Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
414/12.3TAMCN.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 01/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO, AA; JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE O MESMO RECURSO, NO QUE DIZ RESPEITO À PENA ÚNICA.
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME / CONCURSO DE CRIMES E CRIME CONTINUADO - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Ana Maria Barata de Brito, “Notas da teoria geral da infracção na prática judiciária da perseguição dos crimes sexuais com vítimas menores de idade”, Revista do CEJ, n.º 15, 293 a 316.
- Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 4.ª ed., 1992, Verbo, p. 269, II, 1989, Verbo, p. 225.
- Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1949, Atlântida, 309.
- Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1996, Almedina.
- Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, tomo I, 2.ª edição, 2007, Coimbra, 39.
- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, 1998, Verbo, 32.
- Leal-Henriques e Simas Santos , Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, 2002, Rei dos Livros, 384 e 385.
- Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, Universidade Católica Portuguesa, 617 e ss..
- Maia Gonçalves, “Código Penal” Anotado e Comentado, 15.ª edição, 277.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º 1, 40.º, 70.º, 71.º, 77.º, N.º 2, 171.º, N.ºS 1 E 2, 177.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 410.º, N.º 1, 412.º, N.º 1, 432.º, N.º1, AL. C), 434.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11-01-2012, PROCESSO N.º 1101/05.4PIPRT.S1, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CRIMINAL/CRIMINAL2012.PDF. OS DEMAIS ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE SE INDICAREM SEM OUTRA MENÇÃO ENCONTRAM-SE DISPONÍVEIS NAS BASES JURÍDICO-DOCUMENTAIS DO IGFEJ, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 25-11-2015, PROCESSO N.º 55/13.3PLSNT.L1.S1
-DE 21-01-2015, PROCESSO N.º 12/09.9GDODM.S1
-DE 26 DE FEVEREIRO DE 2014, PROCESSO N.º 29/03.3GACNF.S1 – 3.ª SECÇÃO
-DE 13-04-2013, PROCESSO N.º 700/01.8JFLSB.C1.S1
-DE 7-10-2009, PROCESSO N.º 611/07.3GFLLE.S1
-DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 41/10.0GCAZ.P2.S1
-DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 862/11.6TDLSB.P1.S1, E DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO
-DE 23-01-2008, PROCESSO N.º 4830/07
-DE 12-07-2012, PROCESSO N.º 1718/02.9.JOLSB.
-DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 595/12.6TASLV.E1.S1
-DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 45/13.0JASTB.L1.S1
-DE 25-11-2015, PROCESSO N.º 27/14.5.JAPTM.S1
-DE 12-09-2012, PROCESSO N.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1
-DE 23-11-2010, PROCESSO N.º 93/10.2TCPRT.S1, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CRIMINAL/CRIMINAL2010.PDF
-DE 29-03-2007, PROC. N.º 1031/07-5.ª SECÇÃO; DE 17-05-2007, PROC. N.º 1133/07-5.ª SECÇÃO, CUJO SUMÁRIO ESTÁ ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CRIMINAL/CRIMINAL2007.PDF; DE 23-01-2008, PROC. N.º 4830/07-3.ª SECÇÃO; DE 29-11-2012,PROC. N.º 862/11.6TDLSB.P1.S1-5.ª SECÇÃO; DE 12-06-2013, PROC. N.º 1291/10.4JDLSB.S1-5.ª SECÇÃO, E VOTO DE VENCIDO FORMULADO PELO CONSELHEIRO MAIA COSTA NO ACÓRDÃO DE 14-05-2009, PROC. N.º 36/07-5.ª SECÇÃO, C.J.S.T.J., 2009, TOMO 2, 221.
-DE 13-07-2011, PROC. N.º 451/05.4JABRG.G1.S1 - 3.ª SECÇÃO; DE 2-09-2012, PROC. N.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 22-01-2013, PROC. N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 17-09-2014, PROC. N.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 17-09-2014, PROC. N.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª SECÇÃO; E DE 22-04-2015, PROC. N.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª SECÇÃO.
*
JURISPRUDÊNCIA FIXADA PELO ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DAS SECÇÕES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 19-05-1995, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE-A, DE 28 DE DEZEMBRO DE 1995.
Sumário :
I - Os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles.
II -Alguma jurisprudência do STJ tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. Porém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes.
III - Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.
IV - A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.
V -Pelo que, merece a concordância a conclusão do acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual, fixado em 329 crimes de abuso sexual de crianças, enquadramento juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo, invocada pelo recorrente.
VI - A qualificação jurídica pretendida pelo recorrente não mereceu acolhimento, pelo que, e uma vez que o fundamento, pelo mesmo invocado, para a redução das penas parcelares, se reconduzia, essencialmente, a tal alteração da qualificação jurídica, terá, necessariamente, que improceder a pretendida redução. Ainda que assim não fosse, face às molduras penais abstractamente aplicáveis, atentos os critérios de escolha e determinação da pena, previstos nos arts. 40.º, 70.º e 71.º, do CP confrontados com a factualidade dada como provada, sempre se considerariam adequadas as penas parcelares concretamente aplicadas ao recorrente.
VII - No que diz respeito à pena única, atentas as penas parcelares aplicadas e o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP, a moldura penal abstractamente aplicável ao concurso em apreço, teria como limite máximo 917 anos e 6 meses de prisão, que é reduzido a 25 anos de prisão, nos termos do art. 71.º, n.º 2, do CP, e como limite mínimo, 8 anos de prisão.
VIII - A nível jurisprudencial não se surpreenderam situações em que estivessem em causa a prática de um tão elevado número de crimes, como no caso ema preço, pelo que, uma qualquer tentativa de análise comparativa das penas únicas aplicadas, em casos idênticos, resulta gorada.
IX - No caso é evidente a conexão entre os vários crimes de abuso sexual de crianças cometidos pelo recorrente, estando em causa condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto, inclusive ao nível do concreto modo como os crimes foram praticados, designadamente no que diz respeito aos específicos actos sexuais praticados. A culpa, face ao período de 6 anos em causa, ao número de vítimas envolvidas (9), as respectivas idades, e à relação de ascendência que o recorrente tinha sobre as mesmas (padrinho, professor e treinador de futebol), é elevada, sendo também elevadas as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
X - Contudo, não obstante o elevado número de crimes em causa, todas as penas parcelares aplicadas se encontram muito distantes, quer das suas respectivas molduras abstractas, quer do limite máximo da moldura do concurso. O recorrente não tem antecedentes criminais registados e, apesar de tudo, sempre teve hábitos de trabalho, sendo que a pena aplicada pelo tribunal colectivo de 25 anos de prisão constitui o limite máximo permitido no nosso ordenamento jurídico-penal, correspondendo à pena prevista para a tutela do bem jurídico mais elevado, ou seja, a vida. Pelo que, ponderados todos os elementos se considera como adequada a pena única de 20 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

1. Por acórdão proferido, em 3 de Julho de 2015, pelo Tribunal de Júri da Instância Central Criminal de ..., foi o arguido AA condenado, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo:

« (…) pela prática de cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, n.º 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido BB – na pena de 2 (dois) e 3 (três) meses de prisão (factos provados 5-11, 30-32);

(…) pela prática de cada um dos quatro crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido CC – na pena de 2 (dois) e 3 (três) meses de prisão (factos provados 12-18, 30-32);

(…) pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido DD – na pena de 2 (dois) e 3 (três) meses de prisão (factos provados 19-22, 30-32);

(…) pela prática de cada um dos três dos crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido EE – na pena de 1 (ano) e 5 (cinco) meses de prisão (factos provados 23-28, 30-32);

(…) pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, também p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal perpetrado na pessoa do mesmo EE, na pena de 2 (dois) anos de prisão (factos provados 29; 30-32);

(…) pela prática de cada um dos 104 (cento e quatro) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido FF – na pena de 1 (ano) e 3 (três) meses de prisão (factos 70 a 80);

(…) pela prática de cada um dos 104 (cento e quatro) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido GG – na pena de 1 (ano) e 3 (três) meses de prisão (factos 70 a 80);

(…) pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº1 e art. 177º, nº 1, al. b) do C. Penal, na pessoa do ofendido HH – na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão (factos provados 34-37 e 61-63, 67-69);

(…) pela prática de cada um de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e art. 177º, nº 1, al. b) do C. Penal, também na pessoa do ofendido HH – na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados 42 e 67-69);

(…) prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e 2 e art. 177º, nº 1, al. b) do C. Penal, também na pessoa do ofendido HH – na pena de 8 (oito) anos de prisão (factos provados 48-50, 54, 55, 57-59, 64-69);

(…) pela prática de cada um dos 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e nº 2 e art. 177º, nº 1, al. b) do C. Penal, também na pessoa do ofendido HH – na pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão (factos 43-45 e 67-69);

(…) pela prática de cada um dos 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido II – na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (factos provados 94-99, 144-147);

(…) pela prática de um de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido II – na pena de 3 (três) anos de prisão (factos provados 120-121; 144-147);

(…) pela prática de cada um dos 58 (cinquenta e oito) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e nº 2 do C. Penal, na pessoa do ofendido II – na pena de 7 (sete) anos de prisão (factos provados 103-119; 122-125; 129-136, 138-141; 144-147);

(…) pela prática de cada um dos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e nº 2 do C. Penal, na pessoa do ofendido II – na pena de 7 (sete) anos e 2 (dois) meses de prisão (factos provados sob o ponto 137 e 144-147);

(…) pela prática de cada um dos 19 (dezanove) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do C. Penal, na pessoa do ofendido JJ, na pena de 2 (dois) anos e (10) dez meses de prisão (factos provados 152-153 e 155-158);

(…) pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, nº 1 e 2 do C. Penal, na pessoa do mesmo ofendido – JJ – na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão (factos provados 154 e 155-158).»

Em cúmulo jurídico, das enunciadas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de 15 (quinze) anos de inibição do exercício de funções p. no art. 179º, al. b) do C. Penal, a cumprir aquando da respectiva colocação em liberdade (cfr. art. 66º, nº3 do C. P. Penal).

2. Inconformado, interpôs o arguido o presente recurso, dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, admitido pela Mm.ª Juiz da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 2426).

O recorrente remata a sua motivação com as seguintes conclusões, que se reproduzem:

«1.ª Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão de 3 de Julho de 2015, proferido nos autos supra referenciados, que condenou o Arguido em cúmulo jurídico, na pena única de vinte e cinco anos de prisão, pretendendo-se o reexame da matéria de direito, nomeadamente no que respeita ao concurso de crimes, bem como à medida concreta da pena aplicada.

2.ª Relativamente ao concurso de crimes, entendeu o Tribunal a quo, não estarmos perante uma situação de crime continuado, mas que o Arguido praticou tais ilícitos em concurso efectivo real.

3.ª Por outro lado, e no que respeita à figura do crime prolongado ou de trato sucessivo, considerou o Tribunal a quo, não estarmos perante um crime de trato sucessivo, porquanto não se apresenta a conduta do arguido uma unidade resolutiva, posto que se impunha uma conexão temporal que em regra levasse a aceitar que o agente executou toda a sua actividade, sem ter que renovar o respectivo processo de motivação.

4.ª Ora, salvo o devido respeito, entendamos que, o Tribunal a quo deveria ter concluído pelo enquadramento jurídico da conduta do arguido na figura do crime único de trato sucessivo.

5.ª A doutrina e a jurisprudência têm entendido que nas situações em que os crimes sexuais envolvam uma repetitiva actividade prolongada no tempo, se está perante a figura do crime prolongado ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime- apesar de se desdobrar em diversas condutas que, se isoladas, constituiriam um crime quanto mais grave quanto mais repetido.

6.ª Contrariamente ao crime continuado, nos crimes de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.

7ª Assim, o que se exige para a verificação da existência de um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva", que não se confunde com "uma única resolução”.

8.ª Para constatar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968, 201 e 201, in Código Penal Anotado de Paulo Pinto de Albuquerque.

9.ª Para além disso, deverá existir uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que no caso de crime de abuso sexual de crianças, a vítima tem de ser a mesma.

10.ª No sentido do exposto e a propósito do crime de trato sucessivo, vão os Acórdãos do STJ de 23/01/2008, de 21/10/2009 e de 29/11/2012, in www.dgsi.pt.

11.ª Mais recentemente, o Acórdão da Relação do Porto, de 11/02/2015, in www.dgsi.pt, entendeu-se que: “Se a conduta do arguido é fruto de uma unidade resolutiva que abarcou ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os vários actos sexuais que praticou, comandados por uma única resolução e lesando o mesmo bem jurídico, constitui um único crime de trato sucessivo.

12.ª No caso dos autos, e considerando os factos provados, pode esquematizar-se o seguinte, em relação a cada um dos ofendidos.

13.- Quanto ao ofendido BB, nascido a ---, da factualidade apurada, resultaram provados os factos constantes dos pontos n.º 5 a 11 e 30 a 32 do douto acórdão recorrido, donde se pode concluir que, os actos praticados pelo arguido e que, de um modo homogéneo, ocorreram no período compreendido entre finais de Outubro e 15 de Novembro de 2008, no mesmo contexto situacional, consubstanciam uma unidade resolutiva, traduzindo-se, portanto, num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal.

14.ª Da mesma forma, da factualidade apurada nos pontos 12 a 18, e 30 a 32, se pode extrair uma unidade resolutiva, que abarcou ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os vários ates sexuais que o arguido praticou com o menor LL, nascido em 29/07/1998, constituindo assim um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal.

15.ª No que respeita, ao ofendido EE, nascido em ---, cada um dos actos praticados pelo arguido, respeitantes à matéria de facto provada, constante dos pontos n.ºs 23 a 29 e 30 a 32, foi perpetrado, de forma homogénea, no mesmo contexto situacional e temporal, permitindo concluir pela existência de uma unidade resolutiva, devendo por isso, enquadrar-se tais condutas, num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal.

16.ª Quanto ao ofendido HH, cada um dos vários actos do arguido que resultaram provados nos pontos n.ºs 33 a 37, do douto acórdão, ocorreram no mesmo contexto situacional e temporal, consubstanciando a mesma resolução criminosa a uma única violação do bem jurídico, havendo, por isso, que concluir pela prática de um único crime de trato sucessivo de abuso sexual da menor previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

17.ª Há ainda quanto ao menor HH, resultaram provados os factos constantes dos pontos n.ºs 41 a 50, do acórdão recorrido que permite concluir que o arguido praticou, dolosamente, na mesma ocasião, com a mesma resolução e com a mesma vítima, os sucessivos actos que consubstanciam a violação do bem jurídico que está em causa.

18.ª Há assim, uma unidade de violação do bem jurídico tutelado pela norma, a prática pelo arguido de uma única acção global, sem prejuízo de poderem ter sido praticado actos encadeados entre si, com diferente conteúdo, mas com enquadramento num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

19.ª Do mesmo modo, dos factos provados n.ºs 53 a 57, se pode aferir que o arguido praticou no menor HH, dolosamente, na mesma ocasião, com a mesma resolução e com a mesma vitima, os sucessivos actos que consubstanciam a violação do bem jurídico que está em causa, havendo qua concluir pala prática de um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e artigo 117.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

20.ª Também a "situação”, que resultou provada nos pontos n.ºs 58 a 59 do acórdão recorrido, configura um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e artigo 177.º nº 1 al. b) do Código Penal, na medida em que, cada um dos vários actos do arguido ocorreram no mesmo contexto situacional e temporal, consubstanciando a mesma resolução criminosa e uma única violação do bem jurídico aqui em causa.

23.ª Os factos provados, constantes dos pontos 61 a 63, ocorridos, no decurso do Verão de 2011, na residência do ofendido, também consubstanciam a prática de um crime de abuso sexual de menor, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

24.ª Por último, os factos provados constantes nos pontos 64 a 66, do douto acórdão, porque ocorridos no mesmo contexto situacional e temporal, com a mesma vitima e com violação do mesmo bem jurídico aqui em discussão, constituem uma única unidade resolutiva, e enquadram-se num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor, previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e artigo 171.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

25.ª Do exposto, conclui-se que relativamente ao menor HH, o arguido terá cometido: dois crimes da trato sucessivo, previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, e quatro crimes de trato sucessivo, previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal.

26.ª Quanto aos factos provados referentes a NN, nascido a ...., constantes dos pontos n.ºs 70 a 80, ocorridos na EB1 ..., no 2.º período escolar do ano lectivo de 2011/2012, com inicio em 10 Abril de 2012 e termo em 14 de Junho de 2013 e ano lectivo 2011/2012, também traduzem um único crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, por consubstanciarem uma unidade de resolução criminosa, que de um modo homogéneo ocorreu no mesmo contexto temporal e situacional.

27.ª O mesmo se pode dizer quanto aos factos provados referentes a GG, nascido a 14/04/2004, constantes dos n.ºs 70 a 80 do douto acórdão, ocorridos na EB1 -----, ------, no 2º período escolar do ano lectivo de 2011/2012, com início em 10 Abril de 2012 e termo em 14 de Junho de 2013 e ano lectivo 2011/2012 e em tudo, semelhantes aos praticados pelo arguido contra o ofendido NN e parte deles em simultâneo, que consubstanciam uma unidade de resolução criminosa que, de um modo homogéneo, traduzindo-se portanto num único crime prolongado ou de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal.

28.ª No que respeita aos factos referentes a II, nascido a 21/12/2002. há que distinguir:

a) Factos provados constantes dos pontos 93 a 110, do douto acórdão, ocorridos desde data não concretamente apurada de Outubro de 2012, às sextas-feiras, até à última sexta-feira de Maio de 2013 (dia 31), na residência do arguido, em ---, que consistiram em beijos no pescoço e cara, apalpar nádegas, manipulação do pénis e coito anal.

b) Factos provados constantes dos pontos 111 a 112, do douto acórdão, ocorridos entre 23 e 29 de Junho de 2013, no ---- e que consistiram em, apalpar nádegas, manipulação do pénis e coito anal.

c) Factos provados constantes dos pontos 113 a 121, do douto acórdão, ocorridos no período compreendido de 16 a 21 de Julho de 2013, no --- e que consistiram em manipulação do pénis, coito anal e coito oral, este último, concretizado por uma vez.

d) Factos provados constantes dos pontos 122 a 125, do douto acórdão, ocorridos em data e por período não determinado, no Verão de 2013, na residência do arguido sita na Rua ---, em---, que consistiram em caricias das nádegas e do pénis do menor, manipulação do pénis e coito anal.

e) Factos provados constantes dos pontos 128 a 132, ocorridos nas férias de natal no hotel ----, que consistiram em caricias nas nádegas, manipulação do pénis e coito anal.

f) Factos provados constantes dos pontos 133 a 136, ocorridos no Verão de 2013, na casa dos pais do Arguido, em ----, que consistiram em caricias nas nádegas e no pénis, manipulação do pénis, e coito anal.

g) Factos provados dos pontos 138 a 141, do douto acórdão, ocorridos, em data não concretamente apurada, entre Novembro de 2012 e Janeiro de 2014, nos sanitários do Centro Comercial ---, que consistiram em caricias nas nádegas e no pénis e coito anal.

29.ª As condutas descritas nos factos provados constantes dos pontos 93 a 141, do douto acórdão, porque ocorridas em seis “situações” diferentes, de forma homogénea, traduzam-se em seis crimes de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal.

30.ª No que respeita, aos factos referentes ao menor JJ, nascido em 06/01/2001, a matéria de facto provada constante dos pontos n.ºs 152 a 154, do douto acórdão, também permite concluir que o arguido praticou, dolosamente, na mesma ocasião, com a mesma resolução e com a mesma vítima, o menor JJ, os sucessivos actos que consubstanciam a violação do bem jurídico que está em causa.

31.ª Há assim, uma unidade de violação do bem jurídico tutelado pela norma, a prática pelo arguido de uma única acção global, sem prejuízo de poderem ter sido praticado actos encadeados entre si, com diferente conteúdo, mas com enquadramento num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de menor previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal.

32.ª Quanto à medida concreta das penas de prisão que o Tribunal colectivo determinou como sanção dos crimes praticados pelo arguido, consideramos, salvo o devido respeito, excessivas, desproporcionais e injustas, atentas as exigências de socialização e atendendo ao facto de que, o recorrente se encontra social e familiarmente bem integrado, bem como o facto de não ter antecedentes criminais à data da prática dos factos.

33.ª A determinação da medida concreta das penas parcelares a aplicar, faz-se nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal, em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção de futuros crimes, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime. Entre outras circunstâncias deve o tribunal atender ao grau de ilicitude do facto, ao seu modo de execução, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, à motivação do agente, às condições económicas e pessoais do agente, à conduta anterior e posterior ao facto e à falta de preparação do agente para manter uma conduta ilícita

34.ª In casu, é efectivamente elevado o grau de ilicitude dos factos praticados e também certo ter o arguido agido com dolo intenso face às circunstancias das condutas apuradas, no entanto, há que considerar que a imagem social do arguido no meio de origem foi referenciada ao seu trato adequado no relacionamento interpessoal, à capacidade para promover relações em contexto sócio-comunitário, num grupo alargado de pares pelo que foi adquirindo visibilidade social, o grupo familiar, à excepção dos pais, reagiu ao conhecimento do presente processo com protecção e apoio ao arguido e manifestam disponibilidade para o acolher Quando for colocado em liberdade, visitando-o com regularidade no estabelecimento prisional, bem como o facto de não ter antecedentes criminais à data da prática dos factos.

35.ª Tendo em conta o que anteceda, consideramos, salvo o devido respeito, que as penas parcelares que deveriam ter sido aplicadas, deveriam ser as de: um ano e seis meses de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, na pessoa do ofendido BB, na pena de dois anos de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.° n. º 1 do Código Penal, na pessoa do ofendido CC, na pena de um ano de prisão, pela prática de um crime previsto a punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, na pessoa do ofendido João Pedro Correia, na pena de dois anos de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código penal, na pessoa do ofendido EE, na pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática de cada um dos dois crimes de trato sucessivo previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal na pessoa do ofendido HH, na pena de seis anos, pela prática de cada um dos quatro crimes de trato sucessivo previstos e punidos pelo artigo 171.º. n.º 2 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, na pessoa do ofendido HH, na pena de cinco anos de prisão, pela prática de cada um dos seis crimes de trato sucessivo, previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal, na pessoa do ofendido II, na pena de cinco anos de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal, na pessoa do ofendido JJ.

36.ª Em cúmulo a pena conjunta aplicável teria como limite mínimo a pena de seis anos (correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas) e o limite máximo reduzido a vinte e cinco anos, ao abrigo do disposto no artigo 41.º n.º 2 do Código Penal, uma vez que a soma das penas concretamente aplicadas excede esse limite.

37:ª Na fixação da pena única haverá ainda que atender, aos factos, à personalidade do arguido e ainda, por comparação a outras molduras penais previstas no Código Penal, que a pena a fixar, pese embora os factos imputados ao arguido seja bastante graves, não deverá equiparar-se a um caso de homicídio qualificado, cuja pana se fixaria entre os 12 e os 25 anos de prisão.

 38.ª Assim, tudo ponderado, entendemos salvo o devido respeito que, a pena única adequada seria a pena de dezasseis anos de prisão.

39.ª Face ao exposto, o acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que considere que a factualidade assente se subsume a quatro crimes de trato sucessivo previsto e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, sete crimes de trato sucessivo, previsto e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal; dois crimes de trato sucessivo previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e artigo 117.º n.º 1 al. b), quatro crimes de trato sucessivo previstos e punidos pelo artigo 171.° n.º 1 e 2 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal e um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal e que condene, o arguido, nas penas parcelares de: um ano e seis meses de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º1 do Código Penal, na pessoa do ofendido BB, na pena de dois anos de prisão; pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal na pessoa do ofendido CC, na pena de um ano de prisão, pela prática de um crime previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, na pessoa do ofendido DD, na pena de um dois anos de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 do Código penal, na pessoa do ofendido EE, na pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática de cada um dos dois crimes de trato sucessivo previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal na pessoa do ofendido HH, na pena seis anos de prisão, pela prática de cada um dos quatro crimes de trato sucessivo previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 2 e artigo 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal na pessoa do ofendido HH, na pena de cinco anos de prisão, pela prática de cada um dos seis crimes de trato sucessivo, previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal, e na pessoa do ofendido II, na pena de cinco anos de prisão, pela prática de um crime de trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal, aplicando em cúmulo jurídico a pena única de 16 anos de prisão.»

3. Efectuadas as competentes notificações legais, BB, LL, DD e EE, assistentes nos presentes autos, apresentaram resposta pugnando pela manutenção da «decisão nos exactos termos em que foi proferida – não aplicando o crime de trato sucessivo – julgando justas e adequadas as penas parcelares aplicadas, tendo em conta as necessidades de prevenção geral e especial e por conseguinte a pena única aplicada de vinte e cinco anos de prisão – o que se deverá manter».

4. Também HH, assistente nos autos, apresentou resposta ao recurso apresentado pelo arguido, fundamentando o mesmo da seguinte forma:

«Carecem de toda a razão para a censura que dirigem, sendo absolutamente infundados e despropositados os argumentos utilizados com vista à alteração da decisão – que se resume, basicamente, a peticionar que o arguida seja condenados a 16 e não a 25 anos de prisão.

Entende o Recorrente, por um lado:

a) Que estamos perante “a prática pelo arguido de uma acção única global (…) com enquadramento num único crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 do Código Penal.”

Quanto à medida concreta das pena de prisão aplicada pelo Tribunal Colectivo,

b) que as mesmas são “excessivas, desproporcionais e injustas”,

Concluindo e peticionando a redução da pena de 25 anos “aplicando em cúmulo jurídico a pena única de 16 anos.”                      

O Recorrente sustenta a sua tese em jurisprudência que, no caso concreto de abuso sexual de criança, vai no sentido da consideração do mesmo crime como sendo de trato sucessivo em detrimento da aplicação da figura do concurso efectivo real.

Contudo, é forçoso discordar de tal posição, e de forma fundamentada o faremos.

Explica o Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 29-01-2014 que:

“…nos termos do disposto no art. 30º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa, a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa. Por sua vez, esta só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.

Diga-se ainda que são circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.

Assim, podemos dizer que o pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

Com este ambiente exterior, com reflexo na culpa, diminuindo-a, indica-se a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável á prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa: a circunstância da perduração do meio apto para executar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da actividade criminosa.

Nestas situações há uma diminuição considerável da culpa do agente. Só tal situação exterior poderá justificar a facilitação da reiteração criminosa pois que quando se verifique uma situação exterior normal, ou geral, que facilite a prática do crime, o agente deve contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos.”

Continuando a citar aquele autor, Eduardo Correia, o mesmo reconhece relevância a uma certa relação entre "um crime e o ambiente" ou uma "disposição exterior das coisas para o facto", que "arraste irresistivelmente o agente para a sua prática". Na génese, o conteúdo da continuação criminosa apela à ideia de culpa como o "poder de agir de outra maneira", considerando que as circunstâncias externas, mesmo não excluindo totalmente o "poder de livre determinação do delinquente... todavia mais ou menos o tentam, mais ou menos o arrastam para o crime, diminuindo ou alargando a sua liberdade de resolução e tornando, portanto, mais ou menos exigível outro comportamento"

Por isso, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se é deste último, desaparece a razão decisiva, a continuação.

O crime continuado configura, pois, um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete ou permanece, uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita, e que de alguma maneira o incita para o crime há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida.”

Por outro lado, “os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes», que está implicada no crime habitual, nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. (…) Se os vários actos do arguido foram executados num diverso contexto situacional, comandado por uma diversa resolução e se traduziu numa autónoma lesão do bem jurídico protegido, verifica-se concurso efectivo de crimes.”

Aliás, o mesmo acórdão refere que “…maioritariamente, o Supremo Tribunal de Justiça tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, neste plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, em vários acórdãos, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como no crime continuado, como ocorre na maioria da vezes, no crime único, ou ainda no crime de trato sucessivo.”

Se é verdade que só merecem acolhimento as decisões e respectiva fundamentação, por outro lado há que atentar a resposta do Ministério Publico às alegações de recurso, contemplada no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2014: “…de cada vez que o arguido obrigou a vítima para com ela ter relações de cópula completa renovava a sua intenção inicial, independentemente de praticar factos iguais ou idênticos, pelo que a cada acto correspondia a prática de um crime.

O entendimento contrário significa a violação do princípio da dignidade da pessoa humana que tem consagração no artigo 1º da CRP.

Posto tal, na situação em apreço,

A conduta do arguido mostra à evidencia que o mesmo:

•       Em cada actuação renovou propósito criminoso;

•      Estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores;

•      Essa repetição teve a ver com circunstâncias próprias da personalidade do arguido.

Aliás, tal entendimento foi, de facto, confirmado pela fundamentação do mesmo acórdão, senão veja-se: “…embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal. Inexiste pois, o crime de trato sucessivo.”

Mais, “Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.

(…)

E, como referia Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal. 1ªedição, 139, nota 28:

“A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime.”

Decidiram ainda, de igual modo, os seguintes acórdãos:

•       Ac. STJ de 19-05-2005, processo n.º 890/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 202;

•       Ac. STJ de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 216;

•       Ac. STJ de 17-11-2005, processo n.º 2760/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 217;

•       Ac. STJ de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242;

•       Ac. STJ de 05-09-2007, processo n.º 2273/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 189;

•       Ac. STJ de 16-01-2008, processo n.º 4735/07-3.ª;

•       Ac. STJ de 01-10-2008, processo n.º 2872/08-3.ª;

•       Ac. STJ de 05-11-2008, processo n.º 2812/08-3.ª;

•      Ac. STJ de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3ª; de 25-03-2009, processo n.º 490/09-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 237;

•      Ac. STJ de 25-06-2009, processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 247;

•       Ac. do STJ de 20 de Janeiro de 2010, proc.º n.º 19/04.2JALRA. C2.S1;

•       Ac.STJ de 13-07-2011, processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1;

•      Ac. STJ de 12-07-2012, proferido no processo n.º 1718/02.9JDLSB.S1;

•       Ac. STJ de 12-09-2012;

•       Ac. STJ de 22-1-2013, ambos em www.dgsi.pt.

Ora, atento tal entendimento, que, de resto, é o nosso, só nos resta concluir que de modo algum se pode enquadrar a conduta do arguido na prática de crimes de trato sucessivo, isto porque:

a)      O agente sempre atuou com vista à verificação dos crimes que praticou, ou seja, sempre agiu premeditadamente com a intenção de alcançar prazer satisfazer os seus desejos sexuais;

b)      Sempre lhe era exigido que actuasse de forma distinta;

c)       O arguido sempre teve consciência da dor, sofrimento e medo que causava nas vítimas, sempre reconhecendo que a sua conduta era ilícita;

d)     A gravidade dos factos, pelas circunstâncias em que ocorreram, pese embora o arguido não ter antecedentes criminais, é de tal forma elevada que, pelo contrário, intensifica a ilicitude do facto, a culpa do arguido e a necessidade da pena;

e)      Pelo que, de maneira nenhuma se pode acatar a ideia de que, com a continuação da prática criminosa, haja uma diminuição da culpa do arguido, muito pelo contrário, à medida que a prática do arguido se reitera, aumenta o nível da sua culpa, já que, em cada “nova” actuação, e transcrevendo a própria afirmação do recorrente, “in casu é efectivamente elevado o grau de ilicitude dos factos praticados e também certo ter o arguido agido com dolo intenso, face às circunstâncias das condutas apuradas”

Ora, de forma singela, e ainda que despropositadamente, acaba o Recorrente por nos “dar razão.”

De facto, as penas aplicadas por cada um dos crimes, tendo em conta, no caso do ofendido HH, que o arguido era o seu sobrinho (filho de um irmão) e padrinho,

 E, no caso dos demais ofendidos, o seu ascendente e a relação professor-treinador/aluno-jogadores, não tendo por outro lado demonstrado qualquer arrependido aliada à postura fria, desprovida de qualquer emoção pela qual se pautou ao longo de todo o julgamento, afiguram-se-nos, tais penas, justas e adequadas, mostrando-se proporcionais às exigências de prevenção e perfeitamente enquadráveis no limite da culpa do agente, como igualmente se nos afigura adequada e justa a pena aplicada em cúmulo jurídico.

Pelo que, é de manter a decisão recorrida, nos seus precisos termos, é justa.»

5. Também o assistente II pugna pela confirmação da decisão recorrida, dizendo:

«Tendo em conta as conclusões do recurso interposto, sendo este delimitado por aquelas, salvaguardado o devido respeito por melhor opinião, são estas as questões sub judice:

- Determinar se, em face da matéria de facto apurada, a conduta do arguido se há-de subsumir à "figura do crime único de trato sucessivo", como propugna o recorrente nas conclusões do recurso que apresentou;

- Penas parcelares;

- Pena única

Relativamente à primeira questão propugna o recorrente que a conduta do arguido deve ser subsumida "á figura do crime único de trato sucessivo".

no entendimento que diz perfilhado pela doutrina e jurisprudência "que nas situações em que os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, se está perante a figura do crime prolongado ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em diversas condutas que, se isoladas, constituiriam um crime quanto mais grave quanto mais repetido"

Com efeito, aquele entendimento parece ir no sentido da tese do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2012, em que se defende que "se está perante um crime prolongado, protelado ou protraído, exaurido ou de trato sucessivo, ou seja; há só um crime apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal) quanto mais repetido. "

Aquele, aresto jurisprudencial, porém, apela ao crime de trato sucessivo, mas para as situações em que a «actividade sexual criminosa» se repita prolongadamente no tempo e em que a contagem do número de actos seja difícil, tornando-se a sua quantificação quase arbitrária.

Ora, no caso sub judice tal não acontece.

Com efeito, o tribunal recorrido, com o critério e rigor que resultam da motivação da decisão sobre a matéria de facto, logrou apurar o número de actos de cariz sexual praticados pelo arguido.

Tendo o tribunal recorrido logrado apurar e contar os crimes sexuais praticados pelo arguido, a pretensão do recorrente, na nossa opinião, estaria sempre dependente da alteração da decisão sobre a matéria de facto que, para tal, teria que ser impugnada, apresentando o arguido os argumentos fácticos que permitissem ao tribunal de recurso alterar aquela decisão, concluindo que a actividade do arguido, repetitiva e prolongada no tempo, tornou difícil e quase arbitraria qualquer contagem dos crimes praticados.

Ora, o arguido conformou-se com a decisão sobre a matéria de facto que não impugnou.

Tendo o tribunal ad quo logrado apurar e contar cada um dos crimes praticados pelo arguido, as penas parcelares e única em que o arguido foi condenado são, às únicas que, em face dos factos apurados, se afiguram ajustadas.

Por outro lado;

Como se pode ler no aresto supra citado e noutros referidos pelo arguido no seu recurso, para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo, exige-se que haja "«uma unidade resolutiva», realidade que não deve confundir-se com uma «única resolução», pois que «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiencia psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no "Código Penal Anotado" de P.P Albuquerque) - Ac. TRC, Processo: 2/11.1 GDCNT.C1 de 09-04-2014.

Não é, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos, o cariz de crime de trato sucessivo.

O tipo de crime de abuso sexual de crianças não contempla aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Como resulto da matéria de facto apurada, cada um dos vários actos sexuais praticados pelo arguido “foi levado a cabo em diversos contextos situacionais, necessariamente comandados por diversas resoluções e traduziram-se em autónomas lesões do bem jurídico protegido.”

Cada um daqueles actos do arguido não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado, nem um acto que se tenha desdobrado numa actividade suposta no tipo, mas um "todo", em si mesmo, um autónomo facto punível.

Deve, por isso, entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando as palavras de Figueiredo Dias «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. Cit. Página 989)»”.

Atentos à matéria de facto provado e no que concerne ao assistente II, nada nos permite inferir que a conduta do arguido no Verão de 2012 tenha tomado uma unidade resolutiva que abarcasse, ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os actos sexuais que praticou sobre esta vítima.

O que resulta da matéria factual é que o arguido em cada uma das diversas ocasiões em que se encontrou a sós com o menor II, tomou em cada um desses momentos, a decisão de praticar os actos sexuais que vêm explicitados naquela matéria.

Resulta da matéria de facto que o arguido, quando pretendia satisfazer os seus apetites sexuais com o menor II, renovou a sua intenção de o fazer, praticando de seguida os actos necessários a executa-la: escolheu os momentos em que o menor se encontrava á sós consigo, os locais onde os actos tiveram lugar, e bem assim o modo como anulou a resistência daquele.

Cada uma das condutas do Recorrente - cada acto sexual - é, pois, autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo, também ele, autónomo de censura, constituindo, assim, um crime, em concurso efectivo, com os demais - Neste sentido o Acórdão que se vem de citar.

Falecendo esta conclusão do Recorrente, onde, por falta de fundamento, falecer as outras duas questões sub judice.

A decisão recorrida não é pois merecedora de qualquer reparo, afigurando-se-nos, aliás, no quadro do circunstancialismo que resulta da matéria de facto, a única verdadeiramente justa, no quantum de cada uma das penas parcelares e única em que o arguido foi condenado, sendo certo que o Recorrente não impugna a matéria de facto assente e como tal também não invoca argumentos fácticos que justifiquem a alteração do decidido pelo Tribunal "ad quo".

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida, com o que se fará, como sempre, sã, serena e esclarecida

JUSTIÇA.»

6. O Ministério Público na primeira instância apresentou resposta, tendo pugnado pela improcedência do recurso apresentado pelo arguido, invocando diversa jurisprudência para tanto, e tendo concluído da seguinte forma:

«1 – Consideramos pois que julgaram bem os M.ºs Juízes “a quo” ao não aplicar, no caso concreto, o conceito de trato sucessivo e ao condenarem o recorrente no preciso número de crimes em que o fizeram, atenta a matéria de facto dada como provada, e nas precisas molduras parcelares, que em função dos elementos a ter em conta nos termos do art.º 71, n.º 2, do C. Penal, se apresentam como justas e adequadas.

2 – Em face dos elementos que importa ponderar para a determinação da medida concreta da pena em sede de cúmulo jurídico apresenta-se justa e adequada a aplicação à recorrente a pena única de vinte e cinco (25) anos de prisão.»

7. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos do art. 416.º, do CPP, tendo-o feito da seguinte forma:

«2.1. Sem questionar minimamente a decisão de facto proferida, que tem por isso de ter-se por definitivamente fixada, convoca o recorrente neste ponto, como vimos, a denominada figura do crime de trato sucessivo, pugnando, genericamente, pela sua condenação nesse quadro, em detrimento do concurso efectivo.

Mas não cremos que lhe assista razão.

Na verdade, tal como com distinto e, a nosso ver, inultrapassável rigor interpretativo, se podia já extrair do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 25-06-1986, publicado no BMJ n.º 358, pág. 267, a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir:

1 - Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial;

2 – Um só crime, continuado, se a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas houver factores externos que tenham levado o agente à reiteração da actividade criminosa;

3 – Um concurso de infracções, se não ocorrer qualquer daquelas situações.

A esta luz, e tendo em conta os factos que o tribunal deu como provados, e que por isso, como é bom de ver, são já insusceptíveis de reexame nesta sede, convenhamos, com o devido respeito, que não pode deixar de concluir-se que não ocorre no caso nem a segunda, nem a primeira daquelas situações. Como decorre desses factos, o arguido não agiu, de todo, no quadro de uma única resolução. E como, sem qualquer dissídio, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a afirmar, em determinados e pontuais casos, por exemplo de “abuso sexual de crianças” e/ou de “tráfico de droga”, tem sido enquadrada na figura do crime único, de trato sucessivo, situações em que se admite haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, mas sempre, e só, quando exista uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente.

         É, pois, essa unidade de resolução, a par das demais indicadas, que constitui a razão de ser da unificação dos actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização. Estando-se sempre no plano da unidade criminosa, há por isso um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas. É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e a sua proximidade temporal, que configura o trato sucessivo.

Ora, e perante a decisão de facto proferida, não sendo, também em nosso juízo, este o caso dos autos, mal se compreende, pois, a reclamada pretensão do recorrente no sentido da unificação das suas provadas condutas.

        E sempre será oportuno enfatizar ainda, porque inteiramente convocável ao caso, “mutatis mutandis – [pelo menos em relação aos menores ofendidos, HH e II –], a jurisprudência firmada por exemplo no Acórdão do STJ de 25-06-2009, publicado na CJ (STJ), 2009, Tomo 2, pág. 247, no sentido de que, «no crime continuado não basta a existência de uma solicitação exterior que facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa, devendo a mesma surgir como um potenciador considerável que diminua consideravelmente a culpa do agente. Não existe culpa diminuta pelo facto de a vítima se dirigir algumas vezes a casa da sua irmã, onde esta coabitava em união de facto como o arguido, porquanto o grau de confiança inerente a essa convivência deveria reforçar o respeito pela vítima, derivado da menoridade desta e de ser familiar da sua companheira».

Improcede pois, a nosso ver – e pelo sumariamente exposto – esta pretensão do recorrente, motivo pelo qual não pode igualmente deixar de claudicar, em toda a linha, a sua crítica quanto á medida concreta das penas parcelares aplicadas. Anotar-se-á de resto, ainda a este propósito, que mesmo as penas parcelares de maior dimensão, de 8 e 7 anos e 2 meses de prisão foram fixadas ainda dentro da metade inferior das respectivas molduras penais abstractas, posto que próximo do seu limiar médio, padrão que cremos consentâneo com a culpa do arguido, cujo grau de censura se situa num patamar muito acima da média.

Dito isto, e no apontado quadro,

2.2 – Da medida da pena conjunta:

De acordo com a regra do n.º 2 do art. 77.º do Código Penal, a moldura do concurso tem como limite mínimo 8 anos de prisão, a medida das mais elevadas das penas aplicadas por cada crime, e como limite máximo 25 anos de prisão, visto a soma de todas atingir várias centenas de anos [o aresto recorrida fala em 917 anos].

Na fixação da medida concreta da pena, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no art. 71.º do CP – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo n.º 1 daquele art. 77.º, segundo o qual, citamos, «na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor que, citamos de novo, «Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

A esta luz, e não havendo que levar em conta, evidentemente, as circunstâncias que caracterizam cada um dos ilícitos individualmente considerados cuja sede de valoração seja a determinação da respectiva pena singular, a gravidade global dos factos afere-se desde logo em função do número de penas, da sua medida individual e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável.

As penas singulares, que, com já vimos, são 329, são de dimensão média/alta em 71 casos, (sendo vítimas apenas dois menores), de média/baixa dimensão em 19 casos e de dimensão reduzida nos 239 casos restantes, encontrando-se estas últimas muito distantes daquelas, particularmente das de dimensão média/alta. Certo é no entanto que todas se encontram muito distantes, quer das suas respectivas molduras abstractas, quer do limite máximo da moldura do concurso, o que não pode, cremos, deixar de ser tomado em conta para a fixação da pena conjunta.

A culpa pelo conjunto de factos, ou o grau de censura a dirigir ao recorrente por esse conjunto, tendo desde logo em conta o tempo da acção [cerca de 6 anos] e o número de vítimas [nove], e respectivas idades, situa-se num patamar muito acima da média, a permitir portanto que a pena única se fixe claramente dentro da metade superior da moldura penal.

As exigências de prevenção especial são enormes. E também as de prevenção geral, considerando que a violação da autodeterminação sexual, para mais no contexto em que ocorreu, merece um acentuado repúdio na sociedade de hoje.

Aqui chegados, e atendendo assim ao número de crimes praticados, à duração no tempo da actividade criminosa empreendida, ao número de crianças ofendidas e relação de dependência/ascendência que sempre lhe advinha das qualidades, docentes, em que actuava e à perturbação e alarme social que a sua conduta causou na comunidade, com especial ênfase nas possíveis demais vítimas dos estabelecimentos, de ensino e desportivos, por onde passou o arguido, bem como ainda à medida de cada uma das penas parcelares aplicadas, mas sem esquecer por outra banda que aquele é delinquente primário e, apesar de tudo, teve sempre hábitos de trabalho, demonstrando e desenvolvendo capacidade profissional regular, tudo visto, e devendo embora representar uma muito severa reprovação que as provadas condutas do recorrente merecem e as acutilantes necessidades de prevenção, geral e especial, demandam e exigem, não cremos contudo, de todo, que a pena única a aplicar possa, ou deva, atingir, como decidiu a 1.ª Instância, o limiar máximo permitida pelo nosso ordenamento jurídico-penal, afigurando-se-nos antes que, graduando-a um pouco aquém desse limiar, seria de fixar em medida próxima, mas não superior, a 20 anos de prisão, o que, note-se, corresponderia a um acréscimo de cerca de 150% relativamente à medida das penas parcelares mais elevadas em que foi condenado, também qualquer destas graduadas na metade superior das respectivas molduras, que não nos seus máximos legais. E convirá não esquecer de resto que, como muito bem se diz no Acórdão do STJ de 2-02-2010, proferido no Processo n.º 994/10.8TBLGS.S1, 3.ª, «com a fixação da pena conjunta não se visa re-sancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção – síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do(a) arguido(a) em que foram cometidos vários crimes».


**

2.3. Parecer:

Pelo exposto, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, é o seguinte o nosso parecer que, na parcial procedência do recurso do arguido, na parte em que este convoca o reexame da medida concreta da pena única do concurso, será de reduzir essa pena para medida que se propõe, pois, ser de fixar próxima, mas não superior, aos sobreditos 20 anos de prisão.»

8. Notificados do parecer do Ministério Público, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, recorrente e recorridos nada disseram.

9. Colhidos os vistos em simultâneo e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II – COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Como referido, o recurso foi dirigido pelo recorrente ao Tribunal da Relação do Porto, sendo que, não obstante, o recurso foi admitido na 1.ª instância para este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, uma vez que limitado ao pedido de reexame de matéria de direito (fls. 2426).

            Está em causa um acórdão proferido por um tribunal de júri, que condenou o recorrente na pena única de 25 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das seguintes 329 penas parcelares aplicadas:

- Da previsão do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal:

a) 7 penas de 2 anos e 3 meses de prisão (ofendidos BB CC e DD);

b) 1 pena de 2 anos de prisão (ofendido EE);

c) 3 penas de 1 ano e 5 meses de prisão (ofendido EE);

d) 208 penas de 1 ano e 3 meses de prisão (ofendidos FF e GG);

e) 22 penas de 2 anos e 10 meses de prisão (ofendidos II e JJ);

f) 1 pena de 3 anos de prisão (ofendido II).

- Da previsão dos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal:

a) 11 penas de 3 anos e 10 meses de prisão (ofendido HH);

b) 1 pena de 3 anos e 6 meses (ofendido HH).

- Da previsão dos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal:

a) 11 penas de 8 anos de prisão (ofendido HH);

b) 3 penas de 6 anos e 4 meses de prisão (ofendido HH).

- Da previsão dos artigos 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal:

a) 58 penas de 7 anos de prisão (ofendido II);

b) 2 penas de 7 anos e 2 meses de prisão (ofendido II);

c) 1 pena de 5 anos e 4 meses de prisão (ofendido JJ).

2. A competência do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar, directamente, em sede de recurso as decisões proferidas em 1.ª instância, tem como pressupostos serem condenatórias em prisão, emitidas por tribunal colectivo ou de júri, visarem o reexame exclusivamente de matéria de direito e a medida da pena efectivamente imposta exceder 5 anos de prisão, como se especifica nos artigos 432.º, n.º 1, alínea c), e 434.º, do CPP.

Assim, face a tal disposição legal, não cabe recurso directo da decisão que condene em pena de multa, de decisão absolutória, de decisão condenatória em pena de prisão de duração inferior a 5 anos.

No caso em apreço, o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito: o recorrente questiona a qualificação jurídica da sua provada conduta, pugnando pela condenação, relativamente a cada uma das vítimas, no quadro do crime de trato sucessivo, que não do concurso efectivo, nas situações em que tais crimes ocorreram num mesmo contexto situacional e temporal.

Consequentemente, o recorrente contesta as penas parcelares respectivas (sendo algumas inferiores a 5 anos de prisão), que tem por excessivas, devendo ser reduzidas em conformidade e insurge-se também contra a medida da pena única do concurso. Ou seja, não obstante o recurso se restringir a matéria de direito, temos então num só recurso a apreciação de penas de prisão superiores e inferiores a 5 anos.

A este respeito entendemos – à semelhança do que é a posição maioritária em ambas as Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça - que a competência para conhecimento da totalidade do recurso caberá ao Supremo Tribunal de Justiça, na senda do entendimento defendido no acórdão de 11 de Janeiro de 2012, proferido no processo n.º 1101/05.4PIPRT.S1-3.ª secção[1], no qual se decidiu que «o julgamento deve ser unitário e não parcelar, no sentido de uma parte da condenação ser reexaminada pela Relação e outra pelo STJ, fazendo todo o sentido que o recurso seja apreciado pelo STJ, que assim absorve a competência da Relação, sem qualquer dano para o arguido que vê apreciada a questão pela instância ocupante do topo no panorama judiciário nacional – o STJ –, além de corresponder ao seu desígnio endereçando o recurso a este Tribunal».

Como recentemente este Supremo Tribunal decidiu, em acórdão proferido em 25 de Novembro de 2015, no processo n.º 55/13.3PLSNT.L1.S1, relatado pelo agora relator:

«(…) relacionada com o exercício da competência deste Supremo Tribunal neste recurso, está a questão da cognoscibilidade das penas parcelares aplicadas ao arguido, inferiores a cinco anos de prisão, inferiores, portanto, ao patamar de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.

A questão, que tem sido apreciada e decidida em termos nem sempre convergentes neste Supremo Tribunal, pode formular-se da seguinte forma, conforme acórdão de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 12/09.9GDODM.S1:

“saber se em situação em que um arguido tenha sido condenado numa mesma decisão em várias penas de prisão, todas elas, ou algumas, em medidas iguais ou inferiores a 5 anos, e apenas alguma ou algumas daquelas e a pena única ultrapassando aquele limite, o Supremo, sabido que terá óbvia competência para conhecer de penas parcelares superiores a 5 anos de prisão, bem como da pena conjunta, tem ou não competência para apreciar também as penas parcelares, mesmo que aplicadas em medida inferior àquele patamar, erigido em condição de cognoscibilidade”.

O citado acórdão regista extensa e detalhada informação sobre as orientações perfilhadas neste Supremo Tribunal, dando conta da que, em termos largamente maioritários, tem prevalecido: a ampla recorribilidade, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, já enunciados, apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a cinco anos de prisão englobadas numa pena conjunta superior a cinco anos de prisão.

Convocando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Fevereiro de 2014 (Proc. n.º 29/03.3GACNF.S1 – 3.ª Secção), dir-se-á que “a lei adjectiva penal, ao atribuir competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer recurso de acórdão final proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente a matéria de direito (alínea c) do n.º 1 do artigo 432º), obviamente pressupõe que o Supremo Tribunal, nos casos de condenação em pena conjunta, conheça de todas as penas singulares que integram aquela, sob pena de o condenado ver precludido o direito a, pelo menos, um grau de recurso no que àquelas penas concerne, direito que a Constituição da República lhe garante (n.º 1 do artigo 32º)”.

Tem sido este o entendimento que vem sendo assumido pela 3ª secção criminal deste Supremo Tribunal. Como se refere no acórdão de 13 de Abril de 2013, proferido no Processo n.º 700/01.8JFLSB.C1.S1:

“1. No caso de o recurso ser dirigido directamente ao STJ, visando o conhecimento em termos de direito, de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, bem como de penas parcelares inferiores a tal limite inscrito no art. 432.º, al. c), do CPP, entende-se que ocorre um “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares. 2. Esta posição está em coerente coordenação com a natureza e finalidades processuais do recuso directo para o STJ, bem como com o princípio do conhecimento unitário do recurso, que supõe que a instância competente para decidir parte das questões (no caso, a pena parcelar superior a 5 anos e a pena única), assume a competência para conhecer todas as questões de que depende o exercício da competência da instância superior, ou seja, no caso, a medida das penas parcelares e da pena única”. 

Já no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Outubro de 2009 (proc. n.º 611/07.3GFLLE.S1), se justificava esse «alargamento» da competência do Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes termos:

 “O ‘alargamento’ da competência do STJ à apreciação das penas parcelares (não superiores a 5 anos de prisão) nada tem de incongruente, pois se trata de questão exclusivamente de direito, compreendida (isto é, integrada) na questão mais geral da fixação da pena conjunta, a qual, nos termos do art. 77º do CP, deve considerar globalmente os factos e a personalidade do agente.

Sendo certo que o STJ só deve ser convocado para as causas de maior relevância, não deve ignorar-se (o intérprete também não deve fazê-lo) que o STJ tem um importante papel regulador e orientador (e garantista) da jurisprudência, um papel de “referência” para os tribunais judiciais, que não se compadece com uma excessiva parcimónia da sua intervenção processual.

Sendo o STJ o tribunal vocacionado, por excelência, para “dizer o direito”, havendo dúvidas quanto à sua competência, quando se tratar de recurso exclusivamente de direito, essas dúvidas deverão ser resolvidas no sentido da sua competência.

Interpreta-se, pois, a al. c) do nº 1 do art. 432º do CPP como atribuindo competência ao STJ para, em recurso de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, apreciar também as penas parcelares integrantes daquela pena conjunta não superiores a essa medida, quando elas sejam impugnadas.

Assim se cumprirá o “desígnio” do legislador (celeridade), sem prejuízo, antes pelo contrário, das garantias processuais.”

Numa outra perspectiva, mas assumindo-se a mesma orientação, cumpre mencionar o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 41/10.0GCAZ.P2.S1, onde se concluiu que:

“ (…) em caso de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão que tenha aplicado penas parcelares em medida inferior ou igual a cinco anos e pena conjunta a ultrapassar esse limite, visando-se apenas o reexame de matéria de direito, o conhecimento do objecto do recurso abrange as medidas das penas parcelares, por ser essa a solução que compense a falta de possibilidade de recurso para a Relação.

Sabido que por força do n.º 2 do artigo 432.º, visando-se apenas reapreciação de matéria de direito, não é possível recurso prévio para a Relação, a não cognição de tais penas redundaria na denegação de um único grau de recurso, contrariando a garantia de defesa estabelecida a partir da quarta revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro - com a introdução na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da locução “incluindo o recurso”, abrangendo nas garantias de defesa o direito ao recurso, correspondendo a densificação do direito à protecção judicial efectiva e significando que o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição.”  

Em face do exposto, considera-se que este Supremo Tribunal tem competência para proceder ao conhecimento de todo o recurso, quer relativamente à pena conjunta em que o recorrente foi condenado, quer em relação às questões que suscita quanto às penas parcelares, inferiores a cinco anos de prisão.

III - FUNDAMENTAÇÃO

A. Matéria de facto


Foi a seguinte a matéria de facto considerada como provada pela 1.ª instância:

“A - Resultou provado com interesse para a decisão da causa.

Factos praticados pelo arguido enquanto treinador do Futebol Clube Alpendurada.

1. O arguido MM foi treinador do Futebol ---- desde Março de 2006 até data não apurada, mas situada entre final de Outubro de 2008 e 15 de Novembro de 2008, altura em que saiu intempestivamente do indicado clube.

2. No exercício de tais funções foi o arguido incumbido de treinar os escalões mais jovens do clube, estando a seu cargos diversas crianças com idades compreendidas entre os 8 e os 11 anos de idade.

3. Os treinos decorriam duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras, durante uma hora, com início cerca das 18:00, nas instalações do clube na localidade de ----, área desta comarca.

4. Nessa mesma altura, o arguido, aproveitando-se da livre disponibilidade de contactos que tinha com tais jovens - sem supervisão de terceiros, mercê das funções então exercidas, bem como da confiança por aqueles em si depositada, e começou a criar situações para ficar a sós com qualquer um daqueles, a fim de satisfazer os seus impulsos lascivos, e levar que os mesmos suportassem actos de cariz sexual consigo.

5. Assim, em data não concretamente apurada, mas que se circunscreve entre a época de 2007/2008 e o início da temporada de futebol 2008/2009 (mais concretamente entre finais de Outubro e 15 de Novembro de 2008), o arguido procurou no interior do balneário dos jovens BB, nascido a---.

6. Uma vez aí, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem sozinhos, o arguido abraçou BB por trás, envolvendo-o com os braços.

7. De seguida, apertou-o contra si e acto contínuo, por cima dos calções que aquele envergava no momento, apalpou as nádegas de BB;

8. Então, e ainda por cima dos calções, passou a apalpar-lhe o pénis, enquanto esfregava o seu pénis, vestido, nas nádegas de ...;

9. Isto posto, o arguido tentou puxar os calções de BB para baixo, o que não conseguiu uma vez que o jovem conseguiu puxar os calções para cima e libertar-se do abraço, fugindo daquele local;

10. Posteriormente, em data não concretamente apurada mas no período anteriormente referido o arguido voltou a procurar estar novamente sozinho com BB no interior do referido balneário, aí o tendo novamente abordado, abraçando-o por trás;

11. De seguida, o arguido apalpou as nádegas de BB, começou a acariciar-lhe o pénis, enquanto roçava o seu pénis nas nádegas daquele, também vestido.

12. Ainda com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, em data não concretamente apurada, mas entre a temporada desportiva de 2007/2008 e início da temporada de 2008/2009 – concretamente entre finais de Outubro de 2008 e 15 de Novembro de 2008, o arguido chamou LL, nascido em ..., ao balneário dos treinadores, ao que este acedeu;

13. Uma vez aí, aproveitando-se do facto de estarem sozinhos, o arguido puxou-lhe os calções e os boxers para baixo, tirou-lhe a camisola, assim deixando LL nu;

14. Acto contínuo, o arguido colocou-se por detrás de LL passando a apalpar-lhe as nádegas;

15. De seguida, o arguido, sem nunca tirar a sua própria roupa, esfregou por alguns minutos o seu pénis nas nádegas de LL enquanto lhe acariciava o pénis.

16. Momentos volvidos, o arguido ordenou que LL se vestisse e que voltasse ao balneário dos jovens solicitando que não contasse a ninguém.

17. Em data não concretamente apurada, mas situada no indicado período, nos dias ou semanas seguintes, o arguido repetiu esta conduta, por mais três vezes;

18. De igual forma, o arguido chamou LL ao seu balneário com o propósito de ficarem sozinhos e, uma vez aí, despiu-o, massajou-lhe as nádegas e o pénis, enquanto - sempre vestido - tocava com a zona genital nas nádegas do menor.

19. Em data não apurada, mas entre o decurso da época futebolística de 2007/2008 e início da temporada de 2008/2009 – concretamente entre finais de Outubro de 2008 e 15 de Novembro de 2008 - o arguido procurou DD, nascido em ... e o já identificado BB no interior da arrecadação do clube.

20. Uma vez aí, o arguido agarrou estes dois jovens tendo, no entanto, BB conseguido libertar-se e fugir daquele lugar.

21. Então, o arguido ficou a sós com DD no interior da referida arrecadação.

22. Acto contínuo, o arguido passou a massajar o pénis do menor durante alguns minutos.

23. Ainda para melhor satisfazer os seus impulsos sexuais, em data não concretamente apurada, mas situada entre o decurso da época futebolística de 2007/2008 e início da temporada de 2008/2009 – concretamente entre finais de Outubro de 2008 e 15 de Novembro de 2008, o arguido, com o propósito de ficar a sós com este, chamou EE, nascido a ..., ao interior do balneário dos treinadores.

24. Das primeiras vezes o arguido visando ganhar a sua confiança e à vontade, foi conversando casualmente com aquele, sobre os treinos e sobre a escola, tendo aproveitado para colocar as suas mãos nas pernas do menor.

25. Alguns dias volvidos, em data não concretamente apurada, mas no indicado período temporal, o arguido voltou a chamar EE ao interior do balneário, ao que este acedeu;

26. Aí, o arguido voltou a conversar casualmente com o menor, sobre os treinos e sobre a escola, só que desta vez colocou-se na retaguarda do EE, acto contínuo, manobrou o corpo deste, inclinando-o para a frente.

27. De seguida, e sem tirar ou baixar a sua própria roupa, o arguido esfregava demoradamente o seu pénis nas nádegas do mesmo;

28. O arguido persistiu nesta conduta pelo menos mais três vezes;

29. E na última vez em que tal ocorreu, ainda no interior do balneário, a sós com HH, e mantendo-se vestido, o arguido baixou-lhe os calções, deixando-o de bóxeres, roçando de seguida o seu pénis nas nádegas do referido menor.

30. O arguido era conhecedor da idade que os ofendidos EE, DD, CC e BB tinham à data da prática dos factos, o que não podia deixar de saber, mercê das funções que exercia.

31. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos sexuais supra descritos nos menores, fazendo-se valer do ascendente que possuía sobre as vítimas, decorrente da sua idade e experiência, das funções que desempenhava como treinador e da inerente autoridade e confiança que aqueles em si depositavam, e ainda, da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual das vítimas;

32. Ademais, tinha o arguido plena consciência que todas as descritas condutas, eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.

Factos referentes a HH.

33. O arguido MM é tio e padrinho de baptismo do ofendido HH, nascido a ---.

34. No Verão de 2009, o ofendido HH frequentava habitualmente a residência dos seus avós, próxima da sua, sita em ..., local onde também residia nessa altura o arguido AA.

35. Nesta conformidade, nos meses de Julho e Agosto de 2009 o ofendido HH deslocava-se pelo menos uma vez por semana à casa dos seus avós;

36. Assim, nestas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido levava HH para o seu quarto e uma vez ai, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem sozinhos, o arguido retirou o seu pénis para fora das calças e, de seguida, agarrou na mão do HH e levou-o ao mesmo, masturbando-se de seguida com aquela.

37. O arguido persistiu nesta conduta, pelo menos mais 9 vezes, logrando ficar a sós com HH no interior do seu quarto, na referida residência dos avós do menor, após o que retirava o seu pénis para fora e, de seguida, agarrava na mão do menor levando-a ao mesmo, masturbando-se de seguida com aquela.

38. Em Outubro de 2009 o arguido iniciou funções como docente, na Escola EB 1, ...;

39. E em Novembro 2009, funções como treinador de futebol no ....

40. Em consequência, o arguido arrendou alojamento, na localidade de ..., o qual se tratava de um anexo, constituído por um quarto, cozinha e casa de banho.

41. Em data não concretamente apurada, mas situada na Páscoa de 2010, tinha HH, 9 anos, este passou pelo menos 1 (uma) semana de férias sozinho com o arguido na cidade de ..., altura em que dormiam juntos no referido quarto.

42. Aproveitando-se de tal circunstância em noite não concretamente apurada de tal semana o arguido encostou-se ao menor HH, deu-lhe beijos na boca e acariciou-lhe o pénis por cima da roupa, durante alguns minutos.

43. No dia seguinte, o arguido voltou a deitar-se junto do sobrinho ---, tendo-lhe dado diversos beijos na boca;

44. Acto contínuo, retirou o seu pénis, que se encontrava erecto, para fora da roupa e introduziu-o na boca de HH tendo feito diversos movimentos de “vai-vem”, movimentos esses que perduraram alguns minutos.

45. O arguido repetiu esta conduta, em noites intercaladas até ao final das férias, pelo menos mais duas vezes, no interior do quarto, dando beijos na boca do menor, bem como introduzindo o seu pénis erecto na boca daquele durante alguns minutos.

46. Quando terminaram as férias o ofendido voltou a casa, não tendo contado a ninguém o sucedido por vergonha.

47. Em datas não concretamente apuradas, mas situadas no Verão de 2010 e pelo menos por uma ocasião, o menor HH voltou a passar uma semana de férias com o seu tio e arguido na supracitada residência em ---.

48. E à semelhança do que havia feito anteriormente, o arguido voltou a deitar-se junto do HH, tendo-lhe dado diversos beijos na boca;

49. De seguida, retirou o seu pénis, que se encontrava erecto, para fora da roupa e introduziu-o na boca de HH e também no ânus do menor, tendo, nestas circunstâncias, feito diversos movimentos de “vai-vem”, movimentos esses que perduraram alguns minutos.

50. O arguido levou a efeito tal conduta, em noites intercaladas, pelo menos três vezes, dando-lhe (ao menor/sobrinho) beijos na boca, bem como introduzindo o seu pénis erecto na boca e ânus, deste durante alguns minutos.

51. No final desse ano lectivo o arguido deixou a cidade de Leiria tendo ingressado, em Setembro de 2010, como docente na escola EB1---.

52. Nesta conformidade o arguido arrendou um apartamento na cidade de ---, em Rua não concretamente apurada, mas sita em Sacavém.

53. Assim, no verão de 2011, HH voltou a passar férias com o seu tio MM, novamente sozinhos e por um período de pelo menos uma semana, agora na referida residência em Sacavém.

54. Aí, em datas não concretamente apuradas, do Verão de 2011, o arguido, em ocasiões distintas, beijou HH na boca, e introduziu o seu pénis erecto também na boca daquele;

55. De seguida, o arguido retirou as calças do pijama e os boxers de Pedro e acto contínuo introduziu o seu pénis, que se encontrava erecto, no ânus do menor, fazendo movimentos de “vai-vem” durante alguns minutos.

56. O ofendido sentiu dores, tendo feito esforço para não o demonstrar, mas não sangrou.

57. O arguido repetiu todas estas condutas, e em tal período temporal, pelo menos por mais duas vezes, em dias alternados, sempre procurando o seu sobrinho durante a noite, beijando-o na boca, introduzindo-lhe o seu pénis erecto quer na boca, quer no ânus, durante alguns minutos, efectuando os referidos movimentos de “vai-vem”.

58. No mesmo verão de 2011, em momento diverso do atrás aludido, o ofendido HH tornou a passar cerca de duas semanas de férias com o seu tio, agora no apartamento por este arrendado, em ---.

59. Nestas circunstâncias o arguido, em noites alternadas da primeira semana, e pelo menos por três vezes, voltou a procurar o sobrinho HH e uma vez aí, beijava o ofendido na boca e introduzia o seu pénis erecto na boca e no ânus do menor, durante alguns minutos, efectuando movimentos de “vai-vem”.

60. Na segunda semana, o irmão do menor (de seu nome ---) --- foi passar férias com ambos, pernoitando na mesma residência, após o que regressaram os três, no final da semana ao ----.

61. Acresce que, no decurso do verão de 2011, na residência de HH, situada na Rua ...., área desta comarca, o arguido encontrava-se a brincar com aquele na sala, enquanto a mãe OO preparava o almoço.

62. Então, aproveitando-se do facto de estar sozinho com o sobrinho e afilhado HH, o arguido sentou-o ao seu colo e retirou o pénis daquele, que se encontrava erecto, para fora da roupa.

63. Acto contínuo, manipulou o pénis de HH, masturbando-o, por um período não concretamente apurado.

64. Em data também não determinada, mas posterior às férias lectivas de Verão do ano de 2011 e anterior a Maio de 2012, o arguido AA veio passar férias a casa dos seus pais, ao ---- (onde também residia quando aí ficava).

65. Nessa mesma altura, o ofendido HH foi também ele passar dois dias a casa dos seus avós, altura em que dormiu no mesmo quarto, sozinho, com AA.

66. Nessas duas noites, o arguido, mercê da circunstância supra descrita, beijou HH na boca, acariciou-lhe o pénis, tendo, ainda, introduzido o seu pénis erecto na boca e no ânus daquele, por período de tempo não concretamente apurado.

67. O arguido tio e padrinho de HH tinha perfeito conhecimento da idade deste, em todas as enunciadas circunstâncias fácticas.

68. E agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos sexuais supra descritos com e no menor HH, fazendo-se valer do ascendente que sobre ele possuía decorrente da sua idade, experiência, relação de parentesco e afectividade que este por si nutria, assim como da inerente autoridade e confiança que aquele em si depositava, e ainda, da sua ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual.

69. Ademais, tinha o arguido plena consciência que todas as descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.

Factos ocorridos como professor na escola EB1---.

70. O arguido AA --- como docente na referida escola EB1 ---, situada na ---, ministrava aulas de educação física, assim como aulas de apoio nas disciplinas de Português, Matemática e estudos do meio a alunos com necessidades educativas especiais com idades compreendidas entre 7 e os 10 anos.

71. O arguido foi professor nessa mesma escola durante os anos lectivos de 2010-11, 2011-12 e 2012-13.

72. Entre outros, o arguido deu aulas de apoio a GG, nascido em --- e a NN , nascido a ---.

73. As aulas leccionadas pelo arguido aos menores FF e GG tiveram o seu começo no 2º período escolar do ano lectivo de 2011/2012, com início em 10 de Abril de 2012 e termo no final do ano lectivo de 2012/2013, ocorrido em 14 de Junho de 2013, e contabilizaram um total de 48 aulas de 45 minutos, em simultâneo, no ano lectivo 2011/2012 e de 56 aulas de 45 minutos, em separado, no ano 2012/2013;

74. As referidas aulas decorriam nas instalações da referida escola, em dias não concretamente apurados da semana, e no enunciado período temporal e número de vezes, encontrando-se por essa ocasião, e na maioria das vezes, o arguido a sós com os referidos alunos na sala.

75. Logo que iniciou as mencionadas aulas de apoio, o arguido com intuito de satisfazer os seus impulsos sexuais sentava quer o menor GG, quer o menor NN, de forma alternada e por vezes simultaneamente, no seu colo, de costas viradas para si, e acto contínuo, esfregava demoradamente a sua zona genital no corpo daqueles, sempre por cima da roupa.

76. De igual modo, e nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido acariciou por número não concretizado de vezes as nádegas dos referidos menores, sempre por cima da roupa.

77. O arguido persistiu nesta conduta de forma reiterada e sucessiva, a qual teve lugar em todas as aulas de apoio ministradas pelo arguido aos menores, simultânea ou individualmente.

78. Os ofendidos GG e NN, tinham então idades compreendidas entre os 8 e 10 anos de idade, facto esse que o arguido, mercê das funções que exercia sabia.

79. O arguido agiu de forma livre e voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos sexuais supra descritos nos menores NN e GG, fazendo-se valer do ascendente que possuía sobre as vítimas, ascendente esse decorrente da sua idade e experiência, das funções que desempenhava como professor e a inerente autoridade e confiança que aqueles em si depositavam, e ainda, da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual das vítimas.

80. Ademais, tinha o arguido plena consciência que todas as descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.

Factos referentes a II.

81. O arguido em Outubro de 2011 foi contratado pelo Sport ---, para aí exercer as funções de treinador de futebol, estando encarregado dos escalões mais jovens do clube.

82. Em data não concretamente apurada do verão 2012, o arguido conheceu II, nascido a ---, então com 10 anos, enquanto aquele jogava futebol num parque público na zona da ---.

83. O arguido, o menor e irmão deste PP entabularam então conversa, tendo o menor tido conhecimento no parque que aquele ia treinar o ---.

84. O arguido elogiou as características técnicas do menor II, dizendo-lhe que poderia transformar-se num grande jogador.

85. Nesta sequência o menor II mostrou interesse em ingressar no indicado clube.

86. Em Outubro de 2012, o arguido MM, depois de deixar o Sport --- foi contratado pelo Sport ---, em ---, para aí exercer as funções de treinador de futebol dos Benjamins --- estando a seu cargo diversos jovens nascidos em 2002.

87. No início do mês de Outubro de 2012, o menor II ingressou nesse mesmo clube (---), sendo orientado pelo arguido.

88. Sucede, porém, que o II provinha de um agregado familiar desestruturado, com historial de violência doméstica e de carências financeiras.

89. O arguido, ciente das características de tal agregado e, com o intuito de conquistar o II e, assim, ganhar a sua confiança, começou a comprar-lhe diversos presentes, entre os quais roupa, sapatilhas, material desportivo, pagando-lhe refeições;

90. E mais tarde e subsequentemente um telemóvel, transportes e viagens. 

91. Algum tempo decorrido depois do primeiro contacto, e com o propósito de estar a sós com o menor, o arguido abordou a progenitora do II, QQ, solicitando que este pernoitasse em sua casa na véspera dos jogos.

92. Para o efeito, o arguido alegou que tal seria melhor para o II já que ele próprio se encarregaria de efectuar o transporte do jovem para os jogos, ao que a progenitora acedeu.

93. Então, desde data não concretamente apurada de Outubro de 2012, II passou a pernoitar às sextas-feiras, na referida residência que o arguido arrendara, situada na freguesia de---, e na mesma cama.

94. Na terceira noite que o II pernoitou consigo e quando este regressava do banho, o arguido abraçou o menor por trás, deu-lhe beijos no pescoço e na cara e apalpou-lhe as nádegas.

95. Após o jantar, quando ambos se encontravam deitados na cama o arguido tentou colocar o seu pénis desnudado no ânus do menor II, na sequência do que este disse para parar;

96. Após o arguido, deitado na cama ao lado do menor manipulou o seu pénis, masturbando-se.

97. Na sexta-feira seguinte (a quarta noite em que o menor pernoitou na residência de AA ) o arguido quando se encontrava deitado com II, tornou a apalpar-lhe as nádegas, tentando de seguida introduzir o pénis no ânus do menor, o que não logrou conseguir;

98. Acto contínuo, o arguido agarrou a mão do II e colocou-a no seu próprio pénis, tendo começado a masturbar-se, sempre com a mão do jovem no pénis.

99. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar o arguido também manipulava o seu pénis, masturbando-se e fazia idênticos movimentos de masturbação no pénis do II.

100. Isto posto o arguido, disse ao II, para não contar a ninguém, que “fazia pior”.

101. Acresce que, com vista a conquistar a confiança do II, por forma a perpetuar no tempo esta conduta, o arguido continuou a pagar diversas refeições e viagens, bem como a comprar diversos presentes, entre os quais roupa desportivas de marcas conhecidas.

102. Por outro lado ainda, da mesma forma, e com o mesmo intuito, o arguido ia dizendo ao II que gostava muito dele, que ele era muito querido e bonito, assim como o abraçava e dirigia-lhe expressões tais como “adomo-ti”, significando “gosto de ti, adoro-te e amo-te”, assim como “lindogirissimo”.

103. Mercê da confiança entretanto ganha junto do II, e a partir da quinta noite de sexta-feira que este dormiu em sua casa, o arguido não só apalpou a região genital e anal do II, masturbando-se com a mão daquele, como começou então a introduzir o seu pénis no ânus do jovem, fazendo movimentos de vai-vem.

104. Os actos sexuais supra descritos, excepto o consubstanciado na colocação da mão do menor no seu próprio pénis (que nem sempre sucedia), ocorreram em todas as noites (sextas-feiras) subsequentes que o II pernoitava com o arguido na residência deste. 

105. O arguido despido apalpava sempre as nádegas e a região genital do II, também ele nu;

106. Por vezes agarrava na mão do jovem e colocava-a no seu pénis, masturbando-se;

107. E introduzia sempre o seu próprio pénis no ânus do II e aí fazia movimentos de vai-vem durante algum tempo.

108. No final o arguido abraçava e dava diversos beijos na cara do II, enquanto lhe dizia “és o meu lindo.”

109. Em todas estas situações o arguido não usava preservativo.

110. As situações aludidas nos pontos 103 a 109, ocorreram, pelo menos, em 24 ocasiões distintas, correspondendo ao número de sextas-feiras, de 23 de Novembro de 2012 (correspondente à quinta sexta-feira em que II pernoitou em casa do arguido contada a partir da última Sexta-Feira do mês de Outubro de 2012) até à última sexta-feira de Maio de 2013 (dia 31), em que o menor pernoitou na residência do arguido, com excepção do período de férias escolares.

111. Em dias não concretamente apurados, mas entre 23 e 29 de Junho de 2013, no Algarve, quando as equipas do ---, designadamente, os Benjamins, participaram na ---, mas duas noites distintas, o arguido dormiu na mesma cama com o menor II;

112. Despido apalpou as nádegas e a região genital do menor, também ele nu, agarrou na mão deste e colocou-a no seu pénis, masturbando-se, e introduziu o seu próprio pénis no ânus do mesmo menor e aí fez movimentos de vai-vem durante algum tempo.

113. No período compreendido de 16 a 21 de Julho de 2013 o arguido deslocou-se à ---, para ir a uma entrevista de emprego no Centro de Reabilitação Psicopedagógica da ---, sito no ---.

114. Visando estar a sós com o menor, o arguido logrou convencer a progenitora do II a permitir que o mesmo o acompanhasse em tal viagem, assegurando o pagamento de todas as despesas, ao que aquela acedeu.

115. Já no --- o arguido e o II ficaram hospedados no R/c do edifício, por baixo da residência de RR, amiga do primeiro, situada no ---, ficando ambos a dormir no mesmo quarto.

116. Em todas as noites que ali pernoitaram, no período de tempo supra descrito, o arguido deitava-se na cama do II, estando este nu, passando a acariciar-lhe as nádegas e o pénis;

117. Agarrava a mão do II e levava-a ao seu pénis, masturbando-se com aquela.

118. Após introduzia-a o seu próprio pénis no ânus do II, fazendo movimentos de vai-vem.

119. Sucede, ainda, que enquanto se encontravam na madeira o arguido e nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, tentou por varias vezes introduzir o seu pénis na boca do menor II, o que logrou conseguir, por uma vez.

120. Ainda na ---, quando o arguido se encontrava com o II no banco de trás do veículo de RR, enquanto esta conduzia e o seu filho seguia no banco do pendura, o arguido colocou o seu casaco por cima das suas pernas;

121. Acto contínuo, agarrou uma das mãos do II e levou-a ao seu pénis, por baixo do casaco, levando a que aquele o apalpasse demoradamente.

122. Em data e por período não concretamente apurados, mas no Verão de 2013, o arguido solicitou à progenitora do II que esta permitisse que ele pernoitasse por duas ocasiões distintas em sua casa, então sita na Rua ---, já que tinha rescindido o arrendamento em virtude de ter aceitado um emprego na ---, ao que esta acedeu. 

123. Nessas ocasiões o arguido dormiu no mesmo quarto com o II e pelo menos por duas vezes (no cômputo das duas ocasiões) encontrando-se ambos nus, o arguido acariciou as nádegas e o pénis do referido menor;

124. Agarrou a mão do II e levou-a ao seu pénis, masturbando-se com aquela;

125. E introduziu o seu próprio pénis no ânus do II, fazendo movimentos de vai-vem.

126. Em Setembro de 2013, e na sequência da entrevista supra descrita, o arguido AA --- iniciou funções como docente do Centro de Reabilitação Psicopedagógica da --- ---, sito ---.

127. Na Madeira, o arguido contactava regularmente com o II, quer por telemóvel, quer pelo Facebook, trocando ambos mensagens nas quais o arguido dizia àquele “boa noite, dorme bem, és o meu lindo, és o meu filho”, “adomo-ti”, significando “gosto de ti, adoro-te e amo-te”, assim como “lindogirissimo”.

128. Por altura das férias do natal o arguido regressou à cidade de Lisboa, tendo abordado a progenitora do II no sentido de deixar que esta permitisse que o jovem passasse uma semana com aquele num hotel em Lisboa, ao que esta acedeu.

129. Assim, na semana de 17 a 22 de Dezembro de 2013 o arguido e o II ficaram hospedados no quarto n.º 304, do hotel ---.

130. Em quatro das cinco noites que o arguido aí pernoitou com o menor II, acariciou-lhe as nádegas e o pénis, agarrou na mão deste, levando-a ao seu pénis masturbando-se com esta;

131. E nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar usou vaselina com o que lubrificou o ânus do II e o seu pénis;

132. Acto contínuo introduziu o seu pénis no ânus do II, fazendo movimento de vai-vem durante alguns minutos.

133. Acresce que o II acompanhou o arguido pelo menos em três ocasiões distintas à residência dos pais deste, sita em ---, ----, duas vezes nas férias do verão de 2013 ao longo de uma semana cada, e uma outra vez no natal de 2013, no período compreendido entre 27 Dezembro de 2013 e 06 de Janeiro de 2014.

134. Ora, nessas três ocasiões o menor II dormia no mesmo quarto que o arguido;

135. E em todas as noites que ai pernoitou o arguido apalpava as nádegas e o pénis do menor e colocava a mão deste II sobre o seu pénis, masturbando-se;

136. E introduzia o seu próprio pénis no ânus do menor, fazendo movimentos de vai-vem.

137. Acresce ainda que, em datas não concretamente apuradas, quando II pernoitou com o arguido em ----, este, em duas noites distintas, ejaculou no interior do ânus do menor.

138. Em data não concretamente apurada, mas entre Novembro de 2012 e Janeiro de 2014, o arguido levou o II ao Centro Comercial --- tendo-lhe oferecido algumas peças de roupa.

139. Nessas circunstâncias de tempo e o lugar o menor II foi aos sanitários de tal estabelecimento comercial;

140. O arguido seguiu o menor e aí disse-lhe “agora vais pagar o que eu te comprei”;

141. De seguida conduziu o II para o interior de um dos compartimentos da casa de banho destinada a deficientes e aí, apalpou-lhe demoradamente as nádegas e o pénis e também introduziu o seu próprio pénis no ânus do menor, levando efeito movimentos de vai-vem.

142. No âmbito dos supra aludidos contactos de cariz sexual do arguido com o menor II, após ter começado a penetrá-lo no ânus e nas mesmas circunstâncias, aquele introduziu-lhe, também no ânus, por um número não determinado de vezes, o dedo.

143. Nos contactos de cariz sexual levados a efeito com e no menor II, logo após o seu início, e à excepção das duas vezes em que ejaculou no seu ânus descritas no ponto 137, o arguido, por número não concretizado de vezes, ejaculava, (não no interior do ânus de II ou em cima deste), mas na presença, do menor.

144. O ofendido II tinha à data da prática dos factos supra descritos 10 anos, e após 27 de Dezembro de 2013, 11 anos, facto esse que era do conhecimento do arguido.

145. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos sexuais supra descritos no e com o menor II, fazendo-se valer do ascendente que possuía sobre a vítima, ascendente esse decorrente da sua idade e experiência, das funções que desempenhava como treinado e a inerente autoridade e confiança que aquele em si depositava.

146. Para além do mais, o arguido aproveitou-se da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual do II, aliada à vontade que o mesmo tinha em tornar-se jogador de futebol, explorando ainda as circunstâncias concretas do seu agregado familiar, seduzindo-o com palavras carinhosas, e comprando o seu afecto com prendas, proporcionando-lhe ainda condições de vida que junto dos pais não podia ter.

147. Ademais, tinha o arguido plena consciência que todas as descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.

Dos factos referentes a JJ.

148. Em 16 de Setembro de 2013, o arguido AA iniciou funções como docente do Centro de Reabilitação Psicopedagógica ---, sito no ----.

149. Nesse mesmo estabelecimento o arguido era responsável por uma turma de cinco alunos com necessidades educativas especiais, duas do sexo masculino, com cerca de 18 anos, cada, e três do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 12 e 15 anos.

150. Ora, com o propósito de satisfazer os seus impulsos sexuais, o arguido aproximou-se de JJ, nascido em ---, jovem esse que se encontrava e encontra institucionalizado naquele centro desde os 3 anos de idade.

151. Com efeito, no intuito de ganhar a confiança de JJ, o arguido quando o menor ia ter consigo à sua sala, deixava-o utilizar a Internet, nomeadamente o facebook, no seu computador pessoal.

152. Nessas circunstâncias, em datas não concretamente apuradas mas situadas entre Setembro de 2013 e 13 de Fevereiro de 2014, e pelo menos por 20 (vinte) vezes o arguido apalpou o pénis de JJ, por dentro das calças e das cuecas deste e manipulava-o demoradamente, masturbando-o, tentando, pelo menos por uma vez, que este ejaculasse.

153. De igual modo e por número não determinado de vezes nas circunstâncias de tempo e lugar atrás referidas, o arguido beijou o menor JJ na boca.

154. E também no enunciado circunstancialismo, e pelo menos por uma vez, o arguido introduziu o pénis de JJ na sua boca fazendo-lhe sexo oral.

155. O ofendido JJ tinha à data da prática dos factos supra descritos 12 anos de idade facto esse que o arguido conhecia.

156. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, praticando os actos sexuais supra descritos no e com o menor, fazendo-se valer do ascendente que possuía sobre as vítimas, ascendente esse decorrente da sua idade e experiência, das funções que desempenhava como professor e a inerente autoridade e confiança que aquele em si depositava.

157. Para além do mais, o arguido aproveitou-se da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual do JJ, aliada à vontade que o mesmo tinha em utilizar o computador do arguido, facto esse que o arguido explorou.

158. Ademais, tinha o arguido plena consciência que todas as descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos.

Factos do pedido de indemnização civil deduzido por HH.

159. O demandante HH era uma criança carinhosa, afectuosa, comunicativa, extrovertida, brincalhona;

160. Não se deitava sem dar um beijo aos pais.

161. Em consequência da conduta do arguido deixou o fazer;

162. Deixou de gostar de coisas tão simples como passear, sempre que os pais lhe propunham ir visitar algum local preferia ficar em casa e recusava-se a sair;

163. Começou a fechar-se na casa de banho à chave;

164. Deixou de se vestir ou despir e tomar banho em frente aos irmãos e pais.

165. Na sequência dos factos descritos, isolou-se, andava triste, dias houve em que dormia e comia mal, recusando-se a sair a rua e a brincar com os amigos;

166. Tudo o incomodava e irritava;

167. Passou a não gostar da escola, a “implicar” com professores, funcionários e colegas;

168. Desceu as notas;

169. A mãe do menor foi em consequência do seu comportamento chamada à escola;

170. E o professor de moral chegou a levá-lo a secções de reiki.

171. A alteração de comportamento do ofendido EE levou os seus pais a procurar ajuda médica especializada.

172. Quando trabalhava no ----, foram muitas as vezes em que o arguido foi levar e buscar o ofendido EE à escola;

173. Foi o arguido que, muitas vezes, contactou os professores do ofendido EE, a fim de saber como é que aquele estava na escola, nomeadamente saber do seu desenvolvimento intelectual e notas e do seu comportamento;

174. E, quando a professora do terceiro ano informou os pais que o Pedro filipe estava a ter alterações de comportamento, criando conflitos, ofereceu-se para o levar a um psicólogo, Dr. ---, à data amigo do arguido, com quem o ofendido teve consultas.

175. O comportamento do arguido causou e causa ao ofendido HH dor, humilhação, angustia, medo, vergonha e insegurança para enfrentar amigos e familiares;

176. O ofendido HH recusa-se com frequência a ir à escola, sendo que, relativamente ao ano lectivo de 2014-2015, quis e mudou de estabelecimento de ensino.

177. Os pais do menor HH pagaram à respectiva mandatária a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

 Factos do pedido de indemnização civil deduzido por BB, CC, DD e EE.

178. Os ofendidos e assistentes BB, LL, DD e EE, em consequência da actuação do arguido sentiram angústia, medo e vergonha.

179. Deixaram de se vestir ou tomar banho em frente dos familiares.

180. Os Assistentes, DD e EE, deixaram de praticar futebol;

181. O assistente DD tornou-se excessivamente protector do irmão mais novo.

Factos do pedido de indemnização civil deduzido por II.

182. O arguido quando penetrava o menor II no ânus causava-lhe dor e desconforto, no dia e naqueles que imediatamente se lhe seguiram;

183. O menor II antes dos factos objecto dos presentes, era uma criança alegre, bem-disposta e tinha excelente aproveitamento escolar;

184. Após a sua ocorrência passou a revelar desinteresse pelas actividades escolares;

185. Passou a manifestar revolta;

186. Reprovou no ano lectivo de 2013/2014;

187. Sentiu e sente vergonha;

188. Foi e continua a ter acompanhamento médico.

Mais se provou:

189. O processo de socialização de AA iniciou-se no agregado de origem, composto pelos três irmãos, mais velhos, as três irmãs, mais novas, e pelos pais, grupo sustentado com o vencimento do pai, militar na ---, e a actividade da mãe como agricultora, com a colaboração do cônjuge e dos filhos, além da gestão e actividade doméstica.

190. A dinâmica familiar promoveu laços de vinculação avaliados como gratificantes e coesos, em ambiente onde AA sentiu o pai como transmissor de exemplos educativos, mas algo distante e parco na interacção com os filhos, funcionando a mãe como pólo de proximidade e de comunicação afectiva;

191. AA iniciou a aprendizagem escolar na idade normal, registou uma retenção no primeiro ciclo, concluiu o 12º ano aos dezanove anos e, paralelamente, desde os onze anos de idade dedicou-se à prática da modalidade de futebol, área em que foi adquirindo competências.

192. Aos dezassete anos começou a actividade de treinador de futebol, na Associação Recreativa de ---, e iniciou também a actividade de militante na política partidária, onde evoluiu em termos de representação, responsabilidade e cargos exercidos, até aos trinta anos de idade.

193. Ainda aos vinte e um anos de idade começou a frequência do curso de professor do ensino básico, no Instituto Superior de Ciências de Educação de ---, concluído aos vinte e sete anos;

194. E já em 2006 esteve em exercício lectivo no âmbito do programa AEC – Actividades Extra-Curriculares.

195. Mediante contratos de prestação de serviços exerceu a função de Coordenador Pedagógico ---, de Dezembro de 2007 ao final de Setembro de 2009, enquanto na esfera de acção política e partidária exerceu o cargo de Deputado Municipal na Câmara Municipal do ----, no período de 2005 a 2009.

196. No final de 2008, o arguido continuava integrado no agregado de origem, actualmente composto pelos pais, uma irmã, desempregada, um irmão, em actividade laboral, e embora outros irmãos estivessem autonomizados, a dinâmica sempre se caracterizou pela proximidade relacional, os laços de coesão, e a identidade como grupo familiar.

197. O núcleo paterno mora em habitação rústica, própria, com área de quintal e adequadas condições de habitabilidade, inserida em meio rural não referenciado a problemáticas sociais específicas, baseando-se a economia familiar nas reformas dos pais do arguido, com montantes actuais de €1100 e €295;

198. Em 2009, realizou a pós-graduação em educação especial. Candidatou-se ao exercício lectivo e, por oferta de uma escola, iniciou a 17 de Outubro desse ano a actividade docente, em ---, onde frequentou o curso de treinador de futebol grau II PRO-UEFA.

199. Desde então e consoante a dinâmica anual dos resultados dos concursos de colocação de professores esteve a leccionar em vários estabelecimentos de ensino, enquanto ia integrando as associações desportivas locais, conseguindo ser contratado como treinador de futebol de camadas jovens.

200. O arguido inseria-se com autonomia económica e residencial em espaços arrendados, enquanto ocupava o quotidiano na preparação e execução dos projectos relacionados com as actividades profissionais que realizava na sua perspectiva com vocação e gosto, e, interagindo com os alunos implementando relacionamentos com proximidade, afecto e cumplicidade.

201. AA foi visitando regularmente os seus familiares e manteve proximidade privilegiada ao afilhado, EE, sendo referenciado pelos pais e irmãs a apetência que cedo revelou em interagir com jovens, revelando-se comunicativo e afectuoso, mas pouco sabem acerca do seu estilo de vida desde que saiu do espaço familiar de origem, e na esfera afectiva a família não lhe conheceu namoros.

202. A existência do presente processo, cuja denúncia que respeita à situação do sobrinho, foi pelos pais e pelos restantes irmãos atribuída aos pais do menor e criticada, ao ponto de cortarem relacionamento com estes.

203. A imagem social do arguido no meio de origem foi referenciada ao seu trato adequado no relacionamento interpessoal, à capacidade para promover relações em contexto socio-comunitário, num grupo alargado de pares, pelo que foi adquirindo visibilidade social, facilitada pelos cargos que ocupou nas associações desportivas e no Município do ----. 

204. No meio comunitário e sendo do conhecimento geral da população, o presente processo teve impacto, quer por o arguido beneficiar de visibilidade social pelas actividades anterior e localmente exercidas, quer pelo mediatismo do processo e a tipologia dos crimes de que está acusado.

205. Percebe-se o repúdio social a tais comportamentos e o desfavorecimento da imagem do arguido, ainda que sem rejeição, e o desfecho do julgamento tem sido aguardado com tranquilidade, para o que terá concorrido a circunstância de AA estar afastado do meio residencial há vários anos.

206. O grupo familiar, à excepção dos pais do ofendido, reagiu ao conhecimento do presente processo com protecção e apoio ao arguido e manifestam disponibilidade para o acolher quando for colocado em liberdade, visitando-o com regularidade no estabelecimento prisional.

207. No cumprimento da medida de coacção o arguido tem apresentado uma postura com respeito ao regulamento interno e adaptada no relacionamento interpessoal com funcionários e outros reclusos.

208. O arguido ocupa o quotidiano na instituição prisional com as visitas regulares que recebe, com práticas desportiva e musical, e frequenta as sessões de yoga e relaxamento.

209. Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.

B. Não resultou provado com interesse para decisão da causa.

a) O arguido foi formalmente despedido das funções que exercia no Futebol----, em Novembro de 2008;

 b) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos pontos 5 a 11 da factualidade provada o arguido tentou beijar o menor BB na cara e no pescoço;

c) E tentou introduzir o seu pénis no ânus do mesmo menor (BB).

d) Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas de 19 a 22 dos factos provados, o arguido, introduziu a sua mão no interior dos calções de DD.

e) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas de 23 a 28 e à excepção do aludido em 29, o arguido baixou os calções do ofendido EE.

f) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas de 23 a 28 o arguido acariciou o rabo e o pénis do ofendido EE.

g) O local arrendado pelo arguido em Leiria tinha dois quartos, dormindo o arguido num e o menor HH, quando aí foi de férias, noutro.

h) O menor HH passou férias em Lisboa com o arguido no Verão de 2012.

i) Nas circunstâncias de tempo e lugar e relativas aos menores FF e GG, o arguido sentava-os virados de frente para si.

j) Foi o arguido quem se apresentou à progenitora do menor II, como treinador de futebol.

l) O menor II em Setembro de 2012 a convite do arguido ingressou no Sport --- e aí jogou.

m) No Sport --- o arguido treinava os Benjamins ---;

n) E nesse clube era o arguido quem pagava a mensalidade do menor II.

o) O arguido ejaculava usualmente no corpo do menor II.

p) Aquando das estadias do menor II com o arguido, na casa deste no ----, o menor dormia sozinho num quarto.

q) A casa de RR e local onde o arguido e o menor pernoitaram na Madeira situava-se na ---.

r) Na Madeira o arguido pediu ao menor II que introduzisse o seu próprio pénis no ânus do arguido o que não veio a acontecer porque aquele não conseguiu;

s) E da mesma forma, por várias vezes pediu ao II para este lhe introduzir o pénis na sua boca, o que aquele sempre recusou.

t) Na Madeira o arguido nunca conseguiu introduzir o seu pénis na boca do menor.

u) O arguido introduziu na sua boca o pénis do menor JJ, para além do descrito no ponto 154.       

Do pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido HH.

v) Em consequência da conduta do arguido o menor EE não gosta de tirar fotografias e não deixa que lhe tirem fotografias.

x) Os dias, meses e anos em que conviveu com o arguido foram dias de angústia, tristeza, e medo;

z) Foram muitos os dias em que não conseguia dormir ou descansar.

aa) Em várias consultas do EE com psicólogos e pedopsiquiatra foi gasto equivalente a €600,00 (seiscentos euros);

Do pedido de indemnização civil deduzido pelos ofendidos BB, LL, DD e EE.

bb) Os ofendidos até então crianças normais, em consequência do comportamento do arguido, tornaram-se infelizes, amedrontados, introvertidos, agressivos e inconformados.

cc) De crianças afectuosas e comunicativas passaram a ser calados e introvertidos, receosos por vezes até nas mais simples rotinas diárias;

dd) Ainda em consequência da actuação do arguido os assistentes BB, LL, DD e EE isolaram-se por vergonha e tornaram-se quase inacessíveis à comunicação e ao diálogo com familiares e  amigos.

ee) Tornaram-se crianças mais nervosas e receosas, cujo desgosto e sofrimento não passa despercebido;

ff) Vivem ainda, em grande angústia e sob stress, relembrando a par e passo as agressões de que foram vítimas.

Factos do pedido de indemnização civil deduzido por II.

gg) O menor II desenvolveu um quadro depressivo em consequência da conduta do arguido;

hh) Passou a refugiar-se em casa, fugindo do convívio social, transformando-se numa criança triste e solitária;

ii) Sofre de baixa auto-estima, desconcentração e transtornos do sono.”

B. Matéria de direito

1. De harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, é a partir da motivação do recurso interposto e das suas conclusões que se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente, a verificação da existência, ou não, dos vícios elencados no art.º 410.º, n.º 1, do CPP (cf. jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-05-1995, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 28 de Dezembro de 1995).

2. As questões suscitadas pelo recorrente, nas suas conclusões de recurso, reconduzem-se às seguintes:

– Enquadramento da sua conduta na figura do crime de trato sucessivo, e não na do concurso efectivo, nas situações em que tais crimes ocorreram num mesmo contexto situacional e temporal.

– Na sequência, redução das respectivas penas parcelares aplicadas.

– Redução, também, da pena única aplicada, que considera dever fixar-se em 16 anos de prisão.

Vejamos.

3. Enquadramento da conduta do recorrente

3.1. Sem questionar a decisão de facto proferida, que por isso se encontra definitivamente fixada, vem o recorrente invocar que o tribunal recorrido deveria ter concluído pelo enquadramento jurídico da sua conduta na figura do «crime único de trato sucessivo».

Em favor deste entendimento, alega o recorrente que tal tem sido a posição assumida pela doutrina e pela jurisprudência «nas situações em que os crimes sexuais envolvam uma repetitiva actividade prolongada no tempo», exigindo-se para a verificação de tal figura jurídica a existência de uma unidade resolutiva, unidade resolutiva esta que, em seu entendimento, se verifica no caso em apreço, já que a conduta é homogénea, prolonga-se no tempo, os tipos de ilícito individualmente considerados protegem essencialmente o mesmo bem jurídico, sendo a(s) vítima(s) também a(s) mesma(s).

Conclui, desta forma, que terá praticado, não os 329 crimes pelos quais foi condenado, mas sim:

- Quanto ao ofendido BB, atentos os factos provados constantes dos pontos 5 a 11 e 30 a 32 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal – e não os 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido CC, atentos os factos provados constantes dos pontos 12 a 18 e 30 a 32 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal – e não os 4 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido EE, atentos os factos provados constantes dos pontos 23 a 29 e 30 a 32 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal – e não os 4 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido HH, atentos os factos provados constantes dos pontos 34 a 37, 42 a 45, 48 a 50, 54, 55, 57 a 59, 61 a 69 do acórdão recorrido, 2 crimes de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e, 4 crimes de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.os 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - e não os 12 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e os 14 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido FF, atentos os factos provados constantes dos pontos 70 a 80 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal - e não os 104 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido GG, atentos os factos provados constantes dos pontos 70 a 80 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal - e não os 104 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido II, atentos os factos provados constantes dos pontos 93 a 125, 129 a 136, 138 a 141 e 144 a 147 do acórdão recorrido, 6 crimes de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal - e não os 4 crimes de abuso de sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal e os 60 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, em que foi condenado.

- Quanto ao ofendido JJ, atentos os factos provados constantes dos pontos 152 a 158 do acórdão recorrido, 1 crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal - e não os 19 crimes de abuso de sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal e o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, em que foi condenado.

3.2. É suscitada, assim, a questão da unidade ou pluralidade de infracções, tema central da dogmática penal.

Nos termos do art. 30.º, n.º 1, do Código Penal, «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

A nossa lei escolheu como factor decisivo a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados. A simplicidade da enunciação legal é, porém, enganadora, tendo a lei deixado à doutrina e à jurisprudência a solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes, ponto de partida da teoria do concurso.

Vejamos, pois, em primeiro lugar, ainda que de forma sintética, os contributos da doutrina para tal questão[2].

Os ensinamentos de Eduardo Correia[3] e de Figueiredo Dias[4] constituem os dois grandes marcos de referência no âmbito da concretização conceptual daquele preceito legal.

Para Eduardo Correia, a antijuridicidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou vários tipos de crime, pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

Assim, a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. O critério para averiguar acerca da existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – isto é, de determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. Sendo que, por cada vez que tal sucedeu, há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

A pedra de toque consiste, assim, segundo este autor, em determinar os critérios que permitem afirmar tal pluralidade de processos resolutivos. Ou seja, em determinar os critérios que permitem concluir se estamos na presença de uma ou de várias resoluções criminosas.

Tais critérios, defende Eduardo Correia, terão de passar pela análise do concreto modo como se desenvolveu o acontecimento exterior e, em particular, da conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Assim, há uma pluralidade de resoluções sempre que medeie entre as actividades do agente um intervalo de tempo tal que, de acordo com as regras de lógica e experiência comum, se possa afirmar que o agente as levou a cabo sem qualquer renovação do processo de motivação. O critério da conexão temporal não é, contudo, rígido, admitindo a prova de que o agente se determinou efectivamente de forma diversa da que resulta do critério da conexão temporal.

Em síntese, para Eduardo Correia, o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas.

Por sua vez, Figueiredo Dias apresenta uma construção dogmática algo diferente do tema da unidade ou pluralidade de crimes. Assim, para este autor, o critério para determinar quantos os crimes cometidos pelo agente é o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Ou seja, constituindo o crime um facto punível, o mesmo traduz-se numa violação de bens jurídico-penais, que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico. Pelo que, o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz: tal operação é que permite determinar quantos os crimes cometidos pelo agente.

A apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto deverá ser feita recorrendo a alguns (concretos) subcritérios fundamentais. Esses critérios são o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global.

As particularidades do caso concreto decidirão da premência de uns em detrimento de outros, podendo acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direcção ao mesmo resultado. Eles funcionam, assim, como indicadores da unidade ou da pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Assim, fazendo uso da síntese realizada por Leal-Henriques e Simas Santos:
«Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo torna-se necessário, além da pluralidade de tipos violados, o recurso ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (Eduardo Correia), ou pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexado com um resultado típico concreto (Figueiredo Dias)» [5].

3.3. Especificamente no que diz respeito à figura do crime de trato sucessivo (também denominada por crime habitual), invocada pelo recorrente, muito embora a mesma não se encontre expressamente prevista na lei, a doutrina tem-lhe vindo a fazer referência, cumprindo convocar, desde logo, o entendimento Lobo Moutinho que define tal categoria como o crime «em que a consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo»[6].

Assim, o ponto central da definição de tal categoria é a noção de actos reiterados, sendo que são actos reiterados « (…) a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não se “reiteram”»[7].

Porém, e uma vez que a reiteração e a homogeneidade também são elementos essenciais na densificação de outras categorias de crimes (como, por exemplo, o crime continuado), ainda segundo Lobo Moutinho, «para alcançar o sentido e alcance do protraimento da consumação mediante actos reiterados, torna-se necessário ter presente a evidente necessidade da sua delimitação de forma a não esvaziar de conteúdo as referidas figuras. Assim, em face dos dados legislativos e, muito particularmente, da clara generalidade das figuras da continuação criminosa, do concurso homogéneo de crimes e da tendência criminosa, impõe-se a conclusão de que apenas se pode admitir uma “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime»[8].

Assim, e em suma, os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles[9]. São, deste modo, apontados como exemplos de crimes habituais o crime de maus tratos, o crime de tráfico de estupefacientes e o crime de lenocínio.

Passemos agora em revista a jurisprudência sobre esta temática, especificamente quanto aos crimes sexuais.

Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. É admitida uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando exista uma mesma resolução criminosa, desde o início, assumida pelo agente[10].

Ilustrativo do raciocínio que está na base da configuração, é o que consta das seguintes passagens do acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Novembro de 2012 (Proc. n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1-5.ª secção), aborda a problemática dos crimes de abuso sexual de crianças que se prolongam no tempo, como crimes de trato sucessivo, afirmando:
« (…) quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como sexo, facilmente se transformam numa “actividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “actividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do “fornecedor” pequenas doses de cada vez, praticou, “pelo menos”, 200, 300 pu 365 crimes de tráfico (o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”) ou se praticou um único crime de tráfico, objectiva e subjectivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a actividade.
A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há um só crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal) quanto mais repetidos.
(…)
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva”, realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que, “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968:201 e 202, citado no “Código de Penal Anotado” de P.P. Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso de crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma».

Cita-se aí o acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 2008 (Proc. n.º 4830/07-3.ª), que, repudiando a qualificação de três condutas criminosas como constituindo um crime continuado, entendeu deverem as mesmas ser unificadas como crime de trato sucessivo, caracterizado «pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime».

Todavia, já antes, no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Julho de 2012 (Proc. n.º 1718/02.9.JOLSB), foi mantida a condenação do aí arguido pelo concurso de vários crimes de natureza sexual praticados contra o mesmo ofendido, referindo-se, então, após exaustivo levantamento doutrinal, que o comportamento do arguido evidenciava «uma persistente, e renovada, vontade de violar a lei e aviltar as vítimas e que, «em cada um dos actos sexuais praticados, e em relação a cada uma das vítimas, consumou-se uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras».

Na declaração de voto de vencido formulada no citado acórdão, de 29 de Novembro de 2012, o Conselheiro Manuel Braz pronuncia-se no sentido da inaplicabilidade, in casu, da figura do crime de trato sucessivo, dizendo:
«A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP].
O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).
Este autor, depois de definir o crime contínuo como o “crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)”, correspondendo “basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos”, caracteriza assim o crime habitual:
“O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.
Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.
O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.
É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.
(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.
Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.
Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.
Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º)».

Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).

Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).

Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração.

Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989).»

Mais recentemente, no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Setembro de 2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1), num caso em que o aí arguido fora condenado, em concurso efectivo, pela prática de vários crimes de abuso sexual de criança (sua enteada) e reivindicava a sua condenação pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual, entendeu-se:
«O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.»

No caso aí tratado, «as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado», inexistindo uma «unidade típica de acção». A renovação de acção criminosa reiteradamente desenvolvida produz, lê-se no mesmo aresto, o consequente e adequado resultado. Embora se verifique homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal, pelo que inexiste o crime de trato sucessivo.

Esta argumentação mereceu concordância no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Abril de 2015, proferido no Processo n.º 45/13.0JASTB.L1.S1, num caso em que o aí arguido fora condenado pela 1ª Instância, em cúmulo jurídico, na pena conjunta de 15 anos de prisão, respeitante à prática, «em autoria material e em concurso real» de 46 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, n.os 1 e 2, do Código Penal, e de um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176º, n.º 4, do mesmo Código. O Tribunal da Relação, todavia, nos casos em que os ofendidos foram objecto de repetidos abusos, afastou o concurso de crimes por ter entendido que «a solução do trato sucessivo é a mais ajustada a situações como a presente». Só assim não procedeu relativamente a um ofendido, em que autonomizou dois conjuntos de factos por, entre a prática daqueles e destes, terem decorrido cerca de 5 anos. Por via dessa qualificação e correspondente punição de cada um dos crimes em trato sucessivo e da atenuação das penas parcelares aplicadas por cada um dos crimes singulares, a mais elevada das penas parcelares passou para os 8 anos de prisão, enquanto a sua soma desceu para os 54 anos e 2 meses. A pena conjunta foi então fixada em 13 anos e 6 meses de prisão.

Considerou-se neste acórdão não se afigurar «como correcta a qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo, pelo que se considera que o arguido cometeu, em concurso real, os crimes especificadas na decisão da 1.ª instância», consignado-se, no entanto, que «a alteração da qualificação no sentido que entendemos ser o correcto reclamaria penas parcelares, pelo menos em bem maior número do que as consideradas pelo Tribunal da Relação, como se viu, e, por via do agravamento do correspondente somatório, uma pena conjunta mais elevada do que a cominada no acórdão recorrido, o que, traduzindo-se em reformatio in pejus, nos estaria vedado pela proibição estabelecida no art. 409.º, n.º 1, do CPP».

Discordou-se, pois, «da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo», convocando o entendimento perfilhado no voto de vencido aposto no citado acórdão deste Supremo tribunal, de 29 de Novembro de 2012, exprimindo, como se referiu, a sua concordância com a argumentação do acórdão de 17 de Setembro de 2014, também já mencionado.

Cita-se ali também, de entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Junho de 2013 (Proc. nº 1291/10.4JDLSB), que, «embora tivesse mantido a subsunção das condutas a crimes de trato sucessivo, pois a questão não integrava o objecto do recurso, não deixou de anotar que a decisão era, nesse ponto, “passível de gerar controvérsia” (sublinhamos), porquanto, (citando Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário do Código Penal”, 2ª edição, anotação 32 ao artº 30º, pág. 162) “sustenta-se … que se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador». De facto, refere o Acórdão, depois de uma inconsequente tentativa de alterar a figura do crime continuado, com a introdução de um nº 3 ao artigo 30º do CPenal pela Lei nº 52/2007, de 4 de Setembro que admitiu o crime continuado relativamente a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, desde que que estivesse em causa a mesma vítima, com a Lei nº 20/2010, de 3 de Setembro, o legislador, ao suprimir o segmento então acrescentado, ditou a sentença de morte do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais. O crime continuado foi, então, excluído desse tipo de crimes, sem qualquer excepção, ficando restringido à violação plúrima de bens jurídicos não eminentemente pessoais”».

A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é igualmente rejeitada no muito recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 25 de Novembro de 2015, proferido no processo n.º 27/14.5.JAPTM.S1, «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações.

E outras decisões deste Supremo Tribunal se podem convocar no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo[11].

Considera tal posição que o crime de trato sucessivo, englobando a realização plúrima e essencialmente homogénea do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, se basta com a prática de qualquer das condutas reiteradas praticadas, para que fique preenchido o tipo legal de crime, já que as mesmas são unificadas pela mesma «unidade resolutiva». Sendo que o tipo penal do crime de abuso sexual de crianças não é compaginável com tal figura jurídica, uma vez que, a específica configuração do crime de abuso sexual de crianças exige, pressupõe, a afirmação de uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado que desencadeiam e que, portanto, se autonomizam como tal.

O traço caracterizador da figura do crime de trato sucessivo residirá no facto de o crime, na sua estrutura típica, pressupor a reiteração, punindo-se, desta forma, a prática, antes de mais, de uma actividade, que pode consumar-se em um ou mais actos.

Assim, caso a estrutura típica do crime em causa não pressuponha tal reiteração, no sentido de que com tal tipificação não se pretende punir a prática de uma actividade, não será aplicável a figura do crime de trato sucessivo. Sendo que, considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.

Refira-se, ainda, que a eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura jurídica do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal realizada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, que excluiu expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.

O acórdão recorrido considerou, no caso concreto, verificarem-se «relativamente a cada um dos ofendidos (à excepção do ofendido DD) diferentes resoluções criminosas por parte do arguido, relativamente a cada um dos actos sexuais de relevo que praticou, sendo estes actos ainda passíveis de diferentes juízos de censura jurídico-penal, por afectarem de forma autónoma diferentes vertentes do bem jurídico que a norma visa proteger.

Existem várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias e horas diferentes, ter accionado e renovado os mecanismos da sua vontade para praticar os enunciados crimes sexuais e repeti-los, o que faz com que a cada uma dessas resoluções corresponda um crime».

Concluindo que «também não estamos perante um crime prolongado, ou de trato sucessivo, porquanto não se apresenta a conduta do arguido uma unidade resolutiva, posto que para tal se impunha uma conexão temporal que em regra, e de harmonia com os dados da experiência psicológica, levasse a aceitar que o agente executou toda a sua actividade, sem ter que renovar o respectivo processo de motivação».

Merece a nossa concordância a conclusão do acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual fixado em 329 crimes de abuso sexual de crianças, enquadramento juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo.

Com efeito, por um lado, estando em causa o tipo penal de abuso sexual de crianças, da análise da sua estrutura típica não se verifica que com o mesmo se pretenda punir uma actividade, ou seja estes crimes, transcrevendo opinião já citada, «não contemplam aquela “multiplicidade de actos semelhantes” que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado»[12].

Mais, ainda que assim não fosse – ou seja, mesmo que se admitisse a aplicabilidade da figura do crime de trato sucessivo, a reiteração da conduta do recorrente resultou de uma situação procurada, provocada e organizada pelo próprio recorrente. A reiteração criminosa não derivou de (nem se reconduz a) um único desígnio.

Na verdade, em relação a todos os menores, o recorrente fazendo uso da qualidade de treinador de futebol/professor, do ascendente que tinha com os mesmos, e quanto ao menor HH fazendo da relação de parentesco que tinha com este (era seu tio e padrinho de baptismo), estreitou as relações de proximidade com aqueles, no sentido de propiciar os encontros sexuais mantidos, todos em momentos temporais distintos e bem definidos. Ou seja, a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do recorrente em satisfazer os seus desejos, num total aproveitamento dos referidos contextos relacionais.

Em suma, em todas as concretas situações dadas como provadas, o recorrente renovou o desígnio criminoso, surgindo cada um deles de modo autónomo em relação aos propósitos criminosos anteriores, pois que em cada momento procurava e fomentava as oportunidades de contacto com os menores, o que se encontra, aliás, reflectido na factualidade dada como provada.

Perante a matéria de facto assente, verifica-se que os actos cometidos praticados pelo recorrente na pessoa de todos os menores ofendidos, com excepção do menor DD na pessoa do qual foi cometido um único crime, se encontram delimitados no espaço e no tempo com notável nitidez e riqueza de pormenores, não se observando aqui aquela situação difusa, imprecisa, designadamente quanto ao número dos episódios criminosos, que, para alguns, justificará o recurso à figura do trato sucessivo.

Como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal para que, no caso em apreço, se verificasse uma unidade criminosa teria de existir «um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas», sendo que, da análise da decisão de facto proferida se verifica que tal não sucedeu.

Ora, o que o acervo factual dado como provado demonstra é a existência de uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal.

Assim, a factualidade fixada no acórdão recorrido não é de caracterizar nos termos pretendidos pelo recorrente, ou seja não é enquadrável na figura do crime de trato sucessivo, pelo que se decide manter a qualificação jurídica ali efectuada, no sentido da existência de um concurso efectivo de crimes, improcedendo, nesta parte, o recurso.

4. Penas parcelares

 4.1. Como consequência da nova qualificação jurídica invocada pelo recorrente (reconduzindo a sua actuação, relativamente a cada menor, a vários crimes de trato sucessivo), o mesmo pugna, ainda, pela redução das respectivas penas parcelares aplicadas.

As molduras penais abstractamente aplicáveis aos crimes pelos quais o recorrente foi condenado são as seguintes:

- Quanto ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do Código Penal, pena de prisão de 1 a 8 anos;

- Quanto ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, pena de prisão de 3 a 10 anos de prisão;

- Quanto ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses e

- Quanto ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

Como vimos a qualificação jurídica pretendida pelo recorrente, não mereceu acolhimento, pelo que, e uma vez que o fundamento, pelo mesmo invocado, para a redução das penas parcelares, se reconduzia, essencialmente, a tal alteração da qualificação jurídica, terá, necessariamente que improceder a pretendida redução.

4.2. Ainda que assim não fosse, face às molduras penais abstractamente aplicáveis, atentos os critérios de escolha e determinação da pena, previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal confrontados com a factualidade dada como provada, sempre se considerariam adequadas as penas parcelares concretamente aplicadas ao recorrente.

Com efeito, os critérios que a lei fornece, para tanto, são os previstos nos artigos 40.º e 70.º do Código Penal: a pena não pode ultrapassar a medida da culpa e na sua concretização há que ter em conta a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Tendo em conta estes critérios, a fim de determinar a medida da pena há que ter atender não só às circunstâncias que fazem parte do tipo (na sua intensidade), como à imagem global do facto e todas as circunstâncias que neste contexto mais amplo, mas sempre com conexão com o facto, deponham contra ou a favor do agente (artigo 71º do Código Penal). Deste modo, obter-se-á um limite máximo constituído pela culpa e uma submoldura, que em caso algum ultrapassará este, condicionada por considerações de prevenção geral positiva, dentro do qual funcionarão considerações de prevenção especial (artigos 40º e 71º do Código Penal).

O acórdão recorrido fundamentou da seguinte forma a fixação das concretas penas parcelares aplicadas ao recorrente:

«No caso em apreço, são elevadíssimas as exigências de prevenção geral, a constante violação, nesta circunscrição judicial do mesmo tipo de ilícito é assustadora, sendo certo que o sentimento de reprovação social relativamente ao bem jurídico em causa é extensivo à comunidade do país em geral.

A prevenção especial faz-se sentir de modo particularmente intenso, na verdade, e sendo certo que não tem antecedentes criminais, e esteve sempre social e profissionalmente integrado, protagonizou ao longo de praticamente cinco anos, sucessiva e reiteradamente, a violação do mesmo bem jurídico, usou a respectiva profissão para melhor concretizar os seus intentos, não se deixando sequer intimidar pelo facto de ter sido surpreendido, ainda que não denunciado, relativamente aos factos de ---, para continuar a delinquir.

Vejamos, então, quais as circunstâncias a relevar em sede de determinação da medida concreta das penas (art. 71º, nº 2 do C.P.):

- o dolo intenso (directo, dada a definição do art. 14º, nº 1 do C. Penal e a matéria fáctica provada), relativamente a toda a actuação;

- a ilicitude dos factos, muito elevada, consideradas as concretas condutas praticadas pelo arguido, de entre a vasta plêiade de condutas que podem preencher o tipo legal de ilícito em questão, que se impõe serem diversamente valoradas;

- a pouca idade dos ofendidos, portanto, naturalmente dispondo de menos defesas, tanto a nível físico como psicológico, principalmente quando em comparação com a idade do arguido, homem adulto;

- a consequências da conduta do arguido, com particular relevância no que concerne aos ofendidos HH e II, não perdendo de vista relativamente a todos, que as consequências pessoais dos factos para as vitimas, são excepcionalmente elevadas, já que as condutas de natureza sexual, por mais simples que se apresentem, prejudicam gravemente o desenvolvimento da sua personalidade, a qual se encontra em fase de crescimento e maturação;

- o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, que é elevadíssimo, pois que era pessoa com contacto privilegiado com os ofendidos, em razão dos laços familiares (quanto ao ofendido seu sobrinho) e inerentes às funções quanto aos demais;

- o prolongamento no tempo das condutas – neste particular destacando-se os identificados ofendidos (HH e II) e ainda, os ofendidos FF, GG e JJ;

- o contexto e locais, em que os actos praticados foram levados a efeito, meio escolar, desportivo, até na casa dos pais e avós do ofendido HH, na casa do II, na casa de banho de um Centro Comercial e até numa viatura com outras pessoas no seu interior;

- por outro lado, sem olvidar a situação pessoal, social e profissional em que vivia, antes e à data dos factos, e aquela que decorre do meio familiar e social em que cresceu, assim como a ausência de antecedentes criminais, tal apresenta-se pouco relevante em face da conduta prolongada que protagonizou e que apenas viu interrompida com a sua detenção;

- As já enunciadas exigências de prevenção geral.»

Atendendo a estes factores enunciados no acórdão recorrido, que aplicou de forma muito correcta os critérios previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, consideramos serem adequadas e proporcionais ao caso concreto as penas parcelares aplicadas.

Na verdade, como bem se acentua no acórdão recorrido, estão em causa exigências de prevenção geral elevadíssimas, bem como de prevenção especial, em face da conduta prolongada que o recorrente protagonizou e que apenas viu interrompida com a sua detenção, apresentando-se, pois, como pouco relevantes para aferir das referidas exigências de prevenção especial, a ausência de antecedentes criminais do recorrente e a sua inserção social. O grau de culpa é também elevado, uma vez que o recorrente actuou com dolo directo, sendo a ilicitude dos seus actos intensa, atenta a idade dos menores, e as circunstâncias e o contexto em que a prática dos factos ocorreu, aproveitando-se da confiança que no mesmo era depositada na sua qualidade de professor/treinador/tio/padrinho.

4.3. Assim, e tendo em conta que, mesmo quanto às penas parcelares de maior dimensão (de 8 anos e de 7 anos e 2 meses de prisão), elas foram fixadas ainda dentro da metade inferior das respectivas molduras penais abstractamente aplicáveis, afigura-se-nos que as penas parcelares concretamente fixadas são adequadas e justas, motivo pelo qual se devem manter, improcedendo também, neste aspecto, o recurso interposto.

5. A pena conjunta

5.1. Resta, agora, apreciar a redução da pena única aplicada para 16 anos de prisão, peticionada pelo requerente.

           Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo nesta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

            A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo, contudo, ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas pelos vários crimes (n.º 2 do citado preceito legal).

           Assim, face a tal preceito legal, e tendo em conta as penas parcelares concretamente aplicadas, a moldura penal abstractamente aplicável ao concurso em apreço teria como limite máximo 917 anos e 6 meses de prisão, que é reduzido a 25 anos de prisão atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, e como limite mínimo, uma pena de 8 anos de prisão.

Tendo em conta os critérios enunciados no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, importa considerar, na pena única em conjunto, a gravidade de todos os factos praticados pelo arguido, bem como a personalidade por ele manifestada e as respectivas condições pessoais apuradas.

Com efeito, a medida da pena unitária a fixar, englobando uma série, mais ou menos extensa, com uma amplitude, de maior ou menor grau, de várias condenações, por diversas condutas, homótropas ou não, reveste-se de uma especificidade própria.

Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, mais abrangente, com maior latitude, da atribuída a cada um dos crimes, com a pena parcelar mais elevada a funcionar como limite mínimo e tendo como limite máximo 25 anos.

Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, uma pena final, de síntese, correspondente a uma resposta/definição a/de um novo ilícito (agora global), e a uma nova culpa (agora outra culpa, ponderada pelos factos conjuntos, em relação), uma necessária outra específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.°, do Código Penal.

Como refere Maia Gonçalves, «na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor a personalidade do agente, a qual deve ser objecto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário»[13].

A esse nível refere o acórdão do STJ de 12-09-2012, proferido no processo n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª secção:

«Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos e sobre as razões que levaram à fixação da pena unitária escolhida.»

No fundo importará formular um juízo que tem de partir da conjugação e correlação entre os factos para apreciação do ilícito global e deve conter também as referências à personalidade do arguido, de modo a permitir formular um juízo sobre o modo como esta se projectou nos factos ou foi por eles revelada (ocasionalidade, pluriocasionalidade ou tendência), tal como o exige o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.

Pugnando pela fixação da pena única em 16 anos de prisão refere o recorrente, «[n]a fixação da pena única haverá ainda que atender, aos factos, à personalidade do arguido e ainda, por comparação a outras molduras penais previstas no Código Penal, que a pena a fixar, pese embora os factos imputados ao arguido seja bastante graves, não deverá equiparar-se a um caso de homicídio qualificado, cuja pena se fixaria entre os 12 e os 25 anos de prisão».

A nível jurisprudencial, não se surpreenderam situações em que estivesse em causa a prática de um tão elevado número de crimes, como no caso em apreço, pelo que, uma qualquer tentativa de análise comparativa das penas únicas aplicada, em casos idênticos, resulta gorada. No entanto, cumpre dar nota do acórdão deste Supremo Tribunal em que, em abuso sexual de crianças, foi aplicada a pena de 19 anos de prisão pela prática reiterada desse tipo de crimes, «em número tão elevado (17, sendo que 16 deles são consubstanciados pela prática de actos em massa), atingindo 6 crianças, num período alargado de 4 anos». Como se decidiu aí, «Entre o limite mínimo de 8 anos (pena singular mais elevada) e o limite máximo de 25 anos de prisão (a soma total de todas as penas singulares é de 80 anos e 3 meses), a pena conjunta de 19 anos de prisão responde adequadamente ao defeito da personalidade do recorrente e à tendência criminosa que se projecta no ilícito global».

No caso presente é evidente a conexão entre os vários crimes de abuso sexual de crianças cometidos pelo recorrente, estando em causa condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto, inclusive a nível do concreto modo como os crimes foram praticados, designadamente no que diz respeito aos específicos actos sexuais praticados.

A culpa, face ao lapso de tempo em causa (cerca de 6 anos), ao número de vítimas envolvidas (9), às respectivas idades, e à relação de ascendência que o recorrente tinha sobre as mesmas, e de que se aproveitou para levar a cabo os seus desígnios criminosos, é elevada.

Como já referido, as exigências de prevenção geral são elevadas, o mesmo sucedendo com as exigências de prevenção especial.

Contudo, não obstante o número elevado de crimes em causa, o que é certo é que, como referido pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, todas as penas parcelares aplicadas «se encontram muito distantes, quer das suas respectivas molduras abstractas, quer do limite máximo da moldura do concurso, o que não pode, cremos, deixar de ser tomado em conta para a fixação da pena conjunta».

Dever-se-á ter em conta, de igual forma, que o recorrente não tem registados antecedentes criminais e que, apesar de tudo, sempre teve hábitos de trabalho, sendo que a pena aplicada de 25 anos de prisão constitui o limite máximo permitido pelo nosso ordenamento jurídico-penal, correspondendo à pena prevista para a tutela do bem jurídico mais elevado, ou seja, a vida.

Por fim, cumpre sublinhar que, como referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Novembro de 2010, proferido no processo n.º 93/10.2TCPRT.S1-3.ª secção[14]:
«Com a fixação da pena conjunta não se visa ressancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do arguido em que foram cometidos vários crimes».

5.2. Assim, ponderados todos os elementos supra referidos, considerando a dimensão e a gravidade global do comportamento do recorrente, estando em causa condutas gravíssimas, considera-se como adequada e proporcional a fixação da pena única em 20 (vinte) anos de prisão.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, AA, no que concerne à integração das condutas dadas como provadas na figura do crime de trato sucessivo, bem como no que respeita às penas parcelares, que se mantêm;

- Julgar parcialmente procedente o mesmo recurso, no que diz respeito à pena única, fixando-se a mesma em 20 (vinte) anos de prisão, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Sem custas, nos termos dos artigos 374.º, n.º 3, 513.º, n.os 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do CPP.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 13 de Janeiro de 2016

Texto elaborado e revisto pelo relator (artigo 94.º, n.º 2, do CPP)


Os Juízes Conselheiros

MANUEL AUGUSTO DE MATOS

ARMINDO MONTEIRO


-------------------------------


[1]             Acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2012.pdf. Os demais acórdãos do Supremo tribunal de Justiça que se indicarem sem outra menção encontram-se disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[2]             Apud Ana Maria Barata de Brito, “Notas da teoria geral da infracção na prática judiciária da perseguição dos crimes sexuais com vítimas menores de idade”, Revista do CEJ, n.º 15, págs. 293 a 316.
[3]             A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1996, Almedina.
[4]             Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, tomo I,  2.ª edição, 2007, Coimbra.
[5]             Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, 2002, Rei dos Livros, pp. 384 e 385.
[6]             Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, Universidade Católica Portuguesa, pp. 617 e segs..
[7]             Lobo Moutinho, ob. cit., p. 617.
[8]             Ob. cit., pp. 618-619.
[9]             Cf., entre outros, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 4.ª ed., 1992, Verbo, p. 269, II, 1989, Verbo, p. 225; Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1949, Atlântida, p. 309, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, 1998, Verbo, p. 32, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 39 e Lobo Moutinho, ob. cit., p. 619.
[10]            Neste sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-03-2007 (Proc. n.º 1031/07-5.ª secção); de 17-05-2007 (Proc. n.º 1133/07-5.ª secção), cujo sumário está acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2007.pdf; de 23-01-2008 (Proc. n.º 4830/07-3.ª secção); de 29-11-2012 (Proc. n.º 862/11.6TDLSB.P1.S1-5.ª secção); de 12-06-2013 (Proc. n.º 1291/10.4JDLSB.S1-5.ª secção), e voto de vencido formulado pelo Conselheiro Maia Costa no acórdão de 14-05-2009 (Proc. n.º 36/07-5.ª secção), CJSTJ, 2009, tomo 2, p. 221.
[11]            Neste sentido, de entre outros, acórdãos de 13-07-2011 (Proc. n.º 451/05.4JABRG.G1.S1-3.ª secção); de 2-09-2012 (Proc. n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª secção); de 22-01-2013 (Proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª secção); e de 22-04-2015 (Proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª secção).
[12]            No voto de vencido formulado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-11-2012.
[13]            Código Penal Anotado e Comentado, 15.ª edição, p. 277.
[14]            Acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2010.pdf.