Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1355/11.7TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: USO
HABITAÇÃO
USUFRUTO
INTRANSMISSIBILIDADE
CAUSAS DE EXTINÇÃO
Data do Acordão: 12/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO - DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / LEGADOS.
Doutrina:
- Luiz da Cunha Gonçalves, Da Propriedade e da Posse, edições Ática, 1952, pp. 165, 167.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, vol. III, 1987, p. 551.
- Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito de Sucessões, 1.ª ed., 2.º Vol., p. 271.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1444.º, 1476.º, N.º1, ALÍNEA A), 1484.º, N.º2, 1485.º, 1488.º, 2254.º, N.º1.
Sumário :
I- Os direitos de uso e habitação extinguem-se pelo mesmo modo de extinção do usufruto ( artº 1485º C. Civil) e este direito real extingue-se, entre outras formas, pela morte do seu titular [alínea a) do nº 1 do artº 1476º do mesmo diploma legal].

Logo, no momento da sua morte e por força dela, extinguiu-se o direito à habitação do apartamento, de que era titular o falecido F.          

II- Não releva para tal conclusão a intenção do testador, como supõe a Recorrente, pois, antes do mais,  trata-se de normas imperativas que não podem ser afastadas pela vontade dos interessados e, depois, se tal direito se extinguiu «mortis causa» é por demais evidente que o mesmo não se podia transmitir, pois nada havia que fosse transmissível.

No caso dos direitos de uso e de habitação, importa ter em consideração a sua intransmissibilidade  consagrada em letra de lei no artº 1488º do Código Civil, mesmo no âmbito de negócio jurídico inter vivos.

III- Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela doutamente observaram:

«Ao contrário do que acontece com o usufruto, para o qual vigora o princípio da livre disposição (artº 1444º), o uso e habitação está sujeito à regra da intransmissibilidade. Não sendo transmissíveis, nenhum destes direitos poderá também ser onerado com qualquer garantia real ( penhor, hipoteca, etc)» ( Código Civil, anotado, vol. III, 1987, pg. 551).

Mais adiante, os mesmos preclaros civilistas assim comentaram:

«Trata-se, no fundo, de um puro corolário do carácter estritamente pessoal do direito, muito próximo, na sua finalidade, da prestação alimentar ( cfr. artº 2008º, 1 e 2). Envolvendo o uso e habitação a ideia de utilização directa da coisa ou do consumo directo dos frutos, a sua transmissão pode dizer-se que colidia com a natureza do direito» ( ibidem).

IV- Note-se que, mesmo quanto ao usufruto, se bem que de livre disposição, como salientaram os Mestres indicados, também este direito real se extingue pela morte do usufrutuário [artº 1476º, nº 1, al. a) do Civil], pelo que o mesmo direito que por vezes aparece, na presente lide, designado por usufruto, teria o mesmo destino, isto é, a sua extinção imediata por morte do Pai da Autora/Recorrida.

Não admira, assim, que os direitos de uso e de habitação sigam regime similar ao do usufruto, pois, com bem salientava o eminente tratadista do Direito Civil que foi Cunha Gonçalves, «o direito do uso é, apenas, um usufruto mais restrito, quer quanto à extensão do direito, quer quanto à sua disponibilidade» (Luiz da Cunha Gonçalves, Da Propriedade e da Posse, edições Ática, 1952, pg. 165).

O mesmo notável Mestre, que escrevia no domínio do Código de 1867 (Código de Seabra), acrescentava que «o direito do uso extingue-se pelas mesmas causas que põem termo ao usufruto. Terminado esse direito, reverte a cousa usada ao proprietário, livre de tal encargo» ( idem, 167)

Decisão Texto Integral:  

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

 AA intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB, ambas com os sinais dos autos, pedindo que:

– seja declarada nula e sem efeito a disposição testamentária de fls. 38 v.° § 5.° a fls. 39, § 1.°, sobretudo linhas 4 a 6 deste último parágrafo, e relativa à deixa à R. do direito de uso e habitação do apartamento correspondente à quota da A. na sociedade CC, Lda., NIPC …, constante do testamento lavrado no livro n° … do Cartório Notarial DD;

– seja declarado nulo e sem efeito o direito da Ré ao uso e habitação do apartamento que corresponde à quota da A. (….° andar … do n° … da Avenida ..., em Lisboa) e, por consequência,

– seja a R. condenada a cessar o uso e habitação do referido apartamento, e respectivo recheio, devendo, de imediato, entregar à A. o mesmo apartamento livre e devoluto de pessoas e bens.

Para tanto, alegou, em síntese:

        

Ser sócia da CC -…, Lda., cujo objeto é a administração do prédio em que se situa a sua sede e do qual a mesma sociedade é única e plena proprietária;

Cada uma das quotas dessa sociedade confere ao respectivo sócio o direito individual à habitação do fogo ou casa que corresponde à quota respectiva;

A titularidade da quota que lhe pertence, confere à Autora o direito à habitação do oitavo andar direito;

Por morte do sócio EE, ocorrida a 16/12/2010, a sociedade continuou com a Autora, sua única filha e herdeira, que deveria ter ficado a ser a titular dos direitos da quota respectiva e da usufruição da dita casa;

Por testamento, o pai da Autora deixou à Ré o direito de uso e habitação da referida casa, o que constitui violação grosseira do seu direito de usufruir a casa, já que tal direito só por acto entre vivos poderia ser cedido.

A Ré contestou e pediu a sua absolvição do pedido, dizendo que:

– o testamento feito por EE, feito em 2003 e mantido até à sua morte, evidencia o seu propósito de contemplar a ré com o direito de uso e habitação e respectivo recheio do apartamento que ambos habitavam;

esta intenção presidirá à execução do testamento;

– o testador, enquanto sócio da CC, tinha o direito exclusivo da usufruição da habitação do prédio relacionada com a sua quota; este direito abrange, segundo os estatutos da sociedade, o direito de transferir gratuita ou onerosamente, com carácter temporário e para fins habitacionais, a habitação correspondente à quota; esta faculdade foi usada pelo testador, por uma deixa cujo objecto é lícito, possível e determinável;

– o legado feito à Autora preencheu a sua legítima, não tendo sido um legado em substituição da legítima; não tendo aceite o legado, a Autora não poderia ter registado para si a quota na sociedade.

         Após a legal tramitação, foi realizado o julgamento da acção e proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.       

 Inconformada, apelou a Autora para o Tribunal da Relação de Lisboa que, julgando procedente o recurso e a acção, deliberou:

               – declarar nula e sem efeito a disposição testamentária feita a favor da Ré no sentido da atribuição, a esta, do direito de uso e habitação do apartamento correspondente à quota da Autora apelante na CC - …, Lda., NIPC ...;

    – declarar que a Ré apelada não é titular do referido direito;

               – condenar a Apelada a cessar o uso e habitação do referido apartamento, devendo, de imediato, entregar à autora o mesmo apartamento livre e devoluto de pessoas e bens.

Inconformada com esta decisão, a Ré, BB, veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

        

CONCLUSÕES

1- O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa  que concedeu provimento ao recurso interposto pela ora Recorrida da decisão da 1ª instância que absolveu a Recorrente dos pedidos formulados na acção.

2- Considerou o Tribunal da Relação procedente os pedidos e em consequência declarou nula e sem efeito a disposição testamentária relativa à deixa concedida à ora Recorrente do direito de uso e habitação do apartamento correspondente à quota da Recorrida na sociedade CC, Lda constante do testamento lavrado no Cartório Notarial de DD;

3- Declarou nulo e sem efeito o direito da Ré ao uso e habitação do apartamento à sua quota (o … andar direito do n° … da Avenida …. em Lisboa e em consequência;

4. E condenou a Recorrente a cessar o uso e direito de habitação do referido

apartamento, devendo, de imediato entregar à Recorrida o mesmo livre e devoluto de bens.

5- Salvo o devido respeito pela decisão recorrida, não é correcta a conclusão extraída pelo tribunal da Relação e o dissentimento com o referido acórdão prende-se com o paradoxo entre a prova produzida e a fundamentação jurídica aí vertida.

6- O presente recurso de Revista centra-se na decisão da matéria de direito do douto acórdão recorrido.

7- Da matéria de facto, ficaram provados factos dos quais merecem relevo os seguintes:

-A A. é sócia da CC- …, Lda, NIPC ..., com sede na Av. …, n° …, com uma quota no valor nominal de 997, 60 Euros.

-No caso concreto, da A. a titularidade da sua quota confere-lhe o direito de habitação do oitavo andar direito.

-Em 16/12/2010 faleceu o sócio EE.

O falecido deixou testamento, outorgado em 26 de Fevereiro de 2003, cujo teor se encontra acima integralmente reproduzido.

De acordo com a cl. 20° dos Estatutos da sociedade, por morte de qualquer sócio, a sociedade continua com o respectivo herdeiro ou herdeiros, que ficarão a ser titulares dos direitos da respectiva quota e da usufruição da respectiva casa.

Por testamento do pai da A. foi deixado à R. o direito de uso e habitação deste apartamento.

Estatui a cláusula 5ª dos mesmos Estatutos que cada sócio tem o direito de usufruir, sem restrições e com carácter exclusivo em relação aos demais sócios, a habitação do prédio relacionado com a quota de que é titular, que esse direito de usufruição faz parte do direito de propriedade à respectiva quota, sendo incindível, de modo que não é possível ceder o mesmo direito de usufruição mantendo o direito à quota, ou vice-versa, e que a cedência da quota a título gratuito ou oneroso, por acto entre vivos ou mortis causa implica a cedência daquela usufruição.

-Na alínea b) da mesma cláusula refere-se ainda como direito do sócio o de "transferir gratuita ou onerosamente, com carácter temporário, e para fins habitacionais, a habitação correspondente à sua quota.

-A A. não aceitou o legado para aceitar a legitima.

8- Configura-se assim, o "thema decidendum" da presente acção, ou seja, a questão de saber se a deixa testamentária de que a Recorrente beneficiou enfermaria de algum vício.

9- Em face dos factos acima elencados e da análise do testamento resulta claramente a intenção do testador de contemplar a Recorrente com o direito de uso e habitação e respectivo recheio do apartamento em que ambos habitavam.

10– A Recorrida nas suas doutas alegações pugna pela nulidade do legado invocando para o efeito que a coisa legada já não existia no património do testador ao tempo da sua morte.

11– E que à data da sua morte o testador já não era usufrutuário do
apartamento cujo direito legou à ora Recorrente.

12 – Salvo o devido respeito, não pode concordar-se com tal conclusão.

13- In casu é inquestionável, que a deixa testamentária foi outorgada através de escritura pública lavrada em 26 de Fevereiro de 2003, em vida do testador.

14- Tendo o mesmo, vindo a falecer em 16 de Dezembro de 2010.

15- Com efeito, este testamento não enferma de qualquer vicio e não contem clausulas contrárias à lei, ordem pública ou bons costumes.

16.- De acordo com o teor do Acórdão da Relação de Lisboa n° 516/09.3TBPDL. L1-1 de 31 de Maio de 2011 " a interpretação da declaração dispositiva que é o testamento, ou só de algumas das suas cláusulas, deve pautar-se por um critério subjectivista, diferente do critério objectivista, que ê adoptado na interpretação da declaração receptícia nos negócios entre vivos. Na realidade, enquanto nestes a declaração negocial, como elemento referente da vontade, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante (artº. 236° do  Código  Civil),  na interpretação da declaração do testador observar-se-á o que parecer mais conforme com a vontade do seu autor".

17- Apelando à conjugação do disposto no artº. 2254º n° 1 do Código Civil com a estatuição da clausula 5º dos Estatutos da sociedade CC, Lda, que prevê que cada sócio tem o direito de usufruir, sem restrições e com carácter exclusivo em relação aos demais sócios, a habitação do prédio relacionado com a quota de que é titular, que esse direito de usufruição faz parte do direito de propriedade à respectiva quota, sendo incindível, de modo que não é possível ceder o mesmo direito de usufruição mantendo o direito à quota, ou vice -versa, e que a cedência da quota a título gratuito ou oneroso, por acto entre vivos ou mortis causa implica a cedência daquela usufruição.

18- E ao teor da alínea b) da mesma cláusula, que refere ainda como direito do sócio " o de transferir gratuita ou onerosamente, com carácter temporário e para fins habitacionais a habitação correspondente à sua quota"

19- Resulta assim que o testador deu aquilo que detinha e que se encontrava na sua titularidade.

20- Na realidade, é necessário interpretar as disposições testamentárias nos termos do disposto no art. 2187 n° 1 do C.C," (...) observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o texto do testamento"

22. Além dos direitos sociais e individuais de ordem geral, cada uma das quotas confere ao respectivo sócio o direito individual à habitação do fogo ou casa que corresponde à quota respectiva.

23. Não se nega que a titularidade da quota pertencente à Recorrida confere-lhe o direito à habitação do oitavo andar direito sito em Lisboa.

24. Cabendo aqui referir, que por testamento, foi deixado à ora Recorrente o
direito de uso e habitação do dito apartamento.

25.       Foi um ónus criado pela aquela deixa testamentária recaindo sobre a quota.

26. Nos termos do disposto no art. 2186° do C.C a disposição testamentária é nula quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.

27- É manifesto que a disposição testamentária que a Recorrida pretende banir não foi determinada por qualquer fim dos que implicam a sua nulidade.

28 - Existem igualmente outros preceitos legais que prevêem a nulidade do testamento para situações que nada se assemelham com os autos, designadamente os artºs. 2180°, 2190º, 2251º, 2254º e 2256º- expressão da vontade por sinais ou monossílabos, incapacidade, coisa pertencente a terceiro ou sucessor, coisa inexistente, coisa do legatário.

29- O argumento a que recorrida se socorreu por diversas vezes indicando que a coisa legada e que fazia parte integrante do usufruto já não existia no património do testador ao tempo da sua morte resulta é uma falácia e resulta apenas de uma contrariedade aos estatutos societários insusceptível de gerar uma nulidade.

30- Atente-se no teor da alínea b) da cláusula 5ª dos estatutos da sociedade que consagra como direito do sócio o de transferir gratuita ou onerosamente, com carácter temporário, e para fins habitacionais a habitação correspondente à sua quota.

31- Sendo certo que a alínea a) proíbe o usufruto sem a cessão da quota.

32- Porém a deixa testamentária não foi de usufruto mas apenas de uso e fruição.

33- E foi o que testador fez.

34- Em face do exposto, urge considerar a verificação de uma colisão de direitos entre a titularidade da quota da ora Recorrida e o direito de uso e fruição da ora Recorrente.

35- Qual deles deve prevalecer?

36- Levando em linha de conta tudo o acima referido a solução não pode ser outra, ou seja, declarar que o testamento deverá ser cabalmente e integralmente cumprido.

37- Ressalve-se ainda, que usufruto e direito de habitação são direitos distintos.

38- Dispõe o art° 1439° do C.C o usufruto "é o direito de gozar temporariamente e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância."

39- O usufruto, sendo um direito real sobre coisa alheia, é um direito que propicia ao seu titular um poder directo e imediato sobre ela (ou direito) sem a mediação ou cooperação de quem quer que seja.

40- Por outro lado, determina o 1484 n° 1 do C.C que" o direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das suas necessidades, quer do titular, quer da sua família".

41- Sendo certo que" quando este direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação".

42- De notar que com a constituição do usufruto ou dos direitos de uso e habitação sobre uma coisa existe um desdobramento da propriedade plena em dois direitos distintos e paralelos:

43- O da nua propriedade, que se mantém na esfera do proprietário do bem e não lhe obsta o direito de livre disposição deste, respeitada, contudo, a limitação do direito de gozo incidente sobre a propriedade.

44-  Por outro, impede ao seu titular os direitos de usar e fruir da coisa visto que estes passam a ser prerrogativas do usufrutuário ou do usuário da coisa, conforme o direito real de que se trate.

45- O de usufruto ou de uso ou habitação, direitos reais tais, resultantes da redução do direito de propriedade plena do nu proprietário que confere ao seu titular, de quem se diz, respectivamente, usufrutuário ou consoante o caso, o gozo e a fruição da coisa objecto do direito.

46- Deste modo, existindo dois direitos paralelos - de nua propriedade e de gozo sob a forma de usufruto ou de uso ou habitação - a amplitude do direito de cada um dos seus titulares é necessariamente condicionada, não podendo o titular exercer o seu direito para além de certos limites sob pena de esvaziar o conteúdo do outro.

47- Atente-se ainda no paradoxo existente na fundamentação jurídica constante do douto Acórdão recorrido que sustenta o seguinte:

" Daí que, a partir dos factos provados, acima descritos, haja que constatar e concluir o seguinte:

Proprietária única de todo o prédio com o n° … da Av. …, em Lisboa, era e ainda é, desde 1959, a CC.

A EE, enquanto sócio dessa sociedade, não cabia o direito de propriedade sobre uma qualquer parte desse mesmo prédio, mas tão só e apenas o direito individual à habitação do fogo ou casa correspondente à sua quota."

48- Prosseguindo numa passagem posterior, plasmada a fls. 11 do Acórdão: " Como resulta do que acima se disse, também a apelante não é proprietária do apartamento em causa.

O direito que sobre ele detém não é um direito real, devendo reconhecer-se que esse direito é, apenas, um direito social, que lhe advêm da titularidade de uma quota na CC"

49– Em consequência dos factos consignados pelo Venerando Tribunal da Relação e ora transcritos, torna-se premente concluir que só a sociedade CC, Lda possui legitimidade activa para proceder à anulação da deixa testamentária, em apreço nos presentes autos.

50– Sob tal prisma, a ora Recorrida não pode preencher o pressuposto da legitimidade activa e demandar um interesse directo ou imediato que ela própria também não possui.

51- Sendo a sociedade CC, Lda a proprietária só esta possui legitimidade activa e passiva sobre as quotas da mesma.

52-E só esta possui o poder e a capacidade jurídica para pedir a anulação do testamento.

53- Dúvidas não restam de que não pode suprir-se o que o testador não determinou nem incluir cláusula inexistente no testamento.

54- E que a vontade do testador é soberana e encontra-se vertida no testamento.

55- Ou seja, como proprietário da quota, o Engº EE transmitiu, nos termos do testamento e da cláusula 5 ° alínea b) dos Estatutos, o direito à habitação, com carácter temporário e para fins habitacionais, do apartamento correspondente à sua quota, sendo este o sentido mais ajustado com a vontade do testador nos termos do disposto no art. 2137 n° 1 do C.C.

56- Razão pela qual não pode concordar-se com esta conclusão do Tribunal da Relação que não exprime de forma adequada e completa a matéria sobre a nulidade testamentária.

57- Acresce que a nulidade testamentária é matéria de ordem pública e a interpretação dessa nulidade requer a obediência ao objecto: se ele é licito, se ele é possível e se ele é determinável.

58- Ora, resulta claramente, que o Eng.º EE no testamento transferiu o direito de uso e habitação relativamente à titularidade da sua quota à ora Recorrida de harmonia com a cláusula 5 b) dos Estatutos.

59- Tal deixa (objecto) é lícita, é possível e é determinável.

60-. Do teor do testamento consta ainda o seguinte:

"1º parágrafo" Que em preenchimento da legitima que lhe cabe deixa à sua filha AA:

A) A nua propriedade do apartamento onde reside na Av. …,

numero …, (   ) oitavo direito(          ) e o direito de uso e habitação deste apartamento

e do respectivo recheio fica para a sua empregada BB."

61- De acordo com o plasmado na escritura de habilitação de herdeiros, a Recorrida AA "declara que o falecido deixou testamento lavrado em 26 de Fevereiro de 2003, no qual dispôs de vários legados, de entre eles, um, em preenchimento ou substituição da sua legitima...."

62- "E ainda que a identificada AA, para efeitos do disposto no art. 2165° do Código Civil declara não aceitar aquele legado, aceitando em consequência a legitima, tudo nos termos do n° 2° daquele artigo 2165º."

63-A este propósito é ainda relevante acrescentar, que a ora Recorrida não poderia registar a quota, pois não aceitou o legado.

64- Tinha pleno conhecimento que o seu pai havia celebrado testamento conferindo o direito de habitação do oitavo andar do n° … da Avenida … à ora Recorrente.

65- A Recorrida sabia que o seu pai, Engº EE, enquanto vivo, era proprietário de uma quota da sociedade "CC, Lda.

66- .Como proprietário da quota, transmitiu nos termos do testamento e da cláusula 5 ° alínea b) dos Estatutos, o direito à habitação, com carácter temporário e para fins habitacionais, do apartamento correspondente à sua quota.

67-  A Recorrida bem sabia que a sua quota fora transmitida com este ónus.

68- Que caberá à mesma aceitar e respeitar.

 

Observação: Por manifesto lapso, foi omitido pela recorrente o nº 21 das conclusões da sua minuta recursória, «saltando» do 20 para 22.

A fim de não perturbar a sequência numérica seguinte, que imporia a alteração de todos os números subsequentes, optou-se por manter a numeração que foi atribuída, com a presente ressalva.

         Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a Recorrida pela manutenção da decisão recorrida.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

1. A A. é sócia da CC - …, Lda., NIPC ..., com sede em Lisboa na Avenida ..., n° …, por uma quota no valor nominal de 997,60 €.
2. O objeto da sociedade é a administração do prédio em que se situa a sua sede, do qual a mesma sociedade é a única e plena proprietária, inscrito na matriz predial sob o artigo … (ex-…) da freguesia de São …. e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n°. …., e em livro sob o n° …. do livro n° … e …, da freguesia de São …..
3. Além dos direitos sociais e individuais de ordem geral, cada uma das quotas confere ao respectivo sócio o direito individual à habitação do fogo ou casa que corresponde à quota respetiva.
4. No caso concreto da A., a titularidade da sua quota, confere-lhe o direito à habitação do oitavo andar direito.

5. Em 16/ 12/2010, faleceu o sócio EE.
6. O falecido deixou testamento, outorgado em 26 de Fevereiro de 2003, com o seguinte teor:

Testamento de EE
No dia vinte e seis de Fevereiro de dois mil e três, no Décimo Sexto Cartório Notarial de Lisboa, perante mim, DD, notária do mesmo, compareceu:
EE, natural da freguesia de …, concelho de …, solteiro, maior, nascido em … de … de mil novecentos e …, filho de FF e de GG, residente na Avenida …, número …, … direito, em Lisboa.

E POR ELE FOI DITO QUE FAZ O SEU TESTAMENTO DA SEGUINTE FORMA:

Que reconhece como sua filha e em consequência perfilha AA, nascida a … de Agosto de mil novecentos e …, natural da freguesia de São …, concelho de Lisboa, filha de HH.
Que lega a seus sobrinhos II e JJ o apartamento que é a fracção autónoma "…" do prédio sito na Rua …, número …, terceiro …, freguesia de São …, concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o artigo ….
Que esse apartamento terceiro …, do prédio na Rua …, número …, em Lisboa, poderá excepcionalmente ser arrendado por curtos períodos previstos na lei, mas somente para habitação, nomeadamente de colegas estrangeiros que como bolseiros ou estagiários permaneçam em Portugal pouco tempo e não poderá ser vendido pois é de sua vontade que os referidos sobrinhos o conservem em bom estado, para que por morte desses sobrinhos o apartamento reverta em partes iguais para os descendentes de cada um deles.
No caso de algum dos referidos sobrinhos falecer sem descendentes o apartamento ficará para os descendentes do outro e no caso de ambos falecerem sem descendentes ficará para o seu neto KK, filho da sua filha AA.
Que este legado aos sobrinhos II e JJ é ainda feito na condição de os mesmos sobrinhos não maltratarem, perseguirem ou de alguma forma importunarem a sua filha AA, o seu neto KK ou a sua empregada BB.
Que em preenchimento da legítima que lhe cabe deixa à sua filha AA:
A) A nua-propriedade do apartamento onde reside na Avenida …, número 14 (correspondente ao anterior lote trezentos e setenta e dois), … direito, prédio inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de ... e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número dezoito mil duzentos e setenta e cinco do livro …, apartamento este que lhe pertence em virtude de ser titular de uma quota na sociedade civil sob a forma de sociedade por quotas constituída por escritura pública de catorze de Janeiro de mil novecentos e cinquenta e nove, efectuada no Primeiro Cartório Notarial de Lisboa, denominada "CC - …, Lda" cujos estatutos se encontram publicados no Diário da República número quarenta, Terceira Série, de dezassete de Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e nove e o direito de uso e habitação deste apartamento e do respectivo recheio fica para a sua empregada BB.
B) A nua-propriedade do apartamento sito na Rua …, número …, quinto …, freguesia de ..., concelho da …  e o usufruto deste apartamento fica para a sua empregada BB.
C) O usufruto das fracções autónomas do prédio sito na Avenida …, número … - atelier e no número … - … andar esquerdo, em Lisboa, correspondentes aos artigos urbanos da freguesia de …, … -O e … -Z, ficando a nua-propriedade das mesmas para o seu neto KK;
D) Todos os prédios que tem na ..., designadamente, os correspondentes aos artigos urbanos … e … e aos artigos rústicos …, … e …, todos da freguesia de …;
E)  Todos os imóveis que em concretização do seu quinhão hereditário por
morte de seus pais lhe venham a pertencer,
designadamente quanto aos seguintes
bens, todos no concelho da
...: Na freguesia de ..., os prédios
rústicos correspondentes aos artigos 5537, 5540, 5543, 5925, 5960, 6012, 7634,
7638, 7667, 8745, 9894, 9940, 11091, 11274, 15100, 15199, 15272, 15366, 15601,
15635, 15649, 15664 e 15829; Na
freguesia de ..., os prédios urbanos
correspondentes aos artigos 464, 473 e 503 e os prédios rústicos correspondentes aos
artigos 122, 124, 177, 441, 527, 529, 597, 664, 1611, 1962, 3430, 3464, 3489, 3489,
3492, 3617, 3767, 3961, 3988, 4183, 4278, 4347, 4365, 4386, 4473, 5898, 6012,
6019 e 6148; Na freguesia de
..., o prédio rústico correspondente ao artigo
1260. Deixa ainda à sua filha AA todo o
dinheiro que possuir em quaisquer instituições bancárias, designadamente no LL- Banco ... (agência Estados Unidos), MM - Banco ... (agência Saldanha), NN - ... (Agências Alvalade, Columbano, Palácio da Justiça) e OO (agência Av. de Berna). Que este legado do seu dinheiro é feito na condição de a sua filha o utilizar para pagar o funeral dele testador, proceder à conservação de todos os imóveis, excepto o apartamento legado aos sobrinhos, caso o legado produza efeito, proceder ao pagamento de impostos, contribuições, seguros, condomínio e quaisquer outros encargos que incidam sobre os referidos prédios e para investir a curto prazo na compra de um imóvel.

Que revoga qualquer testamento anteriormente feito.
Intervieram neste acto como peritos médicos, a pedido do testador o Dr. PP, casado, residente na Avenida …, número …, … esquerdo, em Lisboa e o Dr. QQ, casado, residente na Rua …, lote …, Rés-do-chão direito, em Lisboa, os quais depois de prestarem juramento legal, atestaram que o testador se encontra no pleno uso das suas faculdades mentais, abonando assim a sua sanidade mental.

Foram testemunhas:

Dra RR, casada, residente na Rua …, número …, primeiro, …, Oeiras e SS, divorciado, residente na Avenida …, lote …, segundo direito, em Cascais.
Verifiquei a identidade do testador e das testemunhas pela exibição dos seus bilhetes de identidade, respectivamente, números … de …/0…/19…, … de ….0...20… e … de ….0….20…, todos emitidos em Lisboa, o primeiro pelo CICC e os demais pelos SIC.

Este testamento foi lido e o seu conteúdo explicado.
7. De acordo com a cl. 20.a dos estatutos da sociedade, por morte de qualquer sócio, a sociedade continua com o respetivo herdeiro ou herdeiros, que ficarão a ser titulares dos direitos da respetiva quota e da usufruição da respetiva casa.
8. Por testamento do pai da A., foi deixado à R. o direito de uso e habitação deste apartamento.

9. Estatui a cláusula 5.a dos mesmos Estatutos que cada sócio tem o direito e
usufruir, sem restrições e com carácter exclusivo em relação aos demais sócios, a
habitação do prédio relacionado com a quota de que é titular; que esse direito de
usufruição faz parte do direito de propriedade à respetiva quota, sendo incidível, de
modo que não é possível ceder o mesmo direito de usufruição mantendo o direito à
quota, ou vice-versa; e que a cedência da quota a título gratuito ou oneroso, por ato
entre vivos ou
mortis causa implica a cedência daquela usufruição.
10. Na alínea b) da mesma cláusula refere-se ainda como direito do sócio o de "transferir gratuita ou onerosamente, com carácter temporário, e para fins habitacionais, a habitação correspondente à sua quota".

11. A A. não aceitou o legado para aceitar a legítima.


12. A A. só em 28/04/2011 logrou registar a quota em seu nome, após cumpridas as suas obrigações fiscais, pelo que, também apenas então logrou ter conhecimento dos Estatutos.
13. A R. é dona de um apartamento de 4 divisões assoalhadas em Rio de Mouro, com garagem e arrecadação, concelho de Sintra, que lhe foi doado, no estado de novo, pelo pai da A. em 2004.

Tem ainda interesse referir o seguinte:

14   - A sociedade referida em 1 foi matriculada em 16/4/1959 na
Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com o número de pessoa colectiva
..., figurando no mesmo registo EE como titular de uma quota com
o valor de € 997,60 - cfr. doe. n° 1 junto com a PI, a pgs. 11 e 14;

15 - Segundo os estatutos desta sociedade publicados no D. Rep., III série, de 17/2/1959, ao mesmo EE cabia a quota M, com o valor de 200.000$00 - cfr. documento a págs. 125-127;
16 - A transmissão desta quota para a aqui apelante foi inscrita na mesma Conservatória em 28/4/2011 - cfr. o mesmo documento, a pg. 17;
17 - A aquisição do prédio referido no n° 2 foi inscrita em 11/11/ 1959 a favor de CC - …, Limitada, Sociedade Civil -cfr. certidão do registo predial junta a pgs. 20;

18 - Por escritura de 29/12/2010 a ora apelante habilitou-se como herdeira legitimaria de EE - cfr. documento junto a pgs. 36-37.

Após a factualidade traçada, é tempo de decidir!

Como bem aponta a Recorrente nas suas alegações, o thema decidendum da presente acção cifra-se em saber se a deixa testamentária de que a mesma beneficiou está inquinada de qualquer vício.

Na verdade, a Relação curou de indagar se tal deixa estaria ferida de nulidade, na medida que o objecto que foi legado à ora Recorrente (direito de habitação do apartamento do qual o testador apenas era usufrutuário e não proprietário e que fazia parte integrante do mesmo usufruto) não existia no património do testador à data do seu decesso biológico, em virtude de o usufruto cessar, nos termos legais, à data da morte do usufrutuário e chegou, obviamente,. à resposta afirmativa.

         Não serão necessárias longos excursos dogmáticos ou jurisprudenciais, para se aquilatar que não assiste razão à Recorrente, como se passa a demonstrar!

         Para tanto, consideramos relevante e metodologicamente adequado começar por transcrever a parte essencial do acórdão recorrido, no qual a Relação explicita a ratio da solução adoptada:

         Com efeito, assim se afirma naquela passagem que ora nos permitimos transcrever:

«Com interesse para a análise da questão sujeita à nossa apreciação, é de salientar a circunstância de a propriedade horizontal ter sido introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo DL n° 40.333, de 14/10/1955.

Porém, apesar de os estatutos da CC gizarem um regime que, em termos práticos, muito se aproxima do que é próprio da propriedade horizontal, certo é que o prédio em causa não foi submetido a este regime, com constituição de fracções autónomas susceptíveis de inscrição a favor de pessoas determinadas como suas proprietárias, sendo a este respeito o registo predial completamente omisso e nada tendo sido também alegado no processo a este propósito.

Daí que, a partir dos factos provados, acima descritos, haja que constatar e concluir o seguinte:

- Proprietária única de todo o prédio com o n° … da Av. …, em Lisboa, era e é ainda, desde 1959, a CC;

- A EE, enquanto sócio dessa sociedade, não cabia o direito de propriedade sobre uma qualquer parte desse mesmo prédio, mas tão só e apenas o direito individual à habitação do fogo ou casa correspondente à sua quota.

Mas este seu direito não é um direito real - cfr. art. 1306° que consagra expressamente o princípio do "numerus clausus", já dominantemente seguido antes da sua introdução no nosso ordenamento jurídico em 1966.

Logo, quando EE fez o testamento referido no n° 6, nele instituindo a favor da ora apelante o legado da nua propriedade do apartamento correspondente ao …º andar direito do prédio com o n° … da Av. …, em Lisboa, e a favor da ora apelada o legado do direito de uso e habitação desse apartamento - do qual o testador disse pertencer-lhe em virtude ser titular de uma quota na CC —, esteve a dispor, procurando cindi-lo, de um direito real que lhe não pertencia.

Esta situação mantinha-se inalterada quando EE faleceu».

Nenhuma dúvida pode subsistir de que ao falecido EE não seria possível dispor da nua propriedade da referida parte do prédio, nem tão pouco do direito à sua habitação, pela simples e elementar razão de que não era o dono do imóvel, mas tão somente o seu usuário (habitator, na expressão latina).

Por outras palavras, ele não era o titular da nua propriedade!

Como se sabe, o direito ao uso que se refere à casa de morada, denomina-se direito de habitação (nº 2 do artº 1484º do Código Civil).

Na verdade, o referido de cujus usava aquele apartamento, por tal lhe ser concedido pelos estatutos da sociedade CC – …, Lda (essa sim, a única e plena proprietária do referido imóvel), como espelham os factos provados nº 2 e 3, do seguinte teor:

 2- O objeto da sociedade é a administração do prédio em que se situa a sua sede, do qual a mesma sociedade é a única e plena proprietária, inscrito na matriz predial sob o artigo … (ex-…) da freguesia de São … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n°. …, e em livro sob o n° … do livro n° … e …, da freguesia de São... (destaque e sublinhado nossos).


3- Além dos direitos sociais e individuais de ordem geral, cada uma das quotas confere ao respectivo sócio o direito individual à habitação do fogo ou casa que corresponde à quota respetiva.

         Não sendo dono do imóvel, é dizer, não sendo titular do direito de propriedade sobre aquele apartamento, mas apenas titular do direito individual à habitação do fogo ou casa correspondente à quota respetiva, como vem provado  (facto 3º), não poderia transmitir o que não tinha, já que os direitos de uso e habitação extinguem-se pelo mesmo modo de extinção do usufruto ( artº 1485º C. Civil) e este direito real extingue-se, entre outras formas, pela morte do seu titular [alínea a) do nº 1 do artº 1476º do mesmo diploma legal].

Logo, no momento da sua morte e por força dela, extinguiu-se o direito à habitação do apartamento, de que era titular o falecido EE.

         Não releva para tal conclusão a intenção do testador, como supõe a Recorrente, pois, antes do mais,  trata-se de normas imperativas que não podem ser afastadas pela vontade dos interessados e, depois, se tal direito se extinguiu «mortis causa» é por demais evidente que o mesmo não se podia transmitir, pois nada havia que fosse transmissível.

No caso dos direitos de uso e de habitação, importa ter em consideração a sua intransmissibilidade  consagrada em letra de lei no artº 1488º do Código Civil, mesmo no âmbito de negócio jurídico inter vivos.

Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela doutamente observaram:

«Ao contrário do que acontece com o usufruto, para o qual vigora o princípio da livre disposição (artº 1444º), o uso e habitação está sujeito à regra da intransmissibilidade. Não sendo transmissíveis, nenhum destes direitos poderá também ser onerado com qualquer garantia real ( penhor, hipoteca, etc)» ( Código Civil, anotado, vol. III, 1987, pg. 551).

Mais adiante, os mesmos preclaros civilistas assim comentaram:

«Trata-se, no fundo, de um puro corolário do carácter estritamente pessoal do direito, muito próximo, na sua finalidade, da prestação alimentar ( cfr. artº 2008º, 1 e 2). Envolvendo o uso e habitação a ideia de utilização directa da coisa ou do consumo directo dos frutos, a sua transmissão pode dizer-se que colidia com a natureza do direito» ( ibidem).

Note-se que, mesmo quanto ao usufruto, se bem que de livre disposição, como salientaram os Mestres indicados, também este direito real se extingue pela morte do usufrutuário [artº 1476º, nº 1, al. a) do Civil], pelo que o mesmo direito que por vezes aparece, na presente lide, designado por usufruto, teria o mesmo destino, isto é, a sua extinção imediata por morte do Pai da Autora/Recorrida.

Não admira, assim, que os direitos de uso e de habitação sigam regime similar ao do usufruto, pois, com bem salientava o eminente tratadista do Direito Civil que foi Cunha Gonçalves, «o direito do uso é, apenas, um usufruto mais restrito, quer quanto à extensão do direito, quer quanto à sua disponibilidade» (Luiz da Cunha Gonçalves, Da Propriedade e da Posse, edições Ática, 1952, pg. 165).

O mesmo notável Mestre, que escrevia no domínio do Código de 1867 (Código de Seabra), acrescentava que «o direito do uso extingue-se pelas mesmas causas que põem termo ao usufruto. Terminado esse direito, reverte a cousa usada ao proprietário, livre de tal encargo» ( idem, 167)

Resta, todavia, ter em atenção que, como bem aponta a Recorrida, AA, o direito de habitação de que tratam os autos está funcionalmente ligado à quota social que era do falecido EE e que agora passou a ser da sua filha, precisamente a aqui Autora/ Recorrida.

Com essa transmissão «mortis causa» da referida quota social (não do adjacente direito de habitação, já que este se extinguiu por morte de EE), o direito de habitação nasce ex novo, por força da transmissão da citada quota, na esfera jurídica desta nova titular da quota, em decorrência da aquisição de tal quota, pois esta quota passou a ter uma nova titular.

Essa quota confere à ora Autora toda a legitimidade para usar os meios necessários para a defesa dos seus direitos, incluindo o correlativo direito de habitação que está associado à quota social de que presentemente é titular.

Quanto à legitimidade processual da Autora, que a Recorrente tenta agora impugnar, sempre diremos que, como bem aponta a Recorrida nas suas contra-alegações, é questão nova que não foi colocada no recurso de apelação e, tendo sido decidida em sentido afirmativo na 1ª Instância ( despacho saneador), tal decisão não foi impugnada.

Como se sabe os recursos não se destinam a apreciar questões novas, mas a reapreciar as decididas pelos tribunais recorridos se houver fundamento legal para tanto.

O facto de o testamento ter sido outorgado em 26 de Fevereiro de 2003, sete anos antes da morte do testador,  que ocorreu em 16-12-2010, não altera os dados do problema tal como se encontra equacionado.

Como é sabido, o testamento é um negócio jurídico de efeitos post mortem (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito de Sucessões, 1ª ed. 2º– 271) e, sendo assim, por isso que só no momento da morte do seu titular se extinguiu o seu  usufruto daquele apartamento, nenhum direito de uso ou habitação chegou a ser transmitido para a ora Recorrente.

Bem decidiu, pois, o Tribunal da  Relação, ao considerar verificada a previsão do nº 1 do artº 2254º do C. Civil e ao decretar a nulidade do legado feito a favor da Ré, ora Recorrente.

Efectivamente, dispõe a lei no sobredito preceito que «se o testador legar coisa determinada, ou coisa indeterminada de certo género, com a declaração de que aquela coisa ou este género existe no seu património, mas assim não suceder ao tempo da sua morte, é nulo o legado».

Daqui decorreu a procedência dos restantes pedidos formulados pela Autora, ou seja, para além da declaração da nulidade da deixa testamentária relativa ao direito de uso e habitação do apartamento correspondente à quota da Autora, a declaração de que a Ré não é titular de tal direito e a condenação da mesma a cessar o uso e habitação do referido apartamento e de entregar, de imediato, o dito apartamento livre e devoluto de pessoas e bens.

A procedência destes pedidos mais não constitui do que corolários daqueloutro que, julgado procedente, se traduziu na declaração da nulidade da disposição testamentária em referência.

Como tal, face à fundamentação do presente aresto, nada mais se torna necessário acrescentar para dizer que claudicam todas as conclusões da minuta recursória da Recorrente, o que conduz irrefragavelmente à improcedência do presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.

Custas pela Recorrente, neste Supremo Tribunal e nas Instâncias, em face da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Dezembro de 2013

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade