Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
352/16.0T8VFX-Y.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O pedido de destituição do administrador da insolvência, como decorre do regime plasmado no CIRE (cfr. art. 56.º e respectiva inserção sistemática), integra incidente enxertado no processo principal de insolvência, estando o recurso de revista sujeito ao regime do art. 14.º, n.º 1, do CIRE.
II - Mesmo que assim se não entenda, será de considerar que o acórdão, que aprecie a decisão que indeferiu aquele pedido, não conhece do mérito, nem põe termo ao processo (art. 671.º, n.º 1, do CPC), apreciando decisão interlocutória sobre a relação processual.
III - Neste caso, a revista “continuada” apenas será admissível nos termos do art. 671.º, n.º 2, do CPC.
IV - As alegadas nulidades, podendo constituir fundamento do recurso (art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC), não podem servir de fundamento exclusivo da sua admissibilidade (cf. art. 615.º, n.º 4, do referido diploma).
V - A exigência de contradição de acórdãos (cf. arts. 14.º, n.º 1, do CIRE ou art. 671.º, n.º 2, do CPC), como requisito de admissibilidade do recurso de revista, não é arbitrária ou desproporcionada, não violando qualquer princípio constitucionalmente consagrado.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

IMOBRAUTO - GESTÃO DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA interpôs recurso de revista do Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2021, que manteve a decisão da 1ª Instância de indeferimento da requerida destituição do administrador da insolvência.

No Supremo foi proferido despacho liminar deste teor:

"Este recurso foi interposto nos termos gerais, apenas se referindo que não se verifica a situação prevista no art.º 671º, nº 3, do CPC, por existir voto de vencido e a fundamentação das decisões ser essencialmente diferente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre aferir dos requisitos de admissibilidade do recurso.

Como se referiu, com o presente recurso pretende-se impugnar o Acórdão da Relação que manteve a decisão de indeferimento do pedido de destituição do administrador da insolvência.

Este pedido, como decorre do regime plasmado no CIRE (cfr. art.º 56º e respectiva inserção sistemática), integra incidente enxertado no processo principal de insolvência, devendo, por isso, entender-se que o recurso de revista apenas seria admissível nos termos do art.º 14º, nº 1, do CIRE (neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 350).

Ora, o presente recurso não vem estruturado nesses termos, não tendo por fundamento a contradição jurisprudencial aí exigida.

Daí que esta revista não pudesse ter sido admitida por essa via (como, aliás, não o foi).

De todo o modo, mesmo que se entenda, como no despacho que admitiu o recurso, que o referido incidente foi processado no apenso de liquidação (por ter sido aí proferida a decisão recorrida da 1ª Instância, apesar de parecer não ser isso o que resulta das certidões iniciais do processo electrónico), não estando, por isso, sujeito ao regime restritivo do citado art.º 14º, nº 1, mas antes ao regime geral dos arts.  671º e segs. do CPC, importa notar o seguinte:

Considerando os requisitos gerais do recurso de revista, constantes dessas disposições legais, é manifesto que o recurso aqui interposto não é subsumível na previsão do nº 1 do art.º 671º: o acórdão recorrido não conheceu do mérito, nem pôs fim ao processo.

Não tendo conhecido do mérito, nem tendo posto termo ao processo, será de considerar que o acórdão aqui recorrido apreciou decisão interlocutória sobre a relação processual. Neste caso, a revista "continuada" apenas seria admissível nos termos do art. 671º, nº 2.

Prevê-se nessa norma que a revista apenas pode ser admitida em duas situações:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível, o que nos remete, neste caso, para o disposto no art.º 629º, nº 2, al. d), do CPC;

b) Quando o acórdão recorrido esteja em contradição com outro, já transitado, proferido pelo STJ, nas condições referidas nessa alínea.

Verifica-se, pois, que, em qualquer destes casos, a admissibilidade do recurso pressupõe também a contradição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito.

Já se referiu que o presente recurso não vem assim configurado e fundamentado, entendendo-se, por isso, que o mesmo não deveria ter sido admitido, não podendo conhecer-se do respectivo objecto.

Deve acrescentar-se que a existência de alegadas nulidades, podendo constituir fundamento do recurso (art.º 674º, nº 1, al. c), do CPC), não pode servir de fundamento exclusivo da sua admissibilidade (cf. art.º 615º, nº 4, do referido diploma).

Nestes termos, considerando o disposto no art.º 655º, nº 1, do CPC, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, sobe o que foi acima exposto.

Prazo: 10 dias".

Notificadas as partes nos termos referidos, apenas a recorrente se veio pronunciar, defendendo que o recurso deveria prosseguir os seus termos.

Alegou para o efeito:

"1. Em causa está a admissibilidade do recurso interposto pela ora requerente para o Supremo Tribunal de Justiça.

2. Quanto às questões concretas, começando pela inerente ao teor do art. 14º do CIRE (…), surge-nos, em face do teor do mesmo apenas estarem abrangidos pela limitação recursiva dele constante a decisão proferida em sede de processo de insolvência e de embargos á sentença de declaração da mesma, com exclusão dos demais recursos que sejam interpostos em processos que, ainda que autónomos, correm, por força de legislação especial, por apenso ao mesmo.

3. De outra forma estar-se-ia a limitar o recurso em reclamação de créditos, em pedidos de responsabilidade civil e toda uma panóplia de procedimentos, incluindo o incidente de destituição do AI, sem que tal tenha qualquer correspondência com o que ocorre em procedimento análogos que não estão, por força da sua génese, processados por apenso ao processo de insolvência.

4. A urgência que está subjacente á declaração de insolvência e embargos, fazendo equiparar, em termos de processamento, os mesmos a uma providencia cautelar, não se alastra a uma serie de questões em relação às quais não existe uma situação de urgência, com as mesmas raízes de consideração.

5. O processamento por apenso não desvirtua a natureza autónoma do processo, sendo, por isso, o mesmo submetido ao regime geral de interposição e inerente admissibilidade do recurso, tratando-se não de um mero incidente, mas sim de um processo autónomo, destacado, com processamento próprio, constituindo a decisão recorrida em primeira instancia decisão final sobre a questão da aptidão ou não do AI para o exercício das funções que lhe estão cometidas – aliás, tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.5.2010, no proc. nº 283/05.0TBMDB-W.P1, mercê da especificidade do processo especial da insolvência, os processos, apesar de apensados, mantêm-se formalmente autónomos.

6. A tal acresce que, como se já denotou nos autos, a “dupla conforme”, elemento base de limitação de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça contem excepções que se fundam, desde logo, na existência de assegurar o efectivo recurso, porquanto mesmo que tenha já decorrido a passagem por duas instâncias, poderá, que não apenas em tese, ocorrer situações em que uma questão não haja sido solucionada, em termos de não recair pronuncia sobre a mesma.

7. O caso vertente é disso paradigmático – por força da ampliação da matéria de facto, o mesmo, que tinha por assentes quatro factos, passou a conter sessenta, ou seja, mais cinquenta e seis, tornando o objecto do recurso completa e absolutamente diverso e diferente e, por inerência, a fundamentação decisória necessariamente distinta – completamente distinta.

8. Foi exactamente para assegurar a observância do princípio constitucional, que deriva do art. 20º, nº 1, da Lei Fundamental, da existência de uma instância de recurso (tornando dispensável a consideração de mais do que um grau) que o art. 671º, nº 3, do Cód. Proc. Civil elege como recorrível o Acórdão que tem subjacente uma fundamentação essencialmente diferente, por forma a que não fique uma questão nova em aberto, não submetida a uma instancia impugnatória, sem que haja imperativo que obrigue a cumular a fundamentação essencialmente diferente com a existência de contradição de Acórdãos ou necessidade de clarificação na aplicação do direito, sendo aquele fundamento autónomo e bastante de sustentação de recurso – assim os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.2.2018, no proc. nº 2639/13.5TBVCT.G1.S1 e, em especial, de 9.7.2015, no proc. nº 542/13.8T2AVR.C1.S1. – tendo o nº 3 do art. 671º do Cód. Proc. Civil de ser lido a contrario, ou seja, ocorrendo confirmação com voto de vencido ou com fundamentação essencialmente diferente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa também é recorrível para alem daqueles casos em que o recurso á sempre admissível.

9. Em especial se, para alem de ocorrer uma situação completamente inovadora pelo Acórdão do Tribunal da Relação, se verificar a existência de nulidades arguidas e suscitadas – art. 674º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil.

10. Reiterando-se que a considerar-se que o art. 14º, nº 1, do CIRE se aplica igualmente aos apensos no processo de insolvência que não aos embargos (expressamente referidos por aquele comando legal), então o mesmo, se interpretado no sentido de obstar que uma decisão essencialmente diversa contida em Acórdão da 2ª instancia seja recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional por obstar ao efectivo duplo grau de recurso, o qual flui do art. 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quando este consagra os princípios do acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva.

Termos em que deve o recurso interposto ser admitido, prosseguindo os autos os seus termos até final".

Cumpre decidir.

Decorre da fundamentação da decisão liminar, acima reproduzida, que a admissibilidade da presente revista, quer por via da aplicação do regime especial do art.º 14º, nº 1, do CIRE, quer pela aplicação do regime geral (art.º 671, nº 2, do CPC) exigiria sempre como requisito a existência de contradição entre o acórdão recorrido e um anterior acórdão das Relações ou do STJ.

Tanto bastaria para concluir que o presente recurso não deveria ter sido admitido, uma vez que, como é patente e a recorrente de modo nenhum contraria, o mesmo não vem assim estruturado e fundamentado.

No que toca, particularmente, às razões agora invocadas pela recorrente, será de acrescentar o seguinte:

Não se compreende bem a utilidade da questão relativa à tramitação do incidente de destituição (pontos 1 a 5): se no próprio processo de insolvência ou em eventual apenso em que a respectiva decisão tenha sido proferida.

Apesar de nos parecer, como se afirmou no aludido despacho, que a sede própria para a tramitação desse incidente é o processo principal de insolvência, esta questão acaba por não ter reflexos práticos, uma vez que seria sempre exigível (em qualquer dos regimes potencialmente aplicáveis), como requisito de admissibilidade a contradição de acórdãos.

Por outro lado, temos dificuldade em compreender também a questão relativa à dupla conforme (pontos 6 a 8).

A dupla conformidade constitui uma causa impeditiva da revista que seria normalmente admissível.

Daí decorre que, se existe uma fundamentação essencialmente diferente (como a recorrente defende) ou a decisão do acórdão é tomada apenas por maioria (com um voto de vencido, como no caso), não existe dupla conforme, mas isto, só por si, não implica que a revista seja admissível, pois tem de satisfazer os requisitos legais para tal necessários.

No caso, o recurso de revista só seria admissível (por qualquer das vias indicadas) com fundamento na contradição de acórdãos, mas a recorrente não a alegou.

Parece, aliás, que a recorrente incorre em manifesto equívoco ao afirmar (ponto 8) que "ocorrendo confirmação com voto de vencido ou com fundamentação essencialmente diferente", o recurso será (sempre) admissível, mas não é assim, como se referiu. Daí só adviria o afastamento da dupla conforme, não viabilizando, só por si, a admissibilidade do recurso.

No que respeita às nulidades invocadas, reitera-se o que se afirmou no despacho liminar: essas nulidades, podendo constituir fundamento do recurso (art.º 674º, nº 1, al. c), do CPC), não podem servir de fundamento exclusivo da sua admissibilidade (cf. art.º 615º, nº 4, do referido diploma).

Por fim, quanto à inconstitucionalidade invocada (ponto 10):

No despacho liminar não se afirmou que o art.º 14º, nº 1, do CIRE é aplicável a outros apensos do processo de insolvência, que não o de embargos.

De todo o modo, quer por aplicação dessa norma (por se entender que o incidente de destituição se processa nos autos principais da insolvência), quer por aplicação do art.º 671º, nº 2, do CPC (a entender-se que o incidente se processou no apenso de liquidação), não se veda o acesso ao 3º grau de jurisdição, apenas se exigindo um requisito suplementar: o da oposição de acórdãos.

Ora, é aceite, pacificamente, que o legislador ordinário dispõe de ampla liberdade de conformação na regulamentação dos requisitos e graus de recurso, podendo restringir a sua admissibilidade ou estabelecer outros condicionalismos, contanto que o faça de forma não arbitrária e não desproporcionada.

É esta a situação com que aqui deparamos, em qualquer dos caminhos apontados: quer por razões de celeridade (art.º 14º do CIRE), quer pela natureza adjectiva da questão (art.º 671º, nº 2, do CPC), não se mostra que a solução legal – de exigir como requisito de admissibilidade da revista a contradição de acórdãos – seja arbitrária ou desproporcionada, não violando, por isso, qualquer princípio constitucionalmente consagrado.

Em conclusão:

1. O pedido destituição do administrador da insolvência, como decorre do regime plasmado no CIRE (cfr. art.º 56º e respectiva inserção sistemática), integra incidente enxertado no processo principal de insolvência, estando o recurso de revista sujeito ao regime do art.º 14º, nº 1, do CIRE.

2. Mesmo que assim se não entenda, será de considerar que o acórdão, que aprecie a decisão que indeferiu aquele pedido, não conhece do mérito, nem põe termo ao processo (art.º 671º, nº 1, do CPC), apreciando decisão interlocutória sobre a relação processual.

3. Neste caso, a revista "continuada" apenas será admissível nos termos do art.º 671º, nº 2, do CPC.

4. As alegadas nulidades, podendo constituir fundamento do recurso (art.º 674º, nº 1, al. c), do CPC), não pode servir de fundamento exclusivo da sua admissibilidade (cf. art.º 615º, nº 4, do referido diploma).

5. A exigência de contradição de acórdãos (cf. arts. 14º, nº 1, do CIRE ou art.º 671º, nº 2, do CPC), como requisito de admissibilidade do recurso de revista, não é arbitrária ou desproporcionada, não violando qualquer princípio constitucionalmente consagrado.

Em face do exposto, julga-se findo o recurso interposto por Imobrauto - Gestão de Investimentos Imobiliários, SA, por não haver que conhecer do seu objecto.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UCs.

Lisboa, 03 de novembro de 2021

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).