Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2687/13.5TBLLE.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: SERVIDÃO
USUCAPIÃO
REQUISITOS
SERVIDÃO NÃO APARENTE
PISCINA
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / SERVIDÕES PREDIAIS / CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, em anotação ao art. 1548º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1287.º, 1543.º, 1544.º, 1547.º, N.º 1 E 1548.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 684.º, N.º 2.
Sumário :
I - A exigência legal de que para a constituição de uma servidão por usucapião é necessária a existência de sinais visíveis para toda e qualquer pessoa, permanentes e inequívocos (cfr. art. 1548.º, n.º 2, a contrario, do CC) destina-se a afastar a ambiguidade que pode resultar das relações de vizinhança, em razão das quais é admissível que o proprietário de um prédio, por simples razões de cortesia, consinta que o proprietário de outro prédio tire alguns benefícios daquele primeiro imóvel, sem que esse facto traduza uma relação possessória idónea a atribuir-lhe, com o decurso do tempo, um direito ao aproveitamento de determinadas utilidades.

II - Para tornar clara a situação é que a lei faz dependente, neste caso, a aquisição da servição por usucapião, da existência de sinais visíveis e permanentes, cuja presença torne inequívoca a natureza, juridicamente relevante, da atividade desenvolvida.

III - Não tendo no caso presente resultado provados os requisitos legais da posse usucapiativa, nos termos dos arts. 1251.º e ss. do CC, mas apenas que a utilização das piscinas pelos proprietários das frações que integravam um determinado aldeamento turístico se inseria no contexto do funcionamento deste empreendimento e de um suposto acordo entre a administração desse aldeamento e os sucessivos proprietários do prédio onde as piscinas se encontravam implantadas, não se demonstra a prática reiterada, pacífica, pública e sem oposição de actos materiais que se traduzam na existência do invocado direito real de servidão.

Decisão Texto Integral:
Revista nº 2687/13.5TBLLE.E1.S1



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. AA - Empreendimentos Turísticos, S.A..” (entretanto, declarada insolvente, e aqui representada pelo Administrador de Insolvência[1]), BB e CC vieram intentar a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra DD, pedindo a condenação do réu:

a) A reconhecer o direito dos autores e dos restantes proprietários das frações do aldeamento “AA” ao acesso às piscinas e apoios onde tais serviços se encontram implantados;

b) A abster-se da prática de quaisquer atos que obstem ao exercício do referido direito de acesso às piscinas e apoios pelos autores e restantes proprietários;

c) A abster-se da prática de quaisquer atos que impeçam a 1.ª autora de proceder à limpeza, manutenção e conservação das piscinas e seus apoios;

d) A pagar aos autores, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de EUR 6.945,74, bem como os juros que se vencerem sobre tal montante, desde a citação e até integral pagamento;

e) A pagar à 1ª autora, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência do não arrendamento das frações, a quantia de EUR 16.000,00;

f) A pagar à 1ª autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 6.000,00;

g) A pagar ao 2º autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 1.000,00;  

h) A pagar ao 3.º autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 1.000,00.

Subsidiariamente:

i) A reconhecer a existência de servidão por usucapião do direito de acesso e uso das piscinas e apoios por parte dos autores e restantes proprietários das frações da “AA”;

j) A abster-se da prática de quaisquer atos que obstem ao exercício do direito de acesso às piscinas e apoios pelos autores e restantes proprietários;

k) A abster-se da prática de quaisquer atos que impeçam a 1.ª autora de proceder à limpeza, manutenção e conservação das piscinas e seus apoios;

l) A pagar aos autores, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de EUR 6.945,74, bem como os juros que se vencerem sobre tal montante, desde a citação e até integral pagamento;

m) A pagar à 1ª autora, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência do não arrendamento das frações, a quantia de EUR 16.000,00;

n) A pagar à 1ª autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 6.000,00;

o) A pagar ao 2º autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 1.000,00; e,

p) A pagar ao 3.º autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia não inferior a EUR 1.000,00.

Para tanto, alegaram, em síntese, que:

A 1ª autora é um «empreendimento turístico em propriedade plural», em cujo título constitutivo e regulamento interno se prevê, além do mais, a existência de restaurante e piscina de acesso gratuito pelos proprietários das unidades de habitação que integram a “AA”.

Por contrato de compra e venda, outorgado por escritura pública celebrada em 29.7.2008, o réu adquiriu à 1ª autora o prédio onde se encontram implantadas as piscinas e respetivos apoios.

Nesse contrato ficou convencionado que o comprador, ora réu, se obrigava a permitir o acesso permanente às piscinas e apoios existentes no logradouro do seu prédio aos proprietários das unidades integradas no aldeamento “AA” e seus convidados.

Os proprietários das referidas unidades habitacionais, pelo menos desde junho de 1974, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, vêm utilizando as ditas piscinas e apoios, pagando as correspondentes despesas pela manutenção/conservação e limpeza.

Porém, desde 5.7.2013 até 23.9.2013, o réu impediu o acesso dos AA e restantes proprietários das unidades de habitação às piscinas e apoios, causando-lhes diversos prejuízos, cuja reparação peticionam, nesta ação.

2. Na contestação, o réu, defendendo-se por exceção, invocou a ilegitimidade da 1ª autora, bem como a nulidade do título constitutivo e do regulamento do denominado aldeamento “AA.

Mais alegou que:

Os autores não são titulares de qualquer direito de acesso e/ou utilização das piscinas e do restaurante/bar existentes no logradouro do seu prédio.  

A cláusula constante do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, segundo a qual o comprador se obrigou a permitir o acesso às piscinas e respectivos apoios não permite limitar ou onerar o direito de propriedade de que o réu é titular.

O réu deduziu, ainda, reconvenção, pedindo:

a) A condenação da 1ª autora a pagar-lhe EUR 25.000,00, a título de danos patrimoniais sofridos;

b) A condenação da 1ª autora a pagar-lhe EUR 4.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos;

c) A condenação da 1ª autora a abster-se da prática de quaisquer atos que violem o direito de propriedade do réu;

d) A declaração de nulidade do título constitutivo e respetivo regulamento do Aldeamento "AA", a invalidade da nomeação da administração em 1995, a cassação do alvará, a reconversão do aldeamento em modalidades de alojamento local, a nulidade da cláusula constante da escritura de compra e venda celebrada em 9.7.2008.

3. Foi requerida e admitida a intervenção principal (espontânea) de EE.[2]

4. Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade da 1ª autora e não admitiu a reconvenção (cf. fls. 637 a 644).

5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu:

“a) Declarar o direito dos autores e restantes proprietários do anteriormente denominado empreendimento “AA” a utilizarem as piscinas e respetivos apoios que se encontram implantados no prédio do réu, desde que comparticipem nas respetivas despesas de manutenção, conservação e limpeza;

b) Condenar o réu a abster-se da prática de quaisquer atos que obstem ao exercício daquele direito e dos atos relativos à sua limpeza, manutenção e conservação;

c) Condenar o réu no pagamento à 1.ª autora das despesas já liquidadas, relativas à reparação e limpeza das piscinas e jardins adjacentes, no montante de € 2.276,31 (dois mil, duzentos e setenta e seis euros e trinta e um cêntimos), acrescida de juros a contar da presente decisão, relegando para execução de sentença as demais despesas apuradas a que se alude no ponto 47.º dos factos provados.

d) Condenar o réu no pagamento à 1.ª autora do montante de € 1.000,00 (mil euros), relativo aos danos causados no seu bom nome e reputação, junto dos proprietários da AA;

e) Condenar o réu no pagamento ao 2.º e 3.º autor, no montante de € 500,00 (quinhentos euros) para cada um, pelos transtornos causados pela não utilização da piscina no período em causa;

f) Absolver o réu do demais peticionado.

6. Desta decisão, o réu interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença quanto aos segmentos decisórios constantes das alíneas a) e b), confirmando-a quanto ao mais.

7. Irresignado com o assim decidido, veio o interveniente, EE, interpor recurso de revista, tendo este Supremo Tribunal proferido acórdão a anular o acórdão recorrido, na parte em que omitiu pronúncia quanto ao pedido subsidiário formulado de reconhecimento de servidão, e a reenviar o processo ao Tribunal recorrido a fim de ser efetuado o suprimento da nulidade prevista na al. b), do nº1, do art. 615º, do CPC, ex vi art. 666º, do mesmo Código, nos termos consignados no art. 684º, nº2, do CPC, confirmando, quanto ao mais, a decisão recorrida.

8. Suprindo a nulidade em causa, o Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão a julgar improcedente o aludido pedido subsidiário.


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9. Mais uma vez inconformado, EE interpôs a presente revista, dizendo, em conclusão:

1. O douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 1548º do Código Civil porquanto a matéria assente nos presentes autos permite concluir que estamos perante uma servidão aparente, dada a existência de sinais visíveis e permanentes.

2. Nomeadamente tal decorre de ter sido assente que um portão de acesso à piscina, a que expressamente se referem os pontos 25, 26, 27, 29, 32, 38 e 46 da matéria assente. E uma parede no acesso à piscina, ponto 27. Dos pontos 29 e 32 da matéria assente resulta ainda que o incumprimento do acordo subjacente à providência cautelar citada no ponto 29 da matéria assente se traduziu em “ encerramento do portão”.

3. Por outro lado, resulta que existia posse em nome próprio, dos proprietários das moradias que compõem o aldeamento AA dado que, conforme resultou assente, constando da matéria assente que “os diversos proprietários das frações que compunham o empreendimento turístico da AA, de forma pública e continua, desde pelo menos Junho de 1974, à vista de todos e sem oposição de ninguém, vinham utilizando as ditas piscinas e apoios” e que “através da administração da AA sempre pagaram pela manutenção, conservação e limpeza das piscinas e apoios.”

4. Argumenta-se no douto acórdão recorrido que os proprietários apenas utilizavam a piscina no contexto do aldeamento, posteriormente desclassificado, e não por qualquer exercício de direito próprio.

5. Ora, ficou assente que o direito à utilização das piscinas no contexto da servidão sempre existiu, desde 1974, vinte anos antes da classificação do aldeamento, que ocorreu em 1994, pelo que falece tal argumentação, por ser prévio.

Os proprietários sendo quem exercia a utilização, presume-se que o faziam em nome próprio – artigo 1252 n.º 2.

7. O douto acórdão recorrido, ao julgar parcialmente procedente a apelação, violou o disposto nos artigos 1548º, 1543º, 1296º, 1263º, 1287º, todos do Código Civil, dispositivos que, corretamente aplicados, imporiam que, face à matéria assente, a procedência do pedido subsidiário de usucapião de servidão.

Assim, revogando o douto acórdão recorrido, e substituindo-o por decisão que julgue a ação procedente, nos termos de sentença de 1ª instância, se fará Justiça!

10. Não foram apresentadas contra-alegações.


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11. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.

Sendo assim, a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se estão verificados os pressupostos da constituição de uma servidão por usucapião.



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II – Fundamentação de facto


12. As instâncias deram como provado que:

1. A 1ª autora é uma sociedade anónima que tem por objeto a administração, gestão, comercialização e exploração de empreendimentos turísticos, hotéis e similares, sendo que, em 5/1/2011, os 2.º e 3.º autores foram designados como seus gerentes.

2. Por ata de 17/06/1995 da Assembleia-geral de Proprietários da AA procederam à nomeação da 1ª autora para exercer a administração da AA.

3. A 1.ª autora era (à data da interposição da ação) a entidade que administrava a AA de acordo com o previsto no Regulamento Interno.

4. Os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob os nºs 4…7/19901105 e 4…9/19901105 encontravam-se registados a favor da 1.ª autora.

5. O prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º 3…3/19890327 encontra-se registado a favor do 2.º autor BB.

6. O prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º 9…9/20050725 encontra-se registado a favor do 3.º autor CC.

7. O prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de .., freguesia de …, sob o n.º 11…2/20110630 encontra-se registado a favor do 3.º autor CC.

8. O prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º 7..7/19971105, inscrito na matriz sob o n.º 3393, encontra-se registado a favor do interveniente EE.

9. A AA foi classificada como Aldeamento Turístico de 1ª, sito em …, Freguesia de …, Concelho de …, formado em propriedade plural, por um conjunto de instalações interdependentes e contíguas, descritas no Título Constitutivo, aprovado pela Direção Geral de Turismo, por despacho de 12/09/1994.

10. A AA teve Regulamento Interno aprovado em 20/06/1992 por ata avulsa de Assembleia-geral Extraordinária de proprietários, ata esta, que também aprovou o título constitutivo.

11. O documento intitulado “TÍTULO CONSTITUTIVO”, sob a epígrafe “composição do empreendimento”, frações imobiliárias e serviços, prevê a existência de restaurante e piscina, fazendo referência ao facto de nestas frações existir um direito permanente de usufruto gratuito a favor dos proprietários das unidades de habitação na AA, sendo os custos de manutenção compartilhados.

12. No título constitutivo prevê-se na página 4 que o Aldeamento é composto por “5 - infraestruturas de utilização turística: piscina e apoios - folha 9, alínea A lote 223 PI)”.

13. No regulamento interno do Aldeamento dispõe-se no ponto 2. i) que as unidades e ou frações imobiliárias incluem as piscinas e respetivos apoios.

14. E no ponto 3. a) do regulamento interno dispõe-se que nas partes comuns e nas pertencentes à entidade exploradora inserem-se as infraestruturas e serviços de carácter turístico de utilização turística, que são aqueles que, não sendo qualificados como serviços públicos, são postos gratuitamente à disposição dos utentes do Aldeamento, constituindo as despesas de funcionamento, manutenção e conservação encargo comum de todos os proprietários.

15. Por escritura datada de 29/7/2008 outorgada no Cartório Notarial a cargo da Notaria FF, em …, o réu adquiriu à 1ª autora por compra o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2381 da freguesia de …, Concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 4066.

16. Na referida escritura estipularam as partes que “o comprador se obriga a permitir que os proprietários dos prédios integrados no Aldeamento “AA” e seus convidados até um total de oito pessoas, tenham acesso livre e permanente às piscinas e respetivos apoios que se encontram implantados no prédio ora vendido, enquanto os referidos proprietários comparticiparem nas respetivas despesas de manutenção, conservação e limpeza das ditas piscinas e apoios, de acordo com as regras do condomínio”.

17. Mais se estipulou que “o comprador se obriga a transmitir esta cláusula a futuros adquirentes, arrendatários ou usufrutuários do prédio ora vendido”.

18. Os diversos proprietários das frações que compunham o empreendimento turístico da AA, de forma pública e contínua, desde pelo menos junho de 1974, à vista de todos e sem oposição de ninguém, vinham utilizando as ditas piscinas e apoios.

19. E, através da administração da AA sempre pagaram pela manutenção, conservação e limpeza das piscinas e apoios.

20. A Autora AA adquirira o prédio onde se encontram o restaurante, as piscinas e apoio, em 22 de julho de 1999, à empresa “GG - Empreendimentos Turísticos, Lda.” E esta, por sua vez, havia adquirido em julho de 1980 à empresa “HH, Lda” que em 11 de Julho de 1973 registou a inscrição nº 16287 a seu favor referente à descrição do livro G-19, onde já constava descrito a existência do restaurante, piscinas e apoios.

21. Em Julho de 1981, numa escritura de compra e venda em que a empresa “GG, Lda.” era a vendedora de uma fração no Aldeamento que hoje é o aldeamento da AA, fez constar em documento anexo na clausula décima quinta que “o comprador ou compradores, as suas famílias e/ou convidados até um total de oito --- pessoas terão livre acesso á piscina do aldeamento que é propriedade da GG”.

22. Em 1977, já as piscinas e apoios se encontravam inscritas na matriz urbana do prédio inscrito na matriz sob o artigo 2381.

23. A 1.ª autora só acordou na venda com a condição de o réu se obrigar a manter o direito de acesso às piscinas e apoios tal como consagrado no título constitutivo e regulamento interno.

24. O réu bem sabia, que ao adquirir tal fração se estava a obrigar a manter o acesso dos proprietários da AA às piscinas e acessos.

25. No dia 5 de Julho de 2013, o réu impediu o acesso dos autores e dos restantes proprietários às piscinas e apoios, tendo encerrada a porta de acesso às piscinas e apoios com corrente e cadeado.

26. Os autores e os restantes proprietários das unidades de habitação da AA ficaram impedidos de usar as piscinas desde 05 de Julho de 2013 até 23 de Setembro de 2013, data em que voltou a permitir o acesso às piscinas e apoios, com a remoção dos cadeados do portão.

27. E em 5 de Julho de 2013 o réu escreveu na parede de acesso às piscinas, mesmo ao lado do portão de acesso os seguintes dizeres “Atenção – Perigo; piscina não tratada, água contaminada”.

28. O que obrigou a AA a emitir comunicados aos proprietários das frações, como forma de explicar a atuação do réu bem como acalmar os proprietários quanto ao facto de a água da piscina não estar contaminada.

29. Por tal facto foi interposta providencia cautelar que correu termos sob o processo nº 1866/13.0TBLLE, … Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de …, cuja decisão foi proferida em 12/09/2013 e ordenou ao réu “A remoção de todos os obstáculos que impedem os Requerentes, restantes proprietários e demais pessoas conforme previsto no título constitutivo do aldeamento turístico da AA, de aceder às piscinas e respetivos apoios, sitos no prédio onde se encontram implantadas as piscinas, descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o número 4066 e na matriz predial urbana sob o artigo 2381; b) A reposição do uso das piscinas identificadas em a) e o livre acesso às mesmas por parte dos Requerentes e dos restantes proprietários conforme estabelecido no título constitutivo do dito aldeamento e na escritura pública de compra e venda; c) Que o Requerido se abstenha da prática de quaisquer atos que obstem ao exercício do direito de uso das piscinas pelos Requerentes e restantes proprietários, de acordo com o estipulado no título constitutivo e de acordo com as obrigações que o próprio R. assumiu na escritura de compra e venda celebrada em 29/7/2008 no Cartório Notarial a cargo da Notaria FF, em …. d) Que o Requerido se abstenha da prática de quaisquer atos que impeçam a 1º A. de proceder à limpeza, manutenção e conservação das piscinas e seus apoios. e) Que o

Requerido retire os escritos colocados ao lado do portão de acesso às piscinas com os dizeres “ Atenção- Perigo; piscina não tratada, água contaminada”.

30. Para o efeito, condenou o requerido na sanção pecuniária compulsória de 500 euros diários, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação referida em a), desde a data do trânsito em julgado da referida decisão.

31. A 1.ª autora sempre se encarregou de fazer a manutenção das piscinas e apoios da área circundante.

32. As piscinas são tratadas diariamente, e por isso, na véspera e mesmo no dia em que o réu procedeu ao encerramento do portão esteve no local o técnico que procede à manutenção das piscinas e que não pôde nesse dia fazer o seu trabalho.

33. O vigilante do AA descreveu em resumo de ocorrências que o encerramento das piscinas e a placa escrita junto á entrada terá ocorrido após as 20 horas do dia 04/07/2013.

34. A 1.ª autora viu-se impedida entre o dia 05 de Julho de 2013 e o dia 23 de Setembro de 2013, de efetuar a manutenção e limpeza das piscinas, apoios e área circundante, o que provocou uma degradação das condições da piscinas e equipamentos.

35. Para a maior parte dos proprietários das unidades habitacionais do aldeamento, estas são segundas habitações exclusivamente destinadas às férias anuais ou ao arrendamento turístico.

36. Os proprietários usufruem mais das unidades durante o período de verão quando se deslocam para o …, normalmente famílias com filhos e netos, que pretendem desfrutar de um descanso a que têm direito e para isso investiram neste aldeamento.

37. Com a sua atuação o réu privou quer os proprietários quer os seus familiares, sobretudo as crianças, do uso das piscinas perturbando as férias destes e afetando o descanso que merecem.

38. A época de Verão, dita alta, é a que regista maior ocupação no Aldeamento.

39. Os turistas que ocupam as unidades optaram pelo seu arrendamento devido também às facilidades proporcionadas pelo aldeamento que constam da publicidade que dele é feito, entre elas se incluem as piscinas e respetivos apoios.

40. Na época veraneia, a 1ª autora tem providenciado pelo tratamento e limpeza da piscinas uma a duas vezes por dia, pela limpeza dos anexos duas vezes por dia, pelo corte da relva uma vez por semana e lavagem das zonas não relvadas uma a duas vezes por semana, conforme se mostre necessário.

41. A 1ª autora, no resto do ano, tem providenciado pelo tratamento e limpeza das piscinas e dos seus anexos uma a duas vezes por semana, corte de relva e limpeza das zonas não relvadas, quinzenalmente.

42. A 1.ª autora providência ainda pela compra de todos os produtos e equipamentos necessários à manutenção e conservação das piscinas e zonas circundantes.

43. A 1.ª autora providencia, entre outros, pela desinfestação das palmeiras, pela compra, reparação e manutenção das bombas das piscinas e do hidropressor da rega da relva, reparação da iluminação das piscinas, reparação da porta da casa de banho das piscinas, pela compra de produtos químicos para tratamento da água das piscinas, pelo pagamento de serviço de manutenção das piscinas, pelo pagamento de produtos de higiene e trabalho de vigilância.

44. É a 1.ª autora que suporta o pagamento das faturas de eletricidade referente ao consumo de eletricidade pelo funcionamento das piscinas e apoios.

45. A 1.ª autora procedeu no ano de 2012 a uma reparação profunda das piscinas, reparação essa que consistiu na total substituição da canalização, maquinaria, fibrar na sua totalidade as piscinas, a aplicação de gel coto e topo coto de modo a cobrir e pintar na totalidade da área coberta bem como a eliminação da caleira e fibragem da mesma, aplicação de 2 escadas, reparação da casa das máquinas, reparação dos balneários exteriores, construção da casa de banho para deficientes, pintura e reparação do muro.

46. Após a abertura do portão de acesso às piscinas e apoios o espaço apresentava-se degradado, em virtude do encerramento e pela não manutenção durante esse período.

47. Os prejuízos causados consistiram:

A) Esvaziar completamente as piscinas e voltar a enchê-las, utilizando uma quantidade maior de produtos para tratar a água (cloro e estabilizador de cloro), o que pelos preços que habitualmente pagam, se orçamenta no montante de € 976,31 (novecentos e setenta e seis euros e trinta e um cêntimos), relativo ao consumo de água, acrescido do valor a gastar em cloro e estabilizador de cloro e do custo da mão-de-obra cujo valor não foi apurado.

B) A recuperação das piscinas vai corresponder a uma série de operações técnicas especializadas que constam de um orçamento apresentado pela empresa II, Lda, de …, cujos serviços devidamente discriminados correspondem a um valor de € 1 300,00 (mil e trezentos euros).

C) A degradação de grande parte da relva que ficou seca por falta de rega, assim como as sebes e árvores, e com a falta de colocação de produtos adequados à sua recuperação, tendo a 1ª autora que despender uma quantia não apurada em mão de obra;

48. Após o encerramento das piscinas e apoios por parte do réu, a 1ª autora foi contactada pela maior parte dos proprietários que queriam explicações sobre o que se estava a passar e o motivo do encerramento das piscinas, se as piscinas estavam contaminadas e se a 1ª autora estava a incumprir com a devida manutenção das piscinas jardins e apoios.

49. Os proprietários que já tinham iniciado o seu período de férias e que se encontravam no Aldeamento dirigiam-se pessoalmente à receção e exigiam que lhes fossem prestados esclarecimentos sobre a água contaminada e quando se resolveria a situação, uma vez que estavam em férias e pretendiam usar e fruir as piscinas.

50. Aqueles que já tinham usado a piscinas nos dias imediatamente anteriores ao encerramento do acesso às piscinas, pretendiam saber se a água estava contaminada e se teriam de tomar algumas medidas sanitárias uma vez que já haviam utilizado as piscinas que supostamente estavam contaminadas.

51. A capacidade de administração da 1.ª autora foi abaladas, tal como a sua credibilidade, quer porque a frase escrita nas paredes que se referia à água contaminada da piscina e minou a confiança dos proprietários na administração, quer porque a impossibilidade de usarem e fruírem as piscinas e apoios que sempre usaram no verão, gerou nos proprietários um sentimento geral de revolta e desconfiança.

52. Na época de Verão os familiares do 2.º autor BB e do 3.º autor CC vêm passar as férias ao Aldeamento da AA, para com eles conviverem.

53. Todavia no verão de 2013, aqueles autores vieram-se privados da convivência normal com os seus familiares na zona da piscina, tal como em épocas anteriores, o que lhes causou algum desgosto e tristeza.

54. O denominado “Aldeamento Turístico AA” foi desclassificado pelo Turismo de Portugal, através do ofício de 26 de novembro de 2014, tendo caducado a autorização de utilização para fins turísticos.

55. Por sentença proferida em 31 de julho de 2015 no Tribunal de Comercio de …, no âmbito dos autos que correram termos sob o n.º 775/15.2T8OLH, foi proferida sentença a declarar a insolvência da autora “AA - Empreendimentos Turísticos, S.A.”.


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III – Fundamentação de direito

13. Do reconhecimento da servidão

Como acima se referiu, por acórdão de 18.10.2018, transitado em julgado, este Supremo Tribunal anulou o acórdão recorrido na parte em que omitiu pronúncia quanto ao pedido de reconhecimento de “servidão por usucapião do direito de acesso e uso das piscinas e apoios por parte dos autores e restantes proprietários das frações da AA”, uma vez que, tendo julgado improcedente o pedido principal, a Relação não chegou a conhecer do pedido formulado a título subsidiário.

Reenviado o processo à Relação, nos termos previstos no art. 684º, nº2, do CPC, foi proferido acórdão a julgar improcedente o referido pedido subsidiário.

Nesta revista, o recorrente insurge-se contra o assim decidido, sustentando que a matéria de facto provada permite concluir que se está perante uma servidão aparente que se constituiu por usucapião.

Ora bem.

Segundo o disposto no art. 1543.º, do CC "servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia".

Por seu turno, estabelece-se no art. 1544.º do CC que ”podem ser objeto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.


Sobre a constituição das servidões, preceitua o art. 1547º, nº 1, do CC que podem ser constituídas, e no que agora releva, por usucapião, ou seja, pela posse de um direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, já que a mesma, dispondo de certas características, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação (art. 1287º, do CC).


Importa, ainda, atender ao estatuído no art. 1548.º, do CC, nos termos do qual as "servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião" (n.º 1); “considerando-se "não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes" (n.º 2).


Como requisito da servidão aparente, na definição do art. 1548º, nº2, do CC, a contrario, os sinais têm de ser visíveis para toda e qualquer pessoa, permanentes e inequívocos.


Esta exigência legal destina-se a afastar a ambiguidade que pode resultar das relações de vizinhança, em razão das quais é admissível que o proprietário de um prédio, por simples razões de cortesia, consinta que o proprietário de um outro prédio tire alguns benefícios daquele primeiro imóvel, sem que esse facto traduza uma relação possessória idónea a atribuir-lhe, com o decurso do tempo, um direito ao aproveitamento de determinadas utilidades.


Por isso, para tornar clara a situação é que a lei faz depender, neste caso, a aquisição da servidão por usucapião, da existência de sinais visíveis e permanentes, cuja presença torne inequívoca a natureza, juridicamente relevante, da atividade desenvolvida.[3]


Ora, no caso que analisamos, atenta a factualidade provada, afigura-se-nos inquestionável não terem ficado provados os requisitos legais da posse usucapiativa, nos termos dos arts. 1251º e ss, do CC, isto é, a prática reiterada, pacífica, pública e sem oposição de atos materiais que se traduzam na utilização das piscinas e apoios existentes no prédio do réu  com a intenção de exercer um poder sobre a coisa correspondente ao invocado direito real de servidão.


Efetivamente, na situação em apreço, o que resulta da matéria de facto (cf. pontos 9 a 20) é que a utilização das piscinas pelos proprietários das frações que integravam o aldeamento turístico “AA” se inseria no contexto do funcionamento deste empreendimento e de um suposto acordo entre a respetiva administração (e/ou os proprietários das frações) e os sucessivos proprietários do prédio onde as piscinas se encontravam implantadas (que, por sinal, desde 1999 a 2008 foi a própria “Aldeia da Fonte”).


A natureza obrigacional do direito invocado pelos autores foi, de resto, salientada no acórdão já proferido nos autos por este Supremo e no qual se pode ler:

“A obrigação a que o réu ficou adstrito (cf. ponto 16, dos factos provados) tinha como pressuposto o funcionamento efetivo da “AA”, enquanto aldeamento turístico, sujeito ao regime jurídico então em vigor para este tipo de empreendimentos.

(…)

Nesta conformidade, tendo caducado a autorização de utilização para fins turísticos, por ter sido desclassificado pelo Turismo de Portugal (cf. ponto 54, dos factos provados), não faz qualquer sentido impor ao réu o cumprimento de um dever estabelecido em função de circunstâncias que – objetivamente – deixaram de se verificar.”.

É, assim, de concluir que o direito a utilizar as piscinas (e apoios) não pode caracterizar-se como posse (cf. art. 1251º, do CC) correspondente a um direito real de servidão.

Diga-se, finalmente, que o elenco factual dado como provado seria claramente insuficiente para demostrar a “aparência” da servidão, que se traduz na existência de sinais visíveis e permanentes que a revelassem, requisito indispensável da sua aquisição por usucapião.


Improcede, pois, a revista.


Lisboa, 23.5.2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

Hélder Almeida

Oliveira Abreu

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[1] Cf. Sentença a fls. 564 e ss. dos  autos.
[2] Cf. fls. 619 a 627.
[3] Cf. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, em anotação ao art. 1548º.