandante - a sociedade FF - sociedade de Construções do C …, S.A.. - pretendia proceder ao cancelamento das supra identificadas garantias autónomas, por terem expirado no dia 24.08.2012, em consequência de a recepção provisória da obra ter ocorrido em 24.02.2010 e o prazo de garantia de cinco anos ter sido reduzido para metade com a homologação do plano do Processo Especial de Revitalização da ordenante, no processo nº 2879/12.7TBBRG;

14 - Face à referida comunicação, o Autor por carta datada de 2 de Outubro de 2014 (doc. de fls. 19 a 21 que se dá por reproduzido, doc. nº 5 da petição inicial), veio opor-se à pretensão do mandante e do Réu de cancelarem as garantias bancárias;

15 - Nessa mesma comunicação de 2 de Outubro, o autor interpelou o Banco réu expressamente para proceder ao pagamento das garantias autónomas prestadas e acima referidas, no “montante garantido de € 853.664,90 euros;

16 - O Banco réu, contudo, recusou o cumprimento das garantias que havia prestado por comunicação dirigida ao autor por carta datada de 28 de Outubro de 2014, com fundamento em que tais garantias “caducaram em 24 de Agosto de 2012 (doc. de fls. 22 que se dá por reproduzido, doc. nº 6 junto com a petição inicial);

17 - As garantias acima referidas visaram todas elas garantir as obrigações assumidas pelo Ordenador perante o Beneficiário, nos termos do contrato de empreitada celebrado entre a DD – … Fundos de Investimento Imobiliário, S. A. e a FF – Sociedade Construções do C…, S. A., em 20.12.2006 (doc. nº 1 junto com a contestação e que se dá por reproduzido);

18 - Nos termos da cláusula 13.1 desse contrato de empreitada, o prazo de garantia começaria “a contar ao dia seguinte à recepção provisória da obra e é de cinco anos”;

19 - A recepção provisória da obra ocorreu em 24.02.2010 (doc. de fls. 71 que se dá por reproduzido, doc. nº 2 junto com a contestação);

20 - O Ordenante FF, S. A. solicitou ao Banco réu o cancelamento das Garantias em causa nestes autos, com fundamento no que se decidira no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) do Ordenante, que correu termos no Tribunal Judicial de Braga, 1º Juízo Cível, sob o n.º 2879/12.7TBBRG, homologado por decisão transitada em julgado;

21 - O plano homologado no referido Processo Especial de Revitalização é o que consta de fls. 72 a 115, que se dá por reproduzido (doc. nº 3 junto com a contestação);

22 - Do Ponto B.3) das medidas a adoptar, sob a epígrafe de “Créditos referentes às garantias prestadas nos contratos de empreitada de obras”, consta a “Redução do prazo de manutenção das garantias prestadas para metade (50%)”;

23 - Do mesmo plano consta que “são derrogadas todas as disposições constantes de contratos de empreitada ou subempreitada que prevêem prazos de garantias superiores a 2 anos e meio (Ponto IV);

24 - No Processo Especial de Revitalização acima referido, a DD, SA reclamou o crédito de 112.816,00 euros sobre a FF, SA (doc. de fls. 116 a 120 e certidão de fls. 185 a 188, que se dão por reproduzidos).

 

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pelo Recorrente as questões concretas de que cumpre conhecer são as seguintes:


1ª- O Tribunal da Relação pronunciou-se indevidamente sobre uma questão nova, sendo o Acórdão nulo, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) (parte final) e e) do CPC?

2ª- O Acórdão recorrido é igualmente nulo por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) (primeira parte) do CPC?

3ª- O accionamento das garantias correspondeu a um autêntico abuso de direito?

4ª- As garantias prestadas pelo recorrido são afectadas pelo plano aprovado no PER do ordenante?


Vejamos

B) Analisemos a primeira questão arguida pela Recorrente: O Tribunal da Relação pronunciou-se indevidamente sobre uma questão nova, sendo o Acórdão nulo, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) (parte final) e e) do CPC?


Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença uma sentença é nula quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Estas são as causas de nulidade de sentença.

Tendo presentes estes princípios jurídicos, sumariamente enunciados, vejamos se o Tribunal se pronunciou indevidamente sobre uma questão nova e se condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

A resposta terá necessariamente que ser negativa.

Refira-se que é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades», Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132.

No caso concreto, entendemos, sem margem para dúvidas que a sentença recorrida não é nula (como se afirma no despacho que se pronunciou sobre as nulidades invocadas “face ao que se disse no acórdão recorrido afigura-se que não foi cometida qualquer nulidade”), nos termos do artigo 615 n.º al. d) e e) do CPC, como afirma o Recorrente.

O Recorrente defende que o Acórdão é nulo pois se pronunciou indevidamente sobre uma questão absolutamente nova, apenas apresentada em sede de recurso.

No entender do Recorrente as alegações do ora Recorrido no recurso para a Relação constituíram uma segunda petição inicial com uma causa de pedir diferente e um pedido igualmente diferente.

Não lhe assiste razão.

Na petição inicial o ora Recorrido alegou que as garantias bancárias prestadas pelo ora Recorrente a seu favor, a requerimento de FF - sociedade de Construções do C …, S.A.., que se destinavam a perdurar até à recepção definitiva da empreitada a realizar pela ordenante, a qual ainda não acontecera na altura em que o A. interpelou o R. para o pagamento das mesmas, em 02.10.2014, pelo que o R. não tinha fundamento para recusar o pagamento, como fez por carta datada de 28.10.2014.

Alegou ainda que por carta de 16.09.2014, o ora Recorrente comunicou ao Recorrido que a ordenante solicitara o cancelamento das garantias, com fundamento no ponto B.3 do processo especial de recuperação daquela sociedade, homologado por acórdão do TG de 24.04.2014, transitado em 22.05.2014, no qual ficou reduzido para metade o prazo de manutenção das garantias prestadas nos contratos de empreitada de obras; e que a ordenante alegava que o contrato relacionado com as mencionadas garantias fora objecto de recepção provisória em 24.02.2010 e que tendo em consideração o prazo de garantia de 5 anos e o aludido ponto B.3 do PER, a validade da garantia tinha expirado em 24.08.2012.

A esta carta respondeu o ora Recorrido mediante a carta datada de 02.10.2014, nela dizendo que o entendimento da ordenante quanto ao ponto B.3 do PER não fazia sentido, porque o processo de revitalização começara em 07.05.2013 e não podia extinguir garantias bancárias retroactivamente, para 24.08.2012. Defendeu, pois, que o sentido da redução dos prazos das garantias bancárias fixado no plano é que o período que falta decorrer, após trânsito da homologação, é reduzido a metade, reportando-se à redução do prazo de manutenção e não do prazo de validade, caso contrário, o plano de revitalização violaria o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 297.º do CC, segundo o qual o novo prazo só se conta a partir do trânsito em julgado da homologação do plano. Por isso, as garantias, originariamente válidas até 24.02.2015, portanto ainda por mais 9 meses desde o trânsito da homologação do plano (22.05.2014), viram a sua validade reduzida a mais 4 meses e meio a partir dessa data, até Outubro de 2014. Mais afirmou que a ordenante se recusava a reparar os defeitos da obra, apesar de inúmeras vezes interpelada para o efeito. Pediu o pagamento total do capital garantido.

O ora Recorrente respondeu, mantendo a mesma argumentação e recusando o pagamento das garantias.

Ora, como bem se salienta no Acórdão recorrido a posição do Autor, apelante para a relação e ora recorrido não vedaria ao Autor/ora recorrido «uma argumentação inovadora, qual seja a de que o plano não abrangeu as garantias bancárias».

E prossegue aquele Acórdão «Em rigor, o A. apenas invocou partes da carta que enviou ao R., como sejam a oposição à pretensão deste de cancelamento das garantias bancárias (art. 16.º), a interpelação para pagamento das garantias autónomas prestadas (art. 17.º), a vigência das garantias (art. 18.º) e a recusa do R. em pagar (art. 19.º). Assim, se admitiu perante o R., nessa carta, que a questão das garantias bancárias havia sido objecto de revisão no processo de revitalização, embora sem concordar com a posição do R. sobre o tema, o certo é que não integrou com isso a causa de pedir, pois retirou dessa carta o que se lhe afigurou pertinente para a acção».

O Acórdão da Relação não se pronunciou sobre uma questão nova, pois que não houve nem alteração do pedido nem da causa de pedir.

O pedido do ora recorrido feito na petição inicial era o da condenação do ora Recorrente no pagamento do montante das garantias bancárias e a causa de pedir tinha como suporte a interpelação feita ao Recorrente para o pagamento das garantias, a validade das garantias aquando da interpelação para o seu pagamento e a recusa do recorrente em pagar essas garantias.

No recurso para a Relação não se alterou nem aquele pedido nem a causa de pedir, pelo que tal como decidiu a Relação entendemos que podia em sede de recurso para a Relação ser defendida a inaplicabilidade do acordo do PER às garantias, pois o que estava alegado tinha directamente na sua base a validade das mesmas quando o Autor interpelou o R. para o pagamento do seu montante.

O Tribunal da Relação não conheceu de matéria nova que não tivesse sido debatida na 1.ª instância, pelo que não se vislumbra que tenha cometido a invocada nulidade do artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC, pois toda a matéria de que tomou conhecimento podia ser apreciada pela Relação (art. 627.º/1 do CPC).

Não se verifica a imputada nulidade de sentença com fundamento na invocada al. d) do n.º 1 do artigo 615 do CPC.

Como também não se verifica a nulidade de sentença com fundamento no n.º 1 do artigo 615, al. e) do CPC.

Efectivamente nem se compreende a invocação desta nulidade uma vez que a condenação do Réu se situa dentro dos valores peticionados pelo Autor.

Efectivamente o Autor pedia a condenação do Réu no pagamento da quantia de quantia de 853.664,90 Euros, acrescida de juros de mora até integral pagamento, os quais ascendem, na data da instauração da acção, a € 35.993,10.

A condenação feita pela Relação respeitou inteiramente aquele pedido, uma vez que condenou o Réu a pagar ao A. a quantia de 853.664,90 Euros, acrescida de juros de mora, desde 02.10.2014, até integral pagamento.

A condenação do Réu não foi nem em quantidade superior nem em objecto diverso do pedido.

Face à clareza da situação entendemos ser manifesto que não se verifica a invocada nulidade da alínea e) do n.º 1 do artigo 615 do CPC.

Em suma, o Tribunal da Relação não se pronunciou indevidamente sobre uma questão nova, pelo que o Acórdão não é nulo, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) (parte final) e e) do CPC, improcedendo, assim, a primeira questão colocada pelo Recorrente.


C) O Recorrente arguiu a nulidade do Acórdão recorrido, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) (primeira parte) do CPC.


Entende o Recorrente que o Acórdão em análise não «fundamentou», ou seja não se pronunciou, sobre a questão de se saber se havia ou não abuso de direito por parte do Recorrido.

O Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida pois esta disse que não havia abuso de direito por parte do Recorrido – «porque não».

Entendemos ser inequívoca a falta de razão do Recorrente.

Desde logo porque, como afirmam, o Acórdão pronunciou-se sobre a questão concreta do abuso do direito por parte do Recorrido para concluir que tal excepção não se verificava.

Sem qualquer razão o fazem.

E fê-lo de forma inequívoca, clara ainda que singela.

Como já se referiu nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Este normativo traduz a consequência prática da violação do artigo 608.º n.º 2 do CPC, o qual estipula que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

Porém, perante esta norma torna-se evidente que o dever do Juiz em não conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes cede quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Dito de outro modo, a vinculação do tribunal às concretas questões ou problemas suscitados pelas partes é compatível com a sua liberdade de qualificação jurídica (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil).

Por isso, o tribunal pode, deve se for o caso, sem violação da sua vinculação à problemática invocada pelas partes, qualificar juridicamente de forma diferente essas questões.

No caso concreto a Relação pronunciou-se sobre a questão em discussão a partir da página 23 até à página 26, citando a sentença da 1ª instância e fazendo obviamente seus os argumentos teóricos dessa mesma decisão, os quais nos dispensamos de voltar a transcrever.

Apenas recordamos o último parágrafo no qual claramente se conclui «Em síntese: de acordo com a doutrina mais autorizada e a jurisprudência uniforme dos nossos tribunais superiores, a prova pronta e líquida deve revestir sempre a forma de documentos, mas documentos que permitam, pela sua indagação e interpretação, a percepção evidente, imediata e óbvia da fraude ou do abuso, devendo estes ser clamorosos ou manifestos».

E, perante aquela síntese a Relação concluiu que nenhuma das excepções se verificava no caso presente pelo que ao ora Recorrente nada mais restaria senão cumprir face à natureza das obrigações assumidas.

A Relação pronunciou-se sobre a questão concreta do abuso de direito e fundamentou a sua posição.

O Acórdão recorrido abordou expressamente a questão do «abuso de direito por parte do Recorrido», citando para o efeito a sentença da 1ª instância, para concluir que no caso concreto o mesmo se verificava.

Importa recordar que as sentenças devem dirimir conflitos, não são tratados jurídicos, nem devem ter excessos de academismos, sob pena de inutilidade.

Ora o Acórdão em causa, após um relatório de 10 páginas enuncia em 4 páginas os factos provados para, de seguida, em 5 páginas fazer uma incursão pelo processado e finalmente explanar o direito aplicável aos factos, ou seja para efectuar a subsunção jurídica em 7 páginas.

Importa recordar que apenas existe nulidade de sentença por não especificar «os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão», quando essa fundamentação não existe de todo, quando se verifica a falta absoluta de motivação e já não quando a mesma existe, ainda que seja escassa, deficiente ou mesmo pobre (o que não é o caso).

Torna-se evidente pela simples leitura que a sentença recorrida não é nula nos termos apontados.

Neste contexto, no acórdão recorrido, conhecendo-se integralmente do objeto da apelação, não se omitiu qualquer dever de pronúncia nem se deixou de fundamentar a decisão, e, por isso, não padece da nulidade prevista na alínea d) (primeira parte) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Nestes termos, improcede a arguição de nulidade do acórdão recorrido.


D) Importa decidir a questão do abuso do direito: O accionamento das garantias correspondeu a um autêntico abuso de direito?


O acórdão recorrido, divergindo da sentença, condenou o Recorrido ao pagamento da quantia de € 853 664,90, acrescida dos juros de mora legais, desde 02 de outubro de 2014 até integral pagamento.

O Recorrente insurge-se contra essa condenação, invocando o abuso do direito, pois que o Recorrido apenas teria reclamado no PER do ordenante o valor de € 112.816,00 e ao pretender agora receber € 853 664,90 equivale a um absoluto abuso de direito e a uma pretensão manifestamente contrária à ordem pública e aos bons costumes, já para não dizer a um verdadeiro enriquecimento sem causa.

Por sua vez, o Recorrido acompanha a fundamentação e a decisão do acórdão recorrido.

Vejamos

Nos termos do artigo 334 do Código Civil “ é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Para que se verifique uma situação de abuso de direito é necessário que se desrespeitem os limites éticos e axiológicos impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso do direito pressupõe um exercício de tal modo excessivo por parte do seu titular que os direitos de terceiro se vêm reduzidos para além do que seria razoável, (sobre a interpretação do artigo 334 veja-se o Ac. STJ, de 10.12.91, BMJ, 412-460, o qual mantém plena actualidade) ou, como se afirmava no Ac. STJ, de 8/11/84, BMJ, 341º/418 verifica-se uma situação de abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.

Da redacção deste preceito retira-se que para haver abuso do direito não é suficiente que o titular do direito exceda ou abuse (d) os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para que ocorra abuso do direito torna-se necessário algo mais. É preciso que aqueles limites sejam manifestamente excedidos, ou seja que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos.

Se o instituto do Abuso do Direito tem o seu campo de aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça, o certo é que o mesmo não pode ser usado de forma indiscriminada abrangendo situações em que apesar do exercício de um direito ser excessivo o mesmo não possa ser classificado como manifestamente excessivo.

Podemos afirmar que o instituto do abuso do direito é um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça.

Muitas têm sido as abordagens ao conceito e à noção de “Abuso do Direito”.

J. M. Coutinho define o Abuso do Direito da seguinte forma: “há abuso do direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”, cfr. Do Abuso de Direito, 1983, pág. 42 e ss.

Relativamente à figura do Abuso do Direito, Cunha e Sá considera que “abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno”, cfr. O Abuso do Direito, pág. 456.

Segundo A. Varela para haver Abuso do Direito «é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.

Com a fórmula manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334 especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos quem, como o poder paternal, o poder do tutor (....), são muito marcados pela função social a que se encontram adstritos.

A fórmula manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos em que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum propium», Das Obrigações em Geral, 9ª ed. 1996, vol. I, pag. 563/564.

Vaz Serra, RLJ, 111-296, refere que há abuso do direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar. Refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do artigo 334 do CC.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela «exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações», CC Anotado e Comentado, vol. I, 2ª ed. pag. 277.

Vaz Serra, entende que é necessário que o excesso cometido seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85, pag. 253.

Face a estes princípios e tendo em consideração a factualidade provada, melhor enunciada supra, será que estamos perante uma situação de abuso do direito por parte do recorrido?

A resposta apenas pode negativa.

O recorrido com a presente acção pretende o pagamento dos montantes relativos às garantias bancárias emitidas pelo Recorrente a seu favor, no total de 853.664,90 Euros.

Tais garantias eram válidas até à recepção definitiva da empreitada a realizar pela sociedade FF - sociedade de Construções do C …., S.A..

Com a emissão das supra identificadas garantias bancárias, o Réu, obrigou-se a pagar ao Autor, beneficiário das mesmas, mediante simples interpelação escrita e sem interferência do ordenador (a sociedade “FF - sociedade de Construções do C …., S.A..”) toda e qualquer quantia devida por este, não tendo que apreciar a justiça ou direito da pretensão do Autor e não podendo recusar o pagamento sob a alegação que não se encontrava demonstrado o incumprimento do ordenado.

O Recorrente comunicou ao Recorrido que pretendia proceder ao cancelamento das supra identificadas garantias autónomas, por terem expirado no dia 24.08.2012, em consequência de a recepção provisória da obra ter ocorrido em 24.02.2010 e o prazo de garantia de cinco anos ter sido reduzido para metade com a homologação do plano do Processo Especial de Revitalização da ordenante, no processo nº 2879/12.7TBBRG, tendo o Recorrido, por carta datada de 2 de Outubro de 2014 manifestado a sua oposição à pretensão do mandante e do Recorrente de cancelarem as garantias bancárias, interpelando nessa mesma comunicação o recorrente para proceder ao pagamento das garantias autónomas prestadas no “montante garantido de 853.664,90 euros, o que o recorrente recusou.

Mais está provado que o ordenante FF, S. A. solicitou ao Banco réu o cancelamento das Garantias em causa nestes autos, com fundamento no que se decidira no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) do Ordenante, homologado por decisão transitada em julgado.

Nesse plano consta a redução do prazo de manutenção das garantias prestadas para metade (50%) nesse Processo Especial de Revitalização, o recorrido reclamou o crédito de 112.816,00 euros sobre a FF, SA.

O recorrente entende perante estes factos que o crédito do recorrido é apenas de 112.816,00 euros e não de 853.664,90 euros.

Ora, desde logo na própria reclamação de créditos feita pelo recorrido naquele PER, no seu artigo 13 fica ressalvado que o orçamento do artigo 12 (que reflecte os 112.816,00 euros peticionados) consubstancia «uma mera previsão do custo das reparações a efectuar».

Ou seja, o crédito do recorrido não era apenas de 112.816,00 euros pois podia ser superior o custo das reparações a efectuar, pelo que não se vislumbra o invocado abuso do direito pelo facto de o recorrido pretender – agora – accionar as garantias em questão.

O recorrido actua no exercício de um direito e não se mostra que o exercício desse direito exceda de alguma forma os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse mesmo direito, ou seja não se vislumbra que o recorrido esteja a abusar de qualquer direito, pois que esta sua conduta não se mostra ofensivo da ideia de Justiça que qualquer cidadão tem.

O Recorrido não excede, e muito menos excessivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito.

Podemos afirmar que o accionamento das garantias por parte do recorrido não constitui qualquer abuso do direito nem constitui uma violação dos princípios da boa fé e da ordem pública.

Não há, pois, abuso do direito por parte do Recorrido.

O Recorrente afirma ainda que se estaria perante um verdadeiro enriquecimento sem causa.

Sem razão o faz.

Como se sabe, o instituto do enriquecimento sem causa está consagrado no artigo 473º, do Código Civil, onde se definem os requisitos da obrigação de restituir:

- a existência de um enriquecimento;

- que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;

- que seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;

- e que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

A aplicação do instituto do enriquecimento sem causa é sempre subsidiária face ao estabelecido no artigo 474º, do citado diploma legal (cfr. A. Varela, Das Obrigações em geral, 9ª ed., I, p. 495 e segs., e M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 423 e segs., Diogo Leite de Campos, A Subsidiaridade da Obrigação de Restituir no Enriquecimento, p. 325, e Ac. do STJ, de 14/05/1996, in CJ/STJ, 1996, II, 70).

O enriquecimento sem causa, isto é, o enriquecimento injusto ou à custa alheia, tem imanente a ideia e a finalidade de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o para o património do empobrecido.

É ónus do recorrente alegar e provar os requisitos do enriquecimento sem causa, nomeadamente o nexo causal entre o enriquecimento do demandado e o empobrecimento do demandante.

O recorrente alegou na sua contestação o abuso do direito do Recorrido mas não alegou nem provou os requisitos do enriquecimento sem causa.

Aliás, a causa para a transferência patrimonial da esfera do recorrido está devidamente provada, ou seja o recorrido peticiona o pagamento de determinada quantia ao recorrente com base nas garantias por este prestadas.

Há uma causa para a transferência patrimonial da esfera do recorrente para a do recorrido.

Deste modo, entendemos ser manifesto que não estamos perante uma situação de enriquecimento, pelo que tal instituto não pode ser atendido quanto à declaração dos seus efeitos jurídicos.

Não há, pois, enriquecimento sem causa, por parte do Recorrido.


E) Resta decidir a questão de saber se as garantias prestadas pelo recorrido são afectadas pelo plano aprovado no PER do ordenante?


Dispõe o n.º 4 do artigo 217.º do CIRE, relativo aos efeitos gerais do plano de insolvência, que «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos».

Deste preceito resulta claramente, tal como se refere no acórdão recorrido, que «o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário».

Significa isto que o recorrido mantinha contra o recorrente todos os seus direitos, (veja-se a este propósito a doutrina citada no acórdão recorrido e a jurisprudência citada nas contra-alegações, que nos dispensamos de repetir), pelo que derivando os seus direitos das garantias bancárias on first demand – que estavam em vigor quando o recorrido pediu o seu pagamento – não podia o recorrente recusar o seu pagamento.

Podemos afirmar que as garantias bancárias prestadas a favor de um credor pelo devedor sujeito a um PER se mantêm válidas e incólumes com a aprovação do plano de insolvência.

O plano de insolvência em causa não incluiu as garantias prestadas por terceiros, no caso as garantias bancárias prestadas pelo Recorrente, as quais eram, como já se disse, plenamente válidas quando foram accionadas pelo recorrido.

Em suma, entendemos que se impõe a improcedência total das alegações do recorrente, pelo que se nega a revista.

 

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.  


Lisboa, 19 de Outubro de 2017


José Sousa Lameira (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova