Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
469/10.5T4AVR.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RETRIBUIÇÃO INFERIOR À REAL
REPARTIÇÃO DE RESPONSABILIDADES
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - CONTRATO DE SEGURO.
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO DE TRABALHO / RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA / RESPONSABILIDADE DA ENTIDADE PATRONAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 427.º.
DECRETO-LEI N.º 143/99, DE 30 -4, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO-LEI N.º 382-A /99, DE 22-9: - ARTIGO 71.º, N.º1.
LEI N.º 99/2003, 27-8: - ARTIGOS 3.º, N.º1, 3.º, N.º 2, E 21.º, Nº 2.
LEI N.º100/97, DE 13-9 (LAT): - ARTIGOS 37.º, N.º3, 38.º, 41.º, N.º1, ALÍNEA A).
LEI Nº 98/2009, DE 4-9: - ARTIGOS 187º, Nº 1, 188º.
"NORMA 12/99-R", DE 8-11 (PUBLICADA NO D.R. II, SÉRIE, DE 30/11/99), APROVOU A "APÓLICE UNIFORME PARA TRABALHADORES POR CONTA DE OUTREM" (COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELAS NORMAS N.ºS 11/2000-R, DE 13-11, 16/2000-R, DE 21-12, E 13/2005-R, DE 18-11 (ESTA ÚLTIMA PUBLICADA NO DR II, Nº 234, DE 7/12/2005): - ARTIGO 12.º.
PORTARIA Nº 633/71, DE 19-11: - CLÁUSULA 7.ª.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29/11/2006, PROCESSO N.º 06S2443, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I- A norma do nº 3 do artigo 37ºda Lei 100/97 de 13 de Setembro encerra uma enumeração meramente exemplificativa das prestações proporcionalmente a cargo da entidade empregadora e da entidade seguradora, quando a retribuição declarada para efeito de prémio for inferior à real.

II- Por isso, serão da responsabilidade da seguradora e da entidade empregadora, em valores a fixar na respectiva proporção, os subsídios devidos por situações de elevada incapacidade permanente, por obras de readaptação da residência do sinistrado, prestação suplementar por assistência de terceira pessoa e as despesas por transportes.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1---

Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho em que figura como sinistrado

AA, e como responsáveis

BB, S.A., e

CC, S.A., frustrada a tentativa de conciliação, foi requerido exame por junta médica. E realizada esta, foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte conteúdo:

“a) Que o sinistrado AA, em consequência do acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, sofreu uma desvalorização permanente parcial para o trabalho de 75%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

b) Condena-se a responsável seguradora a pagar-lhe uma pensão anual e vitalícia de 5 731, 70 euros - calculada à luz do artigo 17º, b) da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei 100/97 de 13 de Setembro) -, com vencimento em 29-10-2011, a que acrescem juros à taxa legal, a calcular desde tal data.

c) Condena-se a responsável seguradora a pagar-lhe o montante de 4 050 euros, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento de cada prestação e até efectivo e integral pagamento.

d) Condena-se a responsável seguradora a pagar ao autor o valor mensal de 310,04 euros para ajuda de terceira pessoa por 4 horas por dia.

e) Condena-se a responsável seguradora a adaptação de domicílio à medida do necessário à circulação da cadeira de rodas do Autor e à sua higiene tendo em conta a sua limitação.

f) Condena-se a responsável seguradora na atribuição de cadeira de rodas não obrigatoriamente eléctrica ao Autor.

g) Condena-se a responsável seguradora a prestar ao Autor, na medida das necessidades do mesmo, consultas regulares de fisiatria, urologia dor crónica e disfunção sexual.

h) Condena-se a responsável a pagar-lhe € 20 que o sinistrado gastou para se deslocar a Tribunal e ao GML de Santa Maria da Feira.

i) Condena-se a responsável entidade patronal a pagar ao Autor uma pensão anual e vitalícia de 1 708, 27 euros - calculada à luz do artigo 17º, b) da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei 100/97 de 13 de Setembro) -, com vencimento em 29-10-2011, a que acrescem juros à taxa legal, a calcular desde tal data.

j) Condena-se a responsável entidade patronal a pagar ao Autor 4 634, 77 euros, a título de diferenças compensatórias pelos períodos de incapacidade temporária.”

Inconformada com esta decisão, interpôs a seguradora BB recurso de apelação, pedindo que a sentença seja parcialmente revogada e substituída por decisão que condene também a ré patronal nas prestações em espécie, subsídio de alta incapacidade, indemnização de transportes e subsídio de ajuda constante de terceira pessoa, este reduzido à verba máxima mensal de € 225.

O Tribunal da Relação do Porto julgou parcialmente procedente o recurso, e revogando a sentença recorrida, decidiu que:


a) Rectifica-se a alínea c) da parte decisória da sentença recorrida pelo que onde se lê “ (…) a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária (…) deve ler-‑se “(…) a título de subsídio por elevada incapacidade permanente (…)”.

b) Condenar as Rés BB, S.A. e CC, S.A.,. a pagar ao Autor AA:

I – A quantia de € 4 050,00 (quatro mil e cinquenta euros), a título de subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1, alínea b) e 23º, ambos da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, sendo € 3 120,12 (três mil cento e vinte euros e doze cêntimos) a cargo da primeira e € 929,88 (novecentos e vinte e nove euros e oitenta e oito cêntimos) a cargo da segunda.

II – A quantia de € 242,50 (duzentos e quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos) a título de prestação suplementar de pensão prevista no artigo 19º da Lei nº 100/93, 13 de Setembro, com início em 29/10/2011, ficando tal quantia sujeita às actualizações previstas para a remuneração mínima mensal garantida, vigente em cada ano, para os trabalhadores do serviço doméstico, sendo € 186,82 (cento e oitenta e seis euros e oitenta e dois cêntimos) a cargo da primeira e € 55,68 (cinquenta e cinco euros e sessenta e oito cêntimos) a cargo da segunda.

III – A importância de € 20,00 (vinte euros) a título de despesas de transporte com deslocações obrigatórias ao Tribunal, sendo € 15,40 (quinze euros e quarenta cêntimos) a cargo da primeira e € 04,60 (quatro euros e sessenta cêntimos) a cargo da segunda.

c) Condenar as Rés BB, S.A. e CC, S.A., dentro das respectivas responsabilidades (77,04% para a primeira e 22,96% para a segunda):

I – Na adaptação de domicílio à medida do necessário à circulação da cadeira de rodas do Autor e à sua higiene tendo em conta a sua limitação.

II – Na atribuição de cadeira de rodas não obrigatoriamente eléctrica ao Autor.

III – A prestar ao Autor, na medida das necessidades do mesmo, consultas regulares de

fisiatria, urologia dor crónica e disfunção sexual.
d) No restante mantém-se a sentença impugnada.
e) Condenar a Recorrente e Recorrida/Ré no pagamento das custas da acção e do recurso de acordo com o respectivo decaimento (artigo 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
           
            É agora a entidade empregadora, CC, S.A, que inconformada, nos traz a presente revista, tendo rematado a sua alegação com a seguinte conclusão:
 
                O artigo 37°, n°3, da LAT, deve ser interpretado no sentido de que no caso de seguro parcial, apenas as despesas nele referidas são sujeitas à regra proporcional e não quaisquer outras nela não mencionadas, nomeadamente as prestações relacionadas com o subsídio de elevada incapacidade, a prestação suplementar com a ajuda de 3ª pessoa e as prestações referidas na alínea c) da parte decisória do acórdão, que sempre estariam sujeitas à responsabilidade da seguradora por não dependerem da retribuição do sinistrado.

            Pede assim que se revogue o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença da 1ª instância, na parte referida.

            A Seguradora também alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:

1 - A decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, ora posta em crise, não viola qualquer disposição legal.
2 - Pelo contrário, a posição defendida pela recorrente de revista, violaria flagrantemente o disposto no art.º 427º do Código Comercial.

            Pede-se assim que se mantenha o acórdão recorrido.

            Subidos os autos a este Supremo Tribunal emitiu o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto parecer no sentido da improcedência da revista, tendo rematado, em conclusão, que “a norma do nº 3 do artigo 37ºda Lei 100/97 de 13 de Setembro encerra uma enumeração meramente exemplificativa das prestações proporcionalmente a cargo da entidade empregadora e da entidade seguradora, quando a retribuição declarada para efeito de prémio for inferior à real”, o qual não suscitou qualquer reacção depois de notificado às partes.

            E preparado o processo para julgamento, cumpre decidir.
 
2----
            Para tanto, as instâncias apuraram a seguinte factualidade:

1. AA nasceu em …-01-19… e trabalhava como calceteiro sob as ordens, direcção e fiscalização de CC, SA.

2. No dia 04-05-2009, quando se encontrava a trabalhar numa estrada foi atropelado por um camião, sofrendo traumatismo dentário, no maxilar superior, traumatismo torácico, da clavícula esquerda, coluna vertebral e bacia.

3. Em consequência das lesões sofridas, ficou afectado de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 75%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, necessidade de auxílio de 3ª pessoa por 4 horas por dia, adaptação de domicílio, atribuição de cadeira de rodas não obrigatoriamente eléctrica e consultas de fisiatria, urologia dor crónica e disfunção sexual.

4. A responsabilidade infortunística-laboral encontrava-se transferida para a DD Companhia de Seguros, SA, mediante contrato de seguro pelo valor de retribuição anual de 8 818 euros.

5. O sinistrado auferia a remuneração anual ilíquida de 11 446, 12 euros.

6. Teve alta em 28-10-2011.

7. O sinistrado gastou € 20 em deslocações ao Tribunal e ao GML de Santa Maria da Feira.

3---

Insurgiu-se a seguradora contra o entendimento perfilhado na sentença proferida em 1ª instância por apenas a ter condenado a si no que se refere aos subsídios de alta incapacidade, por ajuda de terceira pessoa, encargo com as prestações em espécie e despesas de transporte, quando a entidade empregadora não havia transferido pela totalidade da retribuição do sinistrado a responsabilidade emergente do acidente de trabalho de que este foi vítima.

O acórdão recorrido acabou por lhe dar razão, fixando a responsabilidade da seguradora em 77,04% em relação a todas as prestações devidas ao sinistrado e a da entidade empregadora em 22,96%, atendendo a que a retribuição anual auferida pela vítima era de € 11 446, 12, mas só se encontrava transferida para a seguradora pelo montante anual de € 8 818.

É contra tal entendimento que reage a recorrente, entidade empregadora, advogando que o artigo 37°, n°3 da LAT (Lei 100/97), deve ser interpretado no sentido de que no caso de seguro parcial, apenas as despesas referidas no preceito estão sujeitas à regra proporcional e não quaisquer outras nela não mencionadas, pretendendo por isso que os valores relacionados com o subsídio de elevada incapacidade, a prestação suplementar por ajuda de 3ª pessoa e as prestações referidas na alínea c) da parte decisória do acórdão são da responsabilidade exclusiva da seguradora por não dependerem da retribuição do sinistrado.

Colocando-se a questão a decidir na revista nos termos acabados de referir, vejamos se a recorrente tem razão.

3-1----

Antes de mais temos de dizer que o regime aplicável ao acidente de trabalho dos autos é o da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, doravante designado simplesmente por LAT, que era o que vigorava em 4/05/2009, data da sua ocorrência.

Efectivamente, este regime começou a vigorar em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.

Por outro lado, embora o acidente se tenha verificado após a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o que se verificou em 1 de Dezembro de 2003[1], não se lhe aplica o correspondente regime jurídico por este carecer de regulamentação que nunca foi publicada[2].

Além disso, ainda não lhe é aplicável o regime da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, pois só se aplica aos acidentes ocorridos após 1 de Janeiro de 2000, conforme advém dos seus artigos 187º, nº 1 e 188º.

Assim sendo, e definido o regime legal, tudo se resume em determinar se, face ao estatuído no artigo 37º, nº 3 da LAT, a seguradora deverá ser considerada a única responsável pelo pagamento do subsídio por alta incapacidade, pela prestação suplementar devida pela assistência constante de terceira pessoa, pelos transportes e pelos encargos com as prestações em espécie devidos ao sinistrado, conforme advoga a recorrente, ou se em relação a tais prestações deve ser observada a regra da proporcionalidade em virtude da entidade empregadora não ter transferido para a seguradora a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho pela totalidade da retribuição auferida pela vítima, conforme decidido no acórdão impugnado.

Resulta do referido nº 3 do artigo 37º da LAT que, quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a entidade seguradora só é responsável em relação àquela retribuição. A entidade empregadora responderá, neste caso, pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transporte, na respectiva proporção.

Assim, e conforme advém da primeira parte do preceito, em caso de desconformidade entre o salário real do sinistrado e a retribuição declarada à seguradora para efeitos do prémio de seguro, a entidade empregadora e a entidade seguradora são responsáveis de acordo com a regra da proporcionalidade.

No entanto, na segunda parte da norma, elencam-se apenas três prestações que são abrangidas por esta regra da proporcionalidade: (i) despesas efectuadas com a hospitalização, (ii) assistência clínica e (iii) transportes.

Será que se quis restringir a regra da proporcionalidade a estas prestações, ou trata-se duma enunciação meramente exemplificativa?

Como refere o acórdão recorrido, ambas as teses têm os seus seguidores, argumentando os defensores da responsabilidade proporcional com o disposto na primeira parte do referido nº 3 do artigo 37º da LAT, e artigos 427º do Código Comercial e 12º da Apólice Uniforme.

Por outro lado, argumentam os seguidores da tese da exclusiva responsabilização da seguradora que subsídios de elevada incapacidade e para readaptação da habitação do sinistrado são calculados em função da remuneração mínima mensal garantida à data do acidente, conforme resulta dos artigos 23º e 24º da LAT, pelo que não dependendo a determinação dos seus valores da retribuição real auferida pela vítima, não há razão para observar a regra da proporcionalidade. E o mesmo acontece com a prestação suplementar devida pela necessidade de apoio de terceira pessoa, pois é fixada tendo em conta a remuneração mínima legalmente garantida para o serviço doméstico, conforme prescreve o artigo 19º nº 1 da LAT.

Concluem assim os seguidores desta tese que é por isso que o artigo 37º, nº3 da LAT não faz qualquer referência aos mencionados subsídios, pois o seu cálculo não é influenciado em nada pela retribuição real auferida pelo sinistrado, nunca se podendo dizer que a seguradora fique prejudicada com a responsabilização do seu montante total, pois as retribuições mínimas que estiveram na base dos seus cálculos são de valor inferior ao da remuneração transferida para a mesma e em função da qual recebeu os respectivos prémios.

Perante tal divergência de posições, vejamos como decidir.

3.1---

            Fazendo um breve excurso pelos antecedentes históricos dos vários regimes que já vigoraram para os casos de desconformidade entre a retribuição real do sinistrado e a que foi transferida para a seguradora, consagrava o artigo 28º da Lei 1 942 que, quando o salário declarado para efeitos de prémio de seguro for inferior ao auferido pelo sinistrado, a entidade patronal responde pela respectiva diferença e pela totalidade das despesas feitas pela entidade seguradora, nomeadamente as de hospitalização, assistência clínica e transportes.

            Tratava-se portanto dum regime altamente gravoso para as entidades patronais, pois respondiam perante o sinistrado pela diferença salarial não transferida para a seguradora e pela totalidade das despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica que lhes era prestada, bem como pela totalidade das despesas resultantes de transportes.

 

Alterando este regime, a base L da Lei 2127 de 8 de Agosto de 1965, veio consagrar que “quando o salário declarado, para efeito de prémio de seguro, for inferior ao real, a entidade seguradora só é responsável em relação àquele salário. A entidade patronal responderá neste caso pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transportes, na respectiva proporção.”

É nesta linha que se insere também o supra mencionado nº 3 do artigo 37º da Lei 100/97, constatando-se assim que o regime desta LAT segue o anteriormente adoptado na Lei 2127, que cortando com a orientação da Lei 1942, veio consagrar a regra da responsabilização proporcional da seguradora e entidade empregadora nos direitos do sinistrado que são calculados em função da sua retribuição real, proporcionalidade que deve ser observada também quanto às despesas de hospitalização, assistência clínica e transportes.

E naqueles direitos do sinistrado cujo cálculo não depende da retribuição real do sinistrado, como é o caso presente, deverá seguir-se a regra da responsabilidade proporcional ou imputar o seu pagamento integral à seguradora conforme sustenta a recorrente?

A questão já foi apreciada por este Supremo Tribunal no acórdão de 29/11/2006, processo 06S2443, disponível in www.dgsi, tendo a decisão recorrida aderido ao entendimento que nele fez vencimento, considerando que o nº 3 do artigo 37º da Lei 100/97 é meramente exemplificativo, concluindo assim que em relação aos direitos do sinistrado que estão em discussão no recurso vigora também a regra da sua repartição proporcional pela seguradora e empregadora. 

Também aderimos a este entendimento.

Efectivamente, e como se argumenta no Acórdão do STJ de 29/11/2006, acima referido, “[e]stá em causa a interpretação a conferir ao art.º 37º n.º 3 da L.A.T., que dispõe como segue:

"Quando a retribuição declarada para efeito de prémio de seguro for inferior à real, a entidade seguradora só é responsável em relação àquela retribuição. A entidade empregadora responderá, neste caso, pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transporte, na respectiva proporção".

Como se vê, o preceito versa sobre a desconformidade, para efeitos de seguro, entre o salário real e o salário declarado, começando por enunciar a regra da proporcionalidade para, logo após, individualizar três prestações por ela abrangidas.

O sentido literal da norma parece comportar as duas interpretações em confronto nos autos.

Com efeito, esse sentido literal tanto permite sustentar que a individualização operada é absolutamente taxativa - afastando por isso, todas as demais prestações - como permite defender a sua natureza meramente exemplificativa, feita com o mero propósito de expressar que essas prestações também se contêm na regra geral enunciada.

Mas o argumento das instâncias não deixa de impressionar: se, pela lógica das coisas, a regra da proporcionalidade se destina a impedir o prejuízo da seguradora, cujo risco e consequente prémio foram calculados em função de um salário inferior ao real, parece que nada justificaria a sua aplicação sempre que as prestações concretamente em causa sejam fixadas por outra via que não pelo recurso ao salário.

É dizer que, nesses casos, o cálculo correspondente, não dependendo da referência retributiva, seria sempre o mesmo, ainda que a responsabilidade estivesse transferida para a Seguradora pela totalidade do salário auferido pelo sinistrado.

Porém, uma análise mais cuidada do preceito logo inutiliza o argumento invocado: é que nenhuma das prestações individualizadas no texto da lei - relativamente às quais a mesma impõe, de forma expressa, a regra da proporcionalidade - pressupõe, para o seu cálculo, o recurso à componente retributiva, bastando-se com o valor concreto das despesas respectivas.

Ora, se o legislador responsabiliza a entidade patronal pelo pagamento proporcional de despesas cujo cálculo não é afectado pela remuneração (real ou declarada) do trabalhador, não se poderá validamente sustentar que tenha pretendido subtrair à regra da proporcionalidade todas as demais prestações cujo cálculo seja feito em moldes idênticos.

A menos que houvesse - mas não se vislumbra - uma específica razão para integrar nessa regra as prestações individualizadas e afastar as restantes.

Não sendo esse o caso, só podemos concluir que tal individualização assume natureza meramente exemplificativa, visto que incide, justamente, sobre prestações cujo cálculo se socorre de parâmetros idênticos àquele de que também se socorre o cálculo do subsídio questionado nos autos.

E devemos concluir também, em decorrência disso, que o citado art.º 37º n.º 3 estabelece uma regra geral de proporcionalidade, onde se inclui o falado subsídio

Mas, ainda que se não aceite a imperatividade dessa inclusão, é no mínimo pacífico que o preceito a não proíbe.

E, nesse caso, a resposta há-de ser encontrada na disciplina do Código Comercial alusiva ao Contrato de Seguro.

Na parte útil, releva o art.º 427º que, sob a epígrafe "Regime do Contrato de Seguro", estabelece:

"O contrato de Seguro regular-se-á pelas disposições da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código".

Como se vê, as estipulações da apólice - desde que não belisquem normas imperativas - sobrepõem-se ao acervo normativo do próprio Código, em matéria de regulamentação específica do contrato de seguro.

O art.º 38º da L.A.T. (como já antes fazia a Base XLIV da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965) consignou que a regulamentação do contrato de seguro do ramo "Acidentes de Trabalho" deveria constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.

Na sequência desse imperativo legal, a "Norma 12/99-R", de 30 de Novembro (publicada no D.R. II, Série, de 30/11/99) veio aprovar a "Apólice Uniforme para Trabalhadores por conta de Outrem".

O art.º 12º dessa "Apólice Uniforme", sob a epígrafe "Insuficiência da Retribuição Segura", estabelece que:

"No caso de a retribuição declarada ser inferior à efectivamente paga (...), o tomador de seguro responderá:

i) pela parte excedente das indemnizações e pensões;

ii) proporcionalmente, pelas despesas de hospitalização, assistência clínica transportes e estadas, despesas judiciais e de funeral, subsídios para situações de elevada incapacidade permanente e de readaptação, prestação suplementar por assistência de terceira pessoa e todas as demais despesas realizadas no interesse do sinistrado".

Como se vê, o preceito transcrito estabelece uma regra de proporcionalidade em termos idênticos aos do citado art.º 37º n.º 3 da L.A.T., mas inclui na sua previsão as prestações individualizadas neste artigo e, para além delas, todos os subsídios e prestações questionados nestes autos (designadamente o subsídio para readaptação da habitação do sinistrado) e ainda "... todas as demais despesas realizadas no interesse do sinistrado".

Tendo em conta o valor que o art.º 427º do Código Comercial confere às disposições da "Apólice Uniforme" - e porque a concreta repartição de responsabilidades, nela estabelecida, não é proibida por lei - só podemos concluir que a Ré empregadora responde proporcionalmente pelo pagamento do subsídio ora questionado.

Por outro lado, a história do artigo 37º, nº 3 da LAT aponta também neste sentido, pois e como já se referiu, este está na linha do regime instituído pela base L da Lei 2127.

E resultava também da cláusula 7ª da Portaria nº 633/71 de 19 de Novembro, que aprovou o modelo de apólice uniforme, que no caso de o salário ou ordenado declarado para efeito de prémio ser inferior ao efectivamente pago, o segurado responderá pela parte excedente das indemnizações e pensões. E responderá proporcionalmente pelas despesas de hospitalização, assistência clínica, transportes, despesas judiciais e de funeral e todas as demais despesas realizadas no interesse do sinistrado.

Por isso, e como assinala o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto no seu proficiente parecer, no domínio da vigência desta legislação, a jurisprudência conhecida[3] já vinha defendendo a aplicação da regra da repartição proporcional de responsabilidades entre a seguradora e o segurado nas despesas médicas, medicamentosas, de transporte, mas também nos custos de prestações em espécie exigidas pela situação do sinistrado, no caso uma cadeira de rodas mentoniana, um elevador para transferência de doentes e uma funda com pernas separadas.

E o mesmo resulta do artigo 12º da apólice uniforme aplicável ao contrato de seguro vigente à data do acidente.

Com efeito, advém do nº 1 do artigo 38º da LAT que a apólice uniforme do seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, será aprovada pelo Instituto de Seguros de Portugal, tendo que respeitar os princípios estabelecidos naquela LAT e demais legislação complementar.

 

Ora, as condições gerais e especiais da apólice uniforme aplicável ao contrato de seguro agora em causa, haviam sido aprovadas pela Norma n.º 12/99‑R, de 8 de Novembro, com as alterações introduzidas pelas Normas n.ºs 11/2000‑R, de 13 de Novembro, 16/2000‑R, de 21 de Dezembro, e 13/2005‑R, de 18 de Novembro (esta última publicada no DR.II, nº 234, de 7/12/2005).

E dispondo o seu artigo 12º, que no caso de a retribuição declarada ser inferior à efectivamente paga, o tomador de seguro responderá pela parte excedente das indemnizações e pensões e, proporcionalmente, pelas despesas de hospitalização, assistência clínica, transportes e estadas, despesas judiciais e de funeral, subsídios para situações de elevada incapacidade permanente e de readaptação, prestação suplementar por assistência de terceira pessoa e todas as demais despesas realizadas no interesse do sinistrado, há que observar esta regra da repartição proporcional da responsabilidade da seguradora e da entidade empregadora no caso presente.

Efectivamente, trata-se da concretização dum regime para que remete o artigo 38º da LAT e não sendo proibido pelo art.º 427º do Código Comercial, impõe-se a sua aplicação.

Sendo assim, haverá que calcular as quantias devidas por cada uma das entidades responsáveis a título de subsídio por alta incapacidade, a prestação suplementar devida pela assistência constante de terceira pessoa, subsídio para readaptação da habitação do sinistrado e despesas de transportes na proporção que foi calculada pelo acórdão revidendo.

4---

Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.


As custas desta serão da responsabilidade da recorrente.


Anexa-se sumário do Acórdão.


Lisboa, 20 de Março de 2014


Gonçalves Rocha (Relator)


Leones Dantas


Melo Lima

_________________
[1] Conforme resultava do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003.
[2] Conforme resultava dos artigos 3.º, n.º 2, e 21.º, nº 2, ambos da Lei n.º 99/2003.
[3] Neste sentido o acórdão da RL de 4/11/98, CJ, pgªs 154/157.