Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A542
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PAULO SÁ
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
CHEQUE
REVOGAÇÃO
JUSTA CAUSA
ORDEM DE NÃO PAGAMENTO
DEPÓSITO BANCÁRIO
CONVENÇÃO DE CHEQUE
ILICITUDE
DANO
Nº do Documento: SJ2008022805421
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 67, 04.04.2008, P. 2058-2081.
Texto Integral: S
Referência Processo: LIVRO 9, REVISTA ALARGADA, P. 231 - 501
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA AMPLIADA
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
Uma instituição de credito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artª 29 da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32 do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos arts14 2ª parte do decreto nº 13004 e 483 nº 1 do C Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


I.Grupo SM – CDM, Lda., intentou, em 21 de Março de 2002, na 6.ª Vara Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra o Banco AA, S.A. (actualmente, Banco BST, S.A.), pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 97.175,38, correspondendo € 88.573,74 a capital e € 8.601,64 a juros de mora vencidos, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese:

É dona e legítima portadora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n.º 200000000000 do Banco AA, por si titulada.
Tais cheques foram entregues à A., para pagamento de uma dívida da sociedade VS – Vestuário e Bijuterias, Lda.
Apresentados a pagamento nos oito dias posteriores à data da respectiva emissão foram todos devolvidos com a a indicação de cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade ou simplesmente cheque revogado – falta vício na formação da vontade.
Esta devolução ocorreu em consequência do sacador ter dado ao Banco R. ordem de revogação dos cheques, o que este veio a aceitar e a cumprir, razão pela qual a A. nunca recebeu as quantias tituladas pelos cheques, estando, por conseguinte, desembolsada da quantia de € 88.573, 74, correspondente ao somatório dos vinte cheques.

Contestou o R., pugnando pela improcedência da acção.

A A. replicou.

O R. deduziu intervenção acessória provocada do sacador e da sociedade devedora. Admitida a intervenção, após audição da A. que não se opôs, informando que os chamados haviam sido declarados falidos.

Foram os intervenientes citados nas pessoas dos liquidatários judiciais, mas não constituíram mandatário nem contestaram.

Foi proferido despacho saneador, onde se fixaram os factos assentes e a base instrutória, tendo sido formuladas reclamações parcialmente atendidas.

Realizado o julgamento em sede de 1.ª instância, foram fixados os factos provados, sem qualquer reclamação e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o R. a pagar à autora, a quantia de € 88.573,74, acrescida de juros de mora, desde a data de citação.

A 1.ª instância fundamentou a decisão, no essencial, deste modo:

«Não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação.»

«A recusa operada foi ilegítima, face ao disposto no art. 32º LUC, pelo que, nos termos dos arts. 14º, 2ª parte do Decreto 13004 e 483º C. Civil, o Réu terá que responder por perdas e danos, caso se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil.»

E, mais à frente (fls. 224):

«…o Réu ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que este foi apresentado a pagamento no prazo legal), impediu que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1º do DL 316/97 de 19-11 e comunicação ao Banco de Portugal»

E concluiu (ibidem):

«…o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.»

No caso, «o dano corresponde aos montantes dos cheques que a autora não recebeu da sacadora, acrescido de juros a contar da citação».

Inconformado, o R. interpôs da referida decisão recurso de revista – recurso per saltum –, requerendo o julgamento ampliado, visando a uniformização da jurisprudência.

O R. conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo:

1. O Tribunal a quo considerou que o BST praticou um facto ilícito, por ter aceite uma ordem de revogação dos cheques juntos aos autos;
2. Contrariamente ao defendido na decisão da 1ª instância e à jurisprudência maioritária subsequente ao assento 4/00, de 17/2, entendemos que o Decreto 13004, de 1927 foi integralmente revogado com a ratificação por Portugal da Convenção de Genebra que aprovou a Lei Uniforme do Cheques;
3. Tal entendimento, tem sido defendido, entre outros, pelo Dr Fílinto Elísio (…), Prof Ferrer Correia e Dr António Caeiro (…) e mais recentemente pelo Prof. Germano Marques da Silva (…) e sempre foi o entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores até à publicação do citado assento;
4. Face ao que decorre da LUC (arts 40º, 4º e 25º), o banco sacado não é obrigado cambiário e não pode aceitar ou avalizar um cheque, pelo que não responde perante o beneficiário;
5. Por outro lado, não intervêm na relação cartular estabelecida entre o sacador e o beneficiário, pelo que não pode ser atingido pelo cumprimento de uma ordem emanada pelo sacador, que ordena o não pagamento de um cheque que pôs a circular;
6. Sem prejuízo do anteriormente concluído, (…) o sacado responde, nos termos gerais da responsabilidade extracontratual, mas não por força do que dispõe a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, que se encontra revogado;
7. Mas mesmo que se entenda que a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, está em vigor, não pode o mesmo deixar de ser lido em articulação com o nº 2 do art 1170º do C.Civil, pelo que, em situações de justa causa, a revogação do cheque deve admitir-se;
8. Com a alteração introduzida pelo Decreto 316/97, de 19/11, no art 1º nº 2 do D/Lei 454/91, de 28/12, algo se alterou nas relações sacado/sacador, quanto ao princípio da livre revogabilidade, na medida em que os bancos, desde a entrada em vigor do referido Dec-lei 316/97, só podem aceitar ordens de revogação, sustentadas em justa causa.
9. Ao passo que antes o sacado podia aceitar livremente uma ordem de revogação, com a publicação do referido D/L316/97, tal faculdade ficou limitada (…).
10. Com a alteração da redacção do art 1º nº 2, levada a cabo pelo D/Lei 316/97, de 19/11, houve uma alteração significativa: onde se lia ”saque ou participa na emissão de um cheque sobre uma conta cujo saldo não apresente provisão suficiente” passou a ler-se “verificada a falta de pagamento”.
11. A redacção actual “verificada a falta de pagamento”, é mais abrangente e refere-se às várias hipóteses do cheque que apresentado a pagamento não é pago: falta de provisão, saque irregular, revogação, conta cancelada, etc.
12. A redacção introduzida pelo D/Lei 316/97, conduz a um resultado de que o sacado não se pode desviar: obriga o sacado, perante uma situação de falta de pagamento (E NÃO EXCLUSIVAMENTE POR FALTA DE PROVISÃO, como ocorria antes da alteração da lei), a notificar o sacador para proceder à regularização do cheque não pago, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (art 1º nº 2 e 1º-A nº 1, D/Lei 454/91).
13. Ora existindo um DEVER imposto ao sacado, decorrente de norma expressa, de notificar o sacador para regularizar, em 30 dias, o cheque não pago (…), não é de admitir que o sacado aceite uma ordem de revogação.
14. Se aceitar uma ordem de revogação, entra em contradição: por um lado, o banco sacado conforma-se com a ordem, mediante a aposição de um carimbo, no verso do cheque, com a indicação de “cheque revogado”; por outro lado, está obrigado, por lei, a notificar o sacador para vir regularizar o cheque, cuja ordem para não pagar aceitou como válida.
15. Dito isto, o banco, não pode acatar uma ordem de revogação, pois se o fizer está potencialmente a incorrer em responsabilidade civil extracontratual (nº1, 2ª parte do art 483º do CC)
16. Mas como encontrar o ponto de equilíbrio entre este entendimento e as hipóteses em que o sacador tem razões (justa causa) para ordenar a revogação de um cheque que pôs a circular ou foi posto a circular (por ex. furto) contra sua vontade?
17. Pelo apelo à natureza jurídica das relações sacado/sacador (contrato do cheque) – mandato sem representação conferido no interesse do mandante e do mandatário – pode limitar-se a aceitação da revogação aos casos de “justa causa”, nos termos do art 1170º nº 2 do C.Civil.
18. A responsabilização do sacado não decorre, como já se viu, da lei cambiária – que a não admite! – nem de qualquer relação jurídica entre o sacado e o portador – que inexiste! – nem de se mostrar em vigor a 2ª parte do artº 14º do Dec 13004, mas de norma expressa que impede a observância de uma instrução de revogação, (art 1º nº2 e 1ºA nº1 Dec. Lei 454/91), que, é, todavia, afastada, em situações de justa causa, por força do que dispõe o nº2 do art 1170º do CC.
19. Não é juridicamente aceitável defender-se a responsabilização civil, por aceitação de uma ordem de revogação, durante o período de apresentação a pagamento, existindo fundamento jurídico (justa causa) para o não pagamento (…) – ora é o que parece resultar do assento 4/00, onde se defende a irrevogabilidade total do cheque, durante o período de apresentação a pagamento.
20. Defender-se posição diferente – ou seja, a total irrevogabilidade durante o período de apresentação a pagamento – é atentar contra o nº 2 do art 1170º do C.Civil.
21. A relação banco/sacador traduz um mandato sem representação, uma vez que o banco actua em nome próprio (…).
22. Mas o mandato é também conferido no interesse do mandatário, uma vez que há interesse por parte do banco no negócio de atribuição de cheques a clientes que previamente lhe confiam o dinheiro (…)
23. Hoje, é o conjunto de serviços prestados pelo Banco, a respectiva qualidade, associada à confiança de que o Banco concederá crédito, em caso de necessidade e de acordo com a capacidade de endividamento do cliente, que cimenta a relação bancária, que fideliza o cliente ao banco.
24. Acresce que, actualmente, a entrega de uma carteira de cheques tem um custo para o sacador (…), o que, naturalmente, reforça o interesse do banco na prestação do serviço.
25. Fica assim evidenciado que o banco (mandatário) tem interesse na relação que estabelece com o sacador, pelo que o mandato deve considerar-se passado também no seu interesse.
26. Daqui resulta, o seguinte corolário: se o mandato não fosse também conferido no interesse do mandatário (ou dito doutra forma, se fosse somente conferido no interesse do mandante), o banco teria que acatar a instrução de revogação, por força do que estabelece o art 1170º nº 1 CC.
27. O que implicaria um conflito entre a natureza jurídica do contrato de cheque (mandato sem representação e respectiva possibilidade de revogação do mandato, nos termos do art 1170º nº1 CC) e o regime legal imposto pelo Dec-Lei 316/97, que obriga os bancos a notificar os sacadores, em todas as situações de não pagamento (e não somente em situações de falta de provisão) de um cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal.
28. Todavia, como o mandato é também conferido no interesse do banco sacado, a instrução de revogação só produz efeitos se o mandatário der o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa (art 1170º nº2 do CC).
29. Ou seja, a possibilidade do sacado acatar ou não a ordem de revogação (referimo-nos sempre a situação da ordem ser dada antes de expirado o prazo do artº 29º LUC), terá obrigatoriamente que ser sempre enquadrada segundo a seguinte perspectiva:
30. – o que determina a lei 454/91, por força da alteração introduzida pelo Dec-Lei 316/97 e a sua articulação com o regime da revogação do mandato, previsto no nº2 do art 1170º do CC.
31. Da articulação destas duas vertentes, resulta que é possível a revogação de um cheque desde que exista justa causa para a ordem de revogação.
32. Existindo motivo justificado, o sacado não pode recusar a contra-ordem para não pagar, sob pena de violar o art. 1170º nº2 do CC.
33. Ora, este entendimento está também conforme ao REGULAMENTO DO SISTEMA COMPENSAÇÃO INTERBANCÁRIO – vulgarmente conhecido por SICOI.
34. O regulamento SICOI prevê a revogação do cheque quando a ordem se funda em justa causa.
35. A revogação sem sustentação numa “justa causa” não é tratada, pelo que é de concluir a contrário, que não é admitida, pelo SICOI.
36. O que importa determinar é (…) se o banco deve ou não fazer de “julgador”, quando o sacador manda cancelar um cheque, por alegada justa causa”
37. O texto do Regulamento SICOI, parece apontar no sentido de que o sacado está obrigado a exigir explicações concretas quanto à revogação.
38. Contudo, não deve ser tomado à letra o que dispõe o SICOI, pois aceitar tal hipótese configuraria a atribuição de poderes de avaliação/decisão a um funcionário que ao balcão atende um sacador, que lhe pede a revogação, por “vicio da vontade”.
39. Deve pois bastar-se com a declaração do sacador (como o exige o SICOI) confiando na sua declaração, sem ter que indagar mais pormenores.
40. Assim, se o banco for demandado por acatar uma ordem de revogação, excepciona, com o motivo de justa causa invocada pelo sacador e que o SICOI admite, afastando, assim, em princípio, a sua responsabilidade.
41. Chegados aqui cremos ser possível defender-se que não ocorreu nenhum facto ilícito praticado pelo banco sacado, aqui BST, quando aceitou uma ordem de revogação fundada em justa causa, como resulta do verso dos cheques juntos aos autos, não podendo, pois, o banco ser responsabilizado, nos termos da 2ª parte do art 14º do decreto 13004.
42. Nos termos do artigo 725º do CPCivil, requer-se que a presente apelação se faça directamente para o STJ, através do denominado recurso “per saltum”.
43. Por último, deve fixar-se a uniformização de jurisprudência da matéria trazida a estes autos, nos termos do art. 732º-A do CPCivil, por no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, existiram diversos acórdãos dos Tribunais superiores, designadamente o acórdão do STJ de 05/07/01 (Colectânea Jurisprudência, Ano IX, Tomo II, 2001, p146 e segts.), o acórdão do STJ do mesmo dia (Proc 01A1461, nº convencional STJ00042071, www.dgsi.pt), acórdão da Relação de Coimbra de 28/11/00 (Colectânea Jurisprudência Ano XXV, 2000, Tomo V, pág 24 e segts.), que propugnam o entendimento de que a aceitação da revogação de um cheque, durante o período legal de apresentação a pagamento (art 29º LUCH) gera responsabilidade civil extracontratual do banco sacado e o acórdão do STJ de 19/06/01 (Proc 01A1330, nº convencional JST00041630 www.dgsi.pt) e o acórdão do STJ de 06/12/90 (Proc. 079579, nº convencional JST 00006004, www.dgsi.pt), que defendem um entendimento contrário.

A autora, ora recorrida, diz que deve ser negado provimento ao recurso, propondo que seja fixada jurisprudência, nos seguintes termos:

«O banco sacado que aceita a ordem de revogação de um cheque dada pelo sacador e que a executa durante o período de apresentação a pagamento comete um facto ilícito por violação do disposto no art. 14º do Decreto 13004 e é responsável perante o portador por perdas e danos.»

O Senhor Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso e o Ministério Público foi de parecer que o conflito fosse resolvido no sentido de que:

«Uma instituição de crédito sacada que recuse o pagamento de cheque emitido através de módulo por ela fornecido, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29º da LUC, alegando cumprimento de ordem de revogação que lhe fora dirigida pelo sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do art. 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14º, 2ª parte do Dec. 13004 e 483º do Código Civil».

Cabe apreciar e decidir.


II. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, face ao oportunamente especificado e ao resultado do julgamento (exclusivamente factos assentes):

1. A Autora é dona e legítima possuidora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n.º 21458765001 do Banco AA, por si titulada, a saber:
a) cheque n.º 300000000, emitido em 10/09/2000, titulando o montante de 715.000$00 e apresentado a pagamento em 13/09/2000;
b) cheque n.º 7000000, emitido em 13/09/2000, titulando o montante de 900.000$00 e apresentado a pagamento em 15/09/2000;
c) cheque n.º 80000000, emitido em 15/09/2000, titulando o montante de 500.000$00 e apresentado a pagamento em 19/09/2000;
d) cheque n.º 600000000, emitido em 15/09/2000, titulando o montante de 650.000$00 e apresentado a pagamento em 19/09/2000;
e) cheque n.º 200000, emitido em 20/09/2000, titulando o montante de 750.000$00 e apresentado a pagamento em 22/09/2000;
f) cheque n.º 9000000, emitido em 20/09/2000, titulando o montante de 600.000$00 e apresentado a pagamento em 22/09/2000;
g) cheque n.º 09000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 700.000$00 e apresentado apagamento em 04/10/2000;
h) cheque n.º 1000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 750.000$00 e apresentado a pagamento em 04/10/2000;
i) cheque n.º 04000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 1.010.000$00 e apresentado a pagamento em 02/10/2000;
j) cheque n.º 250000000, emitido em 10/10/2000, titulando o montante de 1.270.000$00 e apresentado a pagamento em 11/10/2000;
k) cheque n.º 9000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 980.000$00 e apresentado a pagamento em 23/10/2000;
l) cheque n.º 3000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 1.000.000$00 e apresentado a pagamento em 24/10/2000;
m) cheque n.º 10000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 1.270.000$00 e apresentado a pagamento em 31/10/2000;
n) cheque n.º 2000000, emitido em 30/10/2000, titulando o montante de 950.208$00 e apresentado a pagamento em 02/11/2000;
o) cheque n.º 8000000, emitido em 05/11/2000, titulando o montante de 600.000$00 e apresentado a pagamento em 08/11/2000;
p) cheque n.º 7000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 857.233$00 e apresentado a pagamento em 05/12/2000;
q) cheque n.º 70000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 1.040.000$00 e apresentado a pagamento em 04/12/2000;
r) cheque n.º 70000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 1.050.000$00 e apresentado a pagamento em 04/12/2000;
s) cheque n.º 6000000, emitido em 15/12/2000, titulando o montante de 715.000$00 e apresentado a pagamento em 19/12/2000;
t) cheque n.º 070000000, emitido em 25/12/2000, titulando o montante de 1.450.000$00 e apresentado a pagamento em 27/12/2000;
2. Tais cheques foram entregues à Autora para pagamento de uma dívida da sociedade VS – Vestuário e Bijuterias, Lda.
3. Todos os cheques foram devolvidos pelos serviços de compensação do Banco de Portugal com os seguintes dizeres apostos no verso: cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade ou cheque revogado – falta vício na formação da vontade.
4. O sacador FFC emitiu ordem dirigida ao Banco Réu para revogação dos mencionados cheques.
5. O Banco Réu aceitou tais ordens de revogação e cumpriu-as.
6. A conta bancária identificada em A) não apresentava fundos monetários que possibilitassem o pagamento dos cheques referidos na data em que os mesmos foram apresentados a pagamento.

II.B. De Direito

II.B.1. Previamente importa precisar o âmbito do recurso.

Nos termos do artigo 681.º do Código de Processo Civil não haverá recurso se as partes a ele renunciarem ou se tiverem aceitado a decisão depois de proferida.

Esta renúncia ou aceitação podem ser parciais se a decisão for divisível. Assim, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas desfavoráveis e o vencido no requerimento de interposição ou nas alegações deste só se referir a uma delas, tal implica renúncia ao recurso na parte sobrante ou aceitação tácita das decisões desfavoráveis não citadas (Cf. FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 130).

Diz AMÂNCIO FERREIRA, na obra citada (p. 153):

«…no que concerne a alguns julgados desfavoráveis, a parte vencida pode não estar interessada em questioná-los, ou por com eles concordar, ou por os prejuízos que daí advêm não serem de grande monta, ou por não querer protelar no tempo a definição da situação jurídica submetida a juízo. Se tal acontecer, a matéria devolvida para conhecimento do tribunal superior não coincide com a totalidade da que foi considerada como desfavorável; a não incluída na impugnação adquire a força de caso julgado.

Em dois actos processuais, pode o recorrente, visado com uma pluralidade de decisões desfavoráveis, restringir o objecto do recurso: no requerimento de interposição e nas conclusões da alegação. (…) nas conclusões da alegação, se o recorrente referir que não se pronuncia sobre o assunto respeitante a algumas decisões desfavoráveis, por já não estar interessado em submetê-las à apreciação do tribunal superior, ou se, pura e simplesmente, ao assunto dessas decisões não alude, o recurso fica restringido às restantes decisões desfavoráveis (art. 684.º,n.º 3).»

E mais adiante (p. 154), diz, ainda, o ilustre jurista:

«Se o recorrente ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objecto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.»

Não se perca de vista que o recurso per saltum implica que nele apenas se suscitem questões de direito, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 721.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil.

Daqui decorre, desde logo, ter o recorrente optado por não recorrer da matéria de facto.

Depois, das conclusões terá que se inferir que existe uma restrição da matéria de direito, tendo o recurso como único objecto a apreciação da questão da licitude da conduta do Banco recorrente.

De fora do âmbito do recurso estão, assim, as questões relativas aos demais pressupostos da obrigação de indemnizar. Isto é tanto mais evidente quanto o dano se apresenta como condição essencial da responsabilidade (MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, p. 329). Se não houver dano não há responsabilidade delitual ou contratual, nada importando que tenha sido praticado um facto ilícito.

A opção adoptada no recurso, de crítica exclusiva do entendimento subscrito pela decisão recorrida quanto à ilicitude, implica a aceitação do decidido quanto aos demais pressupostos e, particularmente, quanto ao dano.

Atento o teor da decisão recorrida e as conclusões do recorrente apenas está em questão:

a) saber se não ocorreu nenhum facto ilícito praticado pelo banco sacado, aqui BST, quando aceitou uma ordem de revogação fundada em justa causa, não podendo, pois, o banco ser responsabilizado;
b) formular jurisprudência de carácter uniformizador «no sentido do entendimento de que a revogação de um cheque só é admissível, durante o período de apresentação a pagamento (art. 29º LUCH), se sustentada em justa causa».

II.B.2. A resposta às questões colocadas pressupõem os seguintes patamares de análise:

1. Contradição de acórdãos sobre as mesmas questões fundamentais de direito – revogação da 2.ª parte do artigo 14.º do Dec. 13004 ou, a entender-se vigente, sua interpretação conjugadamente com o n.º 2 do art.º 1170.º do C. Civil;
2. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões.
3. Apreciação crítica das teses em confronto na sua aplicação ao caso concreto.

II.B.3. A primeira questão a resolver nos recursos ampliados para efeitos de uniformização de jurisprudência é a de saber se existe ou não oposição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito.

Ocorre a identidade da questão, se à aplicação normativa está subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica.

No caso vertente está em discussão a eficácia da revogação operada no período legal de apresentação e o carácter ilícito da actuação do sacado que aceitou uma tal revogação.

O conflito terá que se colocar entre a decisão proferida nestes autos e os acórdãos invocados como fundamento.

Destes, apenas um diverge da corrente que foi acolhida na decisão recorrida e que é o acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001, sustentando “que o sacado é livre de se conformar com a ordem de revogação dada pelo sacador ainda que dada na pendência do prazo de apresentação”.

Tanto basta que para que estejam reunidos os pressupostos para a uniformização de jurisprudência pretendida, sendo certo que a delimitação de uniformização deve pautar-se pelos próprios limites da divergência que são estes: vinculação ou não do banco sacado à aceitação da ordem de revogação do cheque no período da respectiva apresentação.

II.B.4. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões.

II.B.4.1 A primeira questão a tratar nestes autos prende-se com o facto de saber se o banco sacado pode ser responsabilizado, perante o seu portador legítimo, pelo pagamento de um cheque emitido por um titular de conta de depósito à ordem, que posteriormente, mas durante o prazo de apresentação a pagamento, emitiu uma ordem de revogação desse mesmo cheque emitido e entregue ao portador, que, entretanto, o apresentou a pagamento.

As questões a decidir, no âmbito do presente recurso, situam-se em dois quadros distintos:

(i) No quadro disciplinado pelas normas de direito internacional que integram a LUCH;

(ii) No quadro do direito extracambiário interno, com referência, designadamente, ao art. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004, aos arts. 1.º, n.º 2 e 1.º-A, n.º 1 do DL n.º 454/91, na redacção do DL n.º 316/97 e ao art. 1170.º, n.º 2, do C. Civil.

II.B.4.2. O Quadro Normativo Estabelecido na LUCH.

A LUCH não fornece propriamente uma definição de cheque, embora, após fixar nos arts. 1.º e 2.º alguns dos respectivos requisitos essenciais e não essenciais – e, entre os primeiros, se devendo conter «o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada» (art. 1º, n.º 2) –, complementa a sua configuração como título com o disposto no seu artigo 3.º: «O cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção, expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque. A validade do título como cheque não fica, todavia, prejudicada no caso de inobservância destas prescrições».

Como afirmam FERRER CORREIA/ANTÓNIO CAEIRO (Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2 Julho/Dezembro de 1978, p. 457), «[n]a lição dos tratadistas, o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita.»

Na base de emissão do cheque, conforme se dispõe na primeira parte do art. 3.º da LUCH, acima transcrito, surpreendem-se duas relações jurídicas distintas, ambas estabelecidas entre o emitente (sacador) e determinado Banco (sacado): a relação de provisão e a convenção ou contrato de cheque.

O cheque emitido com violação do imperativamente disposto na primeira parte do art. 3.º da LUCH não é ferido de nulidade, nos termos genericamente previstos no art. 294.º do Código Civil, atento o regime especial contido na última parte daquele mesmo preceito (José Maria Pires, O Cheque, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 28).

Garante-se, deste modo, a autonomia da relação cambiária, relativamente, quer à relação causal subjacente, quer às diversas convenções extracartulares.

«Assim se facilita a circulação do cheque e a boa fé dos seus portadores, que beneficiam sempre da garantia do sacador, quanto ao pagamento. De facto, o art. 12.º da Lei Uniforme estabelece que “o sacador garante o pagamento”» (J. M. PIRES, ibidem).

O Banco sacado não é (co-)obrigado cambiário, no sentido de que não interveio na relação cartular, nem assinou o cheque – O sacado não pode, nos termos previstos nos art.os. 4.º e 25.º da LUCH, aceitar o cheque (título pagável à vista) ou avalizá-lo –, não estando compreendido no elenco dos co-obrigados referidos no art. 40.º da referida Lei.

Não existe também qualquer relação jurídica entre o sacado e o tomador do cheque, já que o tomador não participa na convenção de cheque celebrada entre o titular da provisão e o Banco, nem o sacado participa no negócio de emissão.

O Banco está vinculado, perante o sacador, e em regra, ao pagamento do cheque – não como obrigado cambiário, mas em contrapartida da relação de provisão e da convenção de cheque com aquele estabelecidas.

Feitas estas precisões de carácter genérico sobre a disciplina do cheque abordemos agora, especificamente, o tema da revogação do cheque.

Dispõe o artigo 32.º LUCH que «a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação. Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.»

O prazo de apresentação do cheque (pagável no país em que foi passado) é de oito dias, nos termos do art. 29.º LUCH. Assim, na interpretação meramente literal do preceito, a revogação do cheque só produz efeito findo o prazo de oito dias, mas, se não for revogado, pode ser pago pela entidade sacada mesmo depois do prazo referido.

Ora, no quadro de previsão do art. 32.º da LUCH, «revogar um cheque é proibir o seu pagamento; é dá-lo como não emitido… … O sacador do cheque, depois de fazê-lo entrar na circulação, dá ordem ao banqueiro para que não o pague».

Interessa, tendo em vista a aplicação actual do regime contido no art. 32.º da LUCH, bem como as questões que a esse respeito se colocam, reconstituir, com recurso aos trabalhos preparatórios da Convenção, o espírito que presidiu à adopção da redacção final. Segue-se, para tanto, a condensação efectuada no Assento n.º 4/2000 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Fevereiro de 2000, pp. 570 a 586), que recorre substancialmente à obra de referência de BOUTERON, sobre o cheque (Le Statut).

Os trabalhos da Convenção assentaram no projecto de articulado anteriormente redigido por um comité de peritos, consideradas as Resoluções da Conferência da Haia de 1912.

Em matéria de revogação de cheques, o comité de peritos não transpôs o regime anteriormente constante do art. 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912, limitando-se a recomendar «que os Estados tomem medidas de ordem civil para impedir a revogação do cheque durante o prazo de apresentação».

Apresentadas várias emendas, centrar-se-ia a discussão sobre a proposta italiana, inspirada no sistema germânico de irrevogabilidade relativa, como via intermédia ou compromissória entre os sistemas de livre revogabilidade (Reino Unido, Finlândia, Suécia e Dinamarca) e de irrevogabilidade rígida (França).

A primeira parte da redacção do art. 32.º da LUCH, que veio a ser adoptada, correspondia à do aludido art. 17.º das Resoluções da Haia, consagrando a citada posição intermédia e contando com o apoio do representante de Portugal, que propôs, alem disso, sem êxito, que se adoptasse uma fórmula idêntica à do artigo 14.º, n.º 2, do Dec. n.º 13.004.

Para garantir aos Estados em que vigorava um sistema de livre revogabilidade a preservação e consistência da respectiva lei interna, ficou consagrada a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa adoptado, através da alínea a) do art. 16.º do Anexo II, que dispõe:

«Qualquer das Altas Partes Contratantes, por derrogação do art. 32.º da lei uniforme, reserva-se a faculdade de, no que respeita aos cheques pagáveis no seu território:
a) Admitir a revogação do cheque mesmo antes de expirado o prazo de apresentação;
(…).»

Porém, Portugal, não formulou, quanto a este ponto, qualquer reserva, pelo que vigora sem derrogações, o art. 32.º da LUCH.

A primeira parte do art. 32.º da LUCH radica assumidamente na protecção do portador do cheque, bem como na credibilização do próprio cheque como meio de pagamento (pontos acentuados no decurso das sessões de trabalho).

FERRER CORREIA e ANTÓNIO CAEIRO (obra citada, pp. 466, 467) defendem o carácter limitado da norma.

Segundo estes autores, não sendo o Banco sacado obrigado cambiário, não dispondo contra ele o portador do cheque, no estrito âmbito dessa relação, de direito de acção, a visada protecção do interesse do portador quedar-se-ia sem tutela efectiva (salvaguardado, relativamente ao sacador, o seu direito de regresso) – contradição ou imperfeição justamente apontadas nas sessões de debate da Convenção, como anteriormente, aquando das Resoluções da Haia, já o tinham sido.

Seguir-se-ia que, não estando o sacado obrigado perante o portador, «ele é livre de se conformar ou não com a ordem de revogação, mesmo durante o prazo da apresentação do cheque. Se deseja manter boas relações com o sacador, provavelmente acatará a ordem, apesar de ela o não obrigar. (…) Em resumo: se pagar, pagará bem, mas nada o obriga a fazê-lo. Nisto se esgota o alcance da referida norma».

O Banco sacado, na hipótese considerada, ficaria constituído árbitro da situação, cabendo-lhe dirimir os interesses conflituantes, por um lado, do cliente/sacador e, por outro, do portador, bem como da defesa da fé no título, como meio de pagamento.

Sobre esta tese se pronunciou, o Assento n.º 4/2000 (cit., p. 582), nos seguintes termos:

«a afirmação de que o sacado é livre de se conformar ou não com a revogação ou que, “se pagar, pagará bem, mas nada obriga a fazê-lo”, tudo para se significar que ele actua de acordo com a lei se não acata a ordem de revogação, mas também não a infringe se se conformar com esta, constitui, ao que nos parece, uma negação da evidência».

A LUCH, no seu art. 32.º, primeira parte, estabelece imperativamente – pelas referidas razões de protecção do portador, bem como de credibilização do próprio cheque como meio de pagamento – que o pagamento do cheque (pagamento devido, nos termos do art. 28.º), não pode ser proibido, mediante revogação, durante o prazo de apresentação.

A injunção aí contida não tem unicamente como destinatário o sacador. Com fundamento, precisamente, na convenção de cheque, não se dirige apenas àquele, mas também ao sacado: constitui-se como lex contractus relativamente às relações entre ambos.

O sacado incumpre-a – e viola o comando legal – se, dentro do prazo de apresentação, acatar a ordem de proibição, recusando o pagamento do cheque.

Transcreve-se do ac. do STJ, de 5 de Julho de 2001, (Proc. 01A1461, CJ, ano IX, tomo II, pp. 146 a 149):

«Ora o art. 32.º da LUC é muito claro: “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”.
Portanto, enquanto não findar o prazo de apresentação a pagamento (que é de oito dias, contados da data aposta como de emissão: arts. 1.º, n.º 5 e 29.º da LUC), a revogação do cheque não tem efeitos, não é eficaz.
Consequentemente, se a revogação efectuada dentro do prazo de apresentação não tem efeitos, o Banco sacado não pode recusar o pagamento (pelo motivo da revogação), porque fazê-lo seria dar efeitos a um acto que a lei diz que os não tem: a recusa de pagar, dentro do prazo de apresentação e pelo fundamento da revogação, seria um acto ilícito».

De acentuar que a vinculação do sacado à directiva contida no art. 32.º da LUCH não o converte, certamente, em obrigado cambiário, que o não é, não podendo, a esse título, ser accionado pelo portador, ou sancionado pelo incumprimento.

O sancionamento ou não do incumprimento em causa, entendido por exorbitante dos objectivos da Convenção, deverá obter-se na diversidade do quadro de direito interno dos diferentes Estados-membros (Neste sentido, vide os artigos 19.º do anexo II da Convenção e o artigo 7.º da Convenção Destinada a Regular Certos Conflitos de Leis em Matéria de Cheques, designadamente os seus n.os 6.º e 7.º).

Foi tal entendimento que resultou da discussão dos trabalhos da Convenção, designadamente em resposta à proposta do delegado português de fazer incluir uma cláusula semelhante à previsão contida na 2.ª parte do artigo 14.º do Dec. 13.004, como se salienta no Assento n.º 4/2000 (p. 582), relacionando a inutilidade da proposta com o facto de que «uma tal previsão invadiria o domínio do direito comum, em matéria de perdas e danos».

Sobre o carácter vinculativo do artigo 32.º para o sacado, não é despiciendo invocar o argumento aduzido no acórdão deste Tribunal de 10 de Maio de 2007, in www.dgsi.pt:

«Do teor do dito art.º 32.º da LUCH, na parte transcrita, retira-se inequivocamente uma ideia: Findo o prazo de apresentação a pagamento, o sacado não deve pagar o cheque.
Esta ideia constitui, ela mesma, argumento a favor da posição de obrigatoriedade de pagamento. Se se entendesse que devia pagar, então teríamos a irrelevância da referência legal ao prazo. O antes e depois equivalia--se.»

Percorrendo a doutrina e a jurisprudência comunitária não se encontram contributos relevantes para a discussão sobre a responsabilidade do sacado relativamente ao portador. O leque das opções continua a ser o mesmo que existia no momento da discussão da Convenção, com o sistema francês a manter a posição da irrevogabilidade, o sistema da livre revogabilidade e o sistema germânico que continua a vigorar em diversos países (Itália, Espanha, Alemanha), sendo que em Itália (com uma norma semelhante ao artigo 32.º da nossa Lei Uniforme) se aceita a recusa de pagamento de um cheque, até por mero arbítrio.

Na procura da exacta definição do instituto de revogação do cheque, importa analisar agora se devem ser tratadas como tal as situações de furto ou extravio, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.

Compaginada a redacção do art. 32.º da LUCH, com a do art. 17.º das Resoluções da Haia de 1912, verifica-se que do âmbito da previsão daquele normativo estão excluídos os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.

Apenas o art. 21.º da LUCH incidentalmente se ocupa da matéria, por razões de necessidade do comércio, a propósito da aquisição, a non domino e de boa fé, do cheque.

Previu-se, por outro lado, na parte final do art. 16.º do ANEXO II da CGLUCH:

«Qualquer das Altas Partes Contratantes tem, além disso [da faculdade de derrogação do regime contido no art. 32.º da LUC, relativo à revogação de cheques, faculdade prevista nas alíneas a) e b) da primeira parte do preceito], a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos».

Os trabalhos preparatórios da CGLUC dão conta dos debates na matéria e da impossibilidade de, à semelhança do regime contido na 2.ª parte do art. 17.º das Resoluções da Haia, ser obtida consagração, no texto da LUCH, do mecanismo procedimental de oposição ao pagamento por parte do sacador, em caso de extravio, furto, emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.

Escreve-se, a esse respeito, no Assento n.º 4/2000, (cit., p. 577/578):

«No que concerne aos casos de perda ou ’vol’ (palavra que, na interpretação do delegado italiano, abrange todo o delito que provocou ou acompanhou a emissão do cheque) – matéria em que, como dissemos, os peritos não tinham retomado os textos dos artigos 17.º, 2.º parágrafo, e 31.º das resoluções da Haia –, a Conferência decidiu adoptar a reserva proposta pela delegação polaca e rejeitar qualquer solução distinta das que haviam sido precedentemente admitidas para a letra e constituíam os artigos 16.º, 2.º parágrafo, e 40.º, 3.º parágrafo, da LULL. (Na verdade, destas duas regras, apenas a primeira – protegendo o adquirente de boa fé de um título de que outrem fora, por qualquer maneira, desapossado – viria a ser consagrada na LUC, mais precisamente, no seu artigo 21.º)».

E conclui-se (ibidem):

«Daí que se tenha exarado no relatório: “Propusemos que se regulasse a situação, em caso de 'perda ou vol'. Pusemos em destaque que em tal caso o sacador ou um portador devia ser autorizado a opor-se ao pagamento mediante bloqueio da conta enquanto a questão não fosse esclarecida em processo judicial sumário. As divergências constatadas em matéria de 'procédure' impediram a unificação visada segundo aqueles princípios.” (Cf. J. Bouteron, Le Statut, cit., pp. 435-442.)».

Também, separando águas entre casos de revogação e os demais, acima considerados, sustentou o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em parecer não publicado:

«Noutras [situações] figurar-se-ão vícios tais que nem de revogação – logo, de aplicabilidade do artigo 32.º – deva rigorosamente falar-se.
Não pode, em casos tais, pretender-se aplicável o artigo 32.º apenas porque o titular da conta criou, com a comunicação ao banco, uma aparência de revogação.
Ninguém, decerto, sustentará que um cheque furtado e depois subscrito a título de saque com assinatura falsa possa ser pago dentro do prazo de apresentação, só porque o aparente sacador advertiu imediatamente o banco interditando-lhe o pagamento.
Nem se estará aí perante uma revogação, nem se integraria, consequentemente, a previsão do art. 32.º».

Em síntese: Os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, embora muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do art. 32.º da LUCH, não decorrendo desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques pelo sacado.

II.B.4.3. O Quadro de Direito Extracambiário Interno: A vigência na ordem interna da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004.

Dispõe o artigo 14.º do Decreto n.º 13.004, de 12.1.27, que «a revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no art. 12.º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento da referida revogação.» Acrescenta o § único do mesmo artigo que «se porém o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos».

Relativamente à questão da vigência, na ordem interna, da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004, entende-se dever a mesma obter resposta afirmativa, pelas razões constantes do citado Assento n.º 4/2000.

Entre as soluções estabelecidas na LUCH (considerando, designadamente, o sacado como não obrigado cambiário) e a contida no segmento normativo em causa não se verifica uma relação de oposição.

Assim como a LUCH, por força de uma Convenção self-restraint, se desinteressa de eventual sancionamento pelo incumprimento de uma obrigação do Banco sacado, uma vez que não releva de uma – inexistente – vinculação cambiária, relegando a questão para o ordenamento interno dos diferentes Estados--membros, também a disposição constante da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004 não pretende regular a relação cartular, antes historicamente exprimindo determinada medida de política legislativa, em vista do reforço da tutela do próprio cheque como meio de pagamento.

Não uma relação de oposição, mas de complementaridade, em suma.

Nas palavras do Assento: «uma solução de direito comum para uma questão de direito comum».

A obrigatoriedade de pagamento do Banco sacado perante o portador do cheque (em tese geral, não se cuidando, agora, de eventuais causas justificativas de recusa de pagamento) não poderá fundar-se, nem na relação cambiária, nem na convenção de cheque, res inter alios acta, relativamente ao Banco a primeira, quanto ao portador a segunda.

A vinculação, como regra, decorre da própria lei, do valor do cheque, pela mesma assumido, como meio de pagamento.

Certamente, meio de pagamento, sucedâneo da moeda legal no cumprimento de obrigações pecuniárias (e não pagamento, com efeitos liberatórios, nos termos previstos no art. 550.º do Código Civil) – «meio de pagamento cuja emissão deve estar coberta por disponibilidades constituídas por moeda escritural, representativa da moeda legal emitida pelo Estado (moeda metálica) ou pelo banco emissor (notas)».

Meio de pagamento, que transcende o quadro contratual privatístico em que foi gerado, cuja dimensão pública, aí implicada a protecção ao portador e a geral confiança na circulação do título, bem como a tutela penal do cheque, vem, além dos segmentos que se devem ter por vigentes do Dec. n.º 13.004, nuclearmente regulada no DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro, republicado pelo DL n.º 316/97, de 19 de Novembro, com as sucessivas alterações sofridas.

A imposição legal de pagamento dirigida ao Banco sacado, decorre, em termos gerais, do art. 28.º da LUCH (regulando-se nos arts. 40.º e ss. os procedimentos relativos ao não pagamento) e dos arts. 6.º, n.os 2, 8.º e 9.º do DL n.º 454/91, na redacção introduzida pelo DL n.º 316/97, cit. e pela Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto.

Escreve-se, a este respeito, no ac. do STJ, de 10 de Maio de 2007, proferido no processo n.º 07B939 e inserto em www. dgsi.pt.:

«... não se vislumbra, nesta primeira parte do art.º 32.º, ou em qualquer outro sítio, a possibilidade conferida ao sacado de pagar ou não pagar o cheque.
Se atentarmos, por exemplo, nos artigos 6.º, n.º 2, 8.º e 9.º do DL n.º 454/91, de 28.12 e, bem assim, no art.º 28.º da LUCH, vemos que a regra é a imposição de pagamento ao sacado. Os casos de não pagamento são ressalvas.
Aliás, a colocação nas mãos do sacado da possibilidade de pagar ou não pagar, de acordo com o seu critério, é de uma violência enorme na relação de confiança que deve haver entre os intervenientes na relação cambiária em causa e entre o público em geral».
Paralelamente, foram disciplinados procedimentos visando a obrigatoriedade da rescisão da convenção de cheque, bem como a regularização das situações de falta de pagamento: arts. 1.º, 1.º-A e ss. (redacção do DL n.º 316/97).

Nas soluções de direito interno referidas, vem desenhada uma translação da tutela do cheque: a protecção do portador e da confiança do título é obtida, não com recurso à tutela cambiária (assente na garantia prestada pelo emitente e por eventuais endossantes e avalistas), mas através da tutela do próprio cheque, como meio de pagamento economicamente relevante (assente, com reforçada segurança, na instituição bancária sacada e fornecedora do módulo respectivo).

Numa pesquisa sobre a doutrina estrangeira e portuguesa sobre esta matéria e que não havia sido especificamente tratada na doutrina e na jurisprudência anteriormente referida também não lográmos obter argumentos relevantes para rebater a tese que se nos afigura mais acertada.

Assim, CLAUS WILHELM CANARIS (obra citada por Sofia Calvão, 1988, pp. 498 a 501) fundamenta a faculdade do banco de não pagar o cheque revogado numa vinculação contratual com o sacador, decorrente quer dum vínculo autónomo quer do próprio contrato do cheque, como cláusula acessória deste.

Tratando do contrato de cheque, SOFIA DE SEQUEIRA CALVÃO (Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1992, p. 52) afirma que, nos termos do referido contrato, há o dever de observar a revogação de cheque. «Pacificamente, depois de decorrido o prazo de apresentação.»

Em notas às afirmações supra a referida AUTORA sustenta que o preceito do artigo 32.º da LUCH se reporta ao direito externo e abstracto do cheque, contestando a perspectiva de quem pretende tirar ilações dessa norma para interpretar o contrato de cheque ou aqueles que defendem que tal norma visou a correcção dos princípios gerais deste.

Finalmente há a referir a posição de ALBERTINO PARENTE (já citada) que, em alternativa à impossibilidade de o sacado aceitar a revogação do cheque no período de apresentação, formula uma solução alternativa:

«Parece-nos que existe outra via que deve ser considerada nesta; é a ordem de não pagamento dada ao banco sacado. Logo que esta ordem seja dada, quer durante o prazo de apresentação, quer fora dela, o banco sacado não pode pagar o cheque constituindo-se em responsabilidade, caso o faça, perante o sacador. Com esta ordem de não pagamento ultrapassam-se todas as dificuldades levantadas quanto ao pagamento ou não do cheque revogado durante o prazo de apresentação e o banco sacado fica, sem qualquer dúvida, sempre isento de responsabilidade para com o sacador como é ponto assente.»

Estas três perspectivas ou não abordam ou omitem a singularidade do sistema português, quer ao nível do sancionamento penal das infracções relacionadas com os cheques quer ao nível da subsistência da norma do artigo 14.º do Dec. 13.004.

II.B.4.4. Os casos de extravio, furto, outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, não estão contidos no âmbito de previsão do art. 32.º da LUCH, como vimos.

No direito extracambiário interno, esta matéria estava regulada, expressis verbis, no § único do art. 14.º do Dec. n.º 13.004, cuja vigência, à luz do Assento n.º 4/2000, terá cessado com a adopção da LUCH.

Através do DL n.º 316/97, ao aditar o n.º 3 ao art. 8.º do DL n.º 454/91, são objecto de previsão pelo legislador situações de «falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque», constituindo causas de recusa justificada de pagamento por parte do Banco sacado (n.º 2 do artigo, igualmente na redacção daquele decreto-lei).

Tais situações não cabem no conceito de revogação (ver J. M.Pires, obra citada, p. 107 e 108) nem estão compreendidas na proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, por parte do sacador, constante da alínea b) do art. 11.º do mesmo diploma [alínea c), na redacção anterior ao DL n.º 316/97].

É a proibição de pagamento, constante da referida disposição legal, que traduz o conceito de revogação do cheque, constante do art. 32.º da LUCH, integrando-a, mediante a verificação de determinados requisitos, na protecção penal do portador.

Por outro lado, rege relativamente a Portugal, sem modificação alguma, o art. 32.º da LUCH, que não prevê excepção ao aí imperativamente disposto.

Restringida a proibição de revogação do cheque durante o prazo legal da respectiva apresentação a pagamento, a certeza de tal regime adequar-se-á à segurança de circulação do título, naquele limitado período de tempo, bem como à protecção do portador.

Como entender a invocação de justa causa de revogação, respaldada no art. 1170.º, n.º 2 do Código Civil?

Para o efeito, e conforme opinião dominante, admite-se que a convenção de cheque se reconduz ou radica no contrato de mandato, modalidade do contrato de prestação de serviço (arts. 1155.º e 1157.º e ss. do C. Civil), mais precisamente, mandato conferido também no interesse do mandatário (o Banco sacado e fornecedor do módulo de cheques).

Diz-se no acórdão deste Tribunal de 03.02.2005, proc. 04B4382, igualmente inserto em www. dgsi.pt:
«A chamada "convenção de cheque" constitui uma modalidade de mandato específico, sem representação, para a realização de actos jurídicos precisos: os inerentes ao pagamento de cheque.»

A qualificação do mandato como conferido também no interesse do mandatário implicaria, atento o disposto no n.º 2 do art. 1170.º citado, o afastamento do poder de revogação ad nutum, sem especificação das causas que o justificaria, exigindo-se o acordo do Banco, «salvo ocorrendo justa causa».

No caso concreto, dado como adquirida a inexistência de justa causa, o banco não estaria obrigado a acatar a ordem de revogação.

De qualquer modo, a aplicabilidade dessa norma sempre seria de afastar, dado o carácter especial e imperativo da 1.ª parte do artigo 32.º da LUCH, prevalecente sobre a norma geral do artigo 1170.º do Código Civil.

II.B.4.5. Invocado, finalmente, o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI (Instrução nº 25/2003, BO n.º 10, de 15.Out.2003).

Regulamento, emitido sob forma de instrução pelo Banco de Portugal, tendo como destinatários instituições bancárias e outras entidades especialmente autorizadas pelo emitente a participar no SICOI, no exercício das competências de regulação, fiscalização e promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos, nos termos previstos nos arts. 14.º da Lei Orgânica do mesmo Banco (aprovada pela Lei 5/98, de 31 de Janeiro) e 92.º, alínea a) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – RGICSF (versão consolidada, publicada em anexo ao DL n.º 201/2002, de 26 de Setembro).

Não constituirá a instrução em causa fonte imediata de direito, a dever ser autonomamente apreciada pelo Tribunal.

Retém-se que a norma inserta na Parte II, n.º 1. alínea a), sob a epígrafe, Cheque revogado – por justa causa, reportando-se ao art. 1170.º, n.º 2 do Código Civil, considera «furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade», tudo casos que não podem ser qualificados de «revogação de cheque», para os efeitos previstos e regulados no art. 32.º da LUC.

Estabelece a mesma norma, a final, que «o motivo concretamente indicado pelo sacado, no registo lógico [contido nas instruções concretas anteriormente transmitidas pelo sacador ao sacado], deve ser aposto no verso do cheque».

Especificação que visará regular o disposto nos arts. 40.º e 41.º da LUCH, em que não vem prevista a exigência ou não de menção dos motivos de recusa (diferentemente do art. 19.º do Dec. n.º 13.004, onde se referia que o sacado «é obrigado a declarar por escrito o motivo da recusa»).

Especificação que, no caso, falta. Como enquadrar normativamente tal omissão?

No caso dos autos, todos os cheques foram devolvidos através do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), simplesmente com a aposição dos seguintes dizeres no verso: «cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade», ou «cheque revogado – falta vício na formação da vontade».

Verificava-se, aliás, nas datas em que os cheques foram apresentados a pagamento, falta de provisão.

Considerou-se na sentença que, «não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação».

Tal entendimento afigura-se-nos isento de reparos, tanto mais que outro entendimento conduziria à inutilização da legislação tão laboriosamente estruturada com vista à protecção do cheque.

Relativamente à exigência de motivação, transcreve-se do parecer do Conselho Consultivo, cit., o seguinte excerto:

«Dir-se-á mesmo, na específica óptica do artigo 40.º, que só uma recusa motivada e não a mera recusa que se apresente externamente desprovida da intencionalidade vinculada pela lei se mostrará normativamente justificada.
Por isso o sistema jurídico liga, em geral, à falta de fundamentação consequências graves, que podem atingir radicalmente a validade dos actos jurídicos.
Esse fundamento deverá, pois, quando for caso disso, ser declarado pelo sacado, supondo, obviamente, que o portador opte por esta via no preenchimento do requisito dos seus direitos de acção.
Através do exercício destes direitos é concedida ao portador tutela cível e penal».

II.B.4.6. O raciocínio em questão, formulado na perspectiva da LUCH sai reforçado, face ao disposto nos n.os 2 e 3 do art. 8.º do DL n.º 454/91, redacção do DL n.º 316/97, que disciplinam, precisamente, os casos de recusa justificada de pagamento.

Determina-se que o sacado deverá recusar justificadamente o pagamento do cheque (n.º 2).

Exige-se para a justificação de recusa de pagamento a existência de sérios indícios (n.º 3).

O sacado, deste modo, na hipótese considerada, ao recusar o pagamento dos cheques, sem justificar os motivos, limitando-se a apor a fórmula tabelar que do verso dos mesmos consta e sem avaliar dos indícios relativos aos vícios abstractamente invocados (indícios no caso inexistentes), violaria o disposto nos arts. 40.º da LUCH e 8.º, n.os. 2 e 3 do DL n.º 454/91, redacção do DL n.º 316/97.

Como afirma Evaristo Mendes («O actual sistema de tutela da fé pública do cheque», Direito e Justiça, separata, Vol XIII, 1999, tomo I, p. 228):

«Seja como for, para o sistema de protecção assim concebido ter verdadeira efectividade prática – e foi essa a intenção do legislador – o requisito dos “indícios sérios” deve ser interpretado de modo exigente, considerando, portanto, como ilícita a recusa de pagamento sempre que o banco não demonstre estar na posse de elementos dos quais resulta uma forte probabilidade de se haver verificado uma das mencionadas anomalias»

Um último contributo para a tese que resulta do atrás exposto é trazido por Alberto Luís («O Problema Da Responsabilidade Civil Dos Bancos Por Prejuízos Que Causem a Direitos de Crédito», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 59.º, n.º 3, Dezembro de 1999, p. 902):

«A obrigação de pagamento do sacado frente ao portador é uma obrigação ex lege, já que não nasce de um negócio jurídico, porque nenhum pacto une o portador ao banco sacado.
A responsabilidade do banco, em caso de não pagamento injustificado do cheque é, pois, de natureza extracambiária e abarca as perdas e danos produzidas pelo incumprimento do pacto de disponibilidade. E o não pagamento será injustificado se o banco sacado acatar a ordem de revogação do seu cliente e em consequência não pagar, tendo fundos para isso, o cheque que lhe for apresentado dentro do prazo de apresentação.»

II.B.5. A recusa do pagamento constitui o banco sacado, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, na obrigação de indemnizar o tomador do cheque.

Como já resultou do que atrás se disse, a responsabilidade pelo não pagamento do cheque relativamente ao tomador não é contratual.

Também não colhe apoios na jurisprudência ou na doutrina a tese de responsabilidade contratual relativamente ao tomador, assente numa cessão de créditos (ao acórdão deste Tribunal, relatado no BMJ n.º 387, p. 598 foi junto um parecer subscrito pelo Prof. MOTA PINTO que defende esta posição), uma vez que a cessão como contrato não pode ser revogada unilateralmente pelo cedente, sendo inversa a regra decorrente do artigo 32.º da LUCH.

Decorre da conjugação das normas atrás citadas uma obrigação do banco sacado directamente para com o tomador, só passível de ser configurada como extracontratual (Neste sentido e apenas a título exemplificativo, vejam-se os acórdãos deste Tribunal de 05.07.01, proc. 1461/01-1.ª Secção, de 02.11.04, proc. 2968/04-1.ª Secção, de 03.02.05, proc. 4382/04-2.ª Secção, de 15.03.05, proc. 380/05-6.ª Secção, os dois primeiros insertos em Sumários e os dois últimos em www.dgsi.pt)

Valem aqui as regras gerais da responsabilidade civil, mormente os artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do CC.

Dispõe o artigo 483.º, n.º 1, Código Civil que «[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»

São pressupostos da responsabilidade extracontratual a prática de um facto voluntário do agente, ilícito (violador de um direito de outrem ou de disposição legal), a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto ilícito culposo e o dano.

A ilicitude pode derivar da violação de direitos alheios ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (violação de normas de protecção).

É nesta segunda variante da ilicitude que se pode integrar a conduta do sacado.

Por outro lado, agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou censura do direito, E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias – art. 487.º, n.º 2, do C. Civil.

Conforme decidido nos acórdãos deste STJ de 02.06.97, proc. 96B503 e de 7.12.05, proc. 3451/05- 6ª, o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º n.º 1 da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483º do CCIV66».

O banco sacado comete, assim, um acto ilícito e culposo e será responsável pelos danos que, em relação de causalidade adequada, tal comportamento determine.

A relação de causalidade adequada existe se:
1– O facto foi «conditio sine qua non» do resultado;
2– À luz das regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que de tal facto decorresse tal resultado de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos;
3– O efeito tenha resultado pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo.

Se do não pagamento do cheque decorre prejuízo, parece ser claro que se verificam as apontadas exigências para a consideração de tal relação de causalidade.

De facto, um banco que recusa o pagamento dum cheque revogado determina que, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, o tomador se veja privado do respectivo montante. Da revogação resulta normalmente o afastamento do pagamento voluntário por parte do sacador e é utópico presumir-se que este disponha de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade (se a ordem de revogação visa evitar o pagamento de um cheque validamente emitido e detido pelo tomador, naturalmente que o sacador procurará evitar outras vias de cobrança, designadamente a executiva).

Temos, então, que o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos.

Podia dizer-se, em contrário do supra exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.

Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada.

Mas, numa situação idêntica à dos autos, o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que apresentado a pagamento no prazo legal) impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere, sendo utópico presumir que este disponha de património que garanta solvabilidade.

Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente a falta absoluta de provisão. Se o cheque apresentado a pagamento fosse recusado por falta de provisão, nada nos diz que o cheque não pudesse ser novamente apresentado a pagamento e obtivesse provisão.

II.B.6. É chegado o momento de concluir, tomando por base as premissas anteriores.

O Banco Réu (sacado) não poderia ter recusado o pagamento do cheque, com fundamento na sua revogação, visto que o mesmo foi apresentado dentro do prazo legal.

Tal recusa só seria legítima se fundada em justa causa — furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade.

No caso dos autos resulta da matéria provada que tal como julgado em 1.ª instância, sob uma invocação formal de viciação dos cheques, o que na verdade se verificou foram meras ordens de revogação, a que o sacado deu cumprimento, recusando o pagamento – com violação do disposto no art. 32.º da LUCH.

Como se disse na sentença recorrida:

«Não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado, que o consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação.»

A recusa operada foi ilegítima face ao disposto no art. 32.º LUCH, pelo que, nos termos do art. 14.º, 2.ª parte do Decreto 13.004 e 483.º C. Civil, o Réu terá que responder por perdas e danos, se verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil.

Conforme decidido nos acórdãos deste STJ de 02.06.97, proc. 96B503 e de 7.12.05, proc. 3451/05- 6ª, o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º n.º 1 da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483º do CCIV66».

Isto mesmo admite o recorrente nas suas alegações, reconhecendo que não pode acatar uma mera ordem de revogação sem incorrer em responsabilidade extracontratual. Na sua tese o comportamento do banco não seria sancionável, por ter sido invocada uma justa causa (o que não se provou).

Não vem questionado e, por isso, há que acatar o que foi decidido na 1ª instância quanto à existência dos demais pressupostos da responsabilidade civil, valendo aqui, designadamente, os artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do CC.

Pelo que o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.

Não vindo, também, questionado que o montante dos danos equivale ao valor dos cheques (questão, aliás, que releva de matéria de facto), nem merecendo reparos o entendimento da instância recorrida sobre os juros moratórios, improcederá totalmente o recurso.


III. – Pelo exposto, acordam negar a revista, mantendo, consequentemente, a integralidade da decisão recorrida, com condenação da recorrente nas custas e uniformiza-se a jurisprudência nos termos seguintes:

Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2008




Paulo Sá (relator)

Duarte Soares

Azevedo Ramos

Silva Salazar (vencido – junto declaração)(1)

Sebastião Povoas (vencido nos termos da declaração junta)(2)

Moreira Alves

Salvador da Costa (vencido conforme declaração junta)(3)

Ferreira de Sousa

Santos Bernardino (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Cons.
Salvador da Costa)

Nuno Cameira

Alves Velho

Moreira Camilo

Armindo Luís

Pires da Rosa

Bettencourt de Faria

Sousa Leite

Salreta Pereira

Custódio Montes (vencido conforme declaração de voto)(4)

Pereira da Silva (vencido conforme declaração que junto)(5)

Rodrigues dos Santos

João Bernardo

Urbano Dias (junto declaração de voto)(6)

João Camilo (vencido conforme declaração que se junta)(7)

Mota Miranda (vencido conforme declaração anexa)(8)

Alberto Sobrinho

Oliveira Rocha (vencido nos termos da declaração)(9)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Oliveira Vasconcelos

Fonseca Ramos

Mário Cruz

Rui Maurício (vencido nos termos da declaração de voto apresentada pelo Exmo. Cons. Salvador da Costa)

Cardoso de Albuquerque

Garcia Calejo

Serra Baptista (dispensei o visto)

Mário Mendes (dispensei o visto)

Lázaro de Faria

Noronha do Nascimento


(1)Declaração de voto:
Vencido.
Entendo que o proémio do art.º 14º do Decreto n.º 13.004, de 27 de Janeiro de 1927, se encontra tacitamente revogado na totalidade.
Por outro lado, o que do art.º 32º da LUC resulta não é que o Banco sacado tenha assumido qualquer obrigação, cambiária ou não, para com o portador do cheque, nem qualquer responsabilidade para com ele se não lhe efectuar o pagamento do cheque que entretanto tenha sido revogado, mas a sua responsabilização para com o sacador, na hipótese de revogação dentro do prazo de apresentação a pagamento, apenas se, não aceitando injustificadamente a ordem de revogação, efectuar o pagamento do cheque depois de findo esse prazo, já não sendo responsável perante o sacador se pagar o cheque ao tomador dentro do mesmo prazo, uma vez que durante ele a revogação não produz efeito.
Por outro lado ainda, a admitir-se a responsabilização do Banco sacado para com o portador do cheque cujo pagamento foi recusado com base na revogação pelo sacador, a existência de causa virtual consistente na falta de provisão apenas não exclui a causalidade real, o nexo causal efectivo, sem dispensar a existência de dano como requisito de responsabilidade civil, sendo que o dano indemnizável não corresponde ao valor dos cheques, - visto o portador destes continuar titular dos direitos cambiários respectivos bem como da relação jurídica subjacente -, mas aos incómodos, despesas, lucros cesantes e risco acrescido.
Assim, concederia a revista e formularia sumário de acórdão uniformizador nos termos sugeridos na declaração de voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Dr. Salvador da Costa.

(2) Declaração de Voto
Fui vencido, nuclearmente, pelo que passo a expor:

1 – Antes de tudo, a questão da admissibilidade do julgamento ampliado da revista nos casos de recurso “per saltum”.

O julgamento ampliado tem como escopo primeiro “assegurar a uniformidade da jurisprudência” só assim se justificando o alargamento do conclave que, na revista comum, se limita a três ou a cinco julgadores, de acordo com o disposto no artigo 729.º do Código de Processo Civil.

Ora, tendo o julgamento em plenário função preventiva (evitar que a deliberação colida com jurisprudência anteriormente firmada – Artigo 732.º-A) ou reparadora (eventual contradição com outro aresto das Relações ou do Supremo Tribunal de Justiça – artigo 678.º, n.º4) impõe-se o esgotamento das possibilidades de apreciação antes de chegar ao Supremo Tribunal de Justiça.

Esta figura sucedeu ao antigo recurso para o Tribunal Pleno (artigos 763.º a 770.º e 26.º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro – LOTJ) que se destinava a fixar doutrina com força obrigatória geral pela via dos assentos (desaparecidos com a revogação do artigo 2.º do Código Civil – artigo 4.º do Decreto-lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro – já antes declarado inconstitucional – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96 de 28 de Maio de 1996).

Mas manteve, no essencial, semelhante escopo inspirando-se, também, na anterior redacção do n.º 3 do artigo 728.º do Código de Processo Civil (revogado pelo artigo 3.º do Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).

E como nota o Dr. Lopes do Rego, “o novo figurino da uniformização de jurisprudência traduz convolação para um modelo de precedente judicial qualificado, cujo respeito será normalmente assegurado pela iniciativa das partes – que não deixarão seguramente de impugnar por via de recurso, quaisquer decisões que não se conformem com a jurisprudência precedentemente uniformizada” (…) “no sistema do precedente judicial qualificado, que agora se adopta, ao Supremo Tribunal de Justiça passa a ser lícito avaliar se deve ou não manter a orientação jurisprudencial previamente definida.” (apud “A uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Processual Civil”, 1997, p. 23/24).

Não existe, assim, um recurso autónomo para uniformização de jurisprudência, antes uma diferente tramitação (e composição do colégio) na revista ou no agravo (neste, “ex vi” do n.º 2 do artigo 754 do Código de Processo Civil).

Mas toda a dogmática da figura pressupõe que a decisão recorrida seja um acórdão – das Relações – a conflituar com um outro acórdão-fundamento das Relações ou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a contrariar Acórdão uniformizador. (cf. o n.º 4 do artigo 678.º – “… do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação…”), sendo que tal parece também resultar da revista preventiva (n.º 2 do artigo 732.º-A).

Se a parte – com mera preocupação de celeridade (afinal a razão primeira do recurso “per saltum”) optou pela via do artigo 725.º, preterindo a intervenção da Relação, não me parece poder utilizar a revista ampliada (este entendimento está implícito no Cons. Amâncio Ferreira, in “ Manual dos Recursos em Processo Civil” 7ª ed. 295,ao referir que a uniformização da jurisprudência “faz-se presentemente por meio da revista e do agravo interpostos na 2ª instância”).

Isto porque nesta terão de confrontar-se acórdãos de tribunais superiores que não decisões de primeira instância que, em principio, não terão a dignidade de, só por si, provocarem a intervenção do pleno do mais alto tribunal.

2 – Ainda que assim não se entenda, estou seguro que, no caso em apreço, não se verificam os pressupostos do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil – revista alargada a titulo preventivo – sendo notoriamente inexistente a situação pressuposto de revista alargada resolutiva do n.º 4 do artigo 678.º.

A escassa jurisprudência anterior, a sua pouca relevância e a inexistência de um debate alargado e aprofundado com marcada dissenção a nível doutrinário não aconselhariam aquele tipo de recurso. (cf. Prof. Castanheira Neves, apud “O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais, 1983) e o Prof. Teixeira de Sousa (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, 394).

Nesta linha, refere o Dr. J. A. Barreto Nunes (“Debate e avaliação da reforma de processo civil em matéria de recursos, in “Revista do Ministério Público, 20.º, n.º 79 – Julho - Setembro 1999, p.119) que o artigo 732.º-A “é muito mais exigente no preenchimento dos requisitos conducentes à uniformização, do que o era o revogado artigo 763.º. O simples facto de haver agora um acórdão em oposição com outro no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão fundamental de direito não é, por regra, requisito suficiente para ser uniformizada jurisprudência, exceptuadas as situações previstas no artigo 678.º, n.º 4 (…).”

E continua: “Parece-nos, porém, que o legislador foi extremamente sensato ao abordar e tratar esta questão. (…) …qualquer grande questão de direito, conflituante, antes de ser uniformemente decidida, deve passar previamente pela reflexão profunda dos doutrinadores e pelo crivo frequente da jurisprudência.” (cf. ainda, e a propósito dos requisitos da necessidade e da conveniência, o Dr. Abrantes Geraldes, in “Valor da Jurisprudência Cível” – CJ/STJ, Ano VII, T. II, 1999, 13; Prof. Teixeira de Sousa, ob. cit., 558 ; Conselheiro A. Baltazar Coelho – “Algumas notas sobre o julgamento ampliado da revista e do agravo.” – CJ/STJ. Ano V, T I, 1997, 20; e Dr.ª Isabel Alexandre, “Problemas Recentes de Uniformização da Jurisprudência em Processo Civil” – R.O.A, 60.º - Janeiro 2000 – I, 135).

Sou convicto que, só nos casos em que existe jurisprudência uniformizada e se perfila a possibilidade de a contrariar é que “se revela necessário” o julgamento alargado. Inexistindo prévia uniformização esse julgamento só é “conveniente” perante o risco de contradição com jurisprudência sobre questão suficientemente debatida e trabalhada também na doutrina.

A assim não se entender há o risco de banalização do Supremo Tribunal de Justiça no seu papel uniformizador e, quiçá, de anquilozamento da jurisprudência limitando a sua evolução e aperfeiçoamento.

Daí que não entenda existir necessidade ou conveniência de uniformizar jurisprudência, pelo que se aconselharia mera revista simples.

2.1- Votaria no sentido de, como questão prévia, se deliberar não conhecer do recurso, como revista ampliada, mandando-o seguir os ulteriores termos de revista comum.

O despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a que se refere o n.º 1 do artigo 732.º-A, não vincula o plenário que sempre pode entender não se perfilarem os pressupostos daquele tipo de revista.

É, aliás, o princípio geral de todas as decisões singulares (v.g. despachos do relator – artigos 700.º e 705.º – ; despachos de admissão de recurso proferidos nos termos do n.º 1do artigo 689.º) poderem ser alterados pelo colectivo, sempre considerando que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal colegial e é no colégio que reside a sua função soberana.

Neste sentido opina também o Conselheiro A. Baltazar Coelho:“ O entendimento contrário, ou seja, o da insindicabilidade da determinação do presidente da revista ou do agravo poderem ser julgados na forma não se me afigura sustentável, logo porque, como resulta dos princípios gerais enformadores do instituto dos recursos ordinários, e quanto ao seu julgamento particularmente das que disciplinam o recurso de apelação, paradigmático para todos os outros, os tribunais superiores são em principio órgãos judicantes colegiais.” – ob. cit., 28).

Nem se diga que tratando-se de mero juízo de conveniência, tem uma componente discricionária que o torna insindicável. É que, o acto discricionário também pode ser discutido por erro nos pressupostos de facto ou de direito. (E note-se que o Presidente tem mero voto de desempate (artigo 709.º n.º5) que não se confunde com voto de qualidade.Tal inculca não ter o legislador querido envolvê-lo na fisiologia da discussão, que apenas dirige, só podendo desbloquear o risco de um “non liquet”).

2.2- De qualquer modo, e ao contrário do que acontecia com os assentos, em que o acórdão do tribunal pleno culminava com um segmento afirmativo do sentido a dar à norma, o que se compreendia pela sua função cripto-legislativa, o acórdão uniformizador não tem de o fazer, e duvido que essa prática seja a melhor. (cf. aplaudindo essa forma, Conselheiro Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7.ª ed, 305); Dr. Ribeiro Mendes, “Os Recursos em Processo Civil”, 106).

A função primeira do Supremo Tribunal de Justiça é a jurisdicional, como instância de recurso, não podendo esquecer-se que o cerne é julgar uma revista, que se nega ou concede a final.

É na argumentação e nos fundamentos da decisão que se irá optar – ou definir – por uma corrente doutrinária ou jurisprudencial, sendo que a “ratio decidendi” será encontrada pelas partes e por todos os comentadores ou meros leitores do texto.

A prolação do “assento” final, na modalidade de proposição conclusiva, neste tipo de acórdãos, só serve para enfatizar um carácter vinculativo ou obrigatório de uma decisão que é, apenas, meramente persuasiva e mutável.

Ademais, tratando-se, neste caso de situação controversa e em que o Tribunal está tão dividido, desaconselharia a formulação final da regra interpretativa formal.

3 – Se o exposto não bastasse, está inverificado um dos pressupostos da responsabilidade civil: o dano.

Qualquer deles tem uma componente de facto e uma componente de direito (v.g. a culpa, na perspectiva de falta de diligência ou na vertente da violação de preceito regulamentar; o nexo de causalidade. na vertente naturalística ou cinemática e na que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil) sendo que o dano na quantificação do prejuízo material é facto mas a integração para ressarcibilidade, e respectivos termos, é matéria de direito. (cf. quanto à natureza do dano, Prof. Castro Mendes, “Conceito Jurídico de Prejuízo”- Jornal do Foro”, 16.º-1952, 41 ss; A. Lagostena –Bassi e L. Rubini, “La liquidazione del danno”, I, Milano, 1974; Prof. Gomes da Silva, “O dever de prestar e o dever de indemnizar”, 1944). O Prof. Castro Mendes distingue o prejuízo – ou dano/facto – como “um mal, um evento nocivo, uma consequência desagradável”. (ob. cit. 45).

As partes só podem acordar nos factos.

O direito, sua interpretação e aplicação, inclui-se nos poderes cognitivos do juízo de revista.

“In casu”, e para além de não resultar da matéria de facto assente a prova do prejuízo, face à resposta negativa ao quesito pertinente e, até, a montante, à sua deficiente alegação (artigos 52.º e 53.º da p.i), ocorreu impugnação (artigo 88.º da contestação) sendo que a base instrutória tal não reflectiu inequivocamente.

E nunca o recorrente aceitou a existência de dano referindo na sua alegação que este “não se presume, demonstra-se” e que “sem prova de dano não se pode (…) estabelecer o nexo entre o facto ilícito e o prejuízo sofrido.”

Daí que, ainda que se admitisse existir ilicitude e culpa, tal só geraria responsabilidade aquiliana se causasse dano (artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil).

Só perante um dano – pressuposto essencial da responsabilidade civil – pode haver ressarcimento.

Concederia, pois, a revista, sendo que e, no aqui eventualmente omisso, adiro à argumentação dos votos de vencido dos Exmos. Conselheiros Salvador da Costa e Urbano Dias, cujas cópias me foram facultadas.

Sebastião Póvoas

(3) VOTO DE VENCIDO


I - O QUADRO DE FACTO, A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL E O PREJUÍZO

1. O litígio e o quadro de facto

Este recurso de revista per saltum respeita a uma situação litigiosa em que o banco sacado, réu e recorrente, cumpriu a ordem de não pagamento de vinte cheques que lhe foi transmitida pelo sacado, abstendo-se de os pagar à autora recorrida, deles portadora.
O quadro de facto assente revela, por um lado, que o sacador entregou os cheques à autora para pagamento de uma dívida de determinada sociedade, que o primeiro ordenou ao banco sacado, no período de apresentação a pagamento, que os não pagasse, sob a motivação de falta ou vício na formação da vontade.
E, por outro, que o último cumpriu a referida ordem, devolvendo os cheques à segunda com a menção, exarada no verso, cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade ou cheque revogado – falta vício na formação da vontade.
E, finalmente, que a conta bancária do sacador, na altura da apresentação dos cheques a pagamento, não tinha provisão para o efeito.


2. A divergência jurisprudencial fundamento de uniformização

Uma vez que a acção em que foi proferida a sentença recorrida foi intentada no dia 21 de Março de 2002, ainda não é aplicável ao caso vertente o novo regime de recursos legalmente previstos (artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).
Para demonstrar a divergência jurisprudencial motivadora da sua pretensão de uniformização, indicou o recorrente cinco acórdãos, três como sendo no sentido da sentença recorrida e dois tidos como de sentido contrário.
Os primeiros são um da Relação de Coimbra, de 28 de Novembro de 2000, e dois deste Tribunal, datados de 5 de Julho de 2001.
O referido acórdão da Relação versou sobre a situação em que um cheque foi apresentado a pagamento no prazo legal de apresentação e devolvido quinze dias após o seu termo, com a menção de revogação por instruções do cliente. Decidiu-se, face ao artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques, não poder o banco sacado recusar, com fundamento na sua revogação pelo sacador, o pagamento de um cheque apresentado para o efeito no prazo legal, e que se o fizesse, tornava-se responsável perante o portador pelos danos que lhe causasse à luz da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com base no estatuído na norma de direito comum da segunda parte do artigo 14º do Decreto nº 13004, de 27 de Janeiro de 1927.
O Acórdão deste Tribunal de 5 de Julho de 2001, objecto do processo nº 462/2001, incidiu sobre o mencionado acórdão da Relação, confirmando-o, sob o fundamento de que, ou directamente por via da aplicação da segunda parte do artigo 14º do Decreto nº 13 004, de 27 de Janeiro de 1927, ou, pelo menos, por aplicação do artigo 483º do Código Civil, face à violação dos artigos 32º, 40º e 41º da Lei Uniforme Sobre Cheques, constituiu-se o banco sacado em responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução com indicação no verso do motivo durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.
Decorre do exposto que a situação de facto e de direito objecto destes acórdãos não coincide com aquela que aqui está em análise, porque na primeira estava em causa a revogação propriamente do cheque e a não devolução com a menção desse motivo durante o prazo de apresentação a pagamento, e nesta do que se trata é de uma ordem de não pagamento motivada em vício de vontade na emissão dos cheques em quadro de falta de provisão.
O acórdão deste Tribunal proferido no dia 5 de Julho de 2001, objecto do processo nº 1461/2001, versou sobre a questão de saber se o visto no cheque era ou não admissível na nossa ordem jurídica, e, em caso afirmativo, quais os efeitos que dele decorriam, se existiam regras a que tal operação estivesse submetida, qual o seu valor jurídico e concretas consequências da sua violação. Nele foi decidido ter o referido visto natureza extracambiária, servir na prática comercial para garantir o seu pagamento independentemente da provisão, mas que, havendo prejuízo decorrente da falsificação do cheque pago com base na aposição do visto, a responsabilidade do banco não podia derivar apenas da violação das regras emitidas pelo Banco de Portugal, porque dependia da existência de nexo de causalidade entre a aposição do visto e o prejuízo sofrido pelo particular.
Ora, resulta do referido acórdão que o seu objecto nada tem a ver com aquele que é objecto da nossa análise.

Vejamos agora o conteúdo dos dois acórdãos indicados pelo recorrente como sendo de sentido contrário à sentença recorrida.
O acórdão de 6 de Dezembro de 1990, deste Tribunal, versa sobre uma situação em que o sacador emitiu um cheque a favor de determinada pessoa, que o endossou a outra, e o primeiro se dirigiu ao banco sacado a quem manifestou a sua decisão de impedir o pagamento por via do levantamento do dinheiro depositado, face ao que o banco indagou as razões por que o portador pretendia o levantamento, pagou-lho e lançou o respectivo valor a débito da conta de depósitos do sacador, motivo pelo qual este último o accionou com vista a ser indemnizado pelo valor correspondente ao cheque.
Foi decidido que o artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques, não impondo ao sacado a obrigação de pagamento do cheque no decurso do prazo de apresentação, estabeleceu um regime diverso do previsto no artigo 14º do Decreto nº 13004, de 27 de Janeiro de 1927, pelo que devia considerar-se revogado, que a ordem de revogação era ineficaz em relação ao banco sacado durante o prazo de apresentação a pagamento, e, com base nisso, absolveu-o do pedido.
Conforme resulta do exposto, a situação fáctico-jurídica objecto do referido acórdão é diversa daquela que é objecto da sentença recorrida, certo que no primeiro estava em causa a responsabilização do banco sacado por virtude do pagamento de um cheque contra a vontade do sacador, enquanto no caso vertente a situação é de responsabilização do banco sacado no confronto do portador dos cheques. Assim, a divergência jurisprudencial é de ordem meramente jurídica, por se cingir à questão da vigência ou não da segunda parte do proémio do artigo 14º do Decreto nº 13004, de 27 de Janeiro de 1927.
No acórdão de 10 de Julho de 2001, deste Tribunal, estava em causa a emissão pelo sacador de um cheque destinado a pagar o preço relativo a uma transacção de imóveis, na sequência de um contrato-promessa, e a solicitação, pelo sacador, por escrito, ao banco sacado, no prazo legal de apresentação a pagamento, para que fosse cancelado o identificado cheque em virtude de o negócio que ele caucionava ter sido desfeito, o que ele aceitou.
Foi decidido que o portador de um cheque é estranho à relação estabelecida entre o sacador e o banco sacado por via do contrato de cheque, ter o último a obrigação legal de pagar os cheques ao respectivo portador, mas que era livre de se conformar com a ordem de revogação dada pelo primeiro, mesmo na pendência do prazo de apresentação.
As situações de facto envolvidas na sentença recorrida e no referido acórdão têm de comum tratar-se de comunicação motivada pelo sacador dos cheques dirigida ao banco sacado para o seu não pagamento. Divergem, porém, não só quanto à natureza da motivação e pela circunstância de, na primeira, não ocorrer a falta de provisão necessária ao pagamento dos cheques. No plano jurídico, porém, quanto à interpretação do artigo 32º da Lei Uniforme, a divergência entre a sentença e o acórdão é manifesta.
A conveniência de assegurar a uniformização da jurisprudência motivou a determinação do julgamento alargado da revista. Todavia, dados os contornos do caso concreto, ou seja, a ordem de não pagamento motivada, a falta de provisão na conta de depósitos sacador e a irrelevância da resposta não provado ao quesito em que se perguntava se a recorrida havia recebido as quantias tituladas pelos cheques, justificava-se, em critério de oportunidade, a abstenção de prolação de decisão de uniformização.


3. O prejuízo reparável

Temos por certo que o prejuízo derivado do não pagamento do valor inscrito nos cheques pelo banco sacado não coincide com esse valor. É isso, aliás, que resulta, além do mais, da lei criminal, em que o prejuízo patrimonial é elemento constitutivo do tipo criminal relativo ao cheque sem provisão por proibição de pagamento cumprida, e se exige que o instrumento da queixa insira os factos constitutivos da relação jurídica subjacente e os concernentes elementos de prova (artigos 11º, nº 1, alínea b) e 11º-A, nº 2, do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro).
Refere-se no acórdão ter o tribunal da primeira instância extraído da matéria de facto a ilação de que o valor do prejuízo era igual ao montante dos cheques e que isso não era contestado pelo recorrente.
Todavia, o banco sacado afirmou, na contestação, que a devolução dos cheques por revogação não foi a causa do eventual dano sofrido pela autora, que este a existir se produziu no momento em que o sacador os emitiu e não dotou a conta de depósitos dos fundos suficientes para o pagamento e que a emissão dos cheques não pagos não extingue o direito de crédito derivado da relação subjacente.
Acresce que, nas alegações de recurso, o recorrente expressou estar a sentença afectada de erro ao declarar admitir o prejuízo referente à não disponibilidade do dinheiro dos cheques, justificando a afirmação na circunstância de o dano não se presumir e dever ser demonstrado e de que sem a prova dele não podia estabelecer-se o nexo de causalidade entre ele e o facto ilícito.
A circunstância de o recorrente não ter transposto para as conclusões o que afirmou no âmbito das alegações no sentido da inexistência de prejuízo na situação vertente não obsta a que este Tribunal se pronuncie sobre a falta desse pressuposto da responsabilidade civil, seja contratual ou extracontratual.
Com efeito, a questão essencial do recurso é a de saber se o recorrente deve ou não indemnizar a recorrida no quadro da responsabilidade civil extracontratual por virtude não ter procedido ao pagamento de determinados cheques.
Ora, incumbe a este Tribunal, nos termos do artigo 729º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicar a lei aos factos considerados provados, no caso no tribunal da primeira instância, pelo que não pode deixar de apreciar sobre se ocorrem ou não os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual considerados verificados na sentença, ou seja, a ilicitude da omissão, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquela.
No tribunal da primeira instância foi formulada base instrutória de quesito único, no qual se perguntou se a autora não tinha recebido as quantias tituladas pelos referidos cheques.
A formulação do referido quesito na forma negativa correspondia ao regime de distribuição do ónus de prova, certo que se tratava de um facto constitutivo do direito de crédito invocado pela autora (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Todavia, no início da audiência de discussão e julgamento, sob o acordo das partes, foi o referido quesito mal reformulado na forma positiva, passando a perguntar se a autora recebeu as quantias tituladas pelos mencionados cheques, cuja resposta foi a de não provado.
Em consequência, o quadro de facto provado não revela que a recorrida não tenha recebido, por via diversa da relação jurídica cambiária, o montante pecuniário inscrito nos aludidos cheques.
Na realidade, a recorrida manteve a titularidade do direito de crédito subjacente à emissão dos cheques, e, bem assim, o próprio direito cambiário como portadora daqueles títulos, no confronto do sacador, embora susceptível de ser questionado face à causa que o último invocou como fundamento da ordem de não pagamento.
Acresce que, no momento da apresentação dos cheques ao banco sacado para pagamento, a conta de depósitos sacada não registava fundos que o possibilitassem.
Em consequência, tal como se considerou no acórdão deste Tribunal, de 22 de Novembro de 2007, Processo nº 2946/2007, 2ª Secção, a conclusão é a de que o quadro de facto provado não revela que da recusa de pagamento dos cheques por parte do recorrente, cumprindo a ordem do sacador, tenha advindo algum prejuízo para a recorrida.


II – A MODALIDADE DE RESPONSABILIDADE CIVIL IMPUTADA


1. Introdução

Apesar dos elementos em contrário apontados, entendeu-se no acórdão dever o sacado recorrente ressarcir a autora recorrida, portadora dos cheques, pelo valor neles inscrito, acrescido de juros, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.
Na perspectiva do acórdão, a obrigação de indemnização emerge essencialmente da violação pelo recorrente do disposto no artigo 32º, primeira parte, da Lei Uniforme Sobre Cheques, no artigo 14º, proémio, segunda parte, do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, e no artigo 483º do Código Civil.
Discordamos, todavia, da referida solução, pelos motivos que muito sucintamente se deixam expressos, entre os quais avulta a motivação da ordem de não pagamento dos cheques dirigida pelo sacador ao recorrente, cuja falta de veracidade não está provada e ao último, face à estrutura do contrato que o ligava ao primeiro, não podia razoavelmente exigir-se tal controlo.


2. A questão da vigência do artigo 14º do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927

A doutrina de longe maioritária não defende a vigência do artigo 14º do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, e, antes do Assento a que abaixo se fará referência, tal entendimento era praticamente pacífico.
Expressa o proémio do artigo 14º: “A revogação do mandato de pagamento conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no artigo 12º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação”.
Ora, o artigo 16º do Anexo II à Convenção de Genebra de 1931, que aprovou a Lei Uniforme Sobre Cheques, estipulava, na alínea b), que qualquer das Partes Contratantes, por derrogação do artigo 32º daquela Lei, se reservava a faculdade de proibir a revogação do cheque mesmo depois de expirado o prazo de apresentação.
Todavia, o Estado Português não formulou essa reserva, pelo que, subscrevendo a Convenção, aceitou integralmente o seu regime, em termos de revogação do direito interno concernente.
O artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques dispõe que “A revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação. Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo”.
Tal foi o resultado compromissório entre as duas concepções opostas sobre a matéria; uma no sentido da livre revogabilidade, e a outra no sentido da irrevogabilidade do cheque.
Assim, tanto a primeira parte do proémio do artigo 14º do Decreto nº 13004, como a segunda resultaram tacitamente revogadas, já por contrariedade com o artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques, já por substituição ou de sistema do respectivo regime por aquele preceito e pelo regime geral dessa lei, em conformidade com os princípios actualmente constantes do artigo 7º, nº 2, do Código Civil.
Dir-se-á, em síntese, que, com a adopção da Lei Uniforme Sobre Cheques, que regulou toda a matéria relativa aos cheques constante do Decreto nº 13004, excepto a constante dos seus artigos 23º e 24º, ficou revogado o artigo 14º, incluindo a segunda parte do seu proémio, tal como o foram todas as suas demais disposições, tacitamente em globo, por incompatibilidade e substituição.
Certo é que o Assento nº 4/2000, de 19 de Janeiro, das Secções Criminais deste Tribunal se pronunciou no sentido da permanência em vigor da segunda parte do proémio do referido artigo 14º.
Todavia, essa pronúncia apenas consta da fundamentação do Assento, a qual, nessa parte, extravasou manifestamente do objecto do aresto, porque este era o de saber se o sacador cometia o crime previsto no artigo 228º, nºs 1, alínea b), e 2, ou o previsto no artigo 228º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal, ao solicitar ao banco sacado, por escrito, que não pagasse o cheque porque se extraviara, sabendo que isso não correspondia à verdade.
Por conseguinte, não assume o referido Assento força vinculante no que concerne ao objecto do recurso em análise, e só lhe restaria a autoridade doutrinária se a referida fundamentação, na perspectiva interpretativa acima explicitada, não contrariasse o sistema da lei Uniforme Sobre Cheques.


3. A posição da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria

Tem sido controvertida a questão de saber se ao portador do cheque, cujo pagamento foi recusado pelo banco sacado na sequência de instruções do sacador, assiste ou não direito a ser indemnizado pelo segundo.
No sentido negativo, pronunciaram-se, por exemplo, FILINTO ELÍSIO, “A Revogação do Cheque”, “O Direito”, Ano 11º, 1968, Fascículo nº 4, Outubro/Dezembro, páginas 450 a 505; FERRER CORREIA e ANTÓNIO CAEIRO, “Revista de Direito e Economia, Ano IV, nº 2, Julho-Dezembro, 1978, páginas 462, a 471; MANUEL COUCEIRO NOGUEIRA SERENS, “Natureza Jurídica e Função do Cheque”, Revista da Banca, nº 18, Abril/Junho 1991, página 99; SOFIA DE SEQUEIRA GALVÃO, “Contrato de Cheque”, Lisboa, 1992; ALBERTINO SOARES PARENTE, “Revogação do Cheque e Ordem de não Pagamento”, Lisboa, 1994 - tese de mestrado; ARMINDO SARAIVA MATIAS, “Direito Bancário”, Coimbra, 2000, páginas 264 a 267; GERMANO MARQUES DA SILVA, “Proibição de Pagamento do Cheque, Da Necessária Articulação da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, do Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão e do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária”, “Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Raul Ventura, Volume II, 2003, páginas 81 a 101; e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO,Manual de Direito Bancário”, Coimbra, 2005, páginas 486 e 487.
Em sentido afirmativo opinaram, por seu turno, por exemplo, JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Comercial”, volume III, Títulos de Crédito, 1992, páginas 256 e 257; EVARISTO MENDES, Cheque, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, Inconstitucionalidade, Revista de Direito e Estudos Sociais, Abril-Setembro - 1999, Ano XXXX (XIII da 2ª Série), nºs 2 e 3; JOSÉ MARIA PIRES, “ O Cheque”, Lisboa, 1999, páginas 93 a 101; ALBERTO LUÍS, “O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59º, Dezembro de 1999, páginas 895 a 914; PAULO OLAVO CUNHA, “O Cheque Enquanto Título de Crédito, Evolução e Perspectivas”, Estudos de Direito Bancário, Coimbra, 1999, páginas 243 a 261; JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, “ Títulos de Crédito”, Coimbra, 2000, páginas 264 a 267; e JORGE SIMÕES PATRÍCIO, “Direito Bancário Privado”, Lisboa, 2004, páginas 197 a 214.
Mas nenhum dos referidos autores, salvo EVARISTO MENDES, com dúvidas expressas, baseia o seu entendimento na vigência das referidas normas.
Uns não motivam a sua posição, outros invocam a violação de uma obrigação legal, e, entre estes, há os que enquadram a situação na responsabilidade civil contratual, por isso mesmo ou por qualificarem a convenção de cheque como contrato a favor de terceiro, e aqueles que a situam no âmbito da responsabilidade civil extracontratual.
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO admite, na obra acima citada, que o banqueiro possa ser responsabilizado pela via extracontratual no confronto do portador do cheque, mas apenas nos apertados casos em que viole os deveres derivados da actividade que lhe é própria, ou seja, quando e se atentar arbitrariamente contra o título cheque.
Todavia, acrescenta que a responsabilidade do banqueiro não corresponde ao valor dos cheques em causa, mas aos incómodos, maiores despesas, lucros cessantes e, no limite, ao acrescido risco que o seu comportamento ilícito cause ao tomador do cheque.
A jurisprudência deste Tribunal revela a mesma discrepância de julgamento que é manifestada pela doutrina, em que naturalmente se apoia, com as mesmas particularidades de entendimento face à diversidade das situações de facto objecto de apreciação.
No sentido da não responsabilização do banco sacado que, durante o período inicial de apresentação a pagamento, não paga o cheque apresentado pelo respectivo portador, acatando a ordem de revogação emitida pelo titular da conta, podem ver-se os acórdãos deste Tribunal de 22 de Outubro de 1943, de 20 de Dezembro de 1977, de 10 de Maio de 1989, de 14 de Janeiro de 1998, de 19 de Junho de 2001, de 20 de Novembro de 2003, de 3 de Fevereiro de 2005, de 7 de Dezembro de 2005 e de 21 de Novembro de 2006.
Referir-nos-emos, para melhor compreensão do decidido, brevemente embora, à síntese do conteúdo dos mais recentes acórdãos acima referidos.
No acórdão de 3 de Fevereiro de 2005, ponderou-se, por um lado, que a entidade bancária sacada não é obrigada a acatar a ordem de revogação do cheque antes de terminar o prazo da sua apresentação a pagamento, embora a possa observar nos termos do contrato de cheque, por não estar directamente vinculada, perante o respectivo portador, a realizar-lhe o pagamento, e, por outro, poder o contrato de mandato ser revogado pelo mandante genericamente com justa causa e, especialmente, em face do extravio ou apossamento ilegítimo por outrem.
No acórdão de 7 de Dezembro de 2005, a solução da responsabilidade do banco sacado parece não resultar da simples aceitação da ordem de revogação, na medida em que se exige, para o efeito, que a ordem do mandante/sacador não envolva uma recusa legítima ou justificada de pagamento.
Em sentido diverso, considerando aquela responsabilização como imposição ao banco sacado da obrigação de indemnizar o portador do cheque em geral, que viu gorada a sua expectativa de recebimento da quantia nele inscrita, face ao acatamento da ordem de revogação provinda do titular da conta, temos os acórdãos deste Tribunal de 6 de Dezembro de 1990, de 19 de Outubro de 1993, de 6 de Fevereiro de 1997, de 19 de Janeiro de 2000 (Assento), de 5 de Julho de Julho de 2001, de 2 de Novembro de 2004, de 15 de Março de 2005 e de 10 de Maio de 2007.
Também aqui nos referiremos brevemente à síntese do conteúdo dos mais recentes acórdãos deste Tribunal.
No acórdão de 15 de Março de 2005, que versou sobre uma situação em que, além da revogação do cheque, a conta de depósitos do sacador não tinha provisão, considerou-se, por um lado, que o banco sacado não podia exonerar-se da obrigação de indemnização, no todo ou em parte, invocando a causa virtual que produziria o mesmo dano, resultante da inexistência de fundos para o pagamento do cheque cuja revogação se operou no prazo da apresentação a pagamento, e, por outro, que aquela revogação era causa adequada do dano, ainda que viesse a ocorrer um outro facto, a inexistência de fundos, susceptível de conduzir ao mesmo resultado.
No acórdão de 10 de Maio de 2007, embora se tivesse expressado que perante a revogação sem mais de um cheque, o banco sacado não podia deixar de o pagar se apresentado a pagamento no prazo legal, incorrendo em responsabilidade civil se o não fizesse, salvaguardou-se o caso de revogação devida a acto invalidante da relação cambiária, designadamente a coacção moral no acto de emissão, caso em que não devia ser pago.
Adoptou o critério de decisão por seu turno seguido pelos acórdãos de 19 de Outubro de 1993 e de 5 de Julho de 2001, distinguindo, na linha do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancário, entre as causas justificativas de não pagamento, das que se baseiam em invalidade, irregularidade ou inexistência do saque, e das que se baseiam em comunicação de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação em que se manifeste a falta ou vício de formação da vontade.


4. A conta de depósitos, o contrato de cheque e a responsabilidade civil contratual

Valorizadas as referidas decisões jurisprudenciais e tomadas de posição doutrinais, assente para nós estar integralmente revogado o artigo 14º do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, importa procurar captar o sentido prevalente das demais normas pertinentes no confronto com o quadro de facto disponível.
Estamos, no caso vertente, perante uma conta à ordem aberta nos serviços do recorrente por via de um contrato de depósito celebrado entre ele e o depositante, associado a um contrato de cheque, também outorgado entre eles, este último qualificável de prestação de serviço, a que são aplicáveis, por força da lei, várias normas que regem especificamente sobre o contrato de mandato (artigos 3º da Lei Uniforme Sobre Cheques e 1154º e 1156º do Código Civil).
Por virtude do mencionado contrato, o recorrente, que figura como mandatário, ficou vinculado a cumprir as instruções do mandante, e, no que concerne aos cheques em causa, a proceder ao respectivo pagamento, de harmonia com ordem envolvida pela respectiva emissão (artigo 1161, alínea a), do Código Civil).
O contrato de cheque, pela sua estrutura objectiva e subjectiva, não é qualificável como contrato a favor de terceiro, além do mais porque a instituição de crédito não se obriga perante o titular da conta de depósitos a realizar alguma prestação a algum terceiro (artigos 443º, nº 1, e 444º, nº 1, do Código Civil).
O portador dos cheques não é titular, por virtude deles, de direitos cambiários no confronto do banco sacado, cingindo-se essa titularidade em relação ao sacador e a outros obrigados que haja.
Na realidade, por virtude da convenção de cheque, o recorrente só ficou vinculado perante o titular da conta de depósitos ao pagamento dos cheques por si emitidos e que lhe fossem apresentados a pagamento, naturalmente se para tal houvesse provisão (artigos 406º, nº 1, e 1161º, nº 1, alínea a), do Código Civil).
Relativamente à autora recorrida, portadora dos cheques, o recorrido é um terceiro em relação à convenção de cheque em causa, pelo que esta é insusceptível de produzir efeitos em relação a ela (artigo 406º, nº 2, do Código Civil).
O sacado não assume a posição de devedor em relação ao portador do cheque, e, ao pagá-lo, cumpre a sua obrigação no confronto com o sacador, realizando o direito de crédito deste, e prestando-lhe um serviço de pagamento a um terceiro.
A recorrida, tomadora dos cheques, tem um direito de crédito cambiário no confronto do sacador, mas não no confronto do recorrente, que não é obrigado cambiário, conforme resulta da circunstância de não poder avalizar ou endossar os cheques (artigos 15º, 3ª parte, 25º, 2ª parte, e 40º, da Lei Uniforme Sobre Cheques).
Temos assim que, no plano estritamente cambiário, a recorrida não tem acção contra o recorrente, pelo que excluída está a responsabilidade civil contratual do último em relação à primeira.
Mas isso não significa, porém, que ela não pudesse ressarcir-se contratualmente 3333perante o sacador, por exemplo, com base nos mecanismos cambiários, o que não está aqui em equação, por virtude de a acção em causa assim não ter sido estruturada, naturalmente por opção da recorrida.

5. A responsabilidade civil extracontratual

Na óptica do acórdão, a situação litigiosa em causa enquadra-se na responsabilidade civil por facto ilícito extracontratual.
Afastada, pelos motivos atrás enunciados, a vigência do disposto no proémio do artigo 14º do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, e excluída a hipótese de responsabilidade contratual, vejamos se a recorrida tem ou não acção contra o recorrente no quadro da responsabilidade civil extracontratual à luz do que se prescreve no artigo 483º, nº 1, do Código Civil.
A responsabilidade civil é, grosso modo, a situação de sujeição de uma pessoa que praticou algum facto ilícito à obrigação de indemnizar uma outra do prejuízo que tal facto lhe provocou.
Numa acepção muito ampla, a ilicitude consiste na violação da ordem jurídica ou de um dever jurídico, e diz-se formal se o facto infringe normas jurídicas, e material se ofende interesses legalmente protegidos.
Expressa o nº 1 do artigo 483º do Código Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Assim, face às referidas normas, o âmbito do ilícito restringe-se aos dois tipos de situações de ordem geral nele previstas em abstracto, ou seja, violação de direitos ou de determinadas normas específicas.
A ilicitude do facto está, pois, ali tipificada na dupla modalidade de violação do direito de outrem, ou seja, de direitos subjectivos e da violação disposições legais destinadas a proteger interesses alheios.
Vejamos cada uma das referidas modalidades de per se, seguindo de perto o acórdão deste Tribunal, de 15 de Maio de 2003, proferido no recurso de revista nº 535/2003, 2ª Secção.
No âmbito dos direitos subjectivos protegidos pela norma, a primeira hipótese reporta-se especialmente aos chamados direitos absolutos, designadamente os direitos reais, de personalidade; autorais e de família; e a segunda, por seu turno, envolve, não a violação de direitos subjectivos, mas a infracção de normas de protecção de meros interesses particulares.
Tal como resulta da história do referido preceito, a diferença entre as duas aludidas modalidades compreende-se no pressuposto de que nem todos os interesses juridicamente protegidos se consubstanciam em direitos subjectivos.
Com efeito, até ao Código Civil de 1966, isto é, durante a vigência do Código Civil de 1867, a violação dos direitos subjectivos esgotava o domínio da ilicitude. O Código Civil actual procurou, porém, superar tal limitação, ampliando o carácter anti-jurídico da conduta do agente à violação de meros interesses, não qualificáveis como direitos subjectivos, tutelados nas referidas normas de protecção.
São normas de protecção, como tem sido considerado pela doutrina, as que estabelecem prescrições que impõem ou proíbem um certo comportamento, com vista à tutela dos interesses juridicamente reconhecidos de determinadas pessoas ou círculos destas.
Não basta, porém, a violação de uma norma de protecção neste sentido para que se considere preenchida a segunda modalidade de ilicitude prevista na parte final do nº 1 do artigo 483º do Código Civil. É, com efeito, necessário, além do mais, que o lesado pertença ao domínio subjectivo de aplicação da norma e se inclua no círculo de pessoas, atendendo à sua concreta posição jurídica, que ela em abstracto visa proteger e que tenha sido em concreto ofendido o interesse tutelado por via da lei de protecção.
Tem-se em vista, como acentua a doutrina, a ofensa de deveres impostos por leis que visem a defesa de interesses particulares, sem que confiram, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos.
Trata-se, pois, da ofensa de normas que visam a protecção de interesses particulares, sendo que do referido fundamento de responsabilidade é pressuposto a lesão efectivada no próprio bem jurídico ou interesse privado legalmente tutelado, o que implica a exclusão de meros interesses reflexos bem como dos que só reflexa e indiscriminadamente, em termos de generalidade, a lei protege (MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 2006, página 515).
A revogação ou não do cheque, a proibição de pagamento pelo sacador e a aceitação da ordem pelo sacado, obstando à efectiva solutio, apenas envolvem o plano das relações contratuais entre um e outro.
O portador do cheque é titular de direitos de crédito contra o sacador, que são tutelados pela Lei Uniforme Sobre Cheques e, eventualmente, pelo artigo 798º do Código Civil.
A violação dos direitos cambiários do portador a quem foi recusado o pagamento pelo banco sacado tem a respectiva sanção no quadro do artigo 40º da Lei Uniforme Sobre Cheques.
Assim, o direito de crédito da titularidade da autora e recorrida portadora dos cheques carece, em consequência, de protecção no âmbito da primeira parte do artigo 483º, nº 1, do Código Civil, por não se tratar de um direito absoluto.
Assim também é entendido no acórdão. Mas nele se afirma enquadrar-se a omissão do recorrente na segunda parte do mencionado preceito, ou seja, naquela que se reporta à violação de interesses alheios.
Seria, porém, muito estranho pretender-se recorrer a um mero interesse juridicamente protegido do portador do cheque em detrimento do direito subjectivo que lhe assiste, degradando-se este na protecção cambiária de segundo grau conferida pelo mencionado normativo.
Acresce, em tal hipótese, que sempre se imporia determinar qual a norma de protecção existente no sistema a subsumir ao mencionado segmento normativo da parte final do nº 1 do artigo 483º do Código Civil.
Na perspectiva do acórdão, as normas de protecção são as do artigo 32º da Lei Uniforme, interpretadas como estabelecendo imperativamente a proibição do pagamento do cheque durante o respectivo prazo de apresentação para esse efeito.
Relembremos que o artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques estabelece que a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação, e que se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo esse prazo.
Na realidade, na sua estrutura literal e finalística, o referido artigo não consagra o princípio da irrevogabilidade do cheque, mas tão só que a sua revogação não produz efeito durante o prazo de apresentação.
Trata-se de uma estatuição normativa de ineficácia, apenas pretendendo significar que a mencionada revogação não produz efeitos como tal, do que decorre continuar o portador do cheque a ser titular do direito cambiário dele emergente, tal como se a sua revogação não tivesse ocorrido.
Assim, o artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques visa realmente a protecção de um interesse do portador, mas enquanto sujeito cambiário integrado na cadeia cambiária, à qual é alheio o sacado, como, aliás, se reconhece no acórdão.
Mas tal protecção, conforme atrás se referiu a propósito dos requisitos da ilicitude, não é aquela a que se reporta a aludida parte final do nº 1 do artigo 483º do Código Civil.
Com efeito, só na qualidade de sujeito cambiário o portador lesado pertence ao domínio subjectivo de aplicação do artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques e ao círculo de pessoas que ele visa proteger, isto é, só o seu interesse cambiário se encontra por ele tutelado.
Em consequência, excluída está no caso-espécie a hipótese da ilicitude prevista na segunda parte do nº 1 do artigo 483º do Código Civil, em razão do que queda inverificado o principal pressuposto da responsabilidade civil extracontratual que o acórdão considera verificado.


6. A motivação da ordem de não pagamento dos cheques

Está assente que o sacador comunicou ao recorrente a ordem de não pagamento dos cheques sob a motivação de falta ou vício de vontade. Isso implica que dessa factualidade se extraia, no confronto com as normas aplicáveis, a necessária e pertinente consequência jurídica.
Não se está perante uma situação de revogação do cheque propriamente dita, mas face a uma ordem de pagamento motivada por justa causa, abstractamente considerada, que o recorrente não podia sindicar, e não podia deixar de cumprir por virtude da sua obrigação decorrente da convenção de cheque a que se reporta o artigo 1170º, nº 2, do Código Civil.
A primeira parte do artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques reporta-se à revogação do cheque, ou seja, à mera comunicação do sacador ao banco sacado para que não proceda ao respectivo pagamento.
Considerando os registos dos trabalhos preparatórios da referida Lei, a revogação a que se reporta, salvo o disposto no seu artigo 21º, abstrai das situações em que haja justa causa de não pagamento dos cheques, designadamente nos casos de furto, de roubo, de extravio, de coacção moral, de incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício na formação da vontade do emitente, cujo regime foi deixado ao critério de cada uma das Partes contratantes.
A esta matéria se reporta o Anexo à Instrução do Banco de Portugal, nº 125/96, ou seja, o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancário, que aqui se não analisa por não poder sobrepor-se ao que estabelece a Lei Uniforme Sobre Cheques nem ao Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro.
No quadro da interpretação da primeira parte do artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques, importa distinguir, por imposição de ponderosas razões de sistema, entre revogação propriamente dita dos cheques ou mera proibição do pagamento e a ordem de não pagamento motivada em algum dos referidos factos de desvio da regularidade da posse ou de falta ou vício de vontade.
Na realidade, não faz sentido considerar como revogação propriamente dita de um cheque que não envolva uma válida relação jurídica cambiária, designadamente por falta de consciência da declaração, sujeição a coacção física ou moral ou erro na declaração (artigos 246º e 247º do Código Civil).
Ora, no caso vertente, considerando os factos provados, mais concretamente os mencionados C) da especificação, não se trata de revogação propriamente dita dos cheques em causa, mas de uma ordem de não pagamento dirigida pelo sacador ao banco sacado com fundamento em falta ou vício de vontade, justa causa, abstractamente considerada, de não pagamento.
Incumbe ao lesado o ónus de alegação e de prova dos factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquele (artigos 342º, nº 1, 483º, nº 1, 487º, nº 1, 562º e 563º do Código Civil).
Não há entre o recorrente e a recorrida qualquer relação jurídica, cambiária ou outra; a relação jurídica derivada da convenção de cheque só envolve o primeiro e o sacador, pelo que, no caso vertente, não podia imputar-se o ónus de prova da inexistência da falta ou vício de vontade na emissão dos cheques.
Como é a recorrente, com vista à realização do seu direito de crédito indemnizatório no confronto do recorrente, que invoca a ilicitude do comportamento relativo ao não pagamento dos cheques, a ela incumbia o ónus de prova, que não cumpriu (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Em consequência, quedaria inaplicável no caso-foro, na perspectiva do acórdão, o que se prescreve na segunda parte do nº 1 do artigo 483º do Código Civil, por virtude de paralela não aplicação da norma dita de protecção constante no artigo 32º, primeira parte, da Lei Uniforme Sobre Cheques.
Foi assim que essencialmente se entendeu no acórdão deste Tribunal de 10 de Maio de 2007, a que acima se fez referência, em que se exclui a responsabilidade civil do banco sacado por virtude daquilo que se designou por revogação devida a coacção como acto invalidante da relação jurídica cambiária.
Assim, ainda que estivesse em vigor o disposto na segunda parte do proémio do artigo 14º do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, ou fosse aplicável o que se prescreve na parte final do nº 1 do artigo 483º do Código Civil, e estivesse provado o prejuízo derivado do cumprimento pelo recorrente da ordem de não pagamento que lhe foi comunicada pelo sacador, não podia proceder a pretensão da recorrida.


7. A falta de prova dos factos reveladores do prejuízo e a causa virtual

Conforme acima se referiu, da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, ou seja, da resposta ao quesito único da base instrutória, não resultou o prejuízo da recorrida derivado do não pagamento dos cheques pelo recorrente.
Não tem qualquer fundamento legal a afirmação de que o tribunal da primeira instância obteve por presunção os factos relativos ao prejuízo, porque os factos provados, ou seja, os conhecidos, não os revelam, sem o que se não pode considerar qualquer presunção, seja legal, seja judicial (artigos 349º a 351º do Código Civil).
Acresce que a relação jurídica cambiária envolvente do cheque abstrai da relação jurídica subjacente que liga o emitente e o beneficiário por via da chamada convenção executiva.
A sua constituição por virtude da emissão e entrega do cheque traduz-se, em regra, em datio pro solvendo, pelo que não implica a extinção da relação jurídica subjacente em que se baseou sem que ocorra o respectivo pagamento (artigo 840º do Código Civil).
Assim, a circunstância de o cheque não haver sido pago não significa necessariamente a existência de algum prejuízo para o respectivo portador, porque ele continua titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente.
O cálculo do prejuízo na esfera jurídica da recorrida não podia, por isso, ser aferido por via da mera correspondência ao valor inscrito nos cheques, mas em concreto, o que os factos provados, na realidade, não revelam.
Além disso, como o sacador não dispunha de fundos na sua conta de depósitos para o pagamento dos cheques, não havia por parte do recorrente obrigação de pagar à recorrida o valor neles inscrito.
Refere o acórdão a figura jurídica da causa virtual negativa para desvalorizar a situação de falta da necessária provisão para o pagamento dos cheques. A causa virtual negativa de um dano é essencialmente o facto que o produziria se não tivesse sido efectivamente produzido por um outro que constitui a sua causa real.
A situação não se configura no caso-espécie como causa virtual, porque, na própria perspectiva enunciada no acórdão, o eventual dano da recorrida só poderia ocorrer se, além do mais, houvesse provisão na conta de depósitos do sacador que fosse suficiente para o pagamento dos cheques e, não obstante, o recorrente aceitasse a ordem de não pagamento
No fundo, na espécie, teria de haver a cumulação de, pelo menos, dois elementos objectivos, isto é, existência de provisão suficiente para o pagamento dos cheques e a recusa de pagamento com base nas instruções do sacador para a sua interdição.
Acresce não ter qualquer apoio nos factos provados e na lei a ilação de que a recorrida viria porventura a receber o valor dos cheques caso o recorrente lhos tivesse devolvido com a menção de falta de provisão e tivesse notificado o segundo com vista à regularização a que se reporta o artigo 1º-A do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro.
Resulta, assim, do exposto não revelarem os factos provados que a atitude do recorrente de não pagar os referidos cheques à recorrida a esta provocasse, em termos de causalidade adequada, algum prejuízo, alem do mais porque para tal pagamento não havia provisão de conta.
Sem a existência de tal prejuízo não se podia configurar a situação hipotética actual, que constitui uma das vertentes da diferença que constitui o critério da medida da indemnização a que se reporta o artigo 566º, nº 2, do Código Civil.

III – SÍNTESE CONCLUSIVA

A estrutura do caso em análise, no confronto com a daqueles que tem sido decididos por este Tribunal, justificava a decisão de não prolação de acórdão uniformizador.
A circunstância de o recorrente não se referir especificamente nas conclusões de alegação ao prejuízo invocado pela recorrida não justifica que se exclua o conhecimento por este Tribunal da sua existência, porque o objecto do litígio envolve a decisão de verificação ou não dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Como a questão fulcral da causa é a de saber se o recorrente está ou não obrigado a indemnizar a recorrida no quadro da responsabilidade civil extracontratual, este Tribunal, no âmbito do seu poder funcional de aplicar o direito aos factos, não podia deixar de conhecer da existência ou não do dano, pressuposto necessário daquela responsabilidade.
Está revogado o normativo da segunda parte do proémio do artigo 14º do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927.
A primeira parte do artigo 32º da Lei Uniforme Sobre Cheques não se consubstancia, fora do quadro do direito cambiário, em norma de protecção do interesse do portador de cheques, pelo que não é susceptível de integrar o normativo da parte final do artigo 483º, nº 1, do Código Civil.
Não se está perante uma situação de revogação do cheque propriamente dita, mas face a uma ordem de não pagamento motivada por justa causa abstractamente considerada, enquadrável no artigo 1170º, nº 2, do Código Civil.
Os factos provados não revelam a inveracidade da causa motivadora da ordem de não pagamento dos cheques e o ónus de prova dessa inveracidade não incumbia ao recorrente.
O acatamento pelo recorrente da ordem do sacador de não pagamento dos cheques não podia causar à recorrida algum prejuízo reparável porque a conta de depósitos do segundo não tinha provisão para o respectivo pagamento.
O recorrente acatou a ordem não pagamento dos cheques no cumprimento de um dever contratual, não se verifica o pressuposto relativo ao facto ilícito extracontratual, o que, só por si, inviabilizaria a pretensão da recorrida à luz do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Ainda que se devesse concluir no sentido da verificação do referido ilícito, não podia proceder a pretensão da recorrida, além do mais, por inverificação do elemento prejuízo.
A solução do acórdão, afinal no sentido de responsabilizar o recorrente pelo pagamento do valor inscrito nos cheques, em relação ao qual não havia provisão para o efeito, é meio facilitador de conluios entre sacadores e portadores de cheques com vista defraudar os bancos sacados.



IV
Pelo exposto, abstraindo da circunstância de no caso se tratar de ordem de pagamento motivada em falta de vontade de emissão dos cheques e de estes não terem provisão, concederia a revista e uniformizaria a jurisprudência do sentido de que “O portador de um cheque não tem direito de acção, nem cambiária nem de responsabilidade civil contratual ou por facto ilícito contra o sacado que, aceitando a ordem de não pagamento emitida pelo sacador, recusa o seu pagamento no prazo da respectiva apresentação”.

Salvador da Costa


(4) Subscrevo os votos de vencido dos Ex.mos Juizes Conselheiros Sebastião Póvoas, Urbano Dias e Salvador da Costa, que me foram remetidos, designadamente, quanto à inadmissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência.
Ponho em destaque mais o seguinte:

1. Os factos jurídicos concretos (causa de pedir) que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido pela A. (pagamento da indemnização) traduzem-se na alegação de que o R.

a. agiu ilicitamente por ter aceite a ordem de revogação, dada pelo sacador e ter recusado o pagamento dos cheques, apresentados a pagamento pelo autor, no prazo legal;

b. e ainda, no dano que causou ao A., coincidente com o montante dos cheques não pagos.

O R., na contestação, para além de ter impugnado a ilicitude da sua conduta, impugnou também o alegado dano patrimonial peticionado.

Controvertido o facto, cabia à A. o ónus de demonstrar que não havia recebido o valor dos cheques, como alegara.

Levado o facto ao questionário, o tribunal considerou-o não provado.

Logo, não vem demonstrado o dano, cujo ressarcimento é a essência duma acção de indemnização por facto ilícito – art. 483.º, 1 do CC.

Por isso, não se tendo provado o dano – mesmo para quem entende que coincide com o valor dos cheques -, a acção tinha que improceder, não cabendo no silogismo judiciário formulado tal conclusão, sendo, por isso, ilegal a passagem da sentença onde se diz que “o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao autor de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques. Tal é o prejuízo para a autora resultante do não pagamento dos cheques pelo réu”.

É violado o art. 483.º,1 do CC por se condenar o R. numa indemnização correspondente a um dano que, contraditado, se não provou nem consta da matéria de facto.

E maior violação é ainda para quem, como Menezes Cordeiro, citado por Salvador da Costa, no seu voto de vencido, entende que a responsabilidade do banqueiro não coincide com o valor dos cheques mas integra, antes, os incómodos, as despesas, os lucros cessantes e o acrescido risco que o comportamento do sacado cause ao tomador do cheque, factos que nem sequer vêm alegados.

2. O Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar a matéria de facto dada como provada pelas instâncias: pode e deve, no entanto, decidir o direito de acordo com os factos provados, no contexto do art. 659.º, do CPC.

Com efeito, o art. 729.º, do CPC prescreve os termos em que julga o tribunal de revista: n.º 1 – “aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”.

E, para saber quais os factos provados, rege o art. 659.º que, no n.º 2, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados”, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

Portanto, por ser questão de direito, o Supremo tem toda a legitimidade para indagar se existe o dano alegado, não estando vinculado pela conclusão da sentença de condenar o R. no pagamento da indemnização de dano que não se provou – conclusão, aliás, ilegal por não emergir da premissa menor (factos provados).

Claro que os factos integradores do dano, a não se terem provado directamente, podiam provar-se por presunção judicial; no caso, contudo, isso era inviável, por se não ter demonstrado qualquer facto conhecido para concluir esse facto desconhecido - art. 349.º do CC.

3. Nas suas conclusões, o R. apenas se refere ao facto praticado que diz não ser ilícito e que, por isso, não deve ser condenado.

Nessas conclusões, o R. não aceita o dano porque, como diz nas suas alegações, o mesmo não resulta da matéria de facto.

Por outro lado, ao questionar, nas conclusões, a sua condenação por não ser ilícita a sua conduta, implicitamente questiona a existência do dano, devendo o tribunal aplicar a lei aos factos – veja-se o lugar paralelo em que a jurisprudência considera implícito o pedido de cancelamento do registo em acção de reivindicação por quem não seja titular registado.

4. A tudo isso acresce que vem demonstrado que a conta sobre a qual foram emitidos os cheques não tinha provisão.

Ora, mesmo a considerar-se que o dano coincide com o valor dos cheques, como entende a posição vencedora, a acção improcederia porque vem demonstrado que a revogação dos cheques não foi a causa do dano: esse dano já resultava do facto de a conta não estar provisionada, não sendo, em tal caso, o banco obrigado a pagar os cheques – art. 3.º da LUCH.

A falta de provisão não é, no caso, causa virtual do dano, mas a sua verdadeira causa real, por ocorrer já antes da aceitação da ordem de revogação dos cheques.

Por isso, na pressuposição de que o dano é o valor dos cheques, com o que não concordamos, nem sequer há nexo causal entre o facto da aceitação da revogação dos cheques e os danos invocados porque o A. demonstrou que, mesmo que a aceitação da revogação dos cheques dada pelo sacador fosse ilícita, o dano resultaria sempre do facto de a conta não estar provisionada.

A causa real do dano é a falta de provisão; e a aceitação da revogação do cheque nem sequer é causa virtual porque, havendo falta de provisão, nunca aquele facto poderá causar o dano: “causa virtual é o facto (real ou hipotético) que tenderia a produzir certo dano, se este não fosse causado por um outro facto (causa real)” – A. Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 9.ª ed., pág. 640.

O crédito da indemnização nasce na data da verificação do dano e essa data é a da falta de provisão da conta bancária.

A alusão da sentença ao disposto no art. 1.º do DL 316/97, de 19.11 não tem qualquer relevância para o caso dos autos porque a sua finalidade visa tão só rescindir a convenção do cheque a quem ponha em crise a confiança na sua circulação e não a responsabilização do banco pela aceitação da revogação do cheque.

6. Diga-se, ainda, que o dano é elemento estrutural da obrigação de indemnizar que, inexistindo, impede a procedência do pedido de indemnização, accionado pelo instituto da responsabilidade por facto ilícito.

“O art. 483.º, 1….., apenas inclui na obrigação de indemnizar os danos resultantes da violação” A. Varela, Ob e vol. Cits, pág. 957 e, por isso, a mesma pressupõe a indagação do facto ilícito e do quantum indemnizatório, questão de direito que só através dos factos provados se pode definir, tarefa essa que, como é sabido, cabe ao Supremo sindicar.

7. Finalmente, diga-se que o Supremo Tribunal de Justiça se pode pronunciar sobre o mérito da causa, por o recurso per saltum ser admissível – art. 725.º, 1 do CPC – mas não devia firmar jurisprudência por essa espécie de recurso não ser admissível para fixar jurisprudência e, no caso dos autos, por se não verificarem os pressupostos para a fixação de jurisprudência, como se demonstra, respectivamente, nos votos de vencido de Sebastião Povoas e de Salvador da Costa.

Revogaria a sentença, absolvendo o R. do pedido e não firmaria jurisprudência por se não verificarem os respectivos pressupostos.

Custódio Montes

(5) DECLARAÇÃO de VOTO

I. QUESTAO PREVIA

Da inadmissibilidade do determinado julgamento ampliado da revista, por se estar ante recurso "per saltum" (artº 725º do CPC):

Pelo, quanto à questão, expandido na declaração de voto do Exmº Conselheiro Sebastião Póvoas, com amparo e doutrina que nos dispensamos de reproduzir, já que, em absoluto, despicienda se antolha a repetição, também nós entendemos que ao plenário a que se reporta o nº 1 do art. 732-A do predito Corpo de 1eis,como questão prévia, se impunha ter deliberado não conhecer do recurso, como revista ampliada, antes ditando que aquele, como revista "simples”,prosseguisse seus termos, ao que não fazia decisivo óbice, longe disso, o ter o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no exercício de competência sua, determinado, oportunamente, que o julgamento se fizesse com intervenção do plenário das secções veis.

Na verdade:

O despacho a que alude o ultimo normativo á colação trazido, como, outrossim, destacado pelo Ex mo Conselheiro Sebastião Póvoas na sua declaração de voto que, também neste conspecto, sem qualquer reserva, acompanhamos, em boa e noticiada companhia nos encontran­do, frise-se, não vincula o plenário, tendo, isso sim, em substância, natureza de decisão interlocutória, para o efeito se podendo invocar o prescrito nos art 684 e 689º nº 2 do CPC, tal-qual mente recordado pelo Ex: mº Conselheiro José Martins da Costa na sua declaração de voto junta ao AUJ nº 3/99 de 18 de Maio, in DR I serie A, nº 159 de 10-07-99.

Prosseguindo:

II- Outro entendimento sufragado, o recurso, como revista ampliada julgado, dissentimos da encontrada solução de direito, do,enfim, proclamado naufgio da preteno recursória, como vítrea, em nosso modesto entender, antes, sem embargo do valimento dos argumentos,"ex adverso",invocados, se perfilando a justeza da concessão da revista, nenhuma, note-se, consequencia tirada, pelo plenário, como sucedido, ao nível da tramitação processual, tal se impondo, do embora, em nosso critério, sempre com o devido respeito por “constrão" díspar, da organização da base instrutória, ao arrepio do consignado no artº 5llº nº 1 do CPC e nos artºs 342º nº 1 e 483º nº l, ambos do CC, sopesado que se está ante acção visando efectivar a responsabilidade civil extracontratual do recorrente, os pressupostos daquela não olvidando, bem como a significância da resposta negativa ao levado à base instrutória.

Efectivamente:

Como pertinentemente, uma vez mais, aduzido na declaração de voto do Exm Conselheiro Sebastião Póvoas, outra não sendo a tese propugnada pelo Ex. Conselheiro Salvador da Costa, na sua declaração de voto, à qual, neste «segmento",de igual sorte, aderimos, tal como no concernente à evidenciação de que, pese embora o também serem as conclusões da alegação do recorrente que balizam o âmbito do recurso(artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC) ,não acha, "in casu", justo arrimo a não concessão da revista na circunstância de não ter sido realidade a transposição para as conclusões do afirmado, na alegação, em ordem à sustentação da inverificação do pressuposto da responsabilidade civil que o dano constitui, impunha-se o recurso julgar procedente, ante a não prova do relatado requisito da accionada fonte de obrigações
III . Ainda, por fim, como cabido se revela o seguinte deixar dilucidado, em ordem à clarificação de nosso voto:
Dissídio incorrendo quanto ao ter sido menos feliz a redacção ultima da dada ao nº único da base instrutória, não obliterado o já expresso em II, temos como certo, atenta a regra interpretativa formulada, que outro caminho, que não o eleito, se impunha percorrer, aguele sendo o apontado pelo artº 729Q nº 3,uma vez acontecida a definição a que alude o artº 730Q nº l, ambos do CPC, o primeiro destes preceitos também, sem mácula, podendo jogar no recurso "per saltum" e no julgamento ampliado da revista (cfr. Amâncio Ferreira, in "Manual dos Recursos em Processo Civil".7ª Edição, gs. 285 e 286,Isabel Alexandre, in "Problemas Recentes da uniformização da Jurisprudência em Processo Civil" - R.O.A. ,60Q - Janeiro 2000 - I, pág. 149 - nota 76 - e AUJ nº 1/99,de 12-01-99,in DR-I Série A,NQ 37,de 13-02-99), saber:
Baixa do processo à lª instância, para ampliação da decisão de acto, com organização de base instrutória que constituísse repositório da factualidade controvertida ,que a havia, para, no momento para tanto, processualmente azado, apreciar da verificação, ou não, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que constituem o dano e o nexo de causa1idade entre a quele e o, na tese (que logrou vencimento,facto ilícito e culposo do recorrente.

Pereira da Silva

(6) Subscrevemos sem qualquer reserva e o voto de vencido do Exº Senhor Conselheiro Salvador da Costa.
Data venia, permitimo-nos dizer algo mais.
Em primeiro lugar, fiéis ao que explanamos na discussão de julgamento, entendemos que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sairia mais prestigiada se não tivesse havido uniformização.
O Supremo apenas deve assumir a responsabilidade que lhe compete de assegurar a “unidade do direito”, usando a expressão de Castanheira Neves, quando as divergências jurisprudenciais o justifiquem e se considere a matéria suficientemente amadurecida.
Ora a ampla e dispersa discussão no plenário e a parca jurisprudência sobre o tema são suficientes para demonstrar à saciedade que não se verifica a necessidade ou conveniência de assegurar a uniformidade da jurisprudência a que alude o nº1 do artigo 732º-A do Código de Processo Civil.
Assim deixamos manifestada a nossa discordância quanto à oportunidade e à necessidade de fixar uniformização sobre a matéria em apreço.
A segunda nótula que queremos vincar tem já a ver directamente com questão para a qual fomos convocados a apreciar e a decidir.
Sem discutir a modalidade da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, que recaí sobre o banco sacado – se é que ela existe –, e sem nos pronunciarmos quanto à (in)verificação dos demais pressupostos acerca dos quais o voto de vencido que subscrevemos é deveras esclarecedor, há um ponto incontornável que urge pôr em evidência: a obrigação de indemnizar só existe se houver dano.
Ora quanto a este pressuposto, a Autora limitou-se a sustentar que o banco Réu se constituiu nesta obrigação “por todos os danos que lhe causou” e que “estes correspondem ao montante dos cheques” (nºs 52º e 53º da petição inicial).
Por aqui se vê que a Autora não alegou, concretizando, factos bastantes que permitissem preencher este pressuposto, pelo que, em 1ª Instância, a presente acção deveria ter sido julgada improcedente, logo em sede de saneador.
Tal, porém, não aconteceu e, à revelia das regras processuais, foi levado à base instrutória o seguinte facto: “a autora não recebeu as quantias tituladas pelos cheques mencionados”.
A resposta a esta pergunta foi no sentido de “não provado”, portanto sem qualquer relevo relativamente à verificação ou não do dano.
Pois bem.
Malgrado o evidenciado, o Juiz da 1ª Instância proferiu sentença condenatória, julgando a acção procedente.
Tanto quanto percebemos do decisório, esteve ao mesmo subjacente a ideia de que o portador dos cheques sofre automaticamente danos e estes se medem pelos valores neles titulados.
Ora nem os danos se presumem, nem a sua medida se poderá aferir por tal critério, certo existir a possibilidade do portador poder fazer valer tais cheques em sede executiva (entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Dezembro de 2004, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Ano XII, Tomo III, pág. 153 e ss.).
Tudo isto permite, na nossa opinião, pôr a claro a total falta de ponderação da decisão censurada na questão do dano, face aos factos provados e ao direito aplicável.
Por outro lado, e ao contrário da solução que obteve vencimento, é de entender que a delimitação do poder cognitivo do Tribunal de recurso pelas conclusões formuladas pelo recorrente em nada contende com a apreciação daquele pressuposto.
Ou seja, o trânsito em julgado incide sobre decisões e não já sobre enquadramentos jurídicos da base factual fixada. Ainda que a linha de argumentação da recorrente apenas incidisse sobre o falta de verificação do pressuposto da ilicitude, não poderia o Tribunal de recurso, devendo apreciar os contornos do caso concreto, confrontado com a insuficiência da base factual alegada – concretamente, com a falta de alegação de factos caracterizadores do dano –, concluir pela procedência da acção.
Ainda que assim não fosse, certo que o recorrente nas conclusões com que fechou a sua minuta de recurso não fez expressa referência ao elemento “dano”, não podemos olvidar que ele sempre pugnou pela sua total isenção de responsabilidade, o mesmo é dizer pela inexistência da obrigação de indemnizar.
Se a defesa se reduzisse à questão da ilicitude, não teria impugnado o pouco que a Autora alegou a este respeito (nº 88º da contestação – “desconhece-se se o A. sofreu o alegado patrimonial, pelo que vai expressamente impugnado a correspondente factualidade invocada pela A.”), tal como não teria sequer recorrido evidenciando no corpo das alegações que “…o dano não se presume, demonstra-se” e “sem prova do dano não se pode (…) estabelecer o nexo de entre o facto ilícito e o prejuízo sofrido” (folhas 290, in fine).
Mas se quisermos levar tudo ao rigor dos termos, como se a Justiça fosse feita apenas de régua e esquadro, então também temos de dizer que o recorrente não indicou, como era seu dever, a norma que entendia ter sido violada, dando, assim, cumprimento ao disposto na al. a) do nº 2 do artigo 690º, aplicável ex vi artigo 724º, ambos do Código de Processo Civil, e que, nem por isso, foi convidado pelo relator a colmatar a omissão. Prova evidente de que se terá entendido que em causa estava saber se se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, tal-qualmente foi gizada pela Autora.
Em suma, não tendo a Autora alegado factos bastantes para alicerçar o pressuposto “dano”, tal como lhe competia em homenagem ao preceituado no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, a única posição defensável, em 1ª Instância, tal como neste Supremo Tribunal, seria julgar a acção improcedente.
Dito isto, é altura de entramos no último ponto da nossa breve reflexão de discordância.
Ultrapassado um positivismo legalista, que nega a tarefa jurisgénica do julgador, por respeito a uma cega separação de poderes, e assumida tal responsabilidade com a consagração na Reforma de 1995 do mecanismo da uniformização de jurisprudência, tem-se hoje por adquirida a função jurisdicional do Supremo e a participação do julgador na tarefa da constituenda realização do direito.
Não actuando num esquema de cassação, o Supremo não pode deixar de julgar o caso concreto, ou seja, assumir a justiça do caso como fim em si mesmo (CASTANHEIRA NEVES, O Instituto dos ‘assentos’ e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra 1983, p. 655).
Assim, mais grave do que discordar do julgado, é verificarmos que o Supremo se deu por satisfeito com a resposta (mal) encontrada para a questão (menor) da licitude ou ilicitude da actuação do banco sacado, esquecendo os contornos do caso concreto que foi chamado a JULGAR.
Eis, a traços largos, a razão da nossa discordância.
Urbano Dias

(7)Voto de vencido
Teria concedido a revista com a consequente absolvição do recorrente do pedido, com fundamento em entender que, estando o alegado artº 14 segunda parte, do decreto nº 13004 de 27-01-1927 revogado pela lei uniforme dos Cheques, não se verifica ilicitude na conduta do recorrente.
Teria, assim, concluído pela formulação da uniformização proposta no douto voto de vencido do Conselheiro Salvador da Costa

João Camilo

(8) Declaração de voto

A responsabilidade do Banco sacado, com a consequente obrigação de indemnizar, resultante do não pagamento do montante do cheque ao seu legítimo portador, com a alegação de justa causa de revogação, só pode derivar da violação da lei cambiária ou de violação de qualquer obrigação contratual ou extracontratual.
O Banco sacado não é um obrigado cambiário e não está vinculado pela convenção de cheque perante o seu portador, mas tão só perante o sacador (art. 1º, 3º e 40º da Lei Uniforme sobre Cheques e art. 406º e 1161º, n.º 1, al. a) do C.C.).
Por isso, não podendo, a relação entre o Banco sacado e o portador do cheque, revestir natureza cambiária ou contratual, o Banco sacado não pode ser responsabilizado a esse título pelo não pagamento com aquela alegação de revogação com justa causa.
E também não o poderá ser a título de responsabilidade extracontratual.
Com efeito, essa obrigação não resulta do disposto no art. 14º do Decreto n.º 13004 de 27/1/1927, preceito que se entende revogado com a entrada em vigor daquela Lei Uniforme, que veio regular toda a matéria relativa ao cheque (com excepção da matéria de natureza penal).
E também não tem suporte no disposto no art. 483º do C.C., por falta do pressuposto ilicitude (e basta a inexistência de um desses requisitos para afastar a obrigação de indemnizar).
Efectivamente, o portador do cheque não é titular de qualquer direito subjectivo, de qualquer direito absoluto de que se possa dizer ter sido violado pelo Banco.
E também se não verifica a violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios — o portador do cheque é apenas titular de direito de crédito contra o sacador, e não contra o Banco sacado, nos termos do art. 40º daquela Lei Uniforme.
E é contra o sacador, apesar da ordem de não pagamento, traduzida naquela comunicação ao Banco de revogação do cheque, que o portador do cheque pode exercer os seus direitos cambiários.
Com efeito, no art. 32º da Lei Uniforme, ao estabelecer-se que a revogação do cheque só produz efeito após o prazo de apresentação a pagamento, não se impõe ao Banco a proibição ou não proibição de pagamento do cheque dentro daquele prazo.
Ali, apenas se estabelece que, apesar de revogado pelo sacador, essa revogação é ineficaz, que o cheque continua a valer como cheque, com os consequentes direitos para o seu portador legítimo, os direitos estabelecidos no referido art. 40º — não fora tal normativo e a revogação pelo sacador geraria a perda, pelo portador do cheque, dos seus direitos cambiários contra o sacador, pois então o cheque seria dado como não emitido.
Trata-se, ali de uma questão não de pagamento ou não pagamento, mas de uma questão de eficácia como cheque, título de crédito.
Assim, ao cumprir a ordem de não pagamento, a revogação emanada do sacador, do emitente do cheque, o Banco sacado não cometeu qualquer acto ilícito gerador de obrigação de indemnizar o legítimo portador do cheque pelo não pagamento do seu montante.
Esse portador legítimo de um cheque não pago, quando apresentado a pagamento no prazo de apresentação, mantém o seu direito cambiário conferido pelo referido art. 40º da Lei Uniforme (para além dos direitos emergentes da relação subjacente ou causal à emissão do cheque).
Concluiria, portanto, em sentido oposto à que fez vencimento.
Mota Miranda

(9) Subscrevemos, sem reservas, o voto de vencido do Exmo. Senhor conselheiro Sebastião Povoas, quando afirma não ser admissível o julgamento ampliado da revista nos casos de recurso “per saltum”
Como, porém o plenário se pronunciou pela admissibilidade aderimos à subsequente argumentação expendida pelo mesmo Exmo. senhor Conselheiro e, ainda aos votos de vencido dos Exmos. Senhores Conselheiros Salvador da Costa e Urbano Dias.

Oliveira Rocha