Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
659/16.7T8VNG.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INTERPOSIÇÃO REAL DE PESSOAS
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
SIMULAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / MANDATO / MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO / MANDATÁRIO QUE AGE EM NOME PRÓPRIO.
Doutrina:
- A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2017, p. 66;
- Beleza dos Santos, A simulação no Direito Civil, 2.ª Edição, São Paulo: Lejus, 1999 p. 222.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1180.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-05-2002, RELATOR ARAÚJO DE BARROS;
- DE 09-10-2014, PROCESSO N.º 199/03.4TBAVS-A.E2.S1;
- DE 03-12-2015, PROCESSO N.º 2936/07.9TBBCL.G1.S1.
Sumário :

I - O acordo encetado entre o autor e a ré, segundo o qual a ré adquiria para si um imóvel e um veículo e se obrigava a transmitir a propriedade ao autor quando este o solicitasse, configura um caso de interposição real de pessoas, reconduzível ao mandato sem representação.
II - Não sendo caso de simulação, improcede o pedido principal de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda celebrados pela ré – art. 1180.º do CC.
III - O reconhecimento de que a ré adquiriu o imóvel e o veículo para si, em consequência de um mandato sem representação e com dinheiro do autor, determina a improcedência dos pedidos subsidiários de o autor se ver reconhecido o direito de propriedade por efeito de sub-rogação de valores próprios ou por efeito de ter adquirido tais bens.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


1. AA intentou a presente acção declarativa comum contra BB pedindo:

A) OS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA OUTORGADOS PELA RÉ PARA AQUISIÇÃO DA FRACÇÃO DESIGNADA PELA LETRA “AZ” DO PRÉDIO CONSTITUIDO EM PROPRIEDADE HORIZONTAL SITO NA RUA ..., DA UNIÃO DE FREGUESIAS DE ... E ..., CONCELHO DE VILA NOVA DE GAIA INSCRITO NA MATRIZ URBANA SOB O ARTIGO 7796 DA DITA UNIÃO DE FREGUESIAS E DESCRITO NO REGISTO SOB O Nº 137 DA FREGUESIA DE ..., BEM COMO DO VEÍCULO AUTOMÓVEL COM MATRICULA ...-GJ-..., MARCA FIAT, SER DECLARADOS NULOS POR SIMULADOS E AINDA DECLARADOS VÁLIDOS OS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA (DISSIMULADOS) DO MESMO IMÓVEL E DO MESMO VEÍCULO AUTOMÓVEL, PELO AUTOR.

B) SER CANCELADO O REGISTO DE AQUISIÇÃO DA SOBREDITA FRACÇÃO AUTÓNOMA A FAVOR DA RÉ, PELA AP. 2094 DE 2010/11/05 DA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE MAFRA E AINDA O REGISTO DE AQUISIÇÃO DO VEÍCULO ...-GJ-... TAMBÉM A FAVOR DA RÉ;

C) SER AVERBADO O REGISTO DE AQUISIÇÃO A FAVOR DO AUTOR DA SOBREDITA FRACÇÃO DESIGNADA PELAS LETRAS “AZ” E DO VEÍCULO AUTOMÓVEL ...-GJ-....

SEM PRESCINDIR E POR MERA CAUTELA DE PATROCINIO,

D) SEMPRE DEVERÁ O AUTOR SER DECLARADO O LEGITIMO DONO E PROPRIETÁRIO DA SOBREDITA FRACÇÃO DESIGNDADA PELAS LETRAS “AZ” E DO VEÍCULO AUTOMÓVEL ...-GJ-..., SEJA POR EFEITO DE SUB-ROGAÇÃO DE VALORES PROPRIOS DO AUTOR, SEJA POR RECONHECIMENTO DE QUE TAIS BENS FORAM ADQUIRIDOS POR SI E NÃO PELA RÉ, E CONSEQUENTEMENTE DEVERÁ SER ORDENADO O CANCELAMENTO DO REGISTO DE AQUISIÇÃO DA SOBREDITA FRACÇÃO AUTÓNOMA A FAVOR DA RÉ, PELA AP. 2094 DE 2010/11/05 DA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE MAFRA E AINDA O REGISTO DE AQUISIÇÃO DO VEÍCULO ...-GJ-... TAMBÉM A FAVOR DA RÉ E AINDA AVERBADO O REGISTO DE AQUISIÇÃO A FAVOR DO AUTOR DA SOBREDITA FRACÇÃO DESIGNADA PELAS LETRAS “AZ” E DO VEÍCULO AUTOMÓVEL ...-GJ-....”.
Alegou, em síntese, que viveu em união de facto com a Ré entre Janeiro de 2004 e finais de 2012, sendo que, para salvaguardar o seu património de eventuais execuções judiciais decorrentes de dívidas contraídas no âmbito de um negócio de trespasse que havia celebrado, transferiu os saldos de depósitos bancários de que era exclusivo titular e proprietário para uma conta bancária aberta unicamente em nome da Ré, tendo depois adquirido uma fracção autónoma e um veículo automóvel com os fundos provenientes desses depósitos bancários; bens esses que ficaram na titularidade exclusiva da aqui Ré, por acordo com esta, de forma a subtraí-los de eventuais penhoras por parte dos seus credores. Mais alega que, aquando da aquisição dos referidos imóvel e veículo automóvel, a Ré sabia (e confessou-o já no âmbito de processos judiciais) que o dinheiro que serviu para pagamento dos respectivos preços pertencia exclusivamente ao Autor, tendo acordado com este que os transferiria para seu nome logo que tal lhe fosse solicitado; o que não cumpriu.
           A Ré contestou, essencialmente alegando que o preço da aquisição do veículo automóvel e do imóvel foi pago com dinheiro exclusivamente seu (resultante da venda de bens que detinha no Brasil), impugnando a factualidade vertida na petição inicial.

2. Foi realizada a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador com indicação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamações – cfr. acta de fls. 124 a 126.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades legais, conforme consta das respectivas actas.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a Ré BB dos pedidos contra ela formulados pelo Autor AA.

Inconformado com a decisão, dela interpôs o A., ora recorrente, recurso per saltum para o STJ.

3. Das conclusões do recurso, consta (transcrição):

“DO PEDIDO PRINCIPAL,

1.ª) Perante os factos julgados provados, a Merª Juiz a quo considerou que a Ré BB figurou nos negócios em questão como mera testa de ferro ou homem de palha do aqui recorrente, este sim o verdadeiro interessado na aquisição daqueles bens (imóvel e a viatura), a qual só figurou formalmente nos contratos para que os credores não executassem esse património e que a ré nunca teve intenção de assumir o domínio sobre os referidos bens.

2.ª- Mostram-se assim preenchidos dois dos elementos que caracterizam a simulação - a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, e ainda a intenção de enganar e aqui também prejudicar terceiros (credores do autor). Todavia, considerou a Merª Juiz a quo que faltou comprovar que a entidade vendedora (quer do imóvel, quer do veículo automóvel em apreço) tivesse participado no conluio, no acordo simulatório.

3.ª) Chegados aqui, e não desconhecendo a divergência da nossa doutrina e jurisprudência, quanto a esta questão em concreto, que aliás a Merª Juiz a quo reconheceu e citando na douta sentença recorrida acórdãos dissonantes, entendemos ao contrário desta, que in casu para se decretar a simulação dos negócios, não é necessário a intervenção dos vendedores (do imóvel e do veículo automóvel) no acordo simulatório (conluio), ou seja a exigência de um «acordo simulatório tripartido».

4.ª) Dito isto, nesta questão em particular, e por a situação factual ser em tudo semelhante à dos presentes autos, acompanhamos de perto o entendimento sufragado pelos Calendas Juízes Conselheiros Orlando Afonso (relator), Távora Victor e Silva Gonçalves no acórdão deste Mais Alto Tribunal, datado de 03/12/2015, no processo 2936/07.09TBBCL.G1.51, publicado in www.dgsLpt., que citamos nas nossas alegações.

5.ª) Voltando ao nosso caso, entre outros, deu-se como provado que: ( ... )
15 - Estando a ré na detenção das sobreditos quantias e vivendo maritalmente com o autor, este utilizou aqueles fundos para adquirir a fracção designada pela letra "AZ", do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz urbana sob o artigo 77962 da União de Freguesias de ... e de ..., que corresponde ao prédio anteriormente inscrito na matriz urbana sob o artigo 49692 da freguesia de ... e descrito na 2Q conservatória do registo predial de ... sob o n.º 1372 da freguesia de ..., bem como do veículo automóvel "Fiat Línea" com matricula ...-GJ-..., de 2008;
16 - Tais aquisições ficaram tituladas em nome da ré, mediante a promessa desta em os colocar em seu nome logo que o autor o solicitasse;
17 - Aquele veículo Fiat línea" e a fracção sita na Rua ... (Gaia) foram adquiridos pelo autor com o seu dinheiro, embora colocados em nome da ré; (. . .)
23 - Dinheiro (depositado na conta detida exclusivamente pela ré), esse, que serviu para pagamento do preço, despesas e impostos inerentes à aquisição da sobredita fracção designada pela letra “AZ", do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ... Vila Nova de Gaia, bem como do veículo automóvel "Fiat Línea" com matricula ...-GJ-...;
24 - Com intuito de enganar os eventuais credores do autor, mais propriamente a sociedade "Lavazza”;
25 - A ré sabia que, para além do dinheiro que serviu de pagamento dos preços e despesas inerentes à aquisição do sobredito veículo e imóvel pertencer exclusivamente ao autor, foi o autor quem pretendeu adquirir aqueles bens para si, integrando-os no seu património;
26 - Apesar disso, a ré declarou nos documentos que titulam a aquisição daqueles bens que os adquiriu para si- quando assim o não pretendia;
27 - Os ditos bens foram adquiridos pelo A., com o seu próprio dinheiro, limitando-se a Ré a figurar como adquirente.

6.ª) Pelo que concluímos, tal e qual os Calendas Juízes Conselheiros que daqui não se pode retirar como o fez a Merª Juiz a quo que os negócios jurídicos simulados eram de todo alheios às entidades vendedoras e, mesmo que o fosse, o acordo simulatório entre o autor e a Ré é bem patente.

7.ª) No caso do imóvel, é tão patente o acordo simulatório, que era do conhecimento do mediador imobiliário, o Sr. CC, representante da vendedora, que interveio no negócio da aquisição do imóvel, como resulta da douta motivação da decisão da matéria de facto quando se escreveu: “ (…) Já a testemunha CC, que foi mediador do negócio de compra e venda do apartamento de ...', em Vila Nova de Gaia, foi categórica em afirmar que mostrou aquele imóvel ao Autor e Ré, tendo sido sempre o Autor quem tratou de todas as questões respeitantes a este negócio (foi ele quem o contactou para ver a fracção, quem negociou o preço, quem colocou todas as questões respeitantes à mesma, etc.). Também mencionou que, naquela visita à fracção, o Autor lhe transmitiu que era ele quem estava a adquirir o apartamento e que era ele quem o iria pagar com dinheiro exclusivamente seu (embora depositado numa conta bancária titulada unicamente pela Ré), mas que a aquisição ficaria em nome da Ré porque tinha um litígio com uma empresa de café e não podia ter bens em nome de/e. Disse ainda que a Ré estava presente e assistiu a esta conversa, não tendo esboçado qualquer reacção de surpresa ou desagrado com estas declarações do Autor".

8.ª) Por outro lado, como é de experiência comum, no caso de veículo automóvel a pessoa do adquirente é completamente indiferente para a entidade vendedora (concessionário da Flat), pois o que lhe interessa é que o (a) pretendente tenha dinheiro para pagar o valor que peticiona pela venda do mesmo. E, transmite o carro a favor de quem lhe pedem, seja ele o verdadeiro proprietário ou não. O que lhes interessa é que no momento da entrega do veículo, se apresentem com o dinheiro para pagar, o resto (a favor de quem fica averbado o veículo, quem efectivamente suportou o pagamento do preço, etc.) isso é-lhes totalmente indiferente.

9.ª) E, em relação ao imóvel, tudo se passou da mesma forma. O acordo e as negociações foram realizados entre o autor e o Sr. CC, na presença da Ré e não com a vendedora. Esta (vendedora), limitou-se a comparecer no dia da outorga da escritura pública, para assinar e receber o preço da venda do imóvel, desconhecendo quem era o comprador, sendo-lhe indiferente quem efectivamente pagou e a favor de quem ela transmitiria o imóvel. Tais factos que eram do conhecimento do mediador imobiliário, a quem aquela confiou a venda do seu bem, eram todavia indiferentes para si, figurasse o autor, a Ré, ou mesmo outra pessoa. O que lhe interessava era receber o valor que fixou  para a venda do imóvel e que o autor aceitou.

10.ª) Este facto, não pode de forma alguma, "desconsiderar" o acordo simulatório, até porque como consideraram os Colendos Juízes Conselheiros, no acórdão atrás citado:

"E não se diga que é inexistente a simulação por a vendedora do imóvel não estar ao corrente do acordo simulatório. Em primeiro fugar não é necessário que todos os intervenientes num dado negócio façam parte do "pactum simutattonis" e por outro, como afirmamos supra contraparte não é necessariamente o destinatário da declaração negocial".

11.ª) Neste caso, a contraparte foi o próprio mediador imobiliário, Sr. CC, a quem foi confiado o negócio pela vendedora, que teve conhecimento de que quem efectivamente estaria a comprar o imóvel era o Autor e não a Ré, com dinheiro que era seu exclusivamente e que com isso pretendiam evitar futuras penhoras por parte dos credores do autor, mais propriamente da Lavazza.

12.ª) Pois, foi com ele que trataram e negociaram a aquisição do imóvel aqui em apreço. A vendedora, o Autor e a Ré, só a conheceram no dia da outorga da escritura de compra e venda, como se disse e como sucede em tantos outros casos. Para a vendedora é indiferente, quem compra, até porque não os conhecia, um e outro. O seu único interesse é receber o valor do preço em contrapartida pela transmissão do imóvel.

13.ª) Logo, estando comprovada a existência de uma divergência intencional, enganosa e bilateral entre a vontade real e a vontade declarada e a interposição fictícia da ré no negócio que deu origem a uma falsidade ideológica ou intelectual na escritura, é o suficiente para se afirmar que ocorreu uma simulação subjectiva e fraudulenta e consequentemente, ser declarado nulo o negócio simulado e válido o negócio dissimulado, como o autor peticiona nos presentes autos, procedendo-se subsequentemente aos respectivos cancelamento e averbamentos no registo predial e automóvel dos bens a favor do Autor.

14.ª) Também divergimos do douto entendimento sufragado pela Merª Juiz a quo quanto ao facto de o negócio dissimulado (real), seria também nulo, por preterição da forma legalmente exigida, uma vez que não resulta exarada na escritura de compra e venda qualquer vontade do autor de adquirir aquele imóvel.

15ª) Desde logo, este entendimento não é aplicável à aquisição do veículo automóvel que sendo um bem móvel sujeito a registo, poderá ser efectuado como foi, por simples declaração verbal, pelo que o requisito da forma neste caso não foi preterido.

16.ª) E, salvo o devido respeito por melhor opinião, tal entendimento contraria a nossa doutrina maioritária, vide Manuel de Andrade, Pires de Lima e Antunes Varela, in comentário ao artigo 241º do Código Civil Anotado, pago 228, VoI. I, 4ª edição, que considera que, tendo sido cumprida a "solenidade formal" quanto ao contrato de compra e venda, é o negócio real (dissimulado) válido e eficaz, nos termos do disposto no artigo 241º do Código Civil,

17.ª) Outro entendimento é esvaziar o preceituado no artigo 241º do Código Civil e manter na ordem jurídica um negócio fraudulento, que o nosso legislador pretende de todo afastar.

18.ª) De todo o modo, sempre seriam os negócios celebrados entre a Ré e as entidades vendedoras, simulado, por aquela nunca ter pretendido adquirir aqueles bens, muito menos utilizou o capital próprio para pagar os respectivos preços, e que quem efectivamente pagou e pretendeu adquirir os bens, como foi sobejamente comprovado, foi o autor,

19.ª) Sendo nulos os negócios simulados (simulação relativa) - entre a Ré e as entidades vendedoras, os mesmos não produzem qualquer efeito, devendo ser restituído tudo o que foi prestado pelas partes, com efeitos retroactivos, como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 240.º, artigo 286.º, 289.º, todos do Cód. Civil.

20.ª) E, consequentemente deverão ser averbados os cancelamentos dos registos de propriedades sobre o imóvel e o veículo automóvel em questão a favor da Ré

21.ª) Finalmente sempre se diz, que ao contrário do doutamente decidido na sentença recorrida, a Ré não agiu com mandato sem representação do Autor ou ainda por interposição real, pois aquela apenas figurou como adquirente (vide nº 26 e 27 da matéria de facto julgada provada), logo simulação subjectiva do sujeito (adquirente), não tendo aqui aplicação as regras do mandato sem representação, como aí se sugere, nomeadamente com o pedido a formular pelo autor em ver "condenada a Ré a transferir para este a posição contratual emergente dos contratos de compra e venda do imóvel e do veículo, sob eventual cominação de uma sanção pecuniária compulsória".

- DO PEDIDO SUBSIDIÁRIO,

22.ª) A Merª Juiz a quo, em síntese, decidiu que não se pode fazer aplicação analógica do disposto na al, c) do art.º 1723.º do Cód. Civil, por a união de facto entre duas pessoas, não ser, por si só gerador de direitos patrimoniais relativamente aos bens adquiridos na sua constância, não se podendo falar património comum.

23.ª) Todavia, entendemos aqui que não se trata de equiparar o regime de bens entre cônjuges aos unidos de facto. Bem sabemos da diferença de tratamento do regime de bens, num caso e no outro. Existe diferentes regimes de bens no primeiro caso e no outro este (regime de bens) é inexistente.

24.ª) Trata-se de reconhecer, em conformidade com os factos julgados provados, que os bens em apreço foram adquiridos com o capital próprio do autor e só ele os pretendeu adquirir. E, não havendo norma específica para regular estes casos (afastada a hipótese de simulação de negócios), pensamos que analogicamente será de se aplicar o disposto na al. c) do citado artigo 1723.º do Cód. Civil,

25.ª) Que não tendo aplicação directa, como se viu, mas em casos de omissão como este, como por todos será reconhecido, pode-se lançar mão deste instrumento (analogia) como permite e impõe o n.º 1 do artigo 10.º do Cód. Civil, para integração das lacunas da lei.

26.ª) Embora com regimes diferentes as relações entre cônjuges e os unidos de facto, são muito semelhantes ou análogos, tanto assim que no ponto 1 da matéria de facto julgada provada, se escreveu: "O autor e a ré viveram em condições análogas às de marido e mulher de 23.01.2004 até finais de 2012/1

27.ª) Na verdade, os bens aqui em apreço, foram adquiridos na vigência da união de facto, com valores que pertenciam exclusivamente ao autor e a nossa mais recente jurisprudência, vem considerando que existindo omissão no título aquisitivo das menções constantes do disposto na al. c) do art.º 1723.ºdo Cód. Civil, não fica o cônjuge (dono exclusivo dos meios utilizados na respectiva aquisição) impedido de provar por qualquer meio, que os mesmos foram adquiridos apenas com dinheiro próprio, neste sentido cita-se o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 12/2015, publicado no DR nº 200/2015, série I de 13.10.2015, onde se decidiu:

«Estando em causa apenas os interesses dos conjugas, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art.º 1723..º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal»

28) Ora voltando ao caso em apreço, provou-se que tais bens ora reivindicados foram adquiridos com o dinheiro do Autor, logo, estando o A. e Ré a viver em união de facto há época em que foi adquirido o dito veículo e a dita fracção, sendo diferente o tipo de relações patrimoniais estabelecidas entre cônjuges e os unidos de facto, mormente por inexistência de regime de bens,

29) Por analogia, entendemos que também aqui seja admitido ao A. fazer prova que aqueles bens adquiridos na pendência da união de facto, o foram com dinheiro próprio, e sendo próprios como foram, aplicando-se analogicamente o disposto na al. c) do art.º 1723.º do Cód. Civil, aqueles bens serão bens próprios do A., como este aqui reclama, devendo consequentemente ser cancelados os registos de aquisição a favor da Ré e averbados a favor do autor, aqui recorrente.

30.a) - A douta decisão aqui em crise violou o disposto no art.º 240.º, 241.º, 242.º, 286.º, 289.º, 1723.2, al. a), ex vi n.º 1 do art.º 10.º, todos do Cód. Civil .

Nestes termos e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dada provisão ao presente recurso e, consequentemente revogada a douta sentença aqui em crise, substituindo-se por outra que declare os pedidos formulados pelo Autor, provados e procedentes, com as demais consequências legais com o que se fará JUSTiÇA!”


II – FUNDAMENTAÇÃO

4. Com interesse para a decisão da causa, o Tribunal considerou provados os seguintes factos:

1 - O autor e ré viveram em condições análogas às de marido e mulher de 23.01.2004 até finais de 2012;

2 - A ré desde que chegou a Portugal e passou a viver maritalmente com o autor, nunca auferiu qualquer rendimento em Portugal;

3 - A ré veio para Portugal, tendo sido acolhida pelo autor na sua casa, em consequência de um relacionamento que teve início no Brasil, após uma viagem turística do autor;

4 – A ré, enquanto viveu maritalmente com o autor, este sempre suportou todas as despesas daquela;

5 – A ré apresentou denúncias junto da GNR de Miranda do Douro contra o aqui autor, por violência doméstica, a 07.09.2012, e a 12.03.2013 prestou declarações em sede de inquérito judicial, perante funcionário judicial, no processo-crime nº 219/13.4PAVNG, que correu termos no 1º Juízo Criminal do Extinto Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, procedimento crime do qual o autor veio a ser absolvido da acusação formulada;

6 - Em dezembro de 2012, a Ré, sem qualquer comunicação, aproveitando que o Autor havia-se deslocado à sua terra natal em ..., onde detinha uma habitação secundária, viajou para o Brasil, retirando do interior da habitação do A. os seus pertences pessoais (roupas, fotografias, documentos particulares, escritura públicas, extractos bancários, computador);

7 - O autor, em 2005, estando já a viver maritalmente com a ré, sendo militar da GNR reformado, adquiriu por trespasse um estabelecimento comercial destinado a café e snack-bar, na Rua ..., utilizando parte das economias que foi fazendo ao longo da sua vida;

8 - Com o dito trespasse o autor subscreveu uma letra em branco, na qualidade de aceitante, em que era sacadora a sociedade cafeeira “..., SA” (actualmente incorpora a sociedade “...., SA”), para garantia do bom cumprimento de um contrato de fornecimento;

9 - Com a assinatura de tal contrato, o autor teria de consumir no seu estabelecimento uma quantidade mínima de 2016 Kg de café, no período de 84 meses;

10 - Por a exploração do dito estabelecimento ser deficitária, após acumular diversos prejuízos, o autor, em 2006, trespassou o dito estabelecimento a DD, que por sua vez o veio a trespassar a EE e FF, na condição dos mesmos manterem e cumprirem com o contrato com a “...”;

11 - Aqueles cessionários acabaram por fechar o estabelecimento, a senhoria resolveu o contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas e o imobilizado foi penhorado para pagamento de dívidas contraídas por aqueles cessionários;

12 – A responsabilidade do autor perante a “...”, que ascendia a milhares de euros, veio a ser regularizada em 2014;

13 - Adivinhando-se a interposição de execuções e consequentes penhoras para garantia do crédito da “...” e vivendo o Autor e Ré em união de facto, até àquela data sem conflitos, o autor transferiu os valores depositados em instituições bancárias (titulados unicamente em seu nome) para a conta aberta unicamente em nome da ré, evitando assim o risco de futuras penhoras;

15 - Estando a ré na detenção das sobreditas quantias e vivendo maritalmente com o autor, este utilizou aqueles fundos para adquirir a fracção designada pela letra “AZ”, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz urbana sob o artigo 7796º da União de Freguesias de ... e de ..., que corresponde ao prédio anteriormente inscrito na matriz urbana sob o artigo 4969º da freguesia de ... e descrito na 2ª conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 137º da freguesia de ..., bem como do veículo automóvel “Fiat Línea” com matricula ...-GJ-...., de 2008;

16 - Tais aquisições ficaram tituladas em nome da ré, mediante a promessa desta em os colocar em seu nome logo que o autor o solicitasse;

17 - Aquele veículo “Fiat Línea” e a fracção sita na Rua ... (Gaia) foram adquiridos pelo autor com o seu dinheiro, embora colocados em nome da ré;

18 – A Ré prestou as seguintes declarações no âmbito do processos-crime aludido em 5. e outros:

a) Na denúncia apresentada a 3.2.2013 junto da PSP – esquadra de Vila Nova de Gaia – processo NUIPC 219/13.4PAVNG: “…Devido à situação relacionada com a aquisição do estabelecimento comercial de cafetaria supra referido, tem-se visto envolvida em esquemas por parte do companheiro, que a todo custo tenta solucionar o problema, alegando a vitima que aquele colocou o apartamento sito na Rua ..., bem como uma viatura de marca Fiat, modelo línea, em seu nome”;

b) No auto de notícia de 7/9/2012 no NUIPC 187/12.0GAMGD perante da GNR em ...: “…A discussão foi originada pelo registo da viatura de matrícula ...-GJ-..., ligeiro de passageiros de marca/modelo Fiat Línea, sendo que esta, apesar de ter sido paga pelo denunciado, encontra-se matriculado em nome da Denunciante, pois à data da compra o Denunciado não quis registar o veículo, pois estava com problemas por causa da compra de um estabelecimento denominado de “Salão de Chá da ...”, sito na Rua...”;

c) Na inquirição de 12.03.2013 nos Serv. Min. Público de V.N.Gaia – proc. 219/13.4PAVNG: “ …informada neste Tribunal de vila Nova de Gaia da referida execução, a depoente veio a saber que tal se devia a um cheque no valor de 45.000,00 que, em 2009, passou em nome do denunciado para que ele, em caso de morte da declarante, pudesse levantar esse dinheiro que se encontrava no banco em seu nome. No entanto, em 2010, a depoente adquiriu um imóvel nesta comarca de Vila Nova de Gaia, tendo-o pago com aquela verba, tendo em seguida encerrado a referida conta bancária. Toda esta situação era do conhecimento do denunciado, o qual inclusivamente pagou a respectiva escritura pública, sendo ainda certo que, não obstante a sugestão da depoente para que ele fosse nomeado usufrutuário vitalício do imóvel, ele recusou, tendo ele ainda dito á declarante que havia rasgado o cheque…”;

19 - O autor, prevenindo-se de eventuais penhoras sobre a sua própria habitação, que se encontrava, à data, livre de quaisquer ónus ou encargos, deu-a de hipoteca para garantia de empréstimo contraído, em 19 de Janeiro de 2006, junto do “Banco Investimento Imobiliário, SA”;

20 - O capital mutuado pela dita instituição, no valor de 75.000,00€, foi creditado a 21.01.2006 na conta nº... que o autor detinha no Millennium BCP e que o autor aplicou no mesmo dia (por meio de cheque bancário nº ...) em PPR BPN Vida, titulado pela apólice nº 54/16384;

21 - Posteriormente, a 25.10.2006, o autor resgatou a dita apólice de seguro (PPR) 54/16384 e depositou, a 27.10.2006, o cheque nº... sacado sobre o BPN que titulava o reembolso de tal resgate, no valor de 76.035,76€, na conta titulada unicamente pela ré no “Banco Espírito Santo”;

22 - Tais valores foram depositados em contas detidas pela ré porque nessa altura era forte a possibilidade de todo o património do autor vir a ser penhorado para pagamento de dívidas resultantes da exploração do estabelecimento de restauração;

23 - Dinheiro (depositado na conta detida exclusivamente pela ré), esse, que serviu para pagamento do preço, despesas e impostos inerentes à aquisição da sobredita fracção designada pela letra “AZ”, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., bem como do veículo automóvel “Fiat Línea” com matricula ...-GJ-84;

24 - Com intuito de enganar os eventuais credores do autor, mais propriamente a sociedade “...;

25 - A ré sabia que, para além do dinheiro que serviu de pagamento dos preços e despesas inerentes à aquisição do sobredito veículo e imóvel pertencer exclusivamente ao autor, foi o autor quem pretendeu adquirir aqueles bens para si, integrando-os no seu património;

26 - Apesar disso, a ré declarou nos documentos que titulam a aquisição daqueles bens que os adquiriu para si, quando assim o não pretendia;

27 - Os ditos bens foram adquiridos pelo A., com o seu próprio dinheiro, limitando-se a Ré a figurar como adquirente.

5. Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos e, designadamente, que:

a) A Ré, desde que chegou a Portugal, nunca tivesse auferido qualquer rendimento provindo do Brasil;

b) A Ré tivesse vindo para Portugal sem dinheiro e sem bens;

c) A transferência de valores aludida em 13. tivesse sido efectuada mediante persuasão da ré;

d) Os preços da aquisição do veículo automóvel e do imóvel tivessem sido pagos com dinheiro exclusivamente ou maioritariamente da Ré (resultante da venda de bens que detinha no Brasil e de rendas e pensão de alimentos);

e) Os preços da aquisição do veículo automóvel e do imóvel tivessem sido pagos com dinheiro pertença também da Ré;

f) Em Janeiro de 2004 a Ré tivesse trazido consigo para Portugal dinheiro da venda de um estabelecimento comercial de que a mesma era proprietária no Brasil;

g) No período aludido em 1., fosse a Ré quem pagava todos os seus gastos pessoais, desde roupa a calçado;

h) O Autor tivesse passado para seu nome um apartamento da Ré, no Brasil, e tenha ficado para si com o dinheiro da venda do mesmo;

i) Autor e Ré tivessem combinado que o Autor entregaria aos filhos da Ré os € 45.000,00 aludidos em 18. c) no caso de ela morrer, por o Autor não ter pago o apartamento do Brasil que a mesma passou para o nome dele;

j) O apartamento do Brasil valha hoje € 100.000,00;

k) O Autor tenha pago com dinheiro também da Ré o valor do trespasse do estabelecimento comercial da Rua ...;

l) A Ré tivesse prestado as declarações aludidas em 18. por o Autor lho ter pedido;

m) O PPR aludido em 20. tivesse dinheiro de ambos, Autor e Ré;

n) O resgate referido em 21. tivesse ocorrido por o Autor dever dinheiro à Ré;

o) Parte do dinheiro de tal resgate fosse da Ré.

6. O princípio basilar para a admissão e conhecimento por banda do Supremo Tribunal de Justiça deste tipo de recurso – per saltum – dependerá, prima facie, que, de harmonia com as regras gerais de admissibilidade da impugnação, caiba recurso para este órgão judicial.

Interposto que seja um recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, há que apreciar se se verificam os requisitos, prevenidos no artigo 678.º, n.º1, alíneas a), b), c) e d) do CPC, dos quais dependem o conhecimento da Revista interposta:
i) Se o valor da causa é superior à alçada da Relação (in casu é de Euros 76.035,76, claramente superior a 30.000 da Alçada da Relação);
ii)  Se o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação (no caso a sentença absolveu a R. do pedido, pelo que a sucumbência é igual ao valor da acção);
iii) Se não está em causa qualquer decisão interlocutória (não é o caso, já que a sentença absolveu a R. dos pedidos);
iv) Se apenas se suscitam aqui questões de direito, nomeadamente, de interpretação jurídica (que o recorrente indica ser relativa ao pressupostos e regime da simulação – e que, numa primeira análise, parece ser o caso).

7. Tendo-se considerado que a revista é de admitir, importa delimitar o seu objecto e analisar as questões que são colocadas no recurso, porquanto é sobre elas que o tribunal tem de se debruçar, sem prejuízo de poder conhecer de determinadas questões oficiosamente.
A primeira questão suscitada no recurso prende-se com a aplicação do regime da simulação – e sua contraposição com figuras e regimes alternativos, nomeadamente com a interposição real – não obstante o recorrente pretender afastar esta em prejuízo da simulação (que entende ser o instituto a aplicar ao caso); em simultâneo, indaga-se se, sendo aplicável o regime da simulação, pode o instituto aplicar-se ainda que o vendedor (do imóvel e do automóvel) não tenha tido intervenção no pacto simulatório.
A segunda questão prende-se com a titularidade de bens (dinheiro) e a influência (ou não) da união de facto na determinação dessa mesma titularidade.

8. Avançando para a primeira questão.
8.1. Como já foi defendido no Ac. STJ de 9/10/2014, proc. 199/03.4TBAVS-A.E2.S1 (FERNANDO BENTO) há uma diferença grande entre simulação, interposição fictícia e interposição real. Diz-se naquele aresto o seguinte:
“A interposição fictícia verifica-se quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa. Como exemplifica Pessoa Jorge, A declara vender determinada coisa a B, que manifesta a sua vontade de a comprar; mas sob esta aparência, esconde-se o verdadeiro contrato, não entre A e B, mas entre A e C (cfr. Mandato sem Representação, p. 114 e segs). Ou seja, celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objectivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei. Logo, ele não representa o “outorgante real” nem se vincula a praticar quaisquer actos jurídicos em nome dele. A sua intervenção visa apenas validar um negócio que, se formalizado e exteriorizado com o interessado real, seria inválido; a simulação incide sobre a pessoa do outorgante e não sobre o conteúdo do negócio. Por isso, o Prof. Beleza dos Santos enunciava como requisitos da interposição fictícia de pessoas, os seguintes elementos: 1) Que haja duas ou mais pessoas a quem interesse a realização de um determinado acto jurídico; 2) Que todos ou alguns dos interessados não queiram ou não possam realizar directamente realizar; 3) Que exista um intermediário por meio de quem o acto se pratique e com quem os directamente interessados estabeleçam relações jurídicas; 4) Que esse intermediário não tenha interesse próprio na realização do acto em que intervém como parte (cfr. A simulação no Direito Civil, 2. ed. São Paulo: Lejus, 1999 p. 222). Ou, como já entendeu este STJ, em acórdão de 09-05-2002 (Rel. Araújo de Barros) na interposição fictícia há uma simulação relativa subjectiva para contornar uma alegada impossibilidade de negociação directa com a outra. (…)
A interposição real verifica-se “quando alguém conclui um negócio jurídico em seu nome, mas por conta ou interesse ou a favor de outrem, pelo que os direitos e as obrigações emergentes do negócio se produzem em relação àquele, que, todavia, se obriga a transferir (ou automaticamente estes se transferem) os direitos para esse outro. "Por conseguinte, ao passo que na interposição fictícia, a pessoa interposta é um sujeito simulado, o interposto é, na interposição real, parte verdadeira no negócio” (cfr. A.c STJ 09-05-2002 citado). As situações de interposição real de pessoas reconduzem-se ao mandato sem representação quando alguém, embora o faça no interesse de outrem, actua legalmente em nome próprio, adquirindo direitos e assumindo obrigações, para si e em seu nome próprio. Há mandato sem representação quando o mandatário age em nome próprio (não em nome do mandante), adquirindo os direitos e assumindo as obrigações decorrentes dos actos que pratica, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participam nesses actos ou sejam deles destinatários (art.º 1180.º CCivil).”

8.2. O enquadramento das situações concretas da vida nas hipóteses acima indicadas depende, naturalmente, dos contornos fácticos de cada caso submetido a juízo, relevando, de forma decisiva, os factos provados.

In casu, não resulta para nós da matéria de facto provada que a Ré haja figurado nos negócios como mera testa de ferro do Autor, este, sim, o verdadeiro adquirente do imóvel e da viatura, pois vem provado que o A. combinou com a R. que esta celebraria os negócios aquisitivos em seu próprio nome, assumindo o compromisso de “passar” os bens para o nome do Autor quando este o solicitasse. Também não vem provado que os vendedores do imóvel e do automóvel tenha declarado vender à R. mas tenham tido intenção de vender ao A. – o que implica não ter existido prova da divergência entre a vontade declarada e a vontade real de ambas as partes no suposto negócio simulado. Seguindo esta visão, a suposta “simulação” provada seria apenas unilateral, da R., e não uma simulação que afectasse o negócio outorgado entre declarante e declaratário, como exige o art.º 240.º do CC[1].

Estes dois elementos são essenciais para a resolução da situação concreta e para o afastamento do tribunal relativamente à solução indicada no acórdão proferido no proc. 2936/07.9TBBCL.G1.S1 (Orlando Afonso), de 03/12/2015: neste acórdão, dos factos provados não resultou a evidência de as partes pretenderem “repassar” a sua posição formal no negócio, mas apenas a indicação de que o negócio foi formalizado em nome de alguém que não era o verdadeiro “titular”. Este ponto determina a diferenciação de casos e de soluções aplicadas, tornando inviável a aplicação da solução ajustada ao processo 2936/07.9TBBCL.G1.S1 para a resolução do litígio que envolve o A. e a R. no presente recurso.

Para que não se suscitem dúvidas sobre os factos provados, reproduz-se aqui um dos fundamentais: “16 - Tais aquisições ficaram tituladas em nome da ré, mediante a promessa desta em os colocar em seu nome logo que o autor o solicitasse”.

Este facto afasta a intervenção fictícia da R. nos negócios, pois a sua intervenção foi pretendida pelo A. e R., que assim combinaram, não obstante também pretenderem que a R. “retransmitisse ao A. os bens adquiridos” por os mesmos terem sido adquiridos com o dinheiro daquele, não havendo nenhum motivo para deixarem de ser do A. e passarem a ser da Ré. senão uma situação, supostamente transitória, de não revelação externa do verdadeiro proprietário: não se pretendia que os credores do A. pudessem saber que os bens lhe pertenciam, com receio de os mesmos serem executados para cumprimento forçado de dívidas – o que revela um acordo para prejudicar terceiros, sem que daí se possa deduzir estarmos perante uma simulação[2].

Concordamos assim com a sentença, quando diz: “o caso dos autos é antes subsumível a uma situação de interposição real de pessoas, reconduzível ao mandato sem representação”, posição que é defendida depois de ter começado por admitir que se tratava de uma interposição fictícia. O tribunal afastou assim a possibilidade de simulação (tão só), decidindo com base noutro instituto jurídico dizendo: “Deste modo, não sendo aplicável ao caso o que resulta do previsto nos supra citados artigos 240.º e 241.º do Código Civil, teria neste âmbito sempre de improceder o pedido que foi formulado pelo Autor a título principal. E o mesmo ocorre na hipótese de simulação por interposição real de pessoas” (com esta frase parece ter-se entendido que na interposição real de pessoas também há simulação, num certo sentido).

Aplicando-se à situação dos autos a figura do mandato sem representação, prevista no artigo 1180.º do Código Civil, por força do regime legal, o mandatário que actue em nome próprio adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes, sendo obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato (impondo-se ao mandatário a obrigação de providenciar pela transferência de tais direitos para o mandante). Em caso de incumprimento deste dever, pode o mandante accionar judicialmente o mandatário, efectuando o pedido correspondente ao incumprimento do acordado (transferência dos direitos e obrigações).

9. Quanto ao segundo pedido da revista – o A. pede, a título subsidiário, que seja declarado legítimo dono e proprietário do imóvel e do veículo em questão nos autos, quer por efeito de sub-rogação de valores próprios do Autor (por aplicação analógica do artigo 1723.º, al .c) do CC), quer por reconhecimento de que aqueles bens foram adquiridos por si e não pela Ré, contestando o entendimento feito na sentença recorrida. Com este pedido o que o recorrente pretende é que se proceda a uma aplicação analógica do regime do casamento à sua situação de ex unido de facto.

Independentemente do sentido dessa pretensão, cremos que não poder ser dada razão ao recorrente pelo motivo de se ter entendido que a R. adquiriu o imóvel e o automóvel em execução do mandato (sem representação) recebido do autor – não tendo cumprido o dever de retransmitir a propriedade adquirida, tal como se havia comprometido. A dizer-se que o imóvel e a viatura são do A. estar-se-ia a decidir em contradição com o decidido relativamente à questão anterior.

O que se pode concluir pela prova produzida é que o dinheiro usado na aquisição do imóvel e do automóvel eram do autor e que este encarregou a R. de adquirir o imóvel e o automóvel em seu nome, com a obrigação de o retransmitir ao A., quando este o solicitasse, conforme provado pelos factos: 16 - Tais aquisições ficaram tituladas em nome da ré, mediante a promessa desta em os colocar em seu nome logo que o autor o solicitasse; 17 - Aquele veículo “Fiat Línea” e a fracção sita na Rua Álvares Cabral (Gaia) foram adquiridos pelo autor com o seu dinheiro, embora colocados em nome da ré.

III. Decisão

Pelas razões apontadas, é negada a revista, sendo confirmada a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de Julho de 2018

Fátima Gomes

Acácio Neves

Garcia Calejo

--------------------
[1] A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 66 – “Não basta uma das partes manifestar uma intenção que não corresponda à sua vontade real: exige-se uma sintonia entre todos os contraentes”.
[2] Cf. A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 66, sobre a distinção entre simulação e reserva mental.