Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B238
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CAMINHO PÚBLICO
CONTRATO DE EMPREITADA
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
OBRAS
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL CÍVEL
Nº do Documento: SJ200702120002387
Data do Acordão: 02/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. O âmbito de jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado.
2. Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa.
3. O disposto no nº 7 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos abrange o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual das entidades públicas e das entidades particulares.
4. Os tribunais da ordem administrativa são os competentes para conhecer da acção em que o autor, no confronto de uma freguesia e de uma sociedade comercial, exige-lhes indemnização por danos causados pela última em execução de um contrato de empreitada de obras públicas relativas a um caminho público celebrado entre ambas. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA" e BB intentaram, no dia 19 de Abril de 2006, contra a Freguesia de ... e "Empresa-A, acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 7 505 e juros à taxa legal desde a citação, com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de destruição de esteios de ramadas, videiras, ferros de suporte e fissuras na casa, por via de realização de pelas obras, com utilização de explosivos, de repavimentação e alargamento do Caminho Público do Paço pela segunda ré sob adjudicação da primeira.
A Freguesia de ...., na contestação, invocou a incompetência material do Tribunal Judicial de Vila Verde, sob o fundamento de para a acção serem competentes os tribunais da ordem administrativa, e os autores, na resposta, sob o fundamento de se tratar de actividade de gestão privada, afirmaram a competência dos tribunais da ordem judicial.
Na fase do saneamento, foi proferida sentença, no dia 12 de Junho de 2006, que absolveu as rés da instância com fundamento na incompetência em razão da matéria do Tribunal e em a competência para a acção se inscrever nos tribunais da ordem administrativa.
Agravaram os autores, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Outubro de 2006, revogou a referida sentença, sob o fundamento de se tratar de responsabilidade civil derivada de gestão privada da Freguesia da ... e, por isso, a competência para a acção se inscrever nos tribunais da ordem judicial.
Interpôs a Freguesia da ... recurso de agravo para este Tribunal, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- a questão não é de saber se os actos são de gestão pública ou de gestão privada, mas a da qualidade do agente;
- quando estiver em causa a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, são os tribunais administrativos os competentes para a dirimir;
- é competente para conhecer da acção em causa o tribunal administrativo e tributário de Braga.

Responderam os agravados, em síntese de conclusão:
- o critério fundamental para aferir da competência dos tribunais administrativos é a natureza da relação jurídica, mais propriamente a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada;
- não há publicidade no sentido de manifestação ou omissão de vontade autoritária da pessoa de direito público imposta ao credor da indemnização fundada na violação do seu direito de propriedade;
- a qualidade em que intervém a Freguesia de .... na relação que nasce da produção do efeito danoso não difere daquela em que estaria um particular que tivesse empreendido conduta semelhante;
- não é da competência dos tribunais administrativos a apreciação do objecto da acção e, ainda que assim se não entendesse, seria da competência do tribunal judicial a apreciação da responsabilidade da entidade de direito privada Empresa-A.

II
É a seguinte a síntese do que os recorridos afirmaram na petição inicial a título de causa de pedir:
1. Os autores são donos de um prédio misto de casa de rés-do-chão e andar com logradouro, destinados a habitação e a leiras do ....
2. A referida casa dista três metros do Caminho do Paço que faz parte da rede viária da Freguesia da ..., em cuja linha divisória há um muro de pedra.
3. Por contrato celebrado entre a Freguesia da ... e Empresa-A, esta comprometeu-se a realizar por conta daquela, mediante um preço, a obra de alargamento e de repavimentação do Caminho do Paço.
4. Em Março de 2005, a Freguesia da ... iniciou as referidas obras, mas ela e Empresa-A não as executaram com os cuidados e exigências que lhes eram impostos, tendo a última, nos dias 22 e 28 de Abril seguintes, usado dinamite no rebentamento de pedra que passava no Caminho.
5. Com isso destruíram-lhe esteios de ramadas, videiras, ferros de suporte, e causaram-lhe fissuras na casa.
6. A Freguesia da ... e Empresa-A respondem solidariamente pelos danos causados pela última, em actividade perigosa, sob ordens e instruções da primeira, esta independentemente de culpa, nos termos dos artigos 493º, nº 2, 498º e 500º do Código Civil e 277º do Código Penal.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os tribunais da ordem judicial são ou não competentes para conhecer da acção declarativa de condenação em causa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção;
- competência jurisdicional em razão da matéria dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa;
- relevância ou não do conceito de actos de gestão pública ou de gestão privada de entes públicos na definição da competência dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa;
- a regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa;
- competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio;
- solução para o caso espécie decorrente dos termos da petição inicial e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção.

O que os recorridos pretendem no confronto da recorrente e de Empresa-A é a sua condenação solidária no pagamento de determinada quantia a título de indemnização.
A causa de pedir é, por um lado, um contrato de empreitada de obras públicas, nos termos em que o define o artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, celebrado entre a recorrente e Empresa-A.
E, por outro, a acção e ou omissão daquelas, uma de natureza pública e outra de natureza particular, no âmbito da execução do referido contrato, causadora de danos reparáveis no património dos recorridos.
Assim, a causa de pedir em que os recorridos baseiam o pedido traduz-se essencialmente em actividade de execução de um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre a recorrente e Empresa-A causadora de estragos no seu prédio misto acima identificado.
Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual que envolve a recorrente e Empresa-A, por um lado, e os recorridos, por outro, conexa com a referida relação jurídica administrativa (artigos 483º, nº 1 e 1305º do Código Civil).

2.
Atentemos agora na competência jurisdicional em razão da matéria em geral dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa.
A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir.
A questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de determinado litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes.
Estamos, conforme já se referiu, perante um litígio formal relativo à competência do tribunal em razão da matéria para conhecer de uma acção de indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito imputado pelos recorridos a uma freguesia, pessoa colectiva de direito público, e a uma sociedade comercial que se rege pelo direito privado.
A regra da competência dos tribunais da ordem judicial, segundo o chamado princípio do residual, é a de que são da sua competência as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigos 66º do Código de Processo Civil e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ).
Considerando que o confronto é delineado entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.
O artigo 212º, n.º 3, da Constituição define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, certo que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Conexo com o referido normativo, rege o artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF - segundo o qual os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, que aqui não releva, as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Dir-se-á ser a regra no sentido de à jurisdição administrativa incumbir o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribua a outra jurisdição.
A referida competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, e se no mesmo processo existirem decisões divergentes sobre a questão da competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior (artigo 5º do ETAF).

3.

Vejamos agora, tendo em conta a data dos factos mencionados na petição inicial e a da sua apresentação em juízo, a relevância ou não do conceito de actos de gestão pública ou de gestão privada na definição da competência dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa.
As autarquias locais, incluindo as freguesias, como é o caso da recorrente, são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artigos 235º, n.º 2 e 236º, nº 1, da Constituição).
O conceito de actos de gestão pública e de actos de gestão privada tem essencialmente a ver, como é natural, com a actividade de gestão pública e de gestão privada da Administração, a primeira regulada pelo direito público e a segunda regulada pelo direito privado.
Assim, quando o acto praticado pela pessoa de direito público, naturalmente através de um seu órgão ou agente, seja de direito privado, submetido às mesmas normas aplicáveis quando o acto fosse praticado por um particular, deve ser entendido como acto de gestão privada.
Conforme acima se referiu, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Assim, ao invés do regime de pretérito, a lei alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
Certo é que a distinção entre actividade de gestão privada e de direito público releva para a determinação do direito substantivo aplicável à relação jurídica em causa, nos termos previstos no Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Todavia, conforme resulta do artigo 4º, nº 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao invés do que ocorria no regime de pretérito, os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa.

4.
Atentemos agora na regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa.
As relações jurídicas administrativas pressupõem, como é natural, o relacionamento de dois ou mais sujeitos, que é regulado por normas jurídicas, derivante de posições activas e passivas, mas sob a envolvência da realização do interesse público.
A regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa é no sentido de que cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor (artigo 10º, nº 1, do CPTA).
Acresce que, nas referidas acções, podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares (artigo 10º, nº 7, do CPTA).
Resulta, deste último normativo a possibilidade de accionamento de entes públicos e de outros interessados, ainda que não sejam concessionários ou agentes administrativos, desde a relação material controvertida lhes diga igualmente respeito.
O âmbito da sua previsão e estatuição envolve o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82).
É, aliás, uma solução harmónica com o que se prescreve em sede de realização do direito substantivo, no artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, segundo o qual os vários responsáveis respondem solidariamente no que concerne às relações externas.

5.
Atentemos agora na definição da competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio, única questão que é objecto do recurso, do que se excluem as questões do mérito da causa e da própria legitimidade ad causam das partes.
Ora, a responsabilidade civil em causa é imputada a actuações materiais concorrentes de um ente público e de uma sociedade regida pelo direito privado, esta em execução de um contrato de empreitada de obras públicas.
Estamos no caso vertente perante uma acção em que a uma entidade pública e a uma entidade privada são imputáveis factos causadores de danos indemnizáveis, em que se lhes imputa uma obrigação conjunta, como co-devedoras, em paralelismo de posições jurídicas, relativamente ao direito de indemnização invocado pelos recorridos.
É uma unidade objectiva de pretensão formulada contra a referida dualidade de sujeitos contitulares da mesma relação jurídica controvertida, o que configura uma situação de litisconsórcio voluntário inicial do lado passivo (artigo 27º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O mero accionamento da recorrente com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, conexionada com a execução da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de empreitada de obras públicas, implica que a competência para dirimir o litígio em causa se inscreva nos tribunais da ordem administrativa (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer da acção, independentemente de os recorridos terem pretendido satisfazer o alegado direito de crédito apenas no confronto da recorrente ou também no confronto de Empresa-A.
Neste quadro de litisconsórcio voluntário do lado passivo, envolvente de uma unidade relação jurídica material controvertida, o tribunal que for competente para conhecer do pedido formulado contra a recorrente não pode deixar de o ser também para conhecer do pedido formulado contra Empresa-A.
A conclusão, é por isso, no sentido de que são competentes para conhecer do litígio em causa, tal como os recorridos o formulam na petição inicial, os tribunais da ordem administrativa.

6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos termos da petição inicial formulada pelos recorridos e da lei.
O litígio envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual conexa com uma relação jurídica administrativa relativa a um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre um ente público e um ente particular.
A definição da competência dos tribunais da ordem administrativa para conhecer da referida situação de responsabilidade civil extracontratual imputada à recorrente não pressupõe a distinção da derivante de actividade de gestão pública e de gestão privada.
Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer do litígio em causa pelo mero facto de ser accionada a recorrente na sua posição de pessoa colectiva de direito público.
No quadro da unidade de relação jurídica controvertida invocada pelos recorridos - litisconsórcio voluntário inicial do lado passivo - a competência para conhecer do pedido formulado contra a recorrente abrange o conhecimento do pedido formulado contra a sua litisconsorte.
Os tribunais da ordem administrativa, ao invés do que foi decidido no acórdão recorrido, são os competentes para conhecer do litígio em causa.
Em consequência, ocorre a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, conducente à absolvição da instância da recorrente e de Empresa-A, nos termos dos artigos 101º, 105º, n.º 1, 288º, n.º 1, alínea a), 493º, n.º 2, e 494º, alínea a), do Código de Processo Civil.
Procede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, declara-se a subsistência do conteúdo da sentença proferida no tribunal da primeira instância, e condenam-se os recorridos no pagamento das custas dos recursos e da acção.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2007.

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís