Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
715/17.4T8STR.E1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: PEDIDO DE REGISTO PREDIAL
DESPACHO DE INDEFERIMENTO
RECURSO HIERÁRQUICO
RECURSO JUDICIAL
LEGITIMIDADE
APRESENTANTE
TITULAR DO DIREITO E DO INTERESSE
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES DO CONSERVADOR / PRAZO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 2, ALÍNEA D), 635.º, N.ºS 3, 4 E 5 E 639.º, N.º 1.
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 141.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 128/08.9TBMFR.L1;
- DE 08-02-2018, PROCESSOS N.º 633/15.0T8VCT.G1.S1;
- DE 05-07-2018, PROCESSO N.º 2522/16.2TBBRG.G1.S1;
- DE 30-04-2019, PROCESSOS N.º 3755/15.4T8LRA.C2.S1, TODOS DISPONÍVEIS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :


I - O promitente-comprador que, apesar de ter legitimidade para o fazer, não requer o registo do contrato-promessa de constituição do direito de superfície, e não é, por isso, prima facie, parte da relação registral, pode, ainda assim, impugnar hierárquica ou judicialmente a decisão da Conservatória que recuse o respetivo pedido de registo, efetuado pelo notário que não fez saber, junto da Conservatória, tácita ou expressamente, que agia em nome daquele.
II – O recurso aos diversos cânones hermenêuticos permite afirmar este mesmo resultado,
III - Não deve dissociar-se a legitimidade para a apresentação do facto a registo da legitimidade para interpor o recurso hierárquico a que se refere o art. 141.º, n.º 4, do CRgP.
IV - A titularidade do direito e do interesse confere ao promitente-comprador particular legitimidade - legitimidade per se - para interpor recurso hierárquico da decisão da conservatória de recusa do pedido de registo efetuado pelo notário.
V - Está em causa um modo de agir no interesse e por conta de outrem. Um dos titulares do interesse do agir da Senhora Notária é, indiscutivelmente, o promitente-comprador, enquanto sujeito ativo do facto sujeito a registo. O registo predial tem também em vista a defesa dos direitos privados. O promitente-comprador arca igualmente com os custos implicados pela atividade desenvolvida pelo notário, que se possam considerar, naturalmente, decorrentes do seu agir no interesse e por conta dele.
VI - Há que atender sempre à pessoa a quem pertence o interesse subjacente ao agir, à pessoa em cuja esfera jurídica se projetam os efeitos do agir.
VII - Não faria sentido, por outro lado, que ao promitente-comprador não fosse consentido lançar mão do recurso hierárquico quando sobre o notário – independentemente de se tratar ou não de um ato sujeito a registo obrigatório – não impende qualquer dever legal ou estatutário de o fazer.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


*

I - Relatório


1. AA, Lda., intentou ação declarativa contra Freguesia de BB e, com fundamento na aquisição originária (usucapião) e derivada (contrato de compra e venda) do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de BB, Concelho do ..., descrito no registo predial a seu favor, e na ocupação de parte dele pela Ré, pediu que fosse  (a) declarada a propriedade do prédio a seu favor, (b) a Ré condenada a restitui-lo à A e (c) a abster-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização pela A daquela parte do prédio ou, (d) subsidiariamente e na impossibilidade da restituição, a pagar uma indemnização de 744.000 euros – I Vol., fls. 2 a 7.
2. De um lado, a Ré contestou, excecionando a nulidade do contrato de compra e venda decorrente da ausência de menção ao alvará ou a documento equivalente; a ilegitimidade da Autora por não ser proprietária do prédio, porquanto a fração do imóvel em discussão é composta por três lotes cedidos para domínio público; a autorização da Câmara Municipal do ... e dos proprietários para a ocupação dos referidos lotes – em virtude dessa autorização a Ré requereu a intervenção principal da primeira e de CC.
3. De outro lado, a Ré contestou, impugnando a matéria alegada pela Autora e deduzindo reconvenção, em que invocou factos relativos à aquisição originária da parcela do imóvel ora objeto de litígio. Concluiu pela (i) improcedência da ação, (ii) declaração de nulidade do negócio, (iii) condenação da Autora como litigante de má fé e (iv) declaração de propriedade da faixa de terreno em causa a seu favor – I vol., fls. 22 a 38.
4. A Autora replicou – I Vol., fls. 63 a 107.
5. Deferida a intervenção principal, o Município do ... e, habilitados, os herdeiros de CC, contestaram – I Vol., fls. 228 a 245  e II Vol. fls. 563 a 572 .
6. Foi, oportunamente, proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação, declarando o prédio como propriedade da Autora, com exceção da parcela de terreno em discussão e, na impossibilidade da sua restituição, condenando a Junta de Freguesia a pagar à Autora o valor de 519.992 euros, e improcedente a reconvenção – VI Vol., fls. 1722 a 1752.
7. A Ré interpôs recurso de apelação – VI Vol., fls. 1776 a 1924 – e a Autora, por seu turno, recurso subordinado – VII Vol., fls. 1934 a 2079.
8. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto foi decidido:
“julgar procedente o recurso da Ré, e em consequência, julgam totalmente improcedente a presente acção, absolvendo a ré dos pedidos, e procedente a reconvenção, declarando que o terreno referido em L), onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB é propriedade da ré” – VII Vol. fls. 2149 a 2248.
9. A Autora interpôs recurso de revista – VIII Vol., fls. 2251 a 2287, apresentando as seguintes Conclusões:
“A - Nos presentes autos sempre foi claro que uma coisa é o prédio propriedade da A-Recorrente (“com a área de 2578 m2,”, como foi julgado provado sob A)) e outra coisa é a parte dele ocupada pela ampliação do cemitério de BB (com a “área compreendida entre 1471 m2 e 1483,5m2, na parte norte” daquele, como foi julgado provado sob L)), o que no Acórdão recorrido não é claro.
B - A Recorrente peticionou que fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre a totalidade do prédio identificado em A) dos factos provados, o que foi procedente em 1ª Instância e mais peticionou a restituição da parte desse terreno identificada em L) da factualidade julgada provada ocupado com a ampliação do cemitério de BB e subsidiariamente relativo a este último pedido, ser indemnizada.
C – A Ré-Recorrida, por seu turno, deduziu pedido reconvencional peticionando que fosse reconhecido o seu (alegado) direito de propriedade sobre a parte identificada sob L) do prédio identificado em A) dos factos provados.
D - A douta Sentença de 1ª Instância julgou a ação parcialmente procedente, julgando A.-Recorrente proprietária do prédio identificado sob A) dos factos provados, com exceção da parte dele identificada sob L) dos mesmos factos – por “impossibilidade de restituição” - e por isso procedente (parcialmente) o pedido subsidiário de indemnização (respeitante a esta parte daquele prédio).
E - A Ré-Recorrente não se conformou com a procedência do pedido subsidiário de indemnização relativo à parte identificada sob L) do prédio identificado em A) dos factos provados e, bem assim, com a improcedência do pedido reconvencional de declaração do seu (alegado) direito de propriedade sobre este último trato de terreno tendo interposto recurso de Apelação.
F - O Acórdão recorrido embora declare, como a Ré-Reconvinte peticionou, a reconvenção procedente, julgando “que o terreno referido em L) onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB é propriedade da Ré.” vai para além do peticionado e contraria a factualidade julgada provada (sob A) e L) em conjunto consideradas) julgando “totalmente improcedente a presente ação, absolvendo a Ré dos pedidos”, incluindo, pois, integralmente o peticionado sob A) (“Declarar-se que o prédio em causa, é propriedade da A.;”); assim nessa decisão, inclui a parte do prédio identificado em A) que está para além do trato de terreno ocupado com a ampliação do cemitério de BB identificada sob L) dos factos provados.
G - O Acórdão recorrido padece de “lapso manifesto” (cfr. art.º 614º, nº 1, do C. P. Civil) na parte em que julga a ação “totalmente improcedente”, não julgando, pois, a A.-Recorrente proprietária do prédio referido em A) dos factos provados (com 2578m2) na parte em que excede o trato ocupado com a ampliação do cemitério de BB, identificado na alínea L) dos factos provados (com uma “área compreendida entre 1471 m2 e 1483,5m2”), pelo que deve o mesmo lapso ser retificado nos termos do referido preceito o que se requer.
H - A não se entender assim o Acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no art.º 615º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, no qual, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença” se estabelece ser “nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (...)” e, consequentemente, no deferimento da invocada nulidade, deve manter-se inalterada a primeira parte da douta Sentença proferida em 1ª instância (“Pelo exposto, considero parcialmente procedente o pedido formulado pela autora e declarando que o terreno referido em A) é sua propriedade, exceção feita à parcela referida em L)” – sic.), sem prejuízo e sem prescindir do demais peticionado na presente Revista.
I - Acresce, ainda, que, a não se entender assim, deverá entender-se que o Acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do disposto na al. d) do n° 1 do artigo 615° do Cód. Proc. Civil, nos termos do qual a sentença (ou o Acórdão atento o disposto no art.º 666º) é nula quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (cfr. douo Ac. STJ de 30.5.2017, processo 4891/11) pois que sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões (cfr. art.ºs 635º, nº 3 e 4) e 639º, nº1, ambos do C. P. Civil) e não estando em causa no recurso de Apelação da ora Recorrida senão a “parcela de terreno reclamada nos autos e onde se encontra construído a ampliação do cemitério da Freguesia de BB (vulgo cemitério novo).” (sic. a conclusão 43 da Apelação) e tendo a Relação conhecido da demais parte do prédio, ocorre a referida nulidade, que se requer seja deferida, mantendo-se inalterada, pois, a primeira parte da douta Sentença proferida em 1ª Instância (“Pelo exposto, considero parcialmente procedente o pedido formulado pela autora e declarando que o terreno referido em A) é sua propriedade, exceção feita à parcela referida em L)” – sic.), sem prejuízo e sem prescindir do demais infra peticionado.
Sem prescindir,
J - A Ré-Reconvinte interpôs recurso de apelação da douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e, de tal notificada, a A. veio “interpor RECURSO SUBORDINADO, nos termos do disposto no n.º1, e 2 do artigo 633.º do Cód. Proc. Civil,”, para além de, obviamente, ter respondido à Apelação, tendo sido julgado no Acórdão recorrido que “Atendendo à procedência da reconvenção e do recuso da Ré, na primeira linha argumentativa, o conhecimento do recurso da Autora fica naturalmente prejudicado” (sic. o Acórdão recorrido).
K - Como é referido no douto Acórdão deste Sup. Trib. Justiça de 7.04.2005 (in http://www.dgsi.pt, porc.:05B205) “O recurso subordinado só deve ser apreciado pelo tribunal de recurso se este conhecer do objeto do recurso principal, julgue-o procedente ou improcedente "(Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, "CPC Anotado", 3º (2003), 27, nota 4. Ribeiro Mendes, em "Recursos em Processo Civil "( 1992 ), 175, esclarece que "(...) o recurso subordinado só será julgado se o recurso principal vier a ser julgado, independentemente de este último ser julgado procedente ou improcedente " -destaques nossos ). Em suma: "o recurso subordinado só é afetado pela insubsistência do principal nos três casos previstos no nº3 (do art. 682º CPC), e não em qualquer outra hipótese, designadamente quando a este tiver sido negado provimento "(Rodrigues Bastos, Notas ao CPC", III (3ª ed., 2001 ), 224, nota 1. ; destaque nosso)”.
L - Consequentemente, e nos termos referidos em tal douto Aresto, “Do erro em que se incorreu a este respeito no tribunal recorrido resultou óbvia omissão de pronúncia sobre toda a matéria do recurso subordinado.”, donde, verifica-se a nulidade do Acórdão recorrido, que expressamente se invoca, consubstanciada na omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) ex vi do disposto no artigo art.º 666º, nº 1, ambos do CPC, devendo o mesmo ser revogado e, bem assim, ser proferida decisão que conheça do recurso subordinado (cfr. art.º 665º aplicável ex vi do disposto no art.º 726º, ambos do C.P.Civil). Sem prescindir,
M - No Acórdão recorrido julga-se a Ré-Recorrida proprietária do terreno que ocupou e alude-se até que à A.-Recorrente estaria vedado pedir a restituição do terreno em causa, sob pena de violação de um compromisso (cujas condições – essenciais, em sentido jurídico –, refira-se, não foram observadas pelos entes públicos autárquicos), violação da boa-fé e até que seria suscetível de configurar abuso de direito.
N - Entende a Recorrente que, diversamente, quem agiu e age de má-fé são os entes públicos autárquicos, que violaram e violam os compromissos formalizados em atos administrativos, desprezando os interesses privados e o Estado de Direito, decorrendo do facto julgado provado enunciado sob J) o indeferimento dos procedimentos da A.-57 Recorrente com vista à edificação pelo que esta não pode, nem se afigura que venha a poder construir absolutamente nada de nada no prédio em causa ou em parte dele. Nada, trinta e quatro anos (!!!) depois, não só não pode edificar absolutamente nada no seu prédio, como se viu desapossado de parte do mesmo pela ilícita conduta da Ré, sem sequer observância da forma legal, em completo desprezo pelos compromissos emergentes da atuação dos entes públicos autárquicos que aprovaram o Alvará 6/90 e, depois, declararam a respetiva caducidade, sem qualquer facto imputável A.-Recorrente ou a ante-possuidores do prédio que adquiriu. Sem prescindir,
O - O entendimento do Tribunal da Relação plasmado no Acórdão recorrido, pela legalidade da ampliação em dez pontos da factualidade julgada provada – até então descrita em dezanove pontos e, portanto, em mais de trinta e três por cento – em sede de Apelação, tornará as audiências de julgamento num exercício de adivinhação por parte das partes, as quais, com a cautela que o dever de ofício impõe, terão de proceder de modo que tendencialmente eternizará aquelas audiências.
P - Na verdade, considerando a eventualidade de qualquer fragmento de depoimento de testemunha possa vir a ser incluído pelo Tribunal da Relação na matéria de facto provada, em sede de modificação do respetivo julgamento na Apelação, terão as partes de a todo o momento precaver-se, suscitando, ao abrigo do estrutural Princípio do Contraditório, oferecendo repetidamente prova – rectius, nova prova – com vista a contrariar cada um daqueles fragmentos de depoimentos que possam entender que, eventualmente, o Tribunal da Relação possa vir a entender deverem ser incluídos na factualidade julgada provada. Sem prescindir,
Q - O Tribunal da Relação modificou o julgamento da matéria de facto, aditando aos dezanove pontos julgados provados em 1ª instância outros dez pontos (para além de ter acrescentado a expressão “na convicção de ser a dona desse terreno” no ponto S) in fine).
R - Ora, “Embora esteja vedado ao Supremo entrar na apreciação concreta de qualquer das situações previstas nos nºs 1 e 2 do art.º 712º [atualmente artigo 662º] do CPC, compete-lhe verificar se a Relação ao usar os poderes neles previstos, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer” (Ac. Sup. Trib. Justiça de 10.12.1997, 4º Secção, proc. nº 149/97, SASTJ; 15º/16º-253), o que significa que “O Supremo Tribunal de Justiça tem competência para sindicar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art.º 712º [atualmente 612º] do Cód. Proc. Civil, mas já não pode exercer censura sobre o uso de tais poderes.” (AC. Sup. Trib. Justiça de 22.10.1997, in BMJ, 470, pág. 483).
S - A massiva adição de factualidade ao elenco dos factos julgados provados efetivada pelo Tribunal da Relação (são mais dez pontos adicionados aos anteriormente dezanove fixados pela 1ª Instância) consubstancia um novo julgamento, uma “nova convicção” (sic. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 415/2001, in DR, II Série, de 30.11.2001, p. 19992 e ss., citado por Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado, 17.ª Ed., 2003) que a Lei não consente.
T - Na verdade, como é pacífico, para a alteração do julgamento da matéria de facto não basta haver divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento (cf, Ac. da ReI. de Coimbra de 17-04-2012. proc. n° 1483/09.9TBTMR.C 1. acessível em www.dgsi.ptljtrc e, no mesmo sentido, o Sr. Cons. A. Abrantes Geraldes, in "Julgar', n° 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76 e, bemassim, o Ac. do S.TJ. de 15-09-2010, proferido no proc. n0241/05ATTSNT.L 1.S1, acessível em www.dgsi.ptlstj.) sendo que no Acórdão recorrido o Tribunal da Relação não aponta concretos e precisos erros de julgamento mas, em vez disso, procede a uma massiva ampliação e alteração da factualidade provada, o que consubstancia, na verdade, um novo julgamento que, salvo o devido respeito, a Lei não consente, ocorrendo, por isso, violação do disposto no art.º 662º do C. P. Civil, devendo, por isso, ser revogado aquele e confirmada a douta Sentença proferida em 1ª Instância.
Sem prescindir
U - Relativamente aos “factos” no ponto S) respetivo in fine, não só foi alegado pelas partes nesses exatos termos como a expressão em causa é claramente conclusiva, senão mesmo constituiu matéria de direito, o que sempre determinaria dever ter-se por não escrita - cfr. art.º 607º, do Cód. Proc. Civil.
V - Os “factos” que o Tribunal da Relação acrescentou à factualidade julgada provada, sob os pontos T), U), V), X), Z), AA), BB), CC), DD) e EE) não foram alegados pelas partes e nem sequer são complementares ou concretizadores de quaisquer outros que hajam sido alegados nos articulados, maxime na contestação-reconvenção da Ré-Recorrida, pelo que tal julgamento e modificação não se conforma com o disposto no art.º 5º do C. P. Civil (cfr. Ac. Rel. Guimarães de 23-02-2016, in www.dgsi.pt, proc. nº 2316/12.4TBPBL.C1), pelo que ao julgar nos referidos termos o Tribunal da Relação violou o disposto naqueles preceitos e no art.º 662º do Cód. Proc. Civil, devendo, por isso, ser revogado o Acórdão e, consequentemente, com o quadro factual julgado em 1ª Instância ser confirmada a douta Sentença ali proferida.
...”.


II – Questões a decidir
O objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelos Recorrentes, nos termos dos arts. 635.º, n.ºs 3-5, e 639.º, n.º 1, do CPC. Ressalvando as questões de conhecimento oficioso, o Tribunal apenas se pode ocupar das questões enunciadas nas conclusões do recurso.
Coloca-se a questão de se saber se A) o acórdão do Tribunal da Relação do Porto padece – ou não - de lapso ou se encontra ferido – ou não - de nulidade na parte em que declarou a ação “totalmente improcedente” (conclusões A a I); B) se o referido acórdão é nulo na parte em que considerou prejudicado o conhecimento do recurso subordinado (conclusões J a L); C) se o acórdão recorrido, na parte respeitante à alteração da matéria de facto (conclusões O a SS), violou o disposto no art. 662.º, do CPC, (conclusões O a T), o art. 607.º, do CPC, (conclusão U), o previsto no art. 5.º, do CPC, e os princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade, pelo que é nulo (conclusões V a CC); se inobservou os pontos de facto G) e H) e as regras relativas à confissão quanto ao aditamento final feito ao facto S) (conclusões DD a SS); D) se ocorreu – ou não - a inversão do título da posse (conclusões TT a VV)

III – Fundamentação
1. De facto
Factos provados
“A) Como pertencendo à autora, anteriormente designada por DD & Cª, Lda., encontra-se registado um prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia de BB, concelho do ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do ... sob o nº 1958, da freguesia de BB, inscrito na matriz predial sob o artigo 7710, com a área de 2578 m2, correspondente a um terreno destinado a construção.
B) Por escritura pública, outorgada em 27 de Setembro de 2000, CC e DD & Cª, Lda., celebraram um contrato de compra e venda tendo por objecto um prédio urbano composto de terreno para construção, sito na Rua ..., freguesia de BB, ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do ... sob o nº 7467, no livro B-21, com o registo de aquisição 88547, no livro G-120, omisso à matriz, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 54 a 56, onde além do mais consta “Que a sua representada tem conhecimento do compromisso que a vendedora tem para com a Câmara Municipal do ... e Freguesia de BB da cedência de parte do terreno para o domínio público, passando esse compromisso a ser assumido pela compradora.”.
C) O prédio urbano referido em B) confronta a norte com o cemitério de BB, a sul com a rua das ..., a nascente com EE e a poente com a ... e corresponde aos lotes nºs 8 e 10 do alvará de loteamento 6/90.
D) A Câmara Municipal do ... emitiu o alvará de loteamento nº 6/90, na sequência do processo de loteamento nº 11876/84, do qual eram titulares FF, S.A., CC, II, JJ, HH e GG.
E) O referido Alvará nº 6/90 abrange o loteamento urbano do prédio sito nas Ruas ... e das ..., em 11 lotes numerados de 1 a 11, inscrito na matriz predial da freguesia de BB sob o artigo rústico 773, artigo urbano 276, artigo rústico 753, artigos urbanos 335 a 337, 346 a 349, 351 a 353 e 294, e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 3723 do livro B-11, a fls. 47; nº 3725 do livro B-11 a fls. 48; nº 7467 do livro B-21 a fls. 105; nº 31065 do livro B-98 a fls. 109 e nº 27361 do livro B-89 a fls. 21, respetivamente, nos termos constantes de fls. 48 a 51 dos autos.
F) Nos termos da cláusula 2 do referido alvará, o titular do mesmo cede à Câmara Municipal, nos termos do artº 42º, do DL nº 400/84, de 31 de Dezembro, as parcelas de terreno assinaladas na planta de urbanização, relativas aos lotes nº 6, 7, 8 e 11, nos termos constantes a fls. 49 verso.
G) Por ofício datado de 14 de Janeiro de 1987, e recebido em 16 de Janeiro do mesmo ano, a Direcção dos Serviços de Urbanização da Câmara Municipal do ... remeteu ao Presidente da Junta de Freguesia de BB a comunicação constante de fls. 58 dos autos, nos termos da qual “Comunica-se a Vª Exª que foi autorizado pelos proprietários a ocupação e utilização imediata dos terrenos necessários à execução da ampliação do cemitério de BB. Anexa-se fotocópia da referida autorização (requerimento nº 233/87).”
H) Por requerimento datado de 23 de Dezembro de 1986, nº 233/87, GG, HH e CC autorizam, conforme pretensão dessa Exma. Câmara, e dada a urgência, a imediata ocupação dos lotes de terreno necessário à ampliação do cemitério de BB, nas condições já definidas no processo, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 59 dos autos.
I) Por comunicação datada de 5 de Fevereiro de 1987, remetida pelo Município do ... ao Presidente da junta de freguesia de BB e recebida em 16 de Janeiro de 1987, consta que “Na sequência do ofício nº 107/87/DGS, de 14 de janeiro p. p., em que nos apressamos a comunicar a Vª Exª o teor da declaração dos proprietários dos lotes nºs 7 e 8, destinados ao alargamento do cemitério de BB informamos que a utilização das áreas necessárias ao referido empreendimento, nomeadamente parte do leito do arruamento existente, terá de ser precedida de ratificação pelo atual Executivo das condições de cedência, já provadas para o fim em vista pelo Executivo anterior (deliberação camarária de 20 de junho de 1985) e da desafetação do domínio público do leito do arruamento já referido, processo a que já foi dado início. A efetivação da cedência será concretizada posteriormente, a qual se verificará logo que o Município entre na posse e propriedade das referidas parcelas.
J) Por despacho de 16 de Março de 2006, prolatado pelo Vereador com o pelouro do Urbanismo e Mobilidade, foi decidido que, além do mais, “Declaro definitiva a caducidade do alvará de loteamento 6/90”, nos termos constantes a fls. 266 dos autos.
K) Por carta datada de 8 de Janeiro de 2008, a Autora remeteu ao Presidente da junta de freguesia de BB uma comunicação a solicitar a cessação da indevida ocupação de propriedade privada pelo cemitério de BB e a reposição do mesmo no estado em que se encontrava, nos termos constantes a fls. 109 dos autos.
L) Parte do prédio urbano referido em A) encontra-se ocupado por um cemitério numa área compreendida entre 1471 m2 e 1483,5m2, na parte norte.
M) A área ocupada encontra-se vedada através da construção de um muro.
N) Tal ocupação impede o livre acesso e utilização desse trato de terreno pela Autora.
O) À data da interposição desta acção em juízo, 28 de Julho de 2008, o índice de construção bruta acima do solo estabelecido no Plano Diretor Municipal do ... para a zona em que se situa o prédio urbano era de 0,8 por cada metro quadrado de terreno, com o esclarecimento de que a parte ocupada pelo cemitério de BB se encontra inserida em área de equipamento existente, estando a restante área do prédio integrada em área de edificação isolada com prevalência de habitação colectiva, a que é aplicável um índice de construção de área bruta de 0.8.
P) O valor unitário médio de transacção de terrenos situados na mesma zona que o prédio em causa nos autos, à data da interposição da acção, variava entre €280,00m2 e €600,00m2.
Q) A parcela reivindicada nos autos referida em L) correspondia a parte do lote 8 do alvará de loteamento nº 6/90, confrontando a norte com o cemitério de BB, a sul com AA, Lda., a nascente com cemitério de BB e a poente com ... e cemitério de BB.
R) O novo cemitério, incluindo a ampliação na parcela reivindicada, foi inaugurado, depois de todas as obras feitas, em 1989.
S) A Ré, Junta de Freguesia de BB, sempre utilizou a parcela de terreno referida em L), limpando-a e conservando-a, construindo e autorizando a construção de sepulturas, jazigos e ossários, realizando inumações, exumações e procedendo à cobrança das respectivas taxas, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, na convicção de ser a dona desse terreno.
T) A partir de 1982, a Freguesia de BB, mediante acção do órgão executivo, Junta de Freguesia de BB, estabeleceu negociações com a Câmara Municipal do ..., com vista à execução de obra de alargamento do seu cemitério.
U) Essa obra de alargamento seria para uns terrenos adjacentes e contíguos ao Cemitério existente (vulgo cemitério antigo).
V) Em Março de 1986, a Junta de Freguesia de BB, com vista à construção da ampliação do cemitério (cemitério novo) comprou à família LL uma parcela de terreno, tendo pedido dinheiro emprestado à Câmara Municipal do ... e fez uma troca de terrenos com a Têxtil Artificial do ... (TAF). E, como esses terrenos eram insuficientes para a ampliação, e havia um terreno que era a continuação dos terrenos já adquiridos, solicitou à Câmara Municipal do ... (depois de já ter entregue o projecto de ampliação cemitério) que diligenciasse junto da família GG pela aquisição da restante parcela de terreno, necessária à ampliação do cemitério.
X) Porquanto a Junta de Freguesia não tinha competência para gestão e ordenamento do território, na medida que essa competência era da Câmara Municipal do ....
Z) A Junta de Freguesia de BB, nos terrenos adquiridos (à Família LL e TAF), já em 1986 havia dado início aos trabalhos de terraplanagem e demarcação do terreno com a construção dos muros, e após a autorização da Câmara do ... continuou a conclusão dos trabalhos de terraplanagem e de construção dos muros no terreno que seria da Família ... e que corresponde ao referido lote de terreno n.º 8.
AA) Em 1986 começou a venda de títulos aos utentes da Freguesia para compra de terrenos no cemitério.
BB) Em 22 de Janeiro de 1987 a foi deliberado, em reunião do executivo da Junta de Freguesia de BB, a venda de sepulturas e jazigos, em Março de 1987 foram emitidas guias de pagamento de sisa tendo o primeiro Alvará de concessão de jazigos (no caso subterrâneo) sido emitido em 09 de Junho de 1987, sendo que tais jazigos já se encontravam construídos.
CC) Em finais de 1987 as obras de execução e ampliação do cemitério de BB (vulgo cemitério novo) encontravam-se concluídas.
DD) O primeiro enterramento terá ocorrido em meados de 1988.
EE) Desde sempre a Ré procedeu à realização de funerais, de inumações e exumações”.

2. De Direto
A) Questão de se saber se o acórdão recorrido padece – ou não - de lapso ou se se encontra – ou não - ferido de nulidade na parte em que declarou a ação “totalmente improcedente” (conclusões A a I)

Na petição inicial, a Autora alegou ser proprietária de um prédio parcialmente ocupado pela Ré – arts 1.º e 2.º da petição inicial – e pediu o reconhecimento do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio – al. a) do pedido.

Na sentença, não tendo sito previamente suscitada questão processual a propósito do pedido, v.g. relacionada com a falta de interesse em agir quanto à área do prédio não ocupada, foi julgado “parcialmente procedente o pedido formulado pela A declarando que o terreno referido em A) é sua propriedade, exceção feita à parcela referida em L) e decidido julgar por isso improcedentes os pedidos reconvencionais deduzidos”.

No recurso de apelação independente interposto pela Ré, concretamente nas respetivas conclusões, não foi posto em causa este segmento específico da sentença que declarou a Autora proprietária do prédio na parte não ocupada pela Ré, ou seja, “o terreno referido em A), excepção feita à parcela referida em L)”. 

Conforme referido supra, o objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelos Recorrentes (arts. 635.º, n.ºs 3-5, e 639.º, n.º 1, do CPC).

Ressalvando as questões de conhecimento oficioso (arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 2, al. d), do CPC), o conhecimento pelo Tribunal de questão não enunciada pela Recorrente e, por isso, a pronúncia sobre tema ou questão subtraída ao seu conhecimento, origina a nulidade da decisão.

Assim, ao decidir “julgar totalmente improcedente a ação absolvendo a Ré dos pedidos”, o Tribunal da Relação emitiu também pronúncia sobre o segmento decisório da sentença que havia julgado parcialmente procedente a ação ao reconhecer a Autora como proprietária do prédio na parte não ocupada pela Ré, quando o recurso não incluía e a lei não consentia o conhecimento desse segmento.

            Por conseguinte, o acórdão é nulo nessa parte - conforme o art. 615.º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC -, devendo ser expurgado do segmento viciado - nos termos do art. 684.º, n.º 1, do CPC - e adequadamente reformulado:
“(…) julgar procedente o recurso da ré, e em consequência, julgam parcialmente improcedente a presente acção, absolvendo a ré dos pedidos - sendo o formulado em a) apenas quanto à parte do terreno descrita em L), mantendo-se a sentença quanto à parte restante - e procedente a reconvenção (…)”.

Note-se, ainda, que, de um lado, não se trata de mero lapso, pois que o relator não o reconheceu, o contexto do acórdão não o revela e, de outro lado, não sendo esse pretenso lapso qualificável como “manifesto”, nunca permitiria a mera retificação (art. 614.º, do CPC).
B) Questão de se saber se o acórdão é nulo na parte em que considerou “prejudicado” o conhecimento do recurso subordinado (conclusões J a L)

Recorde-se que enquanto a Ré interpôs recurso de apelação independente, a Autora interpôs recurso de apelação subordinado (art. 633.º, do CPC).

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar procedente o recurso independente da Ré, julgando totalmente improcedente a presente acção, absolvendo a ré dos pedidos, e procedente a reconvenção, declarando que o terreno referido em L), onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB é propriedade da ré”.

No que respeita ao recurso subordinado, o acórdão recorrido justificou, antes da decisão, o seu não conhecimento. Com efeito, de acordo com o Tribunal da Relação, “atendendo à procedência da reconvenção e do recurso da ré, na primeira linha argumentativa, o conhecimento do recurso subordinado fica naturalmente prejudicado”.
E, de facto, assim é.

Tendo o acórdão reconhecido à Ré o direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre a parcela de terreno em litígio, relativamente à qual também a Autora alegara ser titular do direito de propriedade e no qual fundara os pedidos formulados na ação, as questões suscitadas no recurso subordinado (conclusões 1 a 11) – da procedência do pedido de restituição da referida parcela, ao invés do pagamento de indemnização; e, subsidiariamente, em vista do cálculo daquela indemnização, o pedido da reformulação de um facto respeitante ao cálculo do metro quadrado de terreno e o pedido da contagem do desapossamento desde 1986 –, por dependentes do reconhecimento da titularidade do direito de propriedade da Autora sobre a mesma parcela de terreno, ficaram prejudicadas com a declaração dessa mesma titularidade a favor da Ré.

A prejudicialidade consiste no facto de a procedência do recurso da Ré implicar, necessariamente, a improcedência daquele da Autora.

De resto, considerar “prejudicado” o conhecimento de uma ou de várias questões suscitadas pelas partes em virtude de solução conflituante ou excludente atribuída a outras não configura verdadeira “omissão de pronúncia”, determinante da nulidade do acórdão, ao contrário do que a Recorrente pretende (art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

Com efeito, segundo o art. 608.º, n.º 2, do CPC, ao juiz compete obrigatoriamente conhecer de todas as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, “excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

A lei não pode simultaneamente legitimar e sancionar com a nulidade o não conhecimento de questões prejudicadas com a solução de outras. E não pode porque a nulidade por omissão de pronúncia tem em vista os casos manifestos de total ausência de justificação para o não conhecimento de questão ou questões oportunamente colocadas perante o tribunal de recurso, e não também aqueles em que alguma razão enunciada justifica o seu não conhecimento (refiram-se, inter alia, as questões suscitadas no recurso que se não conhecem com fundamento na sua novidade).
Improcede, assim, também esta nulidade.
C) Questão de se saber se o acórdão recorrido, na parte respeitante à alteração da matéria de facto (conclusões O a SS), violou o art. 662.º, do CPC, (conclusões O a T), o art. 607.º, do CPC, (conclusão U), o art. 5.º, do CPC, e os princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade, pelo que é nulo (conclusões V a CC); se (des)respeitou os pontos de facto G) e H) e as regras relativas à confissão quanto ao aditamento final feito ao ponto de facto S) (conclusões DD a SS)
C)1 Violação - ou não - do disposto no art. 662.º, do CPC (conclusões O a T)

Entende a Recorrente que o Tribunal das Relação do Porto alterou a matéria de facto com base em novo julgamento ou nova convicção, o que a lei não consente, violando-se, assim, o disposto no art. 662.º, do CPC.
Salvo o devido respeito, a Recorrente não tem razão.

Na verdade, nos termos do art. 662.º, n.º 1, do CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Essa alteração da matéria de facto traduz-se, no acórdão recorrido, na declaração dos factos que julga provados e dos factos que não julga provados (entre aqueles referidos na impugnação recursiva) e na “análise crítica das provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção” (art 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável aos acórdãos do Tribunal da Relação ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas).

Na densificação do conceito de “análise crítica das provas”, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem unanimemente entendido que está em causa um juízo valorativo sobre os meios de prova produzidos, próprio e autónomo da 1.ª Instância, como se se tratasse, efetivamente, de um “novo julgamento”, juízo esse manifestado no texto do acórdão. Com efeito, apenas deste modo se assegura, em termos práticos, o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto[1].

É que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se basta nem com uma apreciação genérica e abstrata realizada pelo Tribunal da Relação e nem com um juízo meramente conclusivo ou inconcludente, genérico e abstrato, sem nada dizer sobre a reponderação concreta a que se terá efetivamente procedido.

Não merece, por isso, censura o julgamento de facto feito pelo Tribunal recorrido, que apenas observou os preceitos legais convocados em sede de reapreciação da matéria de facto, havendo procedido ao “exame crítico das provas”.
C)2 Violação – ou não - do disposto no art. 607.º, do CPC (conclusão U)

O acórdão recorrido alterou o ponto de facto vertido na al. S) (“A Ré, Junta de Freguesia de BB, sempre utilizou a parcela de terreno referida em L), limpando-a e conservando-a, construindo e autorizando a construção de sepulturas, jazigos e ossários, realizando inumações, exumações e procedendo à cobrança das respectivas taxas, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição”), acrescentando o segmento “na convicção de ser a dona desse terreno”.

Entende a Recorrente que o segmento adicionado não foi alegado e que é conclusivo ou encerra matéria de direito, pelo que, por violação do art. 607.º, do CPC, deve ter-se por não escrito.
A Recorrente não tem razão.

Na contestação-reconvenção, a Ré alegou expressamente, nos arts. 27.º e 28.º, os atos materiais praticados na parcela de terreno em litígio “na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”, matéria que deu por reproduzida na parte dedicada à reconvenção (art. 52.º) e que reiterou no art. 56.º com a mesma expressão “na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”. Esta fórmula verbal (“na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”) é portadora do mesmo sentido que aquela aditada pelo Tribunal da Relação do Porto (“na convicção de ser a dona”). Não pode, por conseguinte, dizer-se que o facto não foi alegado.

Depois, a expressão usada não configura um facto conclusivo ou jurídico, mas antes um facto de natureza psicológica, suscetível de prova, constitutivo do elemento subjetivo da posse (animus), na sua conceção subjetivista[2]

A consideração deste facto como provado não se consubstancia, consequentemente, numa violação do disposto no art. 607.º, do CPC.
C)3 Violação ou não do art. 5.º, do CPC, e dos princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade (conclusões V a CC)

No recurso de apelação, a Recorrente (Ré) peticionou o aditamento de novos factos à matéria de facto, como decorre da conclusão 24 – fls. 1904 a 1906. Tendo a sua pretensão sido deferida, o Tribunal da Relação aditou os seguintes factos – fls. 2224 a 2228:
“T) A partir de 1982, a Freguesia de BB, mediante acção do órgão executivo, Junta de Freguesia de BB, estabeleceu negociações com a Câmara Municipal do ..., com vista à execução de obra de alargamento do seu cemitério.
U) Essa obra de alargamento seria para uns terrenos adjacentes e contíguos ao Cemitério existente (vulgo cemitério antigo).
V) Em Março de 1986, a Junta de Freguesia de BB, com vista à construção da ampliação do cemitério (cemitério novo) comprou à família LL uma parcela de terreno, tendo pedido dinheiro emprestado à Câmara Municipal do ... e fez uma troca de terrenos com a MM. E, como esses terrenos eram insuficientes para a ampliação, e havia um terreno que era a continuação dos terrenos já adquiridos, solicitou à Câmara Municipal do ... (depois de já ter entregue o projecto de ampliação cemitério) que diligenciasse junto da família GG pela aquisição da restante parcela de terreno, necessária à ampliação do cemitério.
X) Porquanto a Junta de Freguesia não tinha competência para gestão e ordenamento do território, na medida que essa competência era da Câmara Municipal do ....
Z) A Junta de Freguesia de BB, nos terrenos adquiridos (à Família LL e MM), já em 1986 havia dado início aos trabalhos de terraplanagem e demarcação do terreno com a construção dos muros, e após a autorização da Câmara do ... continuou a conclusão dos trabalhos de terraplanagem e de construção dos muros no terreno que seria da Família GG e que corresponde ao referido lote de terreno n.º 8.
AA) Em 1986 começou a venda de títulos aos utentes da Freguesia para compra de terrenos no cemitério.
BB) Em 22 de Janeiro de 1987 a foi deliberado, em reunião do executivo da Junta de Freguesia de BB, a venda de sepulturas e jazigos, em Março de 1987 foram emitidas guias de pagamento de sisa tendo o primeiro Alvará de concessão de jazigos (no caso subterrâneo) sido emitido em 09 de Junho de 1987, sendo que tais jazigos já se encontravam construídos.
CC) Em finais de 1987 as obras de execução e ampliação do cemitério de BB (vulgo cemitério novo) encontravam-se concluídas.
DD) O primeiro enterramento terá ocorrido em meados de 1988.
EE) Desde sempre a Ré procedeu à realização de funerais, de inumações e exumações”.

Entende a Recorrente de revista que tais factos (1) não foram alegados pela Ré, (2) não são complementares ou concretizadores de factos alegados e que (3) não foram respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.

Importa, desde logo, mencionar que, conforme resulta da constestação-reconvenção, os factos não foram alegados pela Ré. Esta ausência de alegação traduz-se num pressuposto do aditamento de matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC. Com efeito, como refere o Tribunal da Relação do Porto, de acordo com este preceito, o juiz pode considerar tanto os “factos instrumentais que resultem da instrução da causa” como os “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa”. Muito diferentemente, nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPC, no que respeita aos factos essenciais, o juiz apenas pode apreciar os que forem alegados pelas partes. Não se afigura, por isso, estranho que os referidos factos não tenham sido alegados pelas partes quando o seu aditamento foi feito, precisamente, ao abrigo do preceito que o prevê e consente.

O acórdão recorrido justificou o aditamento nos seguintes termos:

“No que respeita à questão do pretendido aditamento, cumpre notar que parte da matéria de facto descrita permite compreender melhor os antecedentes da ocupação do terreno pela Ré (factos instrumentais) e existem outros factos que constituem uma concretização da matéria relativa a essa actuação da Ré, pelo que, ao abrigo do art. 5.º, n.º 2, al. a) e b) do C.P.Civil, é admissível e justificada essa alteração.

Assim, à excepção do n.º 1 (irrelevante pois resulta da confrontação constante da alínea C)), do n.º 6 (repetido), do n.º 12 (parte), do n.º 13 (parte), e n.º 15 (a prova dos factos contrários incumbia à Autora), decide-se aditar a referida matéria de facto, que ficou manifestamente provada através do depoimento da testemunha NN, Presidente da Junta de Freguesia de BB nos mandatos de 1982 a 1993, pessoa que liderou as negociações e subsequentes comunicações com o Município do ..., acompanhou as obras de ampliação e assistiu aos actos praticados no terreno em causa”.

O Tribunal da Relação aditou os factos mencionados supra por os qualificar como instrumentais ou como concretizadores.

Embora não tenha identificado os que considerou como instrumentais e aqueles que entendeu como concretizadores, o Tribunal da Relação qualificou como instrumentais os que permitem compreender melhor “os antecedentes da ocupação do terreno pela ré”, o que aponta inequivocamente para os factos vertidos nas als T) a AA).

Não se pode dizer, a propósito destes factos, que a Recorrente mencione qualquer razão geradora de controvérsia, pois que nas conclusões V) e Z) restringe o dissenso aos “factos complementares ou concretizadores” – descurando os “factos instrumentais”.

Deste modo, a racionalidade subjacente ao recurso em apreço conduz a situar a questão no (in)devido alargamento da matéria de factos aos factos BB), CC), DD) e EE), entendidos no acórdão recorrido como complementares/concretizadores.

De acordo com jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça[3], “A complementaridade cobrirá as situações em que a pretensão do autor assenta em causa de pedir complexa, relativamente à qual se tenham alegado determinados factos, omitindo-se outros cuja prova se mostre necessária para a procedência da acção; a concretização abrangerá os factos que melhor traduzam certas afirmações de cariz conclusivo, desde que tenham algum conteúdo fáctico, e também aqueles que sirvam para clarificar determinadas afirmações imprecisas ou dubitativas”.

Observando este critério, e tendo por certo – tanto para o Supremo Tribunal de Justiça como para a Recorrente, que não suscita dúvidas a este respeito – que a matéria de facto considerada como provada na 1.ª Instância – e, portanto, antes do aditamento efetuado pelo Tribunal da Relação - resulta do que foi oportunamente alegado pelas partes, não restam dúvidas sobre o carácter concretizador dos factos em apreço. Assim, os factos BB), DD) e EE), relativos às datas da deliberação de venda de sepulturas e jazigos, da emissão das guias para pagamento de sisa, do primeiro alvará para concessão de jazigos, da construção dos jazigos, do primeiro enterramento, e, ao tempo em que perdurou a realização de funerais, inumações e exumações, especificaram ou concretizaram a matéria alegada no art. 27.º (I Vol. fls. 29) - “A ampliação do cemitério de BB concretizou-se em Dezembro de 1986, sendo desde essa altura, a parcela de terreno tratada como parte integrante da Freguesia de BB, que sempre tratou como seu, procedendo a enterramentos e funerais, aos actos normais praticados num cemitério, construção de jazigos e sepulturas, exumações e inumações, lavagem e limpeza do cemitério e, isto sucedee desde essa altura,” - no art. 31.º (I Vol. fls. 30) –“E já desde essa altura o cemitério estava edificado e em pleno funcionamento, com jazigos e sepulturas construídas, e se procediam a inumações ou exumações (…)” – e nos arts. 53.º e 54.º, “a ré por si sempre tratou a referida parcela do prédio como seu, limpando-o e conservando, construindo e autorizando a construção de sepulturas, jazigos e ossários, realizando exumações e inumações, vendendo parcelas de terreno para as sepulturas, procedente à cobrança de taxas de inumação e exumação” (…) “o que sucede (h)à mais de 20 anos”.  O facto CC), por seu turno, respeitante à conclusão das obras de execução e ampliação do cemitério de BB em 1987, concretizou o que havia sido alegado no art. 7.º (I Vol., fls. 25), da contestação, em que se aludia à ampliação desse mesmo cemitério sem especificar a data, e no art. 27.º (I Vol., fls. 29), também da contestação, referente à data da ampliação.

Pode, em suma, dizer-se que os factos entendidos pelo acórdão recorrido como concretizadores de matéria oportunamente alegada (não existindo controvérsia sobre os que são entendidos como instrumentais, porquanto a Recorrente não se lhes refere) se revestem de caráter concretizador, não podendo ser retirados do objeto do processo.

A Recorrente invoca ainda a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes. Entende que, ao aditar matéria de facto provada à que já se encontrava plasmada na sentença de 1.ª Instância, o acórdão do Tribunal da Relação agiu oficiosamente, sem que a parte o tenha requerido na fase do julgamento.

É verdade que a matéria em questão, resultante da instrução da causa (i.e., da produção da prova em julgamento), não foi aditada em 1.ª Instância quer por requerimento da parte nesse sentido quer oficiosamente, como o permite o regime consagrado no art. 5.º, n.º 2, do CPC. Essa matéria foi acrescentada apenas em sede de recurso de apelação, pelo tribunal de 2.ª Instância. 

A questão que se coloca é a de se saber se o Tribunal recorrido o podia fazer e se teve lugar a violação de algum desses princípios.

De acordo com jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[4], “Quanto à questão da alegada violação do princípio do dispositivo, do princípio do contraditório e do princípio da igualdade de armas, prende-se a mesma com o problema da amplitude dos poderes da Relação na fixação da matéria de facto. Por força das alterações introduzidas no domínio da legislação processual civil vigente, os tribunais de instância passaram a dispor de maior liberdade na definição da matéria de facto que releva para a decisão da causa.

Importa ainda não esquecer que os tribunais de instância podem e, aliás, devem, considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como os factos complementares ou concretizadores que provenham dessa actividade e integrem a relação jurídica material devidamente individualizada pela causa de pedir, conquanto seja observado o contraditório (cfr. alíneas a) e b), do nº 2, do art. 5º, do CPC). Assim, e por contraponto aos factos que integrem a causa de pedir – relativamente aos quais continua a vigorar o princípio do dispositivo contido no nº 1, do mesmo art. 5º –, impende sobre o tribunal, no que toca aos factos probatórios e aos factos complementadores (em sentido lato) e ainda que não hajam sido alegados, o ónus de os tomar em consideração na sentença”.

Importa referir que, estando em causa, no acórdão supra mencionado, a mesma questão do aditamento de matéria de facto pelo Tribunal da Relação - faculdade não subtraída ao Tribunal de 2.ª Instância -, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu não ofender esse aditamento um qualquer dos referidos princípios.

Note-se ainda que o caso sub judice apresenta uma especificidade não despicienda: é que, muito diferentemente do que a Recorrente inculca, o aditamento foi requerido no recurso de apelação (vide conclusão 24.ª do recurso) e não oficiosamente decidido pelo Tribunal da Relação.

Tal permitiu à Recorrida (ora Recorrente de revista), uma vez notificada das alegações (motivação e conclusões) do recurso de apelação, exercer plenamente o contraditório, sem violação nem deste princípio e nem do princípio da igualdade de armas, na resposta ao recurso (art. 638.º, n.º 5, do CPC). Foi exatamente o que sucedeu (vide IV das contra-alegações, intitulado “Da ilegalidade da impugnação da decisão relativa à matéria de facto por pretender que sejam julgados – massivamente – provados factos que não são atendíveis nos termos do artigo 5.º do Cod. Proc. Civil – VII Vol., fls. 1974 a 1982).

Confirma-se, deste modo, que o contraditório (a que a Recorrente associa a igualdade das partes) de que a lei faz depender o aditamento de factos concretizadores resultantes da instrução da causa – “desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”, conforme o art. 5.º, n.º 2, al. b), in fine, do CPC – foi assegurado e exercido pela Recorrente.

Não ocorreu, pois, qualquer violação dos princípios enunciados pela Recorrente.

C)4 se (des)respeitou os pontos de facto G) e H) e as regras relativas à confissão quanto ao aditamento final feito ao facto S) (conclusões DD a SS)

A Recorrente defende que, sendo a interpretação das declarações negociais e o valor probatório da confissão matérias de direito não  subtraídas ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, a interpretação do teor dos documentos referidos nos pontos de facto G) e H) e a confissão produzida no art. 33.º da contestação devem conduzir à revogação do acórdão recorrido na parte em que acrescentou ao ponto de facto S) o segmento final “na convicção de ser a dona”.

A Recorrente insurge-se, pois, contra a fixação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação do Porto.

O Supremo Tribunal de Justiça é organicamente um tribunal de revista, vocacionado, por isso, para o conhecimento de matéria de direito.

De acordo com o art. 674.º, n.º 3, do CPC,  “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa” – em que se integra a pretensão da Recorrente de revogação do acórdão quanto ao segmento de facto por ele aditado ao ponto S) – “não pode ser objeto de recurso de revista”, salvo nos casos em que há (1) “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto” ou (2) “que fixe a força de determinado meio de prova”.

No aditamento do segmento final ao ponto de facto S), o acórdão recorrido fundou-se, por um lado, na interpretação do processo de loteamento e das declarações das testemunhas – “A conjugação do processo camarário referente ao loteamento urbano com as declarações prestadas pelas testemunhas apontam, com toda a segurança, para uma actuação da Junta de Freguesia de BB, na qualidade de titular do direito de propriedade” (VIII Vol. fls. 2218) – e, por outro lado, na ponderação da atuação material da Ré sobre o terreno – “A intencionalidade da Ré em agir como proprietária do terreno onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB, resulta, desde logo, da prática reiterada, pública, de actos que são inequívocos nesse sentido, como por exemplo a venda de terrenos para sepulturas e jazigos, atribuição de alvarás e pagamento de sisa devida pelos utentes, enterramentos, inumações, etc, bem como da declaração de cedência da proprietária desse lote 8” (VIII Vol. fls. 2222).

Afigura-se indiscutível que a intencionalidade subjacente a determinada atuação constitui um facto de natureza psicológica que não está sujeito a prova vinculada, pelo que não se verifica a primeira hipótese referida (“ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto”).

O mesmo se pode dizer a propósito da segunda hipótese (“ofensa de disposição expressa da lei que que fixe a força de determinado meio de prova”).

Mesmo concedendo que as comunicações referidas nos pontos de facto G) e H) – que a Recorrente entende haverem sido desconsiderados – integram o processo de loteamento tomado em consideração pelo Tribunal da Relação do Porto, a força probatória plena que poderão encerrar circunscreve-se, no primeiro caso, ao facto histórico de ter sido comunicado pelos proprietários do terreno à Câmara que haviam autorizado “a ocupação e utilização imediata dos terrenos necessários à execução da ampliação do cemitério de BB” – arts., aos 369.º e 371.º, n.º 1, do Cód. Civil – e, no segundo caso, à imputação, aos então proprietários, da autoria (subscrição) da autorização em vista da “imediata ocupação dos lotes de terreno” – art. 376.º, n.º 1, do Cód. Civil.

A força probatória dos documentos referidos não foi violada porque, de um lado, em momento algum, discutiu o Tribunal recorrido aquelas comunicações ou autorizações e, de outro, ela não abrange, também, o resultado da interpretação da expressão verbal “autorização concedida para ocupação” do terreno - em conjugação com outros meios de prova, para a fixação da intenção de a Ré agir como dona dos terrenos.

Com efeito, se o acórdão recorrido entendeu que as autorizações mencionadas supra, de um lado e, de outro, a atuação material da Ré sustentam aquela intencionalidade ou animus domini, não havendo violação da força probatória plena das primeira, não pode este o Supremo Tribunal de Justiça alterar a resposta de facto dada.

Também a confissão feita pela Ré no art. 33.º da contestação, de que foi “autorizada” pelos proprietários a “ocupar” os terrenos em apreço, não foi posta em causa, porquanto a Ré não confessa que entendeu essa autorização como uma concessão, por mera tolerância, do uso dos terrenos. Com efeito, em virtude da ambiguidade das expressões verbais usadas e do caráter duradouro da finalidade subjacente à utilização desses terrenos (cemitério), não se afastou a hipótese de retirar desse enunciado linguístico – ou de a Ré dele o ter retirado – o sentido de verdadeira transferência ou entrega definitiva desses terrenos.

Não se descortina, por isso, qualquer violação da força probatória dos documentos considerados em G) e H) ou da confissão produzida no art. 33.º da Contestação.
D) Questão de se saber se ocorreu – ou não - a inversão do título da posse (conclusões TT a VV)

A Recorrente entende, de um lado, que a inversão do título da posse pressupõe oposição expressa àquele em nome do qual possuía, o que in casu não se verificou e, de outro, que a Ré conhecia o caráter precário da ocupação dos terrenos, como decorre da al. I) da matéria de facto.  

Pode, todavia, dizer-se que a tese preconizada pela Recorrente se funda em dois equívocos. Desde logo, que o Tribunal da Relação do Porto tenha assumido a verificação da inversão do título da posse (interversio possessionis), nos termos do arts. 1263.º, al. d), 1265.º e 1290.º do Cód. Civil, o que pressuporia o reconhecimento de uma situação inicial de mera detenção dos terrenos pela Ré. Depois, que a matéria vertida em I) tenha o alcance por si pretendido.

Com efeito, o Tribunal da Relação não lançou mão do instituto da inversão to título da posse, como resulta claramente da fundamentação do respetivo acórdão: “ (…) Suscita-se a questão de saber, neste processo, se a Ré pode ser qualificada como uma verdadeira possuidora do terreno ou se é apenas mera detentora.

A importância da distinção neste pleito é fulcral porque se a Ré for considerada mera detentora não é permitida a aquisição do terreno por usucapião, excepto se ocorrer inversão do título da posse (v. art. 1290.º do CC) nem beneficia da presunção da titularidade do direito.

(…) A ocupação do terreno pela Ré para proceder ao início das obras de ampliação do cemitério, ao contrário do que poderia resultar da interpretação do termo “autorizar” constante do mencionado requerimento, não pode ser perspectivada como um acto de simples aproveitamento da tolerância dos titulares do direito, previsto na al. b) do art. 1253.º do C.Civil, já que as outras duas hipóteses não são aplicáveis.

(…) Conclui-se, assim, que a Ré beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade por ser possuidora do terreno, e não mera detentora, e sendo a sua presunção mais antiga do que aquela que decorre da inscrição no registo predial, prevalece a presunção decorrente da posse.

Como esclarece José Alberto Vieira, a presunção assente no registo predial não vale de nada se houver uma posse anterior ao registo, como sucede no caso em apreço. E, acrescenta este autor que, neste caso, o titular inscrito terá de levar a cabo a actividade probatória tendente a demonstrar a titularidade substantiva do direito em causa.

De qualquer modo, a presente acção de reivindicação nunca podia ser julgada procedente pois ficou provado, desde logo, que a Ré ocupa o terreno, legitimamente.

A Ré, em reconvenção, arroga-se igualmente proprietária do referido terreno, invocando a aquisição originária (usucapião) e pede, logicamente, o reconhecimento desse direito.

Em primeiro lugar, e como acima se referiu, a Ré beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade por ser possuidora do terreno.

Mas ainda que esta perspectiva jurídica não fosse acolhida, não há dúvida de que se chegaria a idêntica conclusão na medida em que ficaram provados factos que consubstanciam a aquisição do terreno por usucapião.
(…)

Em suma, acção deve ser julgada improcedente e procedente a reconvenção, porquanto a Autora não logrou ilidir a presunção prevalecente decorrente da posse da Ré, tendo ficado demonstrado ser esta última a legítima proprietária, por ter adquirido, por usucapião, esse terreno.”

Por seu turno, o ponto de facto I), em que a Recorrente se ancora, não permite concluir que a Ré conhecia o caráter precário da ocupação dos terrenos. Desde logo, porque a matéria nele vertida diz respeito a uma mera comunicação entre o Município do Porto e o Presidente da Junta de Freguesia, não envolvendo a Recorrente. Assim, “I) Por comunicação datada de 5 de Fevereiro de 1987, remetida pelo Município do Porto ao Presidente da junta de freguesia de BB e recebida em 16 de Janeiro de 1987, consta que “Na sequência do ofício nº 107/87/DGS, de 14 de janeiro p. p., em que nos apressamos a comunicar a Vª Exª o teor da declaração dos proprietários dos lotes nºs 7 e 8, destinados ao alargamento do cemitério de BB informamos que a utilização das áreas necessárias ao referido empreendimento, nomeadamente parte do leito do arruamento existente, terá de ser precedida de ratificação pelo atual Executivo das condições de cedência, já provadas para o fim em vista pelo Executivo anterior (deliberação camarária de 20 de junho de 1985) e da desafetação do domínio público do leito do arruamento já referido, processo a que já foi dado início. A efetivação da cedência será concretizada posteriormente, a qual se verificará logo que o Município entre na posse e propriedade das referidas parcelas”. Depois, porque a parte final do facto S) conduz a conclusão contrária.

Mantendo-se intocados os fundamentos de facto e de direito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o recurso deve improceder, ressalvando a supra referida nulidade parcial.

IV – Decisão

Julga-se o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, declara-se parcialmente nulo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto na parte em que julgou a ação totalmente improcedente, mantendo-se a declaração, constante da decisão, de que o terreno referido em A) é propriedade da Autora, com exceção da parcela referida em L). Mantém-se tudo o mais decidido pelo Tribunal da Relação do Porto.
 
Custas pela Recorrente na proporção do decaimento.


Lisboa,


(Maria João Vaz Tomé)


(António Magalhães)


(Alexandre Reis)

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[1]  Cfr.Acórdão do STJ do 25 de junho de 2009 (Alberto Sobrinho), Proc. n.º 191/07.0TBCBR.C1.S1; Acórdão do STJ de 20 de janeiro de 2010 (Oliveira Vasconcelos), Proc. n.º 56/2000.S1, Acórdão do STJ de 29 de outubro de 2013 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 1410/05.2TCSNT.L1.S1, Acórdão do STJ de 18 de junho de 2014 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 4742/03.0TBVLG.P1.S1, Acórdão do STJ de 30 de junho de 2016 (António Piçarra), Proc. n.º 875/03.1TBLMG.C1.S1, Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2017 (Salazar Casanova), Proc. n.º 128/08.9TBMFR.L1, Acórdão do STJ de 5 de julho de 2018 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 2522/16.2TBBRG.G1.S1 – disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

[2] No sentido da configuração de tal intenção como facto, vide Acórdão do STJ de 2 de junho de 2009 (Sousa Leite), Proc. n.º 205/09.9YFLSB, Acórdão do STJ de 27 de outubro de 2009 (Silva Salazar), Proc. n.º 454-B/2002.S1, Acórdão do STJ de 3 de dezembro de 2009 (João Camilo), Proc. n.º 3851/03.OTBVLG.P1.S1, Acórdão do STJ de 10 de dezembro de 2009 (Azevedo Ramos), Proc. n.º 313/04.2TBMIR.C1.S1, Acórdão do STJ de 14 de junho de 2012 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 82/06.1TBCCH.E1.S1 – disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

[3] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de abril de 2019 (Henrique Araújo), Proc. n.º 3755/15.4T8LRA.C2.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[4] Vide Acórdão do STJ de 8 de fevereiro de 2018 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 633/15.0T8VCT.G1.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt.