Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2226/14.0TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTITUIÇÃO DE BENS
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / REPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / SOLIDARIEDADE ENTRE DEVEDORES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / EXCEPÇÕES DILATÓRIAS ( EXCEÇÕES DILATÓRIAS / SENTENÇA.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, 92-93, 97-99.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2006, 778-790.
- Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, 38-39.
- Lebre de Freitas e outros, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, 354.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. I, Coimbrã Editora, 1987, 537.
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 572.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 490.º, 497.º, N.º 1, 522.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 263.º, N.º 1, 576.º, N.º 1 E 2, 577.º, ALÍNEA I), 578.º, 581.º, 608.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13/12/2007, PROCESSO N.º 07A3739; DE 06/3/2008, PROCESSO N.º 08B402; DE 23/11/2011, PROCESSO N.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :   
I. A eficácia do caso julgado material pode ser desdobrada em duas vertentes:

   a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; 

   b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.

II. A exceção de caso julgado material exige a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC; já o efeito de autoridade de caso julgado, segundo o entendimento dominante, não requer essa tríplice identidade.

III. Para a identidade de sujeitos, como pressuposto da exceção de caso julgado, nos termos do artigo 581.º, n.º 1 e 2, do CPC, o que é essencial não é a sua identidade física, mas a mesmidade da posição ou da qualidade jurídica na titularidade dos direitos e obrigações contemplados pelo julgado.

IV. Todavia, a relatividade subjetiva do caso julgado não obsta a que este se possa estender a terceiros, mormente nos casos em que da lei resulte tal extensão.    

V. A aferição da identidade do pedido e da causa de pedir, para os efeitos do artigo 581.º, n.º 1, 3 e 4, do CPC, deverá ser feita não de um modo global, mas sim em função de cada pretensão parcelar em que se possa decompor o objeto das causas em confronto e dos correspetivos segmentos decisórios.

VI. Segundo o artigo 522.º do CC, o caso julgado material absolutório aproveita ao condevedor solidário não demandado na ação em que aquele se constituiu.

VII. Os co-autores na violação do direito de propriedade respondem solidariamente pelos danos causados, nos termos conjugados dos artigos 490.º e 497.º, n.º 1, do CC.

VIII. De igual modo se deve considerar como solidária entre esses co-autores a obrigação de restituir a coisa decorrente dessa violação.

IX. Assim, a decisão que absolva algum dos co-autores do pedido de reconhecimento do direito de propriedade em que se funda a pretensão de restituição da coisa, por considerar não provado esse direito em relação ao pretenso lesado, aproveita aos demais co-autores nos termos do artigo 522.º do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA e BB (A.A.) intentaram, em 20/05/2014, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e cônjuge DD (1.º R.R.) e EE (2.º R.), alegando, em síntese, que:

. Os A.A. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, composto de composto de rés-do-chão (loja), 1.º e 2.º andares e sótão, sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, atual n.º 20, em S…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 8…7 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º 6…3;

 . O direito de propriedade sobre esse prédio encontra-se inscrito em nome dos A.A., sem determinação de parte ou direito, por via da apresentação n.º 18 de 29/01/2007;

. Os A.A., por si e antecessores, FF e mulher GG, já vêm ocupando o dito prédio há mais de 40 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de estarem a exercer um direito próprio;

. Porém, os R.R. ocupam, atualmente, sem qualquer título que o justifique, parte da loja (armazém) desse prédio, localizada no lado poente tardoz do rés-do-chão, com a área de 19,53 m2;

. Os danos causados aos A.A. com essa ocupação ascendem a € 75,00 por mês, valor correspondente ao do mercado de arrendamento.

Concluíram pedindo que:

a) - se declare a indicada parcela do rés-do-chão (armazém) ocupada pelos R.R. parte integrante do sobredito prédio dos AA.;

b) – se reconheça o direito dos A.A. a essa parcela;

c) – se condenem os R.R. a restituírem aos A.A. aquele espaço, livre e desocupado e a pagarem a estes a quantia de € 75,00 por cada mês desde a citação até à efetiva entrega daquela parcela.   

2. Os RR. CC e DD apresentaram contestação, em que arguíram as exceções de caso julgado e de ilegitimidade, impugnaram a factualidade alegada na petição inicial e deduziram reconvenção, pedindo que os A.A. fossem condenados:

a) - a pagar-lhes a quantia de € 210.924,00, pela ocupação que fazem, desde 1997, de parte do prédio que pertenceu aos R.R. até 2003, com construção de dois andares sobre a loja em causa;

b) – a demolir as construções ali implantadas;

c) – a pagar aos R.R., até à demolição dessas construções, a quantia anual de € 35.154,00, acrescida de juros desde a sua notificação;

d) – a pagar, como litigantes de má fé, quantia a reverter a favor dos R.R. para efeitos de reembolso das despesas com a causa, incluindo os honorários do mandatário e de uma arquiteta indicada como perita.

3. Findos os articulados, foi proferido o despacho saneador de fls. 350-354, em que se decidiu:

a) – não admitir a pretensão reconvencional, absolvendo os A.A./ Reconvindos da instância nessa parte;

b) – julgar procedente a exceção de caso julgado, absolvendo os R.R. da instância relativamente à ação;

c) – condenar os A.A. como litigantes de má fé na multa de 3 UC e em indemnização a favor dos R.R. respeitante aos honorários da respetiva Mandatária, relegando para momento posterior a fixação do montante devido além disso.

4. Inconformados com tal decisão, os A.A. recorreram para o Tribunal da Relação de Évora que, através do acórdão de fls. 402 a 419, datado de 20/10/2016, confirmou a decisão recorrida, embora com fundamento diferente, na parte em que absolveu os R.R. da instância, e revogou a condenação dos A.A. quanto à litigância de má fé.

5. Mais uma vez inconformados, vêm os A.A. pedir revista, sob a invocação de fundamentação essencialmente diferente, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O Tribunal da Relação considerou que, na ação que correu termos sob o n.º 100133/1998 na Vara Mista do Tribunal de Setúbal, com o trânsito em julgado desta decisão, ficou definitivamente decidido que os A.A não são proprietários da loja reivindicada e, não tendo logrado provar o direito de propriedade sobre a totalidade da loja não poderão os A A, com o mesmo fundamento, ver ser-lhes reconhecida a propriedade de parte da área dessa loja;

2.a - Tal conclusão, salvo o devido respeito, é contrariada pela matéria de facto provada, conforme se abarca da certidão junta no proc. n.º 100133/1998, na fundamentação de facto: «selecionada a matéria de facto assente e respondidos aos quesitos contidos na base instrutória da causa, foram dados como provados os seguintes factos:

«1- Os autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.° 18, constituída por 1º e 2º andar e loja inscrita na matriz predial de S… sob o nº 8…7, fls. 51v, do Livro B-32.

2 - O prédio é composto por 1º e 2.º andares, com entrada pelo n.º 27 da Rua … e uma loja também com serventia pelo mesmo n.º 21 e ainda pelo n.º 18 da Rua ….

3 - O prédio foi adquirido aos anteriores donos por escritura de compra e venda de 28-04-1972;

4 - Os autores desde há 26 anos que se encontram na posse do prédio, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e praticando os actos próprios de um dono.

5 - A loja que se fez referência em 1) corresponde ao rés-do-chão desse prédio.

6 - Os autores sempre têm usado e fruído a loja e tirando dela os proveitos».

4ª - Conforme se pode verificar pela planta do R/C, (loja do prédio junta com a petição inicial, este é composto por duas partes independente: Uma parte com entrada pelo n.º 21 da Rua …; Outra (armazém), com a área útil de 19,53 m2, com entrada pelo n.º 18, atualmente número 20 da Rua ….

5.a - O pedido formulado na ação de reivindicação (por errada especificação do objeto) dizia respeito apenas à parte do R/C com entrada pelo n.º 21, relativamente a qual não se verificava qualquer ocupação.

6.a - A sentença proferida no processo n.º 100133/1988 não apreciou a ocupação do armazém com a área de 19,53 m2,

7.ª - A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.

8.a - Ela tem autoridade - faz lei - para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Não pode, portanto, impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesma não definiu.

9.a - O caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, e não sobre os fundamentos

10.a - O Tribunal da Relação não ponderou e interpretou devidamente o conteúdo da sentença proferida na dita ação de reivindicação.

11.a - Conforme se verifica da certidão judicial os Recorrentes (AA., na ação n.º 100133/1998 já mencionada), apresentaram uma redução do pedido por errada descrição do objeto da ação, visando apenas a apreciação quanto a uma área de loja (19,53m2).

12.a - Tal pretensão não foi admitida por se entender que se estava perante uma alteração do pedido.

13.a - O julgador na sentença proferida na aludida ação de reivindicação diz expressamente que não conheceu desta questão.

14.a - Assim sendo, o pedido formulado na presente ação não se encontra incluído no pedido formulado naquela anterior ação, dado o Tribunal ter recusado a sua apreciação (cfr. sentença proferida no Proc. n.º 100133/1998)

15.a - Resulta também evidente que os pedidos, pressupostos e fundamentos da presente ação e os da ação de reivindicação são diferentes e não se verifica a identidade de sujeitos.,

16.a - Os RR. na ação de reivindicação em causa na sua contestação (art. 6.º) vêm dizer que nunca discutiram a restituição, não possuíram e não questionaram o reconhecimento do direito dos AA).

17.a - Com o presente processo os ora: recorrentes pretendem que o Tribunal se pronuncie sobre a ocupação do armazém com a área de -19,53 m2, dado que quanto à restante área não há litígio.

18.a - A não pronúncia, in concreto, sobre a área (armazém de 19,53 m2,) objeto da relação material controvertida, em última análise, redundaria na não prestação, por parte do Estado, de tutela jurisdicional efetiva aos recorrentes (artº 20 da CRP).

19.a - A Relação ao confirmar a decisão da 1.ª instância, embora com fundamentação essencialmente diferente, na parte em que absolveu os RR., da instância, não teve na devida consideração toda a factualidade apurada e não subsumiu correctamente os factos no direito aplicável, errando na determinação e interpretação das normas, interpretando incorretamente o disposto no artigo 621º do CPC e no art. 20.º, n.º 1 da CRP.

20.a - Foram violados, nomeadamente o art. 621.º do CPC e 20.º da CRP.

Pedem os Recorrentes que se revogue o acórdão recorrido na parte em que confirmou a decisão da 1.a instância e absolveu os R.R. da instância e se substitua por outro que julgue improcedentes as exceções de caso julgado e da autoridade de caso julgado, ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos processuais    

6. Foram apresentadas contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado, rematando com as seguintes conclusões:

1.ª - Os recorrentes vieram interpor recurso de revista com o fundamento em erro de interpretação da norma aplicável, o artigo 621.º do CPC (conclusão 19.a dos Recorrentes);

2.ª - Acontece que não recorrem da interpretação da norma, mas da matéria de facto considerada pelo Tribunal da Relação como dada por assente no proc.º 100133/1998 da Vara Mista de Setúbal – vide conclusões do recurso 1.a a 6.a, 11.a a 16.a.

3.ª - É inadmissível revista sobre matéria de facto, pois os poderes do STJ, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos, estando cometido ao STJ, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (artigo 682.º, n.º 1, CPC);

4.ª - Assim, a presente revista deverá ser declarado improcedente, por inadmissível legalmente (art.º 682.º, n.º 1, CPC);

5.ª - A Relação não extravasou o âmbito da decisão proferida no Proc.º 100133/1998, que transitou em julgado em maio de 2011, sem que dela tenha sido interposto recurso de apelação;

6.ª - O despacho de indeferimento da redução de pedido constante na cláusula 11.a das conclusões transitou em julgado em março de 2010, por não terem os ora recorrentes aí apresentado recurso de agravo de tal despacho;

7.ª - Assim, o chamar à colação o não atendimento da redução do pedido requerida, sobre que foi proferido despacho transitado em julgado, consubstancia um falso argumento;

8.ª - Acresce que, na sentença proferida no Proc.º n.º 100133/ 1998, é expressamente referido que os aí A.A. não provaram a sua posse sobre "a loja/divisão/parte da divisão em disputa", ou seja, aquela sentença também decidiu sobre a pretensão dos A.A. sobre parte da loja;

9.ª - Bem decidiu o Tribunal da Relação, nos presentes autos, quanto aos efeitos da sentença proferida no Proc.º n.º 100133/ 1998.

10.ª - Verifica-se aqui a autoridade do caso julgado, princípio que radica nos artigos 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 550.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

11.ª - Esta figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relações já não de identidade jurídica mas de prejudicialidade entre objetos processuais: julgada, em termos definitivos, certa matéria numa ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto desta primeira causa, sobre essa precisa “questio judicata”, impõe-se necessariamente em todas as outras ações que venham a correr termos entre as mesmas partes - incidindo sobre um objeto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda ação – vide Prof. A. dos Reis, in "CPC Anotado", vol. III, pág. 93, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", BMJ 325, p. 171, Ac. do STJ de 12/01/1990, Ac. do TRP, de 13/01/2011, e Ac. do TRC, de 15/05/2007, publicados em www.dgsi.pt )."

12.ª - E dúvidas não existem que na ação n.º 100133/98 ficou definitivamente julgado que os A.A. não são proprietários da "loja/ divisãolparte da divisão em disputa", por falta de prova: 1.º - da sua posse por eles A.A; e 2.a- da ocupação indevida pelos aí R.R..

13.ª – Não tendo os A.A. provado a posse sobre a loja, também não conseguiriam nunca provar a posse sobre parte da loja, por impossibilidade de objecto, já que a parte integra o todo;

14.ª – A autoridade de caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa ação subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial.

15.ª - Existe identidade de efeitos jurídicos (identidade de pedidos) entre as duas ações, pois através da presente ação de reivindicação pretendem agora os A.A. conseguir os efeitos que não conseguiram na primeira ação de reivindicação relativamente à loja controvertida, ou seja, o reconhecimento do seu direito de propriedade.

16.ª - Verifica-se existir identidade entre as duas causas de pedir, uma vez que as pretensões se fundamentam na mesma questão, procedendo do mesmo facto jurídico, a posse e direito de propriedade do prédio em questão - n.º 4 do art.º 581.º do CPC;

17.ª - Parafraseando a sentença proferida no Proc.º n.º 2430/07, confirmada pelo Tribunal da Relação, “o que realmente parece realçar dos autos é que pretendem os AA nesta acção exercer um direito que foi já reconhecido não terem naquele outro processo identificado” (Proc.º n.º 1001133/98);

18.ª - Entre os presentes autos e os autos que correram termos sob o n.º 100133/98, já findos por sentença transitada em julgado em maio de 2011, ocorre a autoridade do caso julgado.


   Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


    II – Fundamentação


    1. Enquadramento preliminar


Em face dos contornos da pretensão deduzida pelos A.A. acima relatados, não sofre dúvida que estamos, nuclearmente, no âmbito de uma ação de reivindicação de uma parcela, com a área de 19,53 m2, localizada no lado poente tardoz do rés-do-chão do prédio urbano, sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, atual n.º 20, em S…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 8…7 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º 6…3, pretensão essa fundada no invocado direito de propriedade dos mesmos A.A. sobre o referido prédio e parcela tida como nele integrada e na alegada ocupação ilícita daquela parcela por parte dos R.R. 

   Sucede que estes R.R. invocaram, além do mais, a exceção de caso julgado material, sustentando que:

- Em 09/06/1998, os pais dos ora A.A. intentaram uma ação contra os ora R.R., que correu termos no processo sob o n.º 100133/1998, na qual os aqui A.A. foram habilitados como herdeiros de seus falecidos pais e em que também se pedia o reconhecimento e restituição da loja pretensamente sita no rés-do-chão do mesmo prédio;  

- Nessa ação, foram também habilitados HH e II, em substituição dos ali primitivos réus;

- A referida ação foi julgada improcedente por não provados os pressupostos da reivindicação daquela loja com a consequente absolvição dos réus do pedido, conforme decisão transitada em julgado em 03/05/2011;

- Em 2007, os ora A.A. intentaram nova ação contra HH e II, que correu termos no processo sob o n.º 2430/07.8TBSTB, a qual foi também julgada improcedente por verificação do caso julgado constituído pela decisão proferida no processo n.º 100133/1998.


   A 1.ª instância, em sede de despacho saneador, proferido a fls. 351-354, conhecendo da invocada exceção de caso julgado, considerou que os pedidos formulados, tanto na presente ação como nas outras referidas ações, eram semelhantes e que a causa de pedir era a mesma, concluindo que, embora não houvesse absoluta coincidência das partes, aquela exceção procedia, pelo que absolveu os R.R. da instância.


   Por sua vez, o Tribunal da Relação, no âmbito da apelação interposta pelos A.A., ainda que confirmando, naquela parte, a sentença recorrida, dissentiu da respetiva fundamentação, ao considerar que não se verificava a identidade de sujeitos, mas que, não obstante isso, a decisão proferida no processo n.º 100133/1998, quanto à questão relativa à propriedade da loja em litígio, tinha efeito de autoridade de caso julgado. Foi, pois, nessa base diferente que o acórdão recorrido manteve a decisão de absolvição dos R.R. da instância.    

     Significa isto que o acórdão recorrido, embora confirmando a decisão da 1.ª instância, fê-lo com fundamento essencialmente diferente, o que descaracteriza a dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, tornando a revista admissível.

     A questão a resolver consiste assim em ajuizar sobre a procedência ou não da exceção ou da autoridade de caso julgado material, questão de direito que se enquadra perfeitamente nos fundamentos da revista, nos ter-mos do artigo 674.º, n.º 1, alínea a) e b), do CPC.


2. Quanto ao mérito do recurso


Antes de mais, importa ter presente que, no que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito que tanto a doutrina[1] como a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:

a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; 

b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.

  Quanto à função negativa ou exceção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, tem de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.

    Já quanto à autoridade do caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade[2]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[3].

   No que respeita à tríplice identidade para efeitos de verificação da exceção de caso julgado, o artigo 581.º dispõe que:

1 – Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 – Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica;

3 – Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende o mesmo efeito jurídico.

4 – Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (…)    

  Quanto à identidade de sujeitos, o que é essencial não é a sua identidade física, mas a mesmidade da posição ou da qualidade jurídica na titularidade direitos e obrigações contemplados pelo julgado[4]. Todavia, a relatividade subjetiva do caso julgado não obsta a que este se possa estender a terceiros[5], mormente nos casos em que da lei resulte tal extensão.    

    Também, no que respeita à identidade do pedido e da causa de pedir, importa aferi-la não de um modo global, mas sim em função de cada pretensão parcelar em que se possa decompor o objeto das causas em confronto e dos correspetivos segmentos decisórios.

    Posto isto, importa começar por descrever, para efeitos de comparação, quer os elementos pertinentes da pretensão deduzida no processo n.º 100133/1998, quer os da presente ação.

Já a decisão proferida no processo n.º 2430/07.8TBSTB, reproduzida a fls. 129-135, pouco releva, dado que, sendo confirmativa de uma decisão de absolvição dos réus da instância por verificação da exceção de caso julgado, não têm a virtualidade de se impor aqui como exceção ou autoridade de caso julgado material.


A – Da configuração da pretensão deduzida no processo n.º 100133/1998


Das certidões junta a fls. 85-127 colhe-se o seguinte:

i) - Em 09/06/1998, FF e mulher GG intentaram contra CC e mulher DD uma ação declarativa, que correu termos no processo n.º 100133/1998, a pedir que:

a) – Fosse declarado que os autores eram proprietários de uma loja, com três divisões e a área total de 28 m2, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano, composto de 1.º e 2.º andares e loja, sito na Rua Dr. … n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, em S…, inscrito sob o n.º 8...7 da respetiva matriz predial;  

b) – Fossem condenados aqueles réus a absterem-se de quaisquer atos turbadores do exercício do invocado direito de propriedade e a pagar uma indemnização a liquidar em execução de sentença.

ii) – Para tanto, os ali autores alegaram que:

. Eram donos e legítimos proprietários do indicado prédio por o terem adquirido aos anteriores proprietários mediante escritura de compra e venda outorgada em 28/04/1972;

. Desde há 26 anos, os autores encontram-se na posse daquele prédio, à vista de toda a gente, sem violência nem oposição de ninguém, praticando sobre o mesmo ao atos próprios de um proprietário;

. Porém, os réus, desde 27/11/92, data em que adquiriram o imóvel sito na Rua Dr. … n.ºs 23 e 25, vêm pondo em causa a propriedade exclusiva dos A.A. sobre o referido rés-do-chão que tem serventia pelo n.º 18 da Rua …;

. Pretendem os mesmos réus, sem qualquer fundamento, fazer a dita loja parte integrante do prédio de que são proprietários sito no n.º 23 na Rua Dr. …;

. A contiguidade física entre os prédios n.º 21 e 23 da referida Rua não confere aos réus a propriedade daquela loja.

  iii) – Os réus deduziram contestação-reconvenção, a pedir que se decidisse que fazia parte integrante do prédio deles a porta com n.º 21 e escada de acesso aos andares superiores do mesmo prédio.

  iv) – Posteriormente, vieram os autores pretender uma denominada redução do pedido no sentido de se considerar que a loja reivindicada apenas tinha a área de 19,53 m2, e não 28 m2 conforme inicialmente alegado, o que lhe foi indeferido por se entender que tal alteração não constituía desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, conforme despacho reproduzido a fls. 112/113, datado de 02/04/2010.    

  v) – Entretanto, tendo falecidos os autores, foram ali habilitados como seus herdeiros os filhos AA e BB.

   vi) - Também foram declarados habilitados HH e II, em substituição dos ali réus, por haverem comprado a estes o prédio sito na Rua … descrito sob o n.º 5…5 da Conservatória do Registo Predial de Setúbal.

    vii) – A referida ação foi julgada a final improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos réus do pedido, conforme a sentença reproduzida a fls. 122-126, datada de 08/04/2011 e transitada em 03/05/2011, na qual se deram como provados os seguintes factos:

1 – Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, constituído por 1.º e 2.º andar e loja, inscrito na matriz predial de Setúbal sob o n.º 8377, fls. 51/v.º do Livro B-32;

2 – O prédio é composto por 1.º e 2.º andares, com entrada pelo n.º 21 da Rua … e uma loja também com serventia pelo mesmo n.º 21 e ainda pelo n.º 18 da Rua …;

3 – O prédio foi adquirido aos anteriores donos por escritura pública de compra e venda de 28/04/1972;

4 – Os Autores desde há 26 anos que se encontram na posse do prédio, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e praticando os atos próprios de um dono;

5 – AQ loja a que se faz referência em 1) corresponde ao rés-do-chão desse prédio.

6 – Os Autores sempre têm usado e fruído a loja e tirando dela os proveitos.

   viii) – Apesar dessa factualidade provada foi considerado que:

   «As inscrições registrais não estabelecem quaisquer presunções acerca das concretas dimensões do prédio alvo da inscrição, confrontações e suas dimensões, etc.

   (…) os Autores não lograram fazer a prova dos pressupostos de que dependia a revindicação e que correspondiam à respectiva causa de pedir, pois teriam de provar a sua posse sobre a loja/divisão/parte da divisão em disputa, e a ocupação indevida por parte dos Réus (…)»     


B - Da configuração da pretensão deduzida na presente ação


Relativamente à presente ação, constata-se que:

i) – A mesma foi intentada, em 20/05/2014, por AA e BB contra CC e cônjuge DD e EE, pretendendo os A..A. obter:  

 a) – Em primeira linha, o reconhecimento do seu alegado direito de propriedade sobre uma parcela com a área de 19,53 m2 localizada no lado poente tardoz do rés-do-chão do prédio urbano, composto de rés-do-chão (loja), 1.º e 2.º andares e sótão, sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, atual n.º 20, em S..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 8…7 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º 6…3;

   b) – em segundo plano, a condenação dos R.R. a restituírem aos A.A. aquela parcela, livre e desocupado e a pagarem a estes a quantia de € 75,00 por cada mês desde a citação até à efetiva entrega daquela parcela.

ii) - Para tanto, alegaram, em síntese, que:

. Os A.A. têm inscrita em seu nome a aquisição do direito de propriedade sobre o indicado prédio, sem determinação de parte ou direito, conforme apresentação n.º 18 de 29/01/2007;

. O referido prédio, composto de rés-do-chão (loja), 1.º e 2.º andares e sótão, têm as seguintes áreas: de terreno - 114.000 m2; de implantação do edifício - 114.000 m2; bruta de construção - 200.000 m2; bruta privativa – 200.000 m2;

. Os mesmos A.A., por si e antecessores, FF e mulher GG, já vêm ocupando o dito prédio há mais de 40 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de estarem a exercer um direito próprio;

. Porém, os R.R. ocupam, atualmente, sem qualquer título que o justifique, parte da loja (armazém) desse prédio, localizada no lado poente tardoz do rés-do-chão, com uma área de 19,53 m2.


       Cotejando o objeto das duas ações em referência, verifica-se que ambas tiveram, em primeira linha, por finalidade o reconhecimento do direito de propriedade sobre um espaço, designado por loja/armazém, tido como localizado e integrado do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, atual n.º 20, em S…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 8...7.

Sucede que, no processo no processo n.º 100133/1998, foi alegado que o espaço em disputa tinha três divisões com a área de 28 m2, tendo os ali autores, já no decurso do processo, requerido a redução dessa alegação para a área de 19,53, m2, o que lhes foi indeferido por razões meramente processuais.  

Por seu turno, na presente ação, foi alegado que o espaço em causa se circunscreve a uma parte da loja (armazém), com a área de 19,53 m2, localizada no lado poente tardoz do rés-do-chão do sobredito prédio urbano.

Seja como for, o que se afigura inequívoco é que a parcela de 19,53 m2 reivindicada nesta ação se apresenta como compreendida na área de 28 m2 que fora objeto do processo n.º 100133/1998, razão pela qual o que ali foi decidido sobre esta área não pode deixar de alcançar a área de 19,53 m2 nela incluída, sendo para tal irrelevante o facto de não ter sido admitida naquele processo a pretendida redução da 28 para 19,35 m2.

Nestas circunstâncias, impõe-se concluir pela identidade dos pedidos, formulados nas duas ações no respeitante ao pretendido reconhecimento do direito de propriedade ora circunscrito à parcela de 19,53 m2, nos termos do artigo 581.º, n.º 1 e 3, do CPC.


Relativamente à causa de pedir, constata-se que, no processo n.º 100133/1998, a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de 28 m2 se estribou na alegação de factos tendentes a demonstrar a aquisição, por via da usucapião, do prédio urbano sito na Rua Dr. …, n.º 21, tornejando para a Rua …, n.º 18, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 8…7, pelo menos desde a aquisição deste prédio, em 28/04/1972, por FF e mulher GG, e mais precisamente da referida parcela como parte integrante do mesmo prédio.

De igual modo, na presente ação, a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de 19,53 m2 funda-se na alegação de factos tendentes a provar a aquisição do referido prédio urbano e dessa parcela tida como nele incorporada, por via de usucapião, sustentada nas posses consecutivas dos antepossuidores FF e mulher GG e dos ora autores AA e BB, sendo nesse sentido o facto de este terem registado a aquisição do prédio aos anteriores adquirentes e antepossuidores FF e GG.

Significa isto que a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de 19,53 m2, deduzida nesta ação, se baseia precisamente no mesmo facto jurídico invocado no processo n.º 100133/1998, como é o da aquisição por usucapião da parcela do rés-do-chão do mencionado prédio urbano, ali dada com a extensão de 28 m2 e aqui confinada a 19,53 m2, pelo que também aqui se verifica a identidade de causas de pedir nos termos e para os efeitos do artigo 581.º, n.º 1 e 4, do CPC.

É certo que as causas de pedir das duas ações, na sua dimensão mais complexa, são ainda integradas pela alegada violação do direito de propriedade imputada aos réus, e que, neste segmento, não existe inteira coincidência, na medida em que no processo n.º 100133/1998 fora alegada a turbação por parte dos ali réus e na presente ação a sua ocupação ilícita ou esbulho pelos ora R.R.. Mas esta não coincidência parcial não afasta a identidade da componente daquelas causas de pedir no que respeita à alegada aquisição originária da parcela em disputa.


Quanto à identidade dos sujeitos, do acima descrito extrai-se que os autores do processo n.º 100133/1998 foram os pretensos adquirentes e então possuidores FF e mulher GG, entretanto falecidos, passando a estar ali representados pelos seus herdeiros habilitados, os ora autores AA e BB.

Já na presente ação, são estes que figuram como pretensos adquirentes e atuais possuidores da parcela reivindicada. Todavia, na medida em que se apresentam como “continuadores” dos seus antepossuidores FF e mulher GG, tem de se reconhecer que aqueles assumem a mesma posição ou qualidade jurídica destes na titularidade do direito peticionado, nos termos e para os efeitos do artigo 581.º, n.º 1 e 2, do CPC.  

Por sua vez, no processo n.º 100133/1998, foram inicialmente demandados os ora R.R. CC e cônjuge DD, entretanto ali substituídos, mediante habilitação singular, por HH e II. Porém, esta substituição não obsta a que aqueles primitivos réus fiquem vinculados à decisão naquele processo proferida sobre a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade da parcela em causa, como, de certo modo, decorre do disposto nos artigos 263.º, n.º 1, e 581.º, n.º 2, do CPC, porquanto uns e outros reúnem a mesma posição ou qualidade jurídica face ao direito peticionado.


Sucede que, na presente ação, foi ainda demandado EE, filho dos 1ºs R.R. CC e cônjuge DD (fls. 36), o qual não figurou como réu no processo n.º 100133/1998.

A estes três réus vem imputada a co-autoria da violação do invocado direito de propriedade sobre a parcela reivindicada, consistente na alegada ocupação ilícita da mesma, donde resulta, em sede de responsabilidade por fatos ilícitos, a sua responsabilidade solidária, nos termos conjugados dos artigos 490.º e 497.º, n.º 1, do CC. E se esta responsabilidade solidária vigora para efeitos de indemnização pelos danos causados na coisa, de igual modo se deve considerar quanto à obrigação de restituição, por parte do autor da lesão, decorrente da sequela inerente ao direito de propriedade violado. De resto, este direito à restituição da coisa objeto de esbulho equipara-se, de certo modo, à reintegração do direito real violado por via da reconstituição natural a que se refere o n.º 1 do artigo 566.º do CC.

Ora, o artigo 522.º do CC, no âmbito da solidariedade entre devedores, prescreve que:            

O caso julgado entre credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor.

   Nas palavras de Antunes Varela[6]:

  «A decisão proferida em qualquer acção judicial uma vez transitada, adquire força de caso julgado, mas apenas entre as partes (…); não em relação a terceiros, que não foram ouvidos em juízo. Esta regra comporta, no entanto, algumas excepções e necessita de ser adaptada ao condicionalismo especial de certas relações, como as obrigações solidárias.»

    Nessa linha, segundo o mesmo Autor, o artigo 522.º do CC consagra a orientação de que “a sentença proferida em relação a um dos condevedores [solidários] aproveite aos restantes (salvo quando se basear em razões pessoais do demandado), mas não os prejudique, não lhes seja oponível.»[7] E acrescenta que: «A lei não distingue entre sentença condenatória e sentença absolutória (até porque a decisão pode ser obtida em acção de simples apreciação)»[8]

  Também a tal propósito, Pires de Lima e Antunes Varela observam que[9]:

«Se o caso julgado é absolutório, já os condevedores se podem aproveitar dele em relação ao credor, considerando a dívida extinta em relação a todos.»  


Ora, a decisão proferida no processo n.º 100133/1998 absolveu os ali réus da pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela em causa, considerando que os autores não provaram, como lhes incumbia, a sua posse sobre a referida parcela, independentemente da factualidade dada como provada relativamente ao prédio em que - segundo sustentavam - a mesma se integraria.

Nesta medida, o alcance daquela decisão absolutória circunscreve-se à pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre essa parcela tida como integrada no prédio urbano dos ali autores, destacando-se, portanto, do próprio direito de propriedade sobre este prédio.

E o que se pretende, em primeira linha, na presente ação, é de igual modo o reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos ora A.A. sobre aquela parcela, agora confinada à área de 19,53 m2, para o que nada releva a factualidade dada como provada na decisão proferida no processo n.º 100133/1998, como pretende os Recorrentes.

Com efeito, o que releva para a delimitação objetiva dos caso julgado constituído sobre aquela decisão absolutória, nos termos dos artigos 619.º, n.º 1, e 621.º do CPC, é a factualidade ali dada como não provada quanto à posse e ocupação da parcela em causa, bem como da sua alegada integração no prédio urbano dos autores, sendo para tal irrelevante a factualidade dada como provada meramente no respeitante à propriedade deste prédio.


Em face disso, pode concluir-se que a decisão absolutória da pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela em referência proferida no processo n.º 100133/1998, favorecendo, como favorece, os ora 1.ºs R.R. AA e BB, aproveita também ao 3.º R. EE, na qualidade de pretenso devedor solidário em que foi demandado quanto à obrigação de restituir a coisa objeto da alegada violação do direito real, nos termos do artigo 522.º do CC.

Nesta conformidade, a exceção de caso julgado material absolutório sobre aquela pretensão de que beneficiam os 1.ºs R.R., em virtude da decisão proferida no processo n.º 100133/1998, extende-se também ao 3.º R. EE, apesar de ser terceiro em relação a tal decisão.


    Em suma, tem-se por verificada a tríplice identidade entre a ação que correu termos no indicado processo 100133/1998 e a presente ação, no respeitante à pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela em causa e, consequentemente, por verificada a exceção de caso julgado material absolutório, ao abrigo do disposto no artigo 581.º do CPC, extensiva ao 3.º R. por força do disposto no artigo 522.º do CC, o que determina a absolvição dos R.R. da instância quanto a tal pretensão deduzida na presente ação, nos termos conjugados dos artigos 576.º, n.º 1 e 2, 577.º alínea i), e 578.º do CPC.

   Além disso, uma vez que as demais pretensões aqui formuladas, de restituição da coisa e de indemnização, dependem da pretensão prioritária de reconhecimento do direito de propriedade sobre a referida parcela invocado pelos A.A., a verificação da exceção de caso julgado absolutório quanto a esta pretensão de reconhecimento prejudica, necessariamente, o conhecimento daquelas pretensões condenatórias, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.


    Termos em que é de confirmar, no essencial, a decisão proferida ainda que com fundamentação diferente.


III - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, decidindo-se:

a) - Confirmar a decisão recorrida quanto à absolvição dos R.R. da instância, no respeitante à pretensão de reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos A.A. sobre a parcela reivindicada, ainda que com fundamentação diferente;

b) – E, em consequência disso, julgar prejudicadas as pretensões de condenação dos R.R. na restituição dessa parcela e na indemnização pelos alegados danos derivados da ocupação da mesma.

As custas da ação, na parte impugnada, e do recurso ficam a cargo dos A.A/Recorrentes.

                                                             

Lisboa, 22 de junho de 2017

           

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

                    

João Luís Marques Bernardo

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[1] Vide, entre outros, Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 38-39; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 572; Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 354.
[2] In Código de Processo Civil anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, pp. 92-93.
[3] Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: de 13/12/2007, relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira no processo n.º 07A3739; de 06/3/2008, relatado pelo Juiz Cons. Oliveira Rocha, no processo n.º 08B402; de 23/11/2011, relatado pelo Juiz Cons. Pereira da Silva no processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[4] Neste sentido, vide, entre outros, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1981, pp. 97-99.
[5] Vide Alberto dos Reis, ob. cit. p. 99.
[6] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2006, p. 778.
[7] Vide ob. cit. p. 778.
[8] Vide ob. cit. pp. 779.780.
[9] In Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbrã Editora, 1987, p. 537.