Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28/22.0YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO CONTENCIOSO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
ATO ADMINISTRATIVO
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
COLOCAÇÃO DOS JUÍZES DE DIREITO
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: ABSOLVIÇÃO DO RÉU DA INSTÂNCIA.
Sumário :
I – Nos termos do art. 267.º TFUE, o tribunal nacional pode, sempre que surja alguma dúvida quanto à validade e interpretação do direito da UE, "pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie" através do reenvio Prejudicial.
II - O Reenvio Prejudicial tem de reportar a uma questão cuja consulta e decisão preliminar seja necessária para a justa composição do litígio concreto, pressuposto sem o qual não é admissível o reenvio.
III - A declaração dos valores estado de Direito da União constante no art. 2.º do TUE bem como o art. 47.º da CDFUE postulando que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal, não interferem nem reclamam esclarecimentos prévios através do Reenvio Prejudicial para a questão de decidir a legitimidade do impugnante do ato administrativo. Legitimidade que se encontra determinada, em enunciação geral, no art. 30.º do CPC e se concretiza na jurisdição administrativa nos arts. 9.º e 55.º do CPTA.
IV - A impugnação de um ato administrativo depende da legitimidade do impugnante e esta é conferida pelo art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA a quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
V - A invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido não basta para o autor ver reconhecida a legitimidade porque a ilegalidade do ato não é critério legal aferir da legitimidade do autor porque este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue em concreto factos que revelem ser o ato violador, para além de ilegal, lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação.
VI - O interesse em agir em juízo será "direto" quando o benefício resultante da suspensão/impugnação do ato suspendendo tiver repercussão imediata no interessado de natureza patrimonial ou não patrimonial e será "pessoal" quando a projeção daquela suspensão/impugnação (nulidade/anulação) do ato se refletir de forma juridicamente relevante na própria esfera jurídica do impugnante.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 28/22.0YFLSB


Relator – Juiz Conselheiro Manuel Capelo


Adjunta – Senhora Juíza Conselheira Maria João Tomé


Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Rijo Ferreira


Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha


Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Ramalho Pinto


Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro António Gama


Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Barateiro Martins


Presidente da Secção do Contencioso do STJ – Senhora Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza


Acordam no Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça


Relatório


AA cidadão de nacionalidade suíça, residente em ..., Suíça, e BB, cidadão de nacionalidade suíça, residente em ..., Suíça, interpuseram contra o Conselho Superior da Magistratura e identificando como contrainteressados CC, com domicílio profissional na Av. ...; DD com domicílio profissional na Rua ...; e EE, com domicílio profissional na Av. ..., ação administrativa para impugnação parcial de atos administrativos “consubstanciados nas Decisões do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 5 de julho de 2022 e de 6 de setembro de 2022 (cf. Documento n.º 1, junto ao Processo Cautelar), na parte em que determinaram: 1) A suspensão do exercício de funções do Dr. CC como titular do lugar de J…, desapossando-o, ilegalmente, desse lugar e afetando-o, abstratamente, ao Tribunal Central de Instrução Criminal;


2) O sequente preenchimento do lugar de J… por outro magistrado, em comissão de serviço;


3) A afetação, a um magistrado em substituição, desse mesmo lugar”


Alegaram que são arguidos num processo penal que vem correndo termos sob o número 324/1..., no Departamento Central de Investigação Criminal e no Tribunal Central de Instrução Criminal;


- no dia 14.07.2020 foi deduzida acusação pública, tendo sido imputada aos Requerentes a prática de diversos crimes, previstos e puníveis pelo ordenamento jurídico-penal português;


- os Requerentes foram notificados da acusação em março de 2021 e requereram a abertura da instrução, e o processo foi, então, distribuído como instrução ao J... do TCIC onde na data da distribuição o Magistrado Judicial titular do lugar de J... do TCIC era o Dr. CC


- em março de 2022, torna-se pública a existência de um processo disciplinar em que é visado o Dr. CC.


- no Projeto do Movimento Judicial Ordinário de 2022 – Tribunais de Primeira Instância, de 15 de junho de 2022 aparece a indicação do Dr. DD como colocado, definitivamente, no lugar de Juiz ... no TCIC indicando, desde logo, a manutenção da Comissão de Serviço, isto é: o exercício das funções de Juiz Presidente da Comarca de ....


- no mesmo projeto de Movimento Judicial Ordinário de 2022 consta, a colocação do Dr. EE no Tribunal Central Instrução Criminal na Vaga de Auxiliar de substituição de titular


- em 22 de junho de 2022, através da Divulgação n.º 123/2022, de 22 de junho de 2022, do CSM, a 2.ª versão do Movimento Judicial Ordinário – 2022 para os Tribunais de Primeira Instância manteve sem modificação, no que respeita ao lugar de Juiz ... do TCIC e às movimentações, as colocações dos contrainteressados Drs. DD e EE;


- na Divulgação n.º 136/2022, de 6 de julho de 2022, o CSM consignou a decisão respeitante ao Movimento Judicial Ordinário – 2022, para os Tribunais da Relação e Tribunais de Primeira Instância, aprovado por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 05 de julho de 2022 e no que respeita ao Dr. CC, a promoção do lugar deJuiz ... no TCIC, para o Tribunal da Relação de Lisboa - Secção ... -Lugar de Efetivo - Promoção e Colocação.


- O CSM deliberou por unanimidade “Afetação em virtude da suspensão da promoção ao Tribunal da Relação Em virtude da suspensão da promoção ao Tribunal da Relação do Exmo. Sr. Juiz Dr. CC, foi deliberado por unanimidade afetar este Exmo. Sr. Juiz ao Tribunal Central de Instrução Criminal, a fim de prolatar a decisão instrutória relativa ao processo 5432/1..., uma vez que iniciou o debate instrutório no mesmo processo.


Mais foi deliberado por unanimidade que o Exmo. Senhor Juiz Dr. EE, colocado no Movimento Judicial Ordinário de 2022 como juiz auxiliar de substituição no Tribunal Central de Instrução Criminal, o qual foi posteriormente afeto por decisão de 31 de agosto de 2022 ao lugar de J..., em substituição do titular que se encontra em comissão de serviço, ficará afeto ao processo n.º 324/1..., bem como ao processo n.º 122/1..., mantendo-se a suspensão da distribuição ao lugar de J... de modo a permitir que o Sr. Juiz fique afeto aos referidos processos, em regime de exclusividade.


Mais foi deliberado por unanimidade manter a suspensão da distribuição ao lugar de J... do Tribunal Central de Instrução Criminal até 15 de julho de 2023, por se manterem os pressupostos que fundamentaram a atribuição desta suspensão.”


Os requerentes imputam a estes atos ilegalidade por desrazoabilidade e desnecessidade; resultarem para eles como arguidos no processo os prejuízos irreparáveis resultantes da eficácia desses mesmos atos; ser ilegal a interpretação e aplicação da suspensão da promoção do Dr. CC e ilegal a movimentação para o lugar de Juiz ... consistindo os atos suspendendo numa situação “de “ocupação” do lugar de Juiz ... por um juiz destacado e, portanto, necessariamente, sem as habilitações para o cargo, pois que estes, evidentemente, não concorrem para ser auxiliares em substituição, poderá manter-se durante vários anos, pelo menos enquanto durar a comissão de serviço daquele que foi nomeado como titular efetivo do lugar de Juiz ....


Concluem que “não têm, certamente, o direito a escolher o Juiz de Instrução, nem, em todos os casos, de exigir a manutenção de um concreto magistrado.


Mas têm, inequivocamente, o direito a que o Juiz responsável pela instrução do processo penal a que estão sujeitos seja o resultado de uma escolha conforme com as regras constitucionais e legais.


Quanto tal não acontece, como sucede no presente caso, todos os atos praticados por um Magistrado cujo exercício de funções resulta de um procedimento ilegal, são uma violação dos direitos que a CRP estabelece a favor de todos os cidadãos e, portanto, também dos Autores.


A instrução foi conduzida por quem foi escolhido á margem ou contra as regras (arbitrariamente, portanto) é uma violação constante e sucessiva dos Direitos Liberdades e Garantias dos autores.


… …


A requerida, os contra interessados e o Ministério Público foram citados.


A requerida CSM veio apresentar contestação na qual excecionou a ilegitimidade para a propositura da presente ação e, quanto ao mérito, sustenta que as deliberações impugnadas não enfermam de irregularidade, ilegalidade ou arbitrariedade tendo aplicado, nomeadamente os efeitos da acusação em processo disciplinar sobre a graduação para promoção e colocação de magistrados. Aliás, o Sr. Juiz de Direito CC não foi suspenso do exercício de funções e a figura jurídica e o disposto no artigo 107 do EMJ, não se confunde com a do disposto no artigo 95, nem tão pouco com a do disposto no artigo 113.º, do EMJ. Consequentemente, mantendo- em exercício de funções, mas estando ocupado o lugar de J... (que ficara vago por efeitos da sua graduação no 10.º CCATR), foi determinado que o processo n.º 5432/1... ficaria afeto, em exclusivo, ao Sr. Juiz de Direito Dr. CC que previamente assentiu em tal afetação. Como tal nos termos do disposto no art. 307 nº1 do CPPenal conjugado com a aplicação à fase da instrução da aplicação dos princípios da continuidade de audiência e da plenitude da assistência dos juízes determinou-se a afetação, em exclusividade, do referido processo e decisão do mesmo ao Sr. Dr. CC


Quanto à imputação da ilegalidade de colocação do juiz auxiliar de substituição no lugar de J... do TCIC em resultado do MJO de 2022 o Sr. Juiz de Direito DD ficou colocado como efetivo no lugar de J... do TCIC encontrando-se, porém, em exercício de funções em comissão de serviço como Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de ... não tendo tal vicissitude como efeito a perda do lugar em que fora colocado.


Nos termos do disposto no art. 61 nº 6 do EMJ a manutenção em comissão de serviço não implica a abertura de vaga do lugar de origem e á semelhança do que sucede em qualquer outra comissão de serviço o Sr. Juiz DD mantém-se colocado como efetivo no J... do TCIC havendo necessidade de assegurar a sua substituição no serviço afeto ao J... podendo qualquer um dos três juízes ali em funções e exercício ser colocado na vaga de auxiliar de substituição no TCIC afeto ao serviço do J....


… …


Na réplica os autores vieram requerer o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia alegando que a ré CSM ao sustentar a ilegitimidade dos autores assume a posição de que a colocação (movimentação, suspensão ou outras decisões) de juízes só diz respeito aos juízes, as normas existentes sobre a matéria só interessam aos juízes e os direitos e interesses legalmente protegidos por essas normas são, exclusivamente, direitos e interesses de juízes.


Assim, como esta matéria é apenas para os juízes e a favor dos juízes, não pode existir um interesse pessoal e direto, por parte dos Autores ou, em rigor, de qualquer cidadão e a violação das garantias de defesa do arguido (entre as quais se integra o princípio do juiz natural) ou do princípio da inamovibilidade dos juízes, através atos administrativos do CSM, não pode ser sindicada pelos cidadãos que, concretamente, se considerem, nos termos do seu pedido e causa de pedir, afetados por esses atos.


… …


Nos termos do disposto no nº1 do art. 87 B do CPTA porque se impõe conhecer no despacho saneador de exceção dilatória não se realiza a audiência prévia.


… …


O tribunal é o competente e o processo é o próprio.


……


Como questão prévia os autores suscitam/requerem na réplica a suspensão do processo para que se proceda ao seu Reenvio Prejudicial alegando para o efeito que:


se o réu CSM invoca que a colocação (movimentação, suspensão ou outras decisões) de juízes só diz respeito aos juízes, que as normas existentes sobre a matéria só interessam aos juízes e os direitos e interesses legalmente protegidos por essas normas são, exclusivamente, direitos e interesses de juízes, tal interpretação coloca em causa conceitos básicos da nossa ordem jurídica, tendo, certamente, efeitos na estrutura do Estado Direito Democrático, tal como ele é entendido na Ordem Interna e na Ordem Jurídica da União Europeia.


Se para o CSM, a violação das garantias de defesa do arguido (entre as quais se integra o princípio do juiz natural) ou do princípio da inamovibilidade dos juízes, através de atos administrativos do CSM, não pode ser sindicada pelos cidadãos que, concretamente, se considerem, nos termos do seu pedido e causa de pedir, afetados por esses atos, tal significa uma reserva de impugnação de atos administrativos do CSM, respeitantes a movimentos judiciais ou outras decisões de colocação.


Porque o Supremo Tribunal de Justiça entende e já o declarou no processo cautelar conexo com a presente demanda, que a Secção de Contencioso a quem cabe ajuizar da impugnação de atos administrativos do CSM decide em primeira e última instância, não existindo qualquer recurso, em face do exposto, impõe-se, em reenvio prejudicial, a admissão da questão formulada, o que, por ser relevante e ter influência, decisiva, na própria existência da causa, inexistem quaisquer das possibilidades de rejeição enunciadas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente no Acórdão do CILFIT4.


Concluem que a questão que se impõe, e que deve ser dirigida ao TJUE, é a seguinte:


- A legislação portuguesa, ao limitar a possibilidade de sindicância judicial dos atos do CSM, respeitantes à colocação, movimentação e remoção de juízes das respetivas funções, aos juízes visados por esses atos, excluindo a possibilidade de qualquer cidadão (mesmo que afetado, num processo em curso, por uma decisão do CSM, que repute de ilegal e arbitrária), eliminando, assim, qualquer tipo de controlo judicial externo dos atos do CSM (que tem competência exclusiva para todas as matérias relacionadas com juízes), é compatível com os Tratados da União, nomeadamente com o disposto no artigo 2.º do TUE e com o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


… …


Apreciando esta questão observamos que, nos termos do art. 267º TFUE, o tribunal nacional pode, sempre que surja alguma dúvida quanto à validade e interpretação do direito da UE, “pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie”. Através deste reenvio, o julgador nacional solicita a jurisdição do TJUE relativamente a uma questão cuja decisão preliminar em seu entender seja necessária para a justa composição do litígio concreto. E a questão de direito da UE é prejudicial relativamente ao objeto do litígio principal quando a sorte deste depende do que relativamente àquela se decida. Uma questão é prejudicial relativamente a um litígio decidendo se, para a sua resolução, o julgador necessita da sua consideração prévia por se tratar de uma premissa que integra o silogismo judiciário que subjaz à decisão final sob pena de, não o fazendo, incorrer em errada aplicação do direito.


Porque no desenho do sistema jurisdicional da UE, os tribunais nacionais de cada EM são concebidos como os órgãos a quem incumbe a competência genérica para aplicar o direito da EU, sendo estes os tribunais comuns da EU é no desempenho desta função que, face a dúvidas de interpretação e validade do direito da UE, se pode socorrer do reenvio prejudicial e convocar a jurisdição do TJUE.


Feita esta exposição geral, o art. 267 TFUE, nos seus §2 e §3, responde à questão de saber se, ou em que condições, os tribunais nacionais devem proceder ao reenvio, esclarecendo quanto à natureza que o reenvio pode assumir, consoante o julgador nacional se encontre (ou não) vinculado a provocar a jurisdição do TJUE para a interpretação ou apreciação da validade do direito da UE. Como essencial, em regra, o reenvio é meramente facultativo: o §2 daquele normativo, refere-se à possibilidade do julgador nacional, perante uma dúvida de interpretação ou validade do direito da UE e cujo esclarecimento se afigure relevante para a decisão da causa que tem para conhecimento, solicitar a apreciação do TJUE sobre a mesma. Trata-se de uma faculdade à disposição dos tribunais nacionais que decidem sobre a pertinência e oportunidade do reenvio, mesmo que essa solicitação tenha sido feita pelas partes.


Havendo duas exceções à apontada natureza facultativa do reenvio, sublinha-se que a regra determinante e não dispensável é a da relevância do esclarecimento para a decisão da causa.


A primeira exceção resulta do §3 do art. 267º TFUE que impõe a obrigatoriedade do reenvio sempre que as questões prejudiciais sejam suscitadas perante “um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno”, podendo, no entanto, esta obrigatoriedade por insusceptibilidade de recurso ser dispensada.


A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia desde o Acórdão Cilfit (Acórdão do TJUE de 06-10-1982, Proc. C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335) admite de forma consistente e constante a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação, por insusceptibilidade de recurso, nas seguintes situações:


- Em 1º lugar, quando a questão de direito da UE suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;


- Em 2º lugar, quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;


A segunda exceção ocorre quando o tribunal nacional considere que as normas da UE aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas, ou sejam suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adotadas.


Esta jurisprudência foi reafirmada pelo TJUE, por ex., nos acórdãos do Tribunal de Justiça (Quarta Secção), 30 de janeiro de 2019, Processo C‑587/17 P, Comissão / Bélgica; Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), 4 de outubro de 2018, Comissão/França, Processo C 416/17, EU:C:2018:811, n.º 110; Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção), 28 de julho de 2016, Association France Nature Environnement, Processo C 379/15, EU:C:2016:603, n.º 50; Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), 1 de outubro de 2015, Processo C 452/14; Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção), 9 de setembro de 2015, Processo C 160/14, Ferreira da Silva e Brito e o.; EU:C:2015:565 n.ºs 38 e 39; Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), 18 de Outubro de 2011, Processos apensos C 128/09 a C 131/09, C 134/09 e C 135/09, Boxus e O., EU:C:2011:667, n.º 31.


Também nos pontos 5 e 6 das Recomendações emitidas pelo TJUE à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 257/1 de 20-7-2018), é esclarecido que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (ver artigo 267.º, segundo parágrafo, do TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito.


A Jurisprudência do TJUE acima referida sobre a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial tem sido aplicada de forma reiterada pelo Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, Acórdãos de 10-07-2008 (Revista n.º 2944/07), de 18-12-2002 (Revista n.º 3956/02), de 30-09-2014 (Revista n.º 1020/13.0TBCHV-D.P1.S1), de 21-05-2009 (Revista n.º 4986/06.3TVLSB.S1), de 04-02-2016 (Revista n.º 536/14.6TVLSB.L1.S1), de 17-03-2016 (Revista n.º 588/13.6TVPRT.P1.S1) e de 14-03-2017 (Revista n.º 736/14.9TVLSB.L1.S1), todos publicados na dgsi, bem como, nos acórdãos de 29-04-2010 (Revista n.º 622/08.1TVPRT.P1.S1); de 16-10-2014 (Revista n.º 1279/06.0TVPRT-C.P1.S1), de 29-09-2015 (Revista n.º 1740/12.7TBPVZ.P1.S1), de 02-02-2016 (Revista n.º 326-C/2002.E1.S1) e de 05-12-2017 (Revista n.º 11256/16. 7T8LSB.L1.S2-A), não publicados.


Na apreciação destas considerações resulta esclarecido que o Reenvio Prejudicial tem como pressuposto enunciado no §2 do art. 267 do TFUE a necessidade/relevância de um esclarecimento do TJUE sobre a concreta questão a decidir, sendo esta definição de necessidade e importância a que se elege para que, mesmo quando se enuncia a obrigatoriedade do reenvio, esta ceda perante a impertinência ou desnecessidade para a resolução do litígio concreto.


Apreciando agora a situação dos autos, para sustentar o pedido de reenvio prejudicial, alegam os autores que este não pode ser recusado/acionado porque a questão decorre perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno. Todavia, como observámos anteriormente, a impossibilidade de recurso não é condição absoluta para a obrigatoriedade do reenvio uma vez que se impõe um juízo prévio de necessidade e pertinência do reenvio perante a questão a decidir no contexto do direito europeu que a questão a decidir reclame na sua aplicação. Isto é, em qualquer caso, o Reenvio só é admissível se o esclarecimento for necessário para a concreta questão a decidir.


Os autores, ao definirem a questão a esclarecer no Reenvio inscrevem o esclarecimento no âmbito da compatibilidade do art. 2 do TUE e do art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia com a legislação portuguesa quando afirmam que esta limita “a possibilidade de sindicância judicial dos atos do CSM, respeitantes à colocação, movimentação e remoção de juízes das respetivas funções, aos juízes visados por esses atos, excluindo a possibilidade de qualquer cidadão (mesmo que afetado, num processo em curso, por uma decisão do CSM, que repute de ilegal e arbitrária), eliminando, assim, qualquer tipo de controlo judicial externo dos atos do CSM (que tem competência exclusiva para todas as matérias relacionadas com juízes)”.


Para identificarem como questão a decidir nos presentes autos a de saber se só os juízes visados pelos atos do CSM respeitantes à colocação, movimentação e remoção de juízes das respetivas funções, os autores alegam que a ré CSM defende na contestação, como exceção, a ilegitimidade dos autores defendendo que a colocação de juízes só diz respeito aos juízes e os interesses legalmente protegidos por essas normas de colocação são, exclusivamente, direitos e interesses de juízes. E seria nesta enunciação da questão a decidir nos autos que cobraria necessidade (e até obrigação) o Reenvio Prejudicial.


Importa, contudo, esclarecer que a questão suscitada na exceção remete para apreciação da legitimidade dos autores para impugnarem os concretos atos administrativos do CSM que identificaram . Não está em causa qualquer questão geral e de princípio quanto a apurar e decidir os juízes, só os juízes ou que juízes podem impugnar os atos do CSM referentes à colocação, movimentação e remoção de juízes das respetivas funções. Está em discussão sim e apenas saber se os autores AA e BB nos termos das suas alegações têm legitimidade para impugnar os atos do CSM “consubstanciados nas Decisões do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 5 de julho de 2022 e de 6 de setembro de 2022 (cf. Documento n.º 1, junto ao Processo Cautelar), na parte em que determinaram:


1) A suspensão do exercício de funções do Dr. CC como titular do lugar de J..., desapossando-o, ilegalmente, desse lugar e afetando-o, abstratamente, ao Tribunal Central de Instrução Criminal;


2) O sequente preenchimento do lugar de J... por outro magistrado, em comissão de serviço;


3) A afetação, a um magistrado em substituição, desse mesmo lugar”.


Quanto à apreciação da legitimidade dos autores as normas consultáveis e aplicáveis são exclusivamente de direito nacional e encontram-se expressas nos arts. 9 e 55 do CPTA e, ex vi do art. 1 desse diploma, no art. 30 do CPCivil.


Apurar e decidir numa ação de impugnação de ato administrativo se o impugnante tem legitimidade, por referência às exigências estabelecidas pela lei, é matéria que está sempre presente (até por ser de conhecimento oficioso) e que não inclui, em termos de dispositivo e significado útil da decisão a declaração de, não sendo os impugnantes partes legítimas, quem o seria. Determinar decidindo se os autores são titulares, conforme exigência legal, de um interesse direto e pessoal por terem sido lesados nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos pelo ato que impugnam, é matéria cuja decisão decorre apenas da subsunção da matéria de facto alegada àqueles preceitos legais, sendo neste sentido absolutamente alheia à decisão em concreto o art. 2 do TUE e o art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


O art. 2º do Tratado da União Europeia tem o seguinte teor :


A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.


E o art. 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece que:


“Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.


Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.


É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça.”


A transcrição destes preceitos e o confronto deles com o necessário para decidir a questão da legitimidade dos autores para a impugnarem os identificados atos do CSM faz concluir pela desnecessidade e impertinência de Reenvio Prejudicial.


A declaração dos valores estado de Direito da União, designadamente os de não discriminação, tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres do art 2º do TUE bem como o art. 47 da CDFUE postulando que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal, não interferem nem fornecem subsídios para a aferição num processo nacional da apreciação da legitimidade das partes que se encontra fixada, em enunciação geral, no art. 30 do CPC e se identifica na jurisdição administrativa nos art. 9 e 55 do CPTA.


Porque a questão em decisão é a de saber se os autores têm legitimidade para impugnar os atos administrativos que identificam e não se os juízes têm essa legitimidade ou se só os juízes têm essa legitimidade, carece de total fundamento o Reenvio Prejudicial e por isso se não determina. Aliás, independentemente dos fundamentos que possam ser invocados como o são na contestação do CSM, pretendendo limitar a impugnação daqueles concretos atos a outros que não os juízes, a decisão a proferir nos autos apenas poderá/deverá determinar se os autores são partes legítimas ou ilegítimas em razão dos interesses que invocam e das normas legais aplicáveis não tendo este tribunal, por não ser esse o objeto da exceção de legitimidade, de pronunciar-se sobre quem, em que medida ou com que exclusividade, para além dos autores, poderia ou não impugnar os atos que estes impugnam. A questão a decidir nesta exceção consistirá em declarar se os autores são partes legítimas ou ilegítimas e porquê e não se o não são porque só outros o podem ser. As razões e fundamentos da decisão reportarão à apreciação dos interesses escalados pelos autores e aos normativos definidores da legitimidade em sede administrativa e não a qualquer definição de princípio retirada da exclusão liminar e absoluta da legitimidade dos autores por apenas outros (no caso os juízes) poderem impugnar os atos do CSM.


Pelo exposto não se procede ao Reenvio Prejudicial requerido.


… …


A requerida, Conselho Superior da Magistratura, excecionou na sua contestação a ilegitimidade dos requerentes sustentando que:


o artigo 55.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi artigo 166.º, n.º 2 do EMJ, determina que tem legitimidade para impugnar um ato administrativo “Quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”;


a atividade do CSM, no exercício da competência atinente ao movimento e colocação dos juízes, bem como ao nível da gestão e organização do seu serviço, repercutem-se única e exclusivamente, pessoal, direta e imediatamente, na esfera jurídica dos envolvidos no movimento judicial, ou seja, na esfera jurídica dos juízes razão pela qual na situação vertente apenas os juízes visados pelas deliberações sub judice poderiam impugnar administrativa e judicialmente tais deliberações, na qualidade de interessados, pessoal e diretamente atingidos nos seus direitos e interesses;


os autores confundem a sua posição processual de arguidos, com interesse direto e pessoal na concreta tramitação e no desfecho desse processo, não invocando qualquer interesse e não retirando nenhuma vantagem ou utilidade imediata e concreta (não reflexa potencial e abstrata), em resultado da impugnação das deliberações em apreço.


… …


Na apreciação da exceção de ilegitimidade dos autores, o art. 55 do CPTA prevê quais as pessoas e entidades que estão legitimadas a impugnar atos administrativos pedindo a sua anulação ou declaração de nulidade. E o nº1 al. a) deste preceito refere ter legitimidade para impugnar quem alegue ser titular de um interesse pessoal e direto, designadamente por ter sido lesado pelos atos nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.


Exigindo-se como requisito a invocação e demonstração de um interesse direto e pessoal tal significa que não é necessário que esteja em causa uma ofensa a um direito juridicamente tutelado. Basta que esse ato esteja a gerar consequências (diretas e pessoais) desfavoráveis na esfera jurídica do autor, que pela sua relevância jurídica lhe permita instaurar em tribunal uma ação de impugnação por desta retirar uma vantagem jurídica ou económica (desde que seja pessoal e direta). A consequência desfavorável afere-se, assim, pela perda de vantagem gerada pelo ato impugnado, desvantagem que deve ser concreta e não abstrata, pessoal e identificada.


Na ação administrativa especial - para impugnação de atos administrativos - a lei não elege nem pode eleger como critério de aferição da legitimidade a titularidade que se tenha numa relação material administrativa controvertida, limitando-se a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” [art.º 55.º/1/a) CPTA]. E este critério especial alarga a possibilidade da propositura deste tipo de ação a quem, não sendo o titular de uma relação jurídico administrativa de onde decorra um conflito, possa ser reflexamente prejudicado por ela, tendo assim um traço objetivista na medida em que visa tutelar a legalidade e garantia da prossecução do interesse público, pois todo e qualquer particular que tendo sido atingido por esse ato ilegal poderá recorrer ao sistema judiciário desde que daí lhe advenha uma vantagem pessoal e direta configurável por aquele tipo de interesse (publico).


Esta exigência de qualificação do interesse como “pessoal e direto” como o sabemos, decorre da tradição portuguesa do contencioso administrativo que teve consagração jurídico-positiva no art. 821.º Código Administrativo e 46.º do Regulamento do STA – vd. sobre esta matéria Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pp. 46 ss. recebendo de forma direta os ensinamentos de Marcello Caetano e Maurice Harriou, e podendo consultar-se igualmente o estudo de António Rato, Da Legitimidade das Partes no recurso contencioso de anulação, sep. da Revista de Direito Administrativo, pp. 5 e ss. e 61 e ss., com variados exemplos da jurisprudência do STA à época - e manteve-se no atual ordenamento, sem embargo de a não indicação da exigência da “legitimidade” do interesse não significar que ela seja dispensável, antes querendo sublinhar que a sua observação se contém já na verificação do interesse como pessoal e direto.


Segundo Marcello Caetano esse interesse teria de ser:


“direto” na medida em que o provimento do recurso implicasse a anulação ou declaração de nulidade de ato jurídico que constituísse obstáculo à satisfação de pretensão anteriormente formulada pelo recorrente ou seja causa imediata de prejuízos infligidos pela Administração;


“pessoal” no sentido em que o recorrente esperasse do recurso uma utilidade concreta para si próprio, ou seja, cujo efeito se repercutisse na sua esfera jurídica;


“legítimo”, se essa utilidade não fosse reprovada pela ordem jurídica - vd. Estudos de Direito Público, 1974, pp. 219 ss. (originalmente in O Direito, 91.º, pp. 169 ss.); estudo sobre o problema da legitimidade das partes no contencioso administrativo português, publicado n’ O Direito, 65.º, e tb. nos Estudos de Direito Público, pp. 11 e ss e Manual de Direito Administrativo, II, pp. 1356 ss


A evolução normativa manteve os conceitos e o CPTA, abandonando a referência feita ao “interesse legítimo” - que era definido como aquele que decorria do facto de o seu titular haver sido desfavorecido no processo em que foi praticado, ou, quando tal critério fosse insuficiente, quando o interesse em causa fosse objeto de proteção jurídica - não afastou a sua importância mas considerou-a sem autonomia, evitando a exigência de a tutela se repercutir exclusivamente direitos subjetivos/interesses juridicamente tutelados.


Pelo mencionado, o interesse pessoal enuncia a existência de uma utilidade concreta e definida que o interessado alegue obter com a anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado enquanto o interesse direto visa o apuramento da existência de um interesse atual e concreto em pedir a anulação ou declaração de nulidade do ato.


Nesta cumulação de critérios para certificação da legitimidade Mário Aroso de Almeida considera que o carácter pessoal do interesse diz respeito ao pressuposto processual da legitimidade, tendo o carácter direto rebate na questão de saber se o alegado titular do interesse tem efetiva tutela judiciária, repetindo este autor que, em qualquer caso, “interesse pessoal” significa “que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou a declaração de nulidade do ato impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo” - cfr. Manual de Processo Administrativo, 3.ª edição, Almedina, pág. 225. Daqui decorre que a identificação do interesse direto do interessado, de acordo com os critérios aludidos é de importância vital, designadamente à decisão da legitimidade conforme é revelado pela jurisprudência (vd. por todos o ac. do Pleno do STA de 15 de novembro de 2001).


No reforço do esclarecimento de definição daquilo em que se traduz (deve traduzir) o interesse direto e pessoal como pressuposto da legitimidade para impugnar um ato administrativo, Freitas do Amaral adverte que o interesse é direto e pessoal, respetivamente, “quando o benefício resultante da anulação do ato recorrido tiver repercussão imediata no interessado” e “quando a repercussão da anulação do ato recorrido se projetar na própria esfera jurídica do interessado” - in Curso de Direito Administrativo - e este enunciado assenta na lógica de a administração emitir atos ao investida de autoridade pública – vd. ac. do TAC no proc. nº 12/141 de 30/03/2006 - “o ato administrativo, enquanto conduta unilateral da Administração do domínio de uma relação concreta em que ela é parte, configura um comando, positivo ou negativo, pelo qual se constituem, se modificam ou extinguem relações jurídicas, se decide um conflito, se fixa juridicamente o sentido duma situação de facto”, importando garantir aos cidadãos lesados pela sua prática o direito de reagir judicialmente contra esses atos unilaterais.


O art. 55/1 al a) CPTA, em sede de legitimidade, aponta que pode recorrer-se a juízo sem se ser titular da relação jurídica de onde emerge a lesão. Porém, o interesse que legitima a impugnação não é um qualquer interesse avulso ou geral impondo-se que ele seja direto e pessoal, nos termos antes definidos, traduzível num prejuízo relevante que a ordem jurídica faculte ao interessado defender. Nesta sequência, o requerente tem de alegar que o ato violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, indicando em concreto que interesses são, o que equivale a ter de alegar para que haja pronuncia sobre a sua relevância e tutela, as consequências concretas que o ato lhe provoca. É sobre isto e com esta extensão que se pronuncia Sérvulo Correia, quando refere pode “impugnar um ato administrativo quem alegue a lesão por este, não necessariamente de um direito, mas também de um interesse legalmente protegido(...) O interesse legalmente protegido é também ele um interesse pessoal por via da sua reflexa instrumentalidade para com posições de vantagem do titular - in Direito do contencioso administrativo, Vol I -. Todavia, esta reflexa instrumentalidade não é, nem pode admitir-se que seja nos termos do art. 55 nº1 al.a) do CPTA um interesse de defesa abstrata da legalidade de caráter geral, mas sem repercussão (sem alegação de repercussão) na esfera jurídico patrimonial do impugnante.


Também a propósito do interesse pessoal e direto e em sintonia com os autores antes citados, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in, Código de Processo nos Tribunas Administrativos vol. I, anotação ao artigo 55º, pág. 364, advertem para que esse pressuposto, “…no processo de impugnação significa que a anulação (ou declaração de nulidade) do respetivo ato administrativo há de traduzir-se numa vantagem, ou benefício específico imediato para a esfera jurídica ou económica do autor”. E em igual entendimento Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário a Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª edição, pág. 374 sustentam que “o interesse direto, pressupõe que o demandante tem um interesse atual e efetivo na anulação ou declaração de nulidade do ato administrativo, permitindo excluir as situações em que o interesse invocado é reflexo, indireto, eventual ou meramente hipotético...".


Na avaliação da legitimidade - por existência de interesse direto e pessoal - exige-se uma imediata e concreta perda de posição de vantagem legítima e tutelável do titular, isto é, que o requerente retire vantagens imediatas da anulação do ato alegando que vantagens são essas para que possam ser avaliadas como diretas e pessoais em sentido normativo. A indispensável e efetiva ligação entre o autor e o interesse, cuja proteção reclama, só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efetiva de lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe direta, pessoal e imediatamente prejuízos atuais como, aliás, resulta da 2ª parte do normativo "por ter sido lesado" (e não que venha a ser lesado).


Para que se conclua pelo preenchimento do pressuposto da legitimidade processual ativa é necessário, nos termos do artigo 55.º, n.º 1 do CPTA que o impugnante alegue ser ele próprio o titular do interesse em nome do qual se move o processo e com o qual pode retirar, para si próprio, uma utilidade concreta na anulação do ato impugnado pese embora o mesmo interesse possa eventualmente ser comum a um conjunto de pessoas ou a pessoas diferenciadas. Daí que se o interesse não revestir aquele carácter “pessoal” na medida em que pertence ou está investido na titularidade da coletividade em geral ou de uma comunidade (interesse difuso) ou pertence a certos grupos ou categorias organizadas de cidadãos (interesse coletivo), estamos fora do âmbito da previsão da al. a) do n.º 1 do art. 55.º do CPTA”.


Para reforçar que o prejuízo ou o interesse seja tutelável, é necessário que o mesmo seja real e atual, de verosímil concretização no plano dos factos, não bastando, para a sua legitimidade emerja, a simples invocação da violação de um determinado preceito ou princípios jurídicos pode observar-se o ac. do STA de 29/10/2009, proferido no processo n.º 1054/08, expressando que “a mera invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido não basta para o autor ver reconhecida a sua legitimidade já que, não sendo a ilegalidade do ato critério para se aferir da legitimidade do autor, este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue que o ato violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação.


O interesse em agir em juízo será “direto” quando o benefício resultante da suspensão/impugnação do ato suspendendo tiver repercussão imediata no interessado de natureza patrimonial ou não patrimonial e será “pessoal” quando a projeção daquela suspensão/impugnação (nulidade/anulação) do ato se refletir na própria esfera jurídica do interessado, pois, se o benefício for mediato, eventual ou meramente possível ou se projetar na esfera jurídica de outrem, inexiste legitimidade processual ativa.


Não sendo a Requerente/Recorrente titular de um interesse direto e pessoal na suspensão/impugnação do ato administrativo em crise, sendo o seu interesse meramente mediato, indireto e eventual, na medida em que o requerido não lhe asseguraria qualquer vantagem mensurável, apenas possibilitando em termos potenciais, mediatos, insertos, remotos e pouco prováveis, vantagens em termos de carreira, carece a mesma de legitimidade processual ativa.”


Na completude da reflexão sobre a legitimidade para impugnar o ato administrativo e depois de se sublinhar que a dos particulares está construída sobre a exigência de existir um interesse direto e pessoal, cabe deixar nota a que o Ministério Público detém no âmbito do processo administrativo funções e atribuições, desde logo as que resultam do art.º 219º da Constituição República Portuguesa que lhe atribuem a representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar, e promover a realização do interesse público, exercendo para tal os poderes que a lei processual lhe confere, em densificação da disciplina prevista na CRP, nomeadamente nos artigos 3º e 5º do Estatuto do Ministério Público, EMP, e art.º 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ETAF.


Ora, quando não esteja em causa a lesão de um interesse pessoal, direto e concreto resultante de um ato administrativo - que é a problemática que nos ocupa no caso em decisão – mas sim a ofensa da legalidade objetiva desse ato, a sua impugnação pode ser obtida pela ação pública, pelo Ministério Público ou pelos presidentes dos órgãos colegiais que os tenham praticado [cf. artigos 55.º n.º 1 al. b) e e) e 68.º nº1 al. b) e e) do CPTA] e no exercício do direito de ação popular, em defesa dos interesses difusos, por qualquer das pessoas ou entidades mencionadas no artigo 9.º nº 2 do CPTA (artigos 55.º n.º1,al. f) e 68.º nº1, al. f) do CPTA). Ou seja, não é a ilegalidade do ato impugnado que determina a legitimidade para a sua impugnação mas que essa ilegalidade tenha causado um prejuízo concreto, pessoal, determinável e determinado ao impugnante.


Exposto o enunciado das exigências e requisitos para se ser parte legítima na presente providência, uma primeira observação vai para a natureza dos atos suspendendos que reportam à atividade do CSM no âmbito do concurso de movimento e colocação de juízes nas diversas instâncias. Conselho Superior da Magistratura que é o órgão do Estado a quem estão constitucionalmente atribuídas as competências de nomeação, colocação, transferência e promoção dos Juízes dos Tribunais Judiciais e o exercício da ação disciplinar, sendo, simultaneamente, um órgão de salvaguarda institucional dos Juízes e da sua independência - arts. 136 e 149 do EMJ.


Assim, a atividade do CSM e seus resultados, com os diversos movimentos de colocação dos juízes em concreto e deliberação sobre a organização do seu serviço, tem por destinatários de forma concreta e direta os juízes sendo nestes e mais concretamente nos que são incluídos e identificados nos atos administrativos praticados que se repercute diretamente a atividade do CSM. Daí que, de acordo com a definição de interesse pessoal e direto antes enunciada como requisito para a impugnação dos atos administrativos praticados pelo CSM, entendamos que, na aplicação do art. 55 nº1 al. a) do CPTA, os juízes visados por esses atos têm legitimidade para os impugnar.


Porém, não é a legitimidade dos juízes para impugnarem os atos em que sejam visados pelo CSM que está em causa na presente ação, mas sim de saber se os autores, que não são visados diretamente nesses atos impugnados, por não lhe serem dirigidos diretamente, têm algum interesse definível como pessoal e direto que os habilite de legitimidade impugnatória e, mais que isso, se alegaram esse interesse direto e pessoal traduzida em desvantagem igualmente pessoal e direta de forma que possa ter-se por juridicamente relevante para efeitos de impugnação do ato em concreto.


Sendo exigível o interesse pessoal e direto ele tem de evidenciar uma vantagem que se pretende ver acautelada porque não é uma qualquer desvantagem que se proteste que pode abonar a legitimidade. Tem de alegar-se e demonstrar-se que vantagem/desvantagem em concreto se ganha ou perde. E é nesta definição do interesse particular e particularizado tido por pessoal e direto que se inicia e encerra a discussão sobre a legitimidade.


Tomando em atenção o ato administrativo do Conselho Superior da Magistratura impugnado nesta ação, ele está identificado pelos autores como sendo os “consubstanciados nas Decisões do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 5 de julho de 2022 e de 6 de setembro de 2022 (cf. Documento n.º 1, junto ao Processo Cautelar), na parte em que determinaram:


1) A suspensão do exercício de funções do Dr. CC como titular do lugar de J..., desapossando-o, ilegalmente, desse lugar e afetando-o, abstratamente, ao Tribunal Central de Instrução Criminal;


2) O sequente preenchimento do lugar de J. por outro magistrado, em comissão de serviço;


3) A afetação, a um magistrado em substituição, desse mesmo lugar”


Nos casos em que a Administração Pública atua exercendo poderes de autoridade através de atos administrativos estamos perante situações que normalmente definem os destinatários, mas que podem envolver outras pessoas que não as identificadas no ato e cujos interesses possam ter sido afetados pela atuação da Administração qualquer que seja o seu sentido. Contudo, é desde logo da análise do ato administrativo concreto que se extrai o círculo de interesses e diversidade de lesões a que o ato possa dar causa, sendo que o mais explícito decorre, desde logo, de saber a quem o ato foi dirigido e que conteúdo tem.


Temos presente que o ac. do STJ de 08FEV2021 no proc. 8/20.0YFLSB se pronunciou no sentido de que tem interesse direto e pessoal para impugnar o ato “aquele que, com verosimilhança, aferida pelos termos peticionados, materialmente bem ou mal fundada, invoque a titularidade no seu património jurídico, de um direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido lesado com a prática do ato, retirando da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem, dignas de tutela jurisdicional, no aproveitamento do bem a que aquele direito ou interesse inerem”. No entanto este sentido decisório não contende e antes confirmar o que defendemos nestes autos, advertindo-se que a questão ali tratada dizia respeito à decisão sobre a legitimidade de um participante de infração disciplinar para impugnar o ato de arquivamento ou de não instauração de procedimento disciplinar. É outra e diversa, no entanto, a situação que nos cumpre decidir.


Sabemos que a orientação jurisprudencial que o STA acolheu - nos seus Acórdãos de 07-07-1998 (Processo n.º 41 141), de 15-10-1999 (Processo n.º 41 897 - Pleno) e de 08-06-2000 (Processo n.º 41.879) - e que tem sido seguida quanto a saber se os participantes de infrações disciplinares - enquanto colaboradores na vigilância e fiscalização do correto e legal desenvolvimento da atividade administrativa e da atuação dos seus órgãos e agentes - vai no sentido de não terem, em princípio, legitimidade para impugnar contenciosamente a anulação do ato que determina o arquivamento ou a não instauração de procedimento disciplinar ou outro, na medida em que não podem licitamente invocar, com fundamento naquele poder de participação, a preexistência no seu património de um direito subjetivo ou interesse legítimo suscetível de ser lesado por aquele ato. Todavia, o STA acrescenta que, se dos termos em que se mostra elaborada a petição de recurso, se concluir que o participante não se limita a invocar interesses coletivos, antes visa obter a reparação, ainda que reflexa, de valores eminentemente pessoais que hajam sido lesados com a conduta denunciada, como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação, então já dispõe de legitimidade ativa – vd. acs. de 14-05-2003 (Processo n.º 01681/02), de 22-10-2003 (Processo n.º 0136/03), de 26-11-2003 (Processo n.º 046/02) e de 07-06-2006 (Processo n.º 01089/05).


Assim é que o STA, por ac. de 15-10-2020 proferido no proc. n.º 0634/17.4BEPRT, mantendo a mesma orientação fez constar que se “o conceito de interesse na anulação do ato (…) tem de entender-se, hoje, como vantagem ou utilidade na anulação do ato repercutida na proteção de um bem jurídico preexistente no património jurídico do recorrente”, será titular desse interesse “aquele que, com verosimilhança, aferida pelos termos peticionados, materialmente bem ou mal fundada, invoque a titularidade no seu património jurídico, de um direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido lesado com a prática do ato, retirando da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem, dignas de tutela jurisdicional, no aproveitamento do bem a que aquele direito ou interesse inerem” (citado Ac. do Pleno de 15/1/97).


Por isso, distinguindo entre interesses públicos e privados, o acórdão do Pleno de 15/10/99 deixou expresso que “o facto de os arguidos, com a sua conduta disciplinar ilícita, terem afetado, para além do bom funcionamento do serviço, valores pessoais do participante faz com que a punição disciplinar a aplicar, para além dos fins de interesse público que diretamente persegue, tenha também, embora apenas reflexamente, efeitos de compensação moral para a pessoa atingida, pois ninguém negará que os danos morais sofridos pelo participante serão atenuados pelo facto de ter sido disciplinarmente censurada a conduta dos infratores e, ao invés, serão exacerbados se a conduta lesiva ficar, ilegal e injustamente, impune e de que, embora seja certo que o interesse próprio do participante na justa punição dos infratores não seja diretamente protegido pela lei, não é menos certo que a lei protege um interesse público (no caso, a disciplina), que, se for corretamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual referido”. Deste modo, se o “o titular do interesse privado não pode legalmente exigir da Administração que satisfaça o seu interesse, pode exigir-lhe que não prejudique esse interesse ilegalmente”, o que configura um interesse legítimo, que confere ao seu titular o poder de obter a anulação dos atos pelos quais a Administração tenha prejudicado ilegalmente esse interesse.


Respeitando à temática enunciada, a da legitimidade do participante de infração disciplinar para impugnação da deliberação de arquivamento do processo disciplinar instaurado em resultado da sua denúncia, na falta de lei que conferisse essa legitimidade esta deveria ser aferida casuisticamente face aos termos peticionados, devendo entender-se que ele tinha interesse na anulação desse ato quando obtivesse uma vantagem ou utilidade nessa anulação repercutida na proteção de um bem jurídico preexistente no seu património jurídico, ou seja, quando as infrações disciplinares participadas fossem suscetíveis de ofender os seus valores pessoais, como a integridade física e moral ou a honra, bom nome e reputação.


Para a concreta questão em decisão nos autos que nos cumpre decidir - que difere daquela outra envolvendo a legitimidade dos participantes de infração disciplinar – pode extrair-se que nos casos em que o interesse primordial envolvido possa ser um interesse público, sendo este interesse diverso e alheio ao interesse dos particulares, não podem estes exercer o direito de impugnação contenciosa apenas para fazer valer a tutela da legalidade administrativa abstrata. Exige-se um interesse pessoal e direto que tenha sido lesado e se traduza numa desvantagem concreta no património material e ou imaterial (concretos) do impugnante (como se dizia no acórdão antes citado, por exemplo, a integridade patrimonial, física ou moral, a honra, o bom nome e reputação ou outro). No entanto, o interesse público não afasta que o ato praticado (ao abrigo de um interesse público) possa interferir com aqueles interesses particulares indiscutíveis (os enunciados por exemplo) que à luz do critério estabelecido na alínea a) do art. 55º do CPTA, tenham sido alegados e identificados, pessoal e diretamente lesados, constitutivos da ocorrência da desvantagem juridicamente relevante identificada, ou seja, o prejuízo provocado.


Numa leitura literal e imediata, os atos do CSM impugnados pelos autores destinaram-se objetivamente aos sujeitos neles concretamente visados e identificados com a deliberação de suspensão, o preenchimento do lugar em comissão e a afetação com substituição de lugar. E mesmo que se proteste que esses atos podem lesar interesses de outros que não apenas os indicados no próprio ato (em concreto os autores) é inequívoco, por objetivo, que no ato impugnado não são indicados/identificados os autores como destinatários diretos da deliberação tomada. E se isto não obsta, como dissemos não obstar, a que outros interesses de outros particulares possam ser lesados por esses atos (dirigidos a juízes) é mister que a definição do interesse pessoal e direto que tenha sido lesado se enuncie com precisão e clareza, em termos de poder ser certificado como juridicamente relevante e causador de prejuízo e desvantagem juridicamente tutelável.


De acordo com a definição de ato administrativo que colhemos no art. 148 do Código do Procedimento Administrativo “consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”, reconhecendo-se nesta enunciação legal que o ato administrativo tem por principais características: a natureza jurídico-administrativa; a produção de efeitos jurídicos externos e a intervenção sobre uma situação individual e concreta. E se o ato administrativo é a expressão de um poder que a lei confere à Administração Publica para que esta possa dizer unilateralmente o direito, ou seja, para que possa introduzir unilateralmente efeitos jurídicos na esfera de outrem sem o concurso da respetiva vontade, a força jurídica do ato administrativo é, em concreto, definidora de situações jurídicas com força vinculativa tanto para o próprio autor do ato como para os seus destinatários. A obrigatoriedade que o ato administrativo contém é uma manifestação de poder de definição jurídica unilateral que os eventuais interessados têm o ónus de impugnar dentro de prazos, sob pena de verem precludida a possibilidade de exigirem a respetiva eliminação da ordem jurídica.


Ou seja, no caso vertente, através do ato impugnado a declaração de poder unilateral que interfere através da produção de efeitos jurídicos na esfera de outrem e a definição da situação jurídica com força vinculativa não envolve, segundo o teor desse próprio ato, os autores. Se estes protestam alguma lesão dos seus interesses tendo por fundamento esse ato impugnado, têm de alegar a desvantagem juridicamente relevante em termos pessoais que o mesmo lhe provocou e que se traduza num interesse direto e pessoal de tutela exigível pela lei.


Decorre das alegações dos autores serem arguidos num processo em fase de instrução que está a correr termos e que esse processo teve e tem um juiz que preside aos atos dessa fase (de instrução) em que tal processo se encontra, sendo que o concreto juiz que presidia ao processo, por razões de movimento e concurso (que reputam de ilegal) foi substituído por outro magistrado, colocação decorrente do ato administrativo de movimento/colocação judicial dos juízes.


O interesse pessoal e direto dos arguidos no processo em que são arguidos é, como eles próprios aceitam, que sejam os autos instruídos de acordo com o ordenamento jurídico, de forma célere, no estrito cumprimento da lei aplicável à tramitação dos autos, com segurança normativa e garantias de recurso, e que sejam esses atos, de instrução no caso, presididos por um juiz competente em razão da matéria, do território e da hierarquia e sem violação das regras de distribuição dos processos, não tendo, como eles mesmos afirmam, “o direito a escolher o Juiz de Instrução, nem, em todos os casos, de exigir a manutenção de um concreto magistrado.”


Pretendendo os autores que o juiz que presidia à instrução continue a ser o mesmo e não (o) outro que naquele tribunal foi colocado, a questão é a de verificar se em razão do que os autores alegam e decorrente da forma como o alegam, têm um interesse pessoal e direto, assim definido nos termos da lei administrativa, que lhes atribua legitimidade para impugnarem o ato. E é neste sentido que cremos que a possibilidade de quem seja interveniente em processos, v.g. como arguido, poder colocar em causa nesse processo a competência pessoal e funcional do juiz por arguição de impedimentos e suspeições; por não ser o competente ou por violação das regras do juiz natural (inerentes à distribuição e afetação dos processos) não se confunde nem se alarga automaticamente e em legitimidade coincidente ao preenchimento do requisito de um interesse pessoal e direto, necessário para impugnar as deliberações do CSM sobre a colocação e movimento de juízes que venham a ocupar o lugar de titulares desses processos, precisamente porque a exigência de um interesse direto e pessoal, traduzida numa vantagem/desvantagem juridicamente relevante exigida para se ter legitimidade para impugnar os atos identificados, não está presente nas alegações, nos termos em que o exige o art. 55 CPTA que distingue a defesa do interesse pessoal e direto por parte dos particulares e a defesa da legalidade objetiva a cargo do Ministério Público como antes referimos.


Objetivamente e de acordo com o deixado exposto, os atos suspendendos e consistentes nas deliberações impugnadas, de acordo com o alegado, não configuram uma lesão dos direitos e interesses individual e legalmente protegidos dos requerentes (enquanto arguidos num processo que é a qualidade e interesse que invocam) por não terem eles enunciado nessa qualidade qualquer interesse direto e pessoal juridicamente tutelável no movimento de colocação, suspensão e ou substituição dos juízes em razão de se encontrarem estes em comissões de serviço ou por outros motivos. Entendemos que nenhum prejuízo concreto e real, pessoal e direto subsumível no critério do art. 55 nº1 al. a) do CPTA foi invocado ou pode extrair-se das alegações dos autores, sublinhando-se que o processo em que os autores são arguidos, conforme eles mesmo o referem, continuou a ser tramitado sem interrupções decorrentes da mudança da titularidade do juiz.


Como anteriormente se sublinhou a fiscalização da legalidade/ilegalidade objetiva dos atos administrativos está afeta ao Ministério Público e ou aos presidentes dos órgãos colegiais que os tenham praticado (cf. artigos 55.º n.º 1 al. b) e e) e 68.º nº1 al. b) e e) do CPTA), à ação popular, em defesa dos interesses difusos, e às ou entidades mencionadas no artigo 9.º nº 2 do CPTA (artigos 55.º n.º1,al. f) e 68.º nº1, al. f) do CPTA). Por outro lado, a legalidade/ilegalidade com incidência subjetiva (referente um particular concreto) exige a alegação de lesão de um interesse pessoal e direto, de uma desvantagem a que essa ilegalidade tenha dado causa no património jurídico patrimonial do impugnante.


Em síntese, entendendo-se que os requerentes não têm legitimidade para interpor a presente ação por falta de interesse pessoal e direto termos do art. 55 nº1 al. a) do CPTA deve essa exceção julgada procedente e em consequência ser a ré absolvida da instância.


Nas custas observa-se os nos 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, nº 1 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I - A, anexa a este diploma, ficando a cargo dos autores.


Valor da causa para efeitos de custas: € 30.000,01 (n.º 2 do artigo 34.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).


… …


Síntese conclusiva


- Nos termos do art. 267º TFUE, o tribunal nacional pode, sempre que surja alguma dúvida quanto à validade e interpretação do direito da UE, “pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie” através do reenvio Prejudicial.


- O Reenvio Prejudicial tem de reportar a uma questão cuja consulta e decisão preliminar seja necessária para a justa composição do litígio concreto, pressuposto sem o qual não é admissível o reenvio.


- A declaração dos valores estado de Direito da União constante no art. 2º do TUE bem como o art. 47 da CDFUE postulando que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal, não interferem nem reclamam esclarecimentos prévios através do Reenvio Prejudicial para a questão de decidir a legitimidade do impugnante do ato administrativo. Legitimidade que se encontra determinada, em enunciação geral, no art. 30 do CPC e se concretiza na jurisdição administrativa nos art. 9 e 55 do CPTA.


- A impugnação de um ato administrativo depende da legitimidade do impugnante e esta é conferida pelo art. 55 nº1 al. a) do CPTA a quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.


- A invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido não basta para o autor ver reconhecida a legitimidade porque a ilegalidade do ato não é critério legal aferir da legitimidade do autor porque este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue em concreto factos que revelem ser o ato violador, para além de ilegal, lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação.


- O interesse em agir em juízo será “direto” quando o benefício resultante da suspensão/impugnação do ato suspendendo tiver repercussão imediata no interessado de natureza patrimonial ou não patrimonial e será “pessoal” quando a projeção daquela suspensão/impugnação (nulidade/anulação) do ato se refletir de forma juridicamente relevante na própria esfera jurídica do impugnante.


… …


Decisão


Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar procedente a exceção de ilegitimidade dos autores e, em consequência, absolver o réu Conselho Superior da Magistratura da instância.


Custas pelos requerentes


Lisboa, 28 de fevereiro de 2023


Manuel Capelo (Relator)


Maria João Tomé


Rijo Ferreira (Vencido conforme declaração que junto)


Paulo Ferreira da Cunha


Ramalho Pinto


António Gama


Barateiro Martins


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Presidente da secção)





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Declaração de Voto


Subscrevo o acórdão na parte em que indefere o reenvio prejudicial.


No mais fiquei vencido porquanto entendo não se verificar a excepção de ilegitimidade dos Autores, reiterando o entendimento que expressei na declaração de voto que exarei no acórdão proferido nos autos de providência cautelar de suspensão de eficácia apensos (24/22.7YFLSB):

«Entendo que o interesse directo (que diga respeito a acto que seja causa imediata de prejuízo) e pessoal (utilidade concreta imediata) que fundamenta a legitimidade activa (artigo 55º, nº 1, al. a), do CPTA) não se deve cingir, no caso de nomeação, transferência, suspensão ou cessação de funções de magistrados judiciais, unicamente aos “envolvidos nesses concursos, isto é, aos próprios juízes”, antes devendo também abarcar “aquele que, com verosimilhança, aferida pelos termos peticionados, materialmente bem ou mal fundada, invoque a titularidade no seu património jurídico, de um direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido lesado com a prática do ato, retirando da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem, dignas de tutela jurisdicional, no aproveitamento do bem a que aquele direito ou interesse inerem” (acórdão do STJ de 08FEV2021, proc. 8/20.0YFLSB).

(…)

No caso concreto os Requerentes, arguidos em processo penal que corre perante o J… do TCIC, invocam que a deliberação do CSM que ‘suspendeu / retirou’ (por via da suspensão da promoção) o juiz titular daquele lugar (é esta a deliberação impugnada, sendo o demais peticionado meramente consequencial), pôs em causa as suas garantias do juiz natural/legal e da inamovibilidade do juiz, decorrentes da Constituição (artigos 32º, nº 9, 216º e 217º, nº 1) e da lei (artigos 5º, 71º e 107º do EMJ).

Ou seja, alegam a titularidade de um interesse directo, porque referido a um acto que lhe afecta directamente as referidas garantias, e pessoal, porque da revogação (suspensão) de tal situação retiram imediata e concreta utilidade com a reposição do juiz natural/legal.

O que, independentemente do mérito dessa alegação, é desde logo suficiente para assegurar a sua legitimidade activa.»

Rijo Ferreira