Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B470
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO-CAUÇÃO
Nº do Documento: SJ20080403994707
Data do Acordão: 04/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. O contrato de seguro-caução é uma modalidade do contrato de seguro de créditos, que se encontra regulamentado pelo Dec-Lei 183/88, de 24 Maio e reveste a estrutura de um contrato a favor de terceiro.
Seja qual for a sua natureza jurídica, a função do seguro-caução é a de indemnizar o beneficiário, não a de exonerar o tomador do seguro das responsabilidades obrigacionais por si contraídas.
2. A locatária, no caso de incumprimento do contrato de locação financeira, é a principal responsável pela satisfação da indemnização à locadora, enquanto a seguradora surge como responsável perante a locadora pelo pagamento da indemnização quando a locatária incumpre o respectivo contrato.
A garantia da seguradora não está desligada da obrigação base, contrato de locação financeira, neste caso, antes a ela está associada e só após a recusa do tomador em cumpri-la é que a seguradora a satisfará.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório
AA, SA, intentou, a 27 de Setembro de 1996, a presente acção declarativa, com processo ordinário,

contra

- BB, S.A.; e
- CC, SA,

pedindo que:
a- a ré BB seja condenada a devolver-lhe dois veículos automóveis, que lhe locou;
b- ambas as rés condenadas, solidariamente, a pagarem-lhe a quantia de 2.775.047$00, acrescida de juros de mora até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que celebrou contratos de locação financeira, como locadora, com a ré BB, como locatária, incidente sobre dois veículos automóveis, tendo a ré, a certa altura, deixado de pagar as prestações mensais devidas por estes contratos, apesar de solicitada para o efeito, e não tendo devolvido os dois veículos.
E que a ré seguradora lhe garantiu o bom cumprimento dos contratos, mediante contrato de seguro celebrado com a co-ré BB.

Contestou a ré CC para, no essencial, alegar que o objecto do seguro era garantir as obrigações assumidas pelos locatários dos contratos de ..... perante a ré BB e não garantir as obrigações por esta assumidas através dos contratos de locação financeira celebrados com a autora e, subsidiariamente, deduziu reconvenção.

Enquanto a ré BB alegou, sinteticamente, que celebrou contrato de seguro-caução como garantia da totalidade das rendas dos contratos celebrados com a autora e que esta se obrigou a accionar esta caução em caso de incumprimento dos contratos.

Replicou a autora e treplicou a ré seguradora para reafirmarem as posições inicialmente assumidas.

Entretanto a autora reduziu o pedido por um dos veículos lhe ter sido devolvido e desistiu do pedido quanto à devolução do outro veículo, assim como desistiu do pedido quanto à ré CC, tendo também esta desistido do pedido reconvencional, desistências homologadas por sentença.

Após revogada a decisão que declara extinta a instância por a ré BB ter sido declarada falida, foi proferido saneador/sentença no qual a ré BB foi condenada a pagar à autora a quantia de € 15.832,19, acrescida de juros de mora calculados à taxa convencionada desde 27.09.1996 até efectivo e integral pagamento, sobre o capital de € 13.841,88.

Inconformada com o assim decidido, apelou a ré, mas sem sucesso, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa julgado improcedente o recurso, mantendo a sentença que a condenara.

De novo irresignada, recorre agora de revista para este Tribunal, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua absolvição.

A recorrida não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir


II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as extensas conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica, em síntese, no seguinte:

1- Está-se perante dois tipos de seguro-caução directa, em que, num deles, o tomador é o locatário de ..... e beneficiária a BB e, no outro, tomador é a BB e beneficiária a autora.

2- Não obstante isso e apesar de se ter considerado que se está perante uma garantia autónoma on first demand, o acórdão recorrido acabou por não ter em consideração a sua natureza e funcionamento como garantia autónoma, automática, à 1ª interpelação, sendo apenas a seguradora a responsável pela totalidade da dívida.

3- A recorrente, através do seguro de caução directa, transferiu a sua responsabilidade civil contratual resultante do incumprimento, pelo que a seguradora garantiu à autora o pagamento das rendas vencidas e não pagas, bem como das rendas vincendas, pagamento esse que seria efectuado à 1ª interpelação.

4- Face ao incumprimento da recorrente, restaria apenas à autora accionar o seguro de caução directa por forma a ressarcir-se do valor das rendas vencidas e vincendas e, caso a seguradora não honrasse o compromisso, accioná-la, e apenas a ela.

5- Se a seguradora pagasse o estipulado na apólice, ou seja, as rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas, não havia que restituir o veículo à Locapor, pois esta ficava ressarcida, devendo o veículo ser entregue à BB que, por sua vez, o entregaria ao seu Locatário de ......

6- Sob pena de enriquecimento sem justa causa, por parte da autora, que, em relação ao primeiro veículo, pelo menos, já desde 01.01.18 está na sua posse, pelo que há muito terá transmitido a propriedade do mesmo, com as consequentes mais valias.

7- Daí que a “confiança” transmitida pela autora à recorrente impediria a restituição dos veículos objecto dos contratos de leasing, pelo que a autora agiu em manifesto abuso de direito.


B- Face ao teor das conclusões formuladas a verdadeira questão a decidir reconduz-se, no essencial, a saber se a autora/recorrida podia exigir da ré/recorrente as rendas vencidas e não pagas

III. Fundamentação

A- Os factos

Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

1- A autora dedica-se à actividade de locação financeira mobiliária, enquanto a ré “BB-, S.A” se dedica à venda de veículos em regime de aluguer de longa duração.

2- Em 23.01.1992, a autora e a ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” celebraram um contrato de locação financeira mobiliária, nos termos do qual a primeira, além do mais, declarou que se obrigava a adquirir um veículo automóvel de marca “Citroen”, modelo “AX 14 D”, com a matrícula..........., e a conceder-lhe o seu gozo e a vender-lho, caso o quisesse, findo o período de locação; declarou a segunda, além do mais, que pagaria à autora 12 rendas, no montante de esc: 134.312$00 (a acrescer Iva) cada, com periodicidade trimestral, conforme consta do documento de fls. 15 e segs. dos autos.

3- Em 13.03.1992, a autora e a ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” celebraram um contrato de locação financeira mobiliária, nos termos do qual a primeira, além do mais, declarou que se obrigava a adquirir um veículo automóvel de marca “Ford”, modelo “Fiesta 1.1 CLX”, com a matrícula ......... e a conceder-lhe o seu gozo e a vender-lhe, caso o quisesse, findo o período de locação; declarou a segunda, além do mais, que pagaria à autora 12 rendas, no montante de esc: 158.192$00 (a acrescer Iva) cada, com periodicidade trimestral, conforme consta do documento de fls. 21 e segs. dos autos.

4- Nos acordos celebrados entre autora e ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” foi, ainda, convencionado que, em caso de não pagamento pontual de quaisquer quantias devidas por força deste contrato, seriam devidos juros de mora, calculados à taxa de juro aplicável as operações bancárias com prazo superior a 180 dias divulgada pela Associação Portuguesa de Bancos, acrescida da sobretaxa máxima de mora que estivesse em vigor, desde a data do seu vencimento até à data do seu efectivo pagamento, se outra superior não fosse legalmente aplicável, sem prejuízo do direito que cabia à AA de resolver o contrato.

5- O contrato subscrito em 23.01.1992 atingiu o seu termo em 18.03.1995 e o contrato subscrito em 13.03.1992 em 16.03.1995.

6- Em relação ao contrato subscrito em 23.01.1992, a ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” não pagou à autora as rendas vencidas em 16.06.1994 a 16.12.1994, no valor total de esc: 452.133$00.

7- E relativamente ao contrato subscrito em 13.03.1992, não pagou à autora as rendas vencidas em 16.06.1994 a 16.03.1995, no valor total de esc: 2.322.914$00.

8- A ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” destinou os veículos objecto dos contratos de locação financeira a aluguer de longa duração.

9- A “CC, S.A” emitiu o seguro do ramo “caução directa”, titulado pelas apólices de fls. 27 e fls. 29 dos autos, figurando como tomador do seguro “BB-Comércio de Automóveis, S.A”, como beneficiário a autora, e tendo por objecto da garantia o “pagamento de 72 rendas trimestrais no valor de esc: 1.614.540$00 referente ao veículo Citroen Ax –...........” e o “pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de esc: 1.901.592$00 referentes ao veículo Ford Fiesta 1.1—...........”, respectivamente.

10- A ré “BB-Comércio de Automóveis, S.A” foi declarada em estado de falência por decisão transitada em julgado em 05.12.2002.


B- O direito

1.1- Sustenta a recorrente que, sendo o seguro-caução uma garantia autónoma, automática, à primeira interpelação, não podia, atenta a sua natureza jurídica, diferente da da fiança, ser condenada a satisfazer as quantias em dívida, assumindo a seguradora a totalidade da responsabilidade por essas quantias.
No acórdão recorrido adoptou-se o entendimento de que a obrigação assumida pela seguradora é tão só acessória daquela a que se acha vinculada a recorrente, não se traduzindo numa assunção exoneratória da dívida de molde a excluir a responsabilidade desta para com a recorrida.

Está assente que, entre a recorrente e a ré/seguradora, foi celebrado um contrato de seguro-caução directa, mediante o qual esta garantia, em caso de incumprimento por aquela, à primeira solicitação, o pagamento das rendas atinentes a dois contratos de locação financeira que ela celebrara com a autora/recorrida.
O contrato de seguro-caução é uma modalidade do contrato de seguro de créditos, que se encontra regulamentado pelo Dec-Lei 183/88, de 24 Maio.
Esta modalidade de seguro caracteriza-se pela natureza do risco coberto, abrangendo apenas o risco de incumprimento temporário ou definitivo de obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval -art. 6° do citado Dec-lei 183/88. A obrigação de indemnizar por parte da seguradora limita-se à própria quantia segura -art. 7° do mesmo diploma. E o contrato é celebrado entre a empresa seguradora e o devedor da obrigação a garantir ou o contragarante, a favor do respectivo credor -art. 9°, nº 2.
O contrato de seguro-caução reveste a estrutura de um contrato a favor de terceiro, consubstanciado, como se afirma no ac. STJ, de 2006/02/09(1), numa tríplice relação, entre o tomador do seguro e o beneficiário, designada por relação de valuta, entre a seguradora e o tomador do seguro, caracterizada por relação de cobertura, e entre a seguradora e o beneficiário, definida por relação de prestação.

Através do contrato de seguro, a seguradora assume determinado risco e, caso este ocorra, obriga-se a satisfazer ao segurado ou a um terceiro, indemnização pelo prejuízo causado.
Seja qual for a sua natureza jurídica, a função do seguro-caução é a de indemnizar o beneficiário, não a de exonerar o tomador do seguro das responsabilidades obrigacionais por si contraídas.
A locatária, no caso de incumprimento do contrato de locação financeira, é a principal responsável pela satisfação da indemnização à locadora, enquanto a seguradora surge como responsável perante a locadora pelo pagamento da indemnização quando a locatária incumpre o respectivo contrato.
Com a celebração do contrato de seguro-caução a locatária não se liberta da sua obrigação para com a locadora, que subsiste, e a seguradora associa-se a esta para garantir e, consequentemente, suportar a responsabilidade perante a locatária.
Segundo Mónica Jardim,(2) mesmo que um específico seguro-caucão seja uma garantia de cumprimento e mesmo que essa garantia seja ressarcitória e autónoma face à obrigação garantida, nunca se confundirá com o contrato de garantia autónoma.
Na verdade, o direito de indemnização nasce com a comprovação do incumprimento do contrato por parte do tomador do seguro.

Ora, ressalta das Condições Gerais dos contratos em análise (arts. 2º e 11º) que a seguradora assumiu a obrigação de indemnizar os prejuízos causados, resultantes do incumprimento, até ao limite da quantia segura. E o direito à indemnização do beneficiário nasce quando, verificado o incumprimento, interpelado o tomador para satisfazer a prestação se recuse injustificadamente a fazê-lo.
A garantia da seguradora não está desligada da obrigação base, contrato de locação financeira, neste caso, antes a ela está associada e só após a recusa do tomador em cumpri-la é que a seguradora a satisfará.

Na situação vertente, a recorrente não pagou várias prestações de cada um dos contratos de locação financeira celebrados com a recorrida. E como responde perante a locadora pelo incumprimento do contrato de locação financeira como principal pagadora, carece de fundamento a pretensão da recorrente de que o seguro-caução a libertou do pagamento das quantias aqui reclamadas pelo incumprimento dos contratos celebrados com a recorrida.
É este, aliás, o entendimento que, de modo pacífico, este Tribunal vem adoptando nas inúmeras acções em que a recorrente vem sendo demandada.


1.2- Defende ainda a recorrente que se a seguradora pagasse as rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas, não havia que restituir o veículo à Locapor, sob pena de enriquecimento sem justa causa, por parte da autora.
Diga-se, em primeiro lugar, que não foi decretada a devolução dos veículos à autora, desde logo porque essa restituição ocorreu no decurso da acção; depois, que a recorrente não foi condenada em rendas vincendas; finalmente, foi livremente convencionado que os veículos locados seriam restituídos à locadora no termo dos contratos, se a locatária não optasse pelo direito de compra pelo valor residual.
Não se vislumbra, por isso, que, no caso concreto, tenha ocorrido qualquer enriquecimento ilegítimo da recorrida à custa da recorrente. É que as rendas vencidas respeitavam à retribuição acordada pela locação dos veículos. E como o direito de propriedade destes veículos não saiu da esfera da locadora por a locatária não ter chegado a exercer a opção de aquisição desse direito, não se verificou qualquer deslocação patrimonial indevida da esfera desta para a daquela.


1.3- Do mesmo modo, também se não descortina qualquer actuação abusiva por parte da recorrida.
Como já se deixou referido, foi estipulado que os veículos locados seriam restituídos à locadora no termo dos contratos, se a locatária não optasse pelo direito de compra pelo valor residual.
Para além dos veículos terem sido restituídos no decurso da acção, sabia a recorrente que esses veículos apenas lhe pertenceriam se, no final do contrato, optasse pelo direito de compra, o que não aconteceu. E não foram alegados factos que sustentem a afirmação de que a actuação da locadora foi no sentido de lhe fazer crer que não exigiria essa restituição se o direito de compra não fosse accionado.

Justificada se mostra, pois, a condenação da recorrente no pagamento das quantias devidas pelo incumprimento do contrato celebrado com a autora/recorrida, pelo que o recurso terá que improceder.


IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.
Fixa-se em 9,00 unidades de referência os honorários devidos ao patrono da ré BB, subscritor das alegações de recurso de revista, de acordo com o art. 16º, nº 1, al. b) da Lei 34/2004 de 29/7 e nº 1.3.1 da Tabela Anexa à Portaria nº 1386/2004, de 10/11.



Lisboa, 03 de Abril de 2008
Alberto Sobrinho (relator)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lázaro Faria
__________________________
(1)- processo nº 06B024, in www.dgsi.pt/jstj.
(2)- in A Garantia Autónoma, pág. 237