Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PAULO SÁ | ||
Descritores: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA RESPONSABILIDADE BANCÁRIA RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL CHEQUE REVOGAÇÃO JUSTA CAUSA ORDEM DE NÃO PAGAMENTO DEPÓSITO BANCÁRIO CONVENÇÃO DE CHEQUE ILICITUDE DANO | ||
Nº do Documento: | SJ2008022805421 | ||
Data do Acordão: | 02/28/2008 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DR, I SÉRIE, Nº 67, 04.04.2008, P. 2058-2081. | ||
Texto Integral: | S | ||
Referência Processo: | LIVRO 9, REVISTA ALARGADA, P. 231 - 501 | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA AMPLIADA | ||
Decisão: | UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Sumário : | Uma instituição de credito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artª 29 da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32 do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos arts14 2ª parte do decreto nº 13004 e 483 nº 1 do C Civil. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: I. – Grupo SM – CDM, Lda., intentou, em 21 de Março de 2002, na 6.ª Vara Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra o Banco AA, S.A. (actualmente, Banco BST, S.A.), pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 97.175,38, correspondendo € 88.573,74 a capital e € 8.601,64 a juros de mora vencidos, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento. Para tanto alegou, em síntese: É dona e legítima portadora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n.º 200000000000 do Banco AA, por si titulada. Tais cheques foram entregues à A., para pagamento de uma dívida da sociedade VS – Vestuário e Bijuterias, Lda. Apresentados a pagamento nos oito dias posteriores à data da respectiva emissão foram todos devolvidos com a a indicação de cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade ou simplesmente cheque revogado – falta vício na formação da vontade. Esta devolução ocorreu em consequência do sacador ter dado ao Banco R. ordem de revogação dos cheques, o que este veio a aceitar e a cumprir, razão pela qual a A. nunca recebeu as quantias tituladas pelos cheques, estando, por conseguinte, desembolsada da quantia de € 88.573, 74, correspondente ao somatório dos vinte cheques. Contestou o R., pugnando pela improcedência da acção. A A. replicou. O R. deduziu intervenção acessória provocada do sacador e da sociedade devedora. Admitida a intervenção, após audição da A. que não se opôs, informando que os chamados haviam sido declarados falidos. Foram os intervenientes citados nas pessoas dos liquidatários judiciais, mas não constituíram mandatário nem contestaram. Foi proferido despacho saneador, onde se fixaram os factos assentes e a base instrutória, tendo sido formuladas reclamações parcialmente atendidas. Realizado o julgamento em sede de 1.ª instância, foram fixados os factos provados, sem qualquer reclamação e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o R. a pagar à autora, a quantia de € 88.573,74, acrescida de juros de mora, desde a data de citação. A 1.ª instância fundamentou a decisão, no essencial, deste modo: «Não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação.» «A recusa operada foi ilegítima, face ao disposto no art. 32º LUC, pelo que, nos termos dos arts. 14º, 2ª parte do Decreto 13004 e 483º C. Civil, o Réu terá que responder por perdas e danos, caso se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil.» E, mais à frente (fls. 224): «…o Réu ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que este foi apresentado a pagamento no prazo legal), impediu que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1º do DL 316/97 de 19-11 e comunicação ao Banco de Portugal» E concluiu (ibidem): «…o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.» No caso, «o dano corresponde aos montantes dos cheques que a autora não recebeu da sacadora, acrescido de juros a contar da citação». Inconformado, o R. interpôs da referida decisão recurso de revista – recurso per saltum –, requerendo o julgamento ampliado, visando a uniformização da jurisprudência. O R. conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo: 1. O Tribunal a quo considerou que o BST praticou um facto ilícito, por ter aceite uma ordem de revogação dos cheques juntos aos autos; 2. Contrariamente ao defendido na decisão da 1ª instância e à jurisprudência maioritária subsequente ao assento 4/00, de 17/2, entendemos que o Decreto 13004, de 1927 foi integralmente revogado com a ratificação por Portugal da Convenção de Genebra que aprovou a Lei Uniforme do Cheques; 3. Tal entendimento, tem sido defendido, entre outros, pelo Dr Fílinto Elísio (…), Prof Ferrer Correia e Dr António Caeiro (…) e mais recentemente pelo Prof. Germano Marques da Silva (…) e sempre foi o entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores até à publicação do citado assento; 4. Face ao que decorre da LUC (arts 40º, 4º e 25º), o banco sacado não é obrigado cambiário e não pode aceitar ou avalizar um cheque, pelo que não responde perante o beneficiário; 5. Por outro lado, não intervêm na relação cartular estabelecida entre o sacador e o beneficiário, pelo que não pode ser atingido pelo cumprimento de uma ordem emanada pelo sacador, que ordena o não pagamento de um cheque que pôs a circular; 6. Sem prejuízo do anteriormente concluído, (…) o sacado responde, nos termos gerais da responsabilidade extracontratual, mas não por força do que dispõe a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, que se encontra revogado; 7. Mas mesmo que se entenda que a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, está em vigor, não pode o mesmo deixar de ser lido em articulação com o nº 2 do art 1170º do C.Civil, pelo que, em situações de justa causa, a revogação do cheque deve admitir-se; 8. Com a alteração introduzida pelo Decreto 316/97, de 19/11, no art 1º nº 2 do D/Lei 454/91, de 28/12, algo se alterou nas relações sacado/sacador, quanto ao princípio da livre revogabilidade, na medida em que os bancos, desde a entrada em vigor do referido Dec-lei 316/97, só podem aceitar ordens de revogação, sustentadas em justa causa. 9. Ao passo que antes o sacado podia aceitar livremente uma ordem de revogação, com a publicação do referido D/L316/97, tal faculdade ficou limitada (…). 10. Com a alteração da redacção do art 1º nº 2, levada a cabo pelo D/Lei 316/97, de 19/11, houve uma alteração significativa: onde se lia ”saque ou participa na emissão de um cheque sobre uma conta cujo saldo não apresente provisão suficiente” passou a ler-se “verificada a falta de pagamento”. 11. A redacção actual “verificada a falta de pagamento”, é mais abrangente e refere-se às várias hipóteses do cheque que apresentado a pagamento não é pago: falta de provisão, saque irregular, revogação, conta cancelada, etc. 12. A redacção introduzida pelo D/Lei 316/97, conduz a um resultado de que o sacado não se pode desviar: obriga o sacado, perante uma situação de falta de pagamento (E NÃO EXCLUSIVAMENTE POR FALTA DE PROVISÃO, como ocorria antes da alteração da lei), a notificar o sacador para proceder à regularização do cheque não pago, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (art 1º nº 2 e 1º-A nº 1, D/Lei 454/91). 13. Ora existindo um DEVER imposto ao sacado, decorrente de norma expressa, de notificar o sacador para regularizar, em 30 dias, o cheque não pago (…), não é de admitir que o sacado aceite uma ordem de revogação. 14. Se aceitar uma ordem de revogação, entra em contradição: por um lado, o banco sacado conforma-se com a ordem, mediante a aposição de um carimbo, no verso do cheque, com a indicação de “cheque revogado”; por outro lado, está obrigado, por lei, a notificar o sacador para vir regularizar o cheque, cuja ordem para não pagar aceitou como válida. 15. Dito isto, o banco, não pode acatar uma ordem de revogação, pois se o fizer está potencialmente a incorrer em responsabilidade civil extracontratual (nº1, 2ª parte do art 483º do CC) 16. Mas como encontrar o ponto de equilíbrio entre este entendimento e as hipóteses em que o sacador tem razões (justa causa) para ordenar a revogação de um cheque que pôs a circular ou foi posto a circular (por ex. furto) contra sua vontade? 17. Pelo apelo à natureza jurídica das relações sacado/sacador (contrato do cheque) – mandato sem representação conferido no interesse do mandante e do mandatário – pode limitar-se a aceitação da revogação aos casos de “justa causa”, nos termos do art 1170º nº 2 do C.Civil. 18. A responsabilização do sacado não decorre, como já se viu, da lei cambiária – que a não admite! – nem de qualquer relação jurídica entre o sacado e o portador – que inexiste! – nem de se mostrar em vigor a 2ª parte do artº 14º do Dec 13004, mas de norma expressa que impede a observância de uma instrução de revogação, (art 1º nº2 e 1ºA nº1 Dec. Lei 454/91), que, é, todavia, afastada, em situações de justa causa, por força do que dispõe o nº2 do art 1170º do CC. 19. Não é juridicamente aceitável defender-se a responsabilização civil, por aceitação de uma ordem de revogação, durante o período de apresentação a pagamento, existindo fundamento jurídico (justa causa) para o não pagamento (…) – ora é o que parece resultar do assento 4/00, onde se defende a irrevogabilidade total do cheque, durante o período de apresentação a pagamento. 20. Defender-se posição diferente – ou seja, a total irrevogabilidade durante o período de apresentação a pagamento – é atentar contra o nº 2 do art 1170º do C.Civil. 21. A relação banco/sacador traduz um mandato sem representação, uma vez que o banco actua em nome próprio (…). 22. Mas o mandato é também conferido no interesse do mandatário, uma vez que há interesse por parte do banco no negócio de atribuição de cheques a clientes que previamente lhe confiam o dinheiro (…) 23. Hoje, é o conjunto de serviços prestados pelo Banco, a respectiva qualidade, associada à confiança de que o Banco concederá crédito, em caso de necessidade e de acordo com a capacidade de endividamento do cliente, que cimenta a relação bancária, que fideliza o cliente ao banco. 24. Acresce que, actualmente, a entrega de uma carteira de cheques tem um custo para o sacador (…), o que, naturalmente, reforça o interesse do banco na prestação do serviço. 25. Fica assim evidenciado que o banco (mandatário) tem interesse na relação que estabelece com o sacador, pelo que o mandato deve considerar-se passado também no seu interesse. 26. Daqui resulta, o seguinte corolário: se o mandato não fosse também conferido no interesse do mandatário (ou dito doutra forma, se fosse somente conferido no interesse do mandante), o banco teria que acatar a instrução de revogação, por força do que estabelece o art 1170º nº 1 CC. 27. O que implicaria um conflito entre a natureza jurídica do contrato de cheque (mandato sem representação e respectiva possibilidade de revogação do mandato, nos termos do art 1170º nº1 CC) e o regime legal imposto pelo Dec-Lei 316/97, que obriga os bancos a notificar os sacadores, em todas as situações de não pagamento (e não somente em situações de falta de provisão) de um cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal. 28. Todavia, como o mandato é também conferido no interesse do banco sacado, a instrução de revogação só produz efeitos se o mandatário der o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa (art 1170º nº2 do CC). 29. Ou seja, a possibilidade do sacado acatar ou não a ordem de revogação (referimo-nos sempre a situação da ordem ser dada antes de expirado o prazo do artº 29º LUC), terá obrigatoriamente que ser sempre enquadrada segundo a seguinte perspectiva: 30. – o que determina a lei 454/91, por força da alteração introduzida pelo Dec-Lei 316/97 e a sua articulação com o regime da revogação do mandato, previsto no nº2 do art 1170º do CC. 31. Da articulação destas duas vertentes, resulta que é possível a revogação de um cheque desde que exista justa causa para a ordem de revogação. 32. Existindo motivo justificado, o sacado não pode recusar a contra-ordem para não pagar, sob pena de violar o art. 1170º nº2 do CC. 33. Ora, este entendimento está também conforme ao REGULAMENTO DO SISTEMA COMPENSAÇÃO INTERBANCÁRIO – vulgarmente conhecido por SICOI. 34. O regulamento SICOI prevê a revogação do cheque quando a ordem se funda em justa causa. 35. A revogação sem sustentação numa “justa causa” não é tratada, pelo que é de concluir a contrário, que não é admitida, pelo SICOI. 36. O que importa determinar é (…) se o banco deve ou não fazer de “julgador”, quando o sacador manda cancelar um cheque, por alegada justa causa” 37. O texto do Regulamento SICOI, parece apontar no sentido de que o sacado está obrigado a exigir explicações concretas quanto à revogação. 38. Contudo, não deve ser tomado à letra o que dispõe o SICOI, pois aceitar tal hipótese configuraria a atribuição de poderes de avaliação/decisão a um funcionário que ao balcão atende um sacador, que lhe pede a revogação, por “vicio da vontade”. 39. Deve pois bastar-se com a declaração do sacador (como o exige o SICOI) confiando na sua declaração, sem ter que indagar mais pormenores. 40. Assim, se o banco for demandado por acatar uma ordem de revogação, excepciona, com o motivo de justa causa invocada pelo sacador e que o SICOI admite, afastando, assim, em princípio, a sua responsabilidade. 41. Chegados aqui cremos ser possível defender-se que não ocorreu nenhum facto ilícito praticado pelo banco sacado, aqui BST, quando aceitou uma ordem de revogação fundada em justa causa, como resulta do verso dos cheques juntos aos autos, não podendo, pois, o banco ser responsabilizado, nos termos da 2ª parte do art 14º do decreto 13004. 42. Nos termos do artigo 725º do CPCivil, requer-se que a presente apelação se faça directamente para o STJ, através do denominado recurso “per saltum”. 43. Por último, deve fixar-se a uniformização de jurisprudência da matéria trazida a estes autos, nos termos do art. 732º-A do CPCivil, por no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, existiram diversos acórdãos dos Tribunais superiores, designadamente o acórdão do STJ de 05/07/01 (Colectânea Jurisprudência, Ano IX, Tomo II, 2001, p146 e segts.), o acórdão do STJ do mesmo dia (Proc 01A1461, nº convencional STJ00042071, www.dgsi.pt), acórdão da Relação de Coimbra de 28/11/00 (Colectânea Jurisprudência Ano XXV, 2000, Tomo V, pág 24 e segts.), que propugnam o entendimento de que a aceitação da revogação de um cheque, durante o período legal de apresentação a pagamento (art 29º LUCH) gera responsabilidade civil extracontratual do banco sacado e o acórdão do STJ de 19/06/01 (Proc 01A1330, nº convencional JST00041630 www.dgsi.pt) e o acórdão do STJ de 06/12/90 (Proc. 079579, nº convencional JST 00006004, www.dgsi.pt), que defendem um entendimento contrário. A autora, ora recorrida, diz que deve ser negado provimento ao recurso, propondo que seja fixada jurisprudência, nos seguintes termos: «O banco sacado que aceita a ordem de revogação de um cheque dada pelo sacador e que a executa durante o período de apresentação a pagamento comete um facto ilícito por violação do disposto no art. 14º do Decreto 13004 e é responsável perante o portador por perdas e danos.» O Senhor Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso e o Ministério Público foi de parecer que o conflito fosse resolvido no sentido de que: «Uma instituição de crédito sacada que recuse o pagamento de cheque emitido através de módulo por ela fornecido, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29º da LUC, alegando cumprimento de ordem de revogação que lhe fora dirigida pelo sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do art. 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14º, 2ª parte do Dec. 13004 e 483º do Código Civil». Cabe apreciar e decidir. II. Fundamentação De Facto II.A. São os seguintes os factos dados como provados, face ao oportunamente especificado e ao resultado do julgamento (exclusivamente factos assentes): 1. A Autora é dona e legítima possuidora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n.º 21458765001 do Banco AA, por si titulada, a saber: a) cheque n.º 300000000, emitido em 10/09/2000, titulando o montante de 715.000$00 e apresentado a pagamento em 13/09/2000; b) cheque n.º 7000000, emitido em 13/09/2000, titulando o montante de 900.000$00 e apresentado a pagamento em 15/09/2000; c) cheque n.º 80000000, emitido em 15/09/2000, titulando o montante de 500.000$00 e apresentado a pagamento em 19/09/2000; d) cheque n.º 600000000, emitido em 15/09/2000, titulando o montante de 650.000$00 e apresentado a pagamento em 19/09/2000; e) cheque n.º 200000, emitido em 20/09/2000, titulando o montante de 750.000$00 e apresentado a pagamento em 22/09/2000; f) cheque n.º 9000000, emitido em 20/09/2000, titulando o montante de 600.000$00 e apresentado a pagamento em 22/09/2000; g) cheque n.º 09000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 700.000$00 e apresentado apagamento em 04/10/2000; h) cheque n.º 1000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 750.000$00 e apresentado a pagamento em 04/10/2000; i) cheque n.º 04000000, emitido em 30/09/2000, titulando o montante de 1.010.000$00 e apresentado a pagamento em 02/10/2000; j) cheque n.º 250000000, emitido em 10/10/2000, titulando o montante de 1.270.000$00 e apresentado a pagamento em 11/10/2000; k) cheque n.º 9000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 980.000$00 e apresentado a pagamento em 23/10/2000; l) cheque n.º 3000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 1.000.000$00 e apresentado a pagamento em 24/10/2000; m) cheque n.º 10000000, emitido em 20/10/2000, titulando o montante de 1.270.000$00 e apresentado a pagamento em 31/10/2000; n) cheque n.º 2000000, emitido em 30/10/2000, titulando o montante de 950.208$00 e apresentado a pagamento em 02/11/2000; o) cheque n.º 8000000, emitido em 05/11/2000, titulando o montante de 600.000$00 e apresentado a pagamento em 08/11/2000; p) cheque n.º 7000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 857.233$00 e apresentado a pagamento em 05/12/2000; q) cheque n.º 70000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 1.040.000$00 e apresentado a pagamento em 04/12/2000; r) cheque n.º 70000000, emitido em 30/11/2000, titulando o montante de 1.050.000$00 e apresentado a pagamento em 04/12/2000; s) cheque n.º 6000000, emitido em 15/12/2000, titulando o montante de 715.000$00 e apresentado a pagamento em 19/12/2000; t) cheque n.º 070000000, emitido em 25/12/2000, titulando o montante de 1.450.000$00 e apresentado a pagamento em 27/12/2000; 2. Tais cheques foram entregues à Autora para pagamento de uma dívida da sociedade VS – Vestuário e Bijuterias, Lda. 3. Todos os cheques foram devolvidos pelos serviços de compensação do Banco de Portugal com os seguintes dizeres apostos no verso: cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade ou cheque revogado – falta vício na formação da vontade. 4. O sacador FFC emitiu ordem dirigida ao Banco Réu para revogação dos mencionados cheques. 5. O Banco Réu aceitou tais ordens de revogação e cumpriu-as. 6. A conta bancária identificada em A) não apresentava fundos monetários que possibilitassem o pagamento dos cheques referidos na data em que os mesmos foram apresentados a pagamento. II.B. De Direito II.B.1. Previamente importa precisar o âmbito do recurso. Nos termos do artigo 681.º do Código de Processo Civil não haverá recurso se as partes a ele renunciarem ou se tiverem aceitado a decisão depois de proferida. Esta renúncia ou aceitação podem ser parciais se a decisão for divisível. Assim, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas desfavoráveis e o vencido no requerimento de interposição ou nas alegações deste só se referir a uma delas, tal implica renúncia ao recurso na parte sobrante ou aceitação tácita das decisões desfavoráveis não citadas (Cf. FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 130). Diz AMÂNCIO FERREIRA, na obra citada (p. 153): «…no que concerne a alguns julgados desfavoráveis, a parte vencida pode não estar interessada em questioná-los, ou por com eles concordar, ou por os prejuízos que daí advêm não serem de grande monta, ou por não querer protelar no tempo a definição da situação jurídica submetida a juízo. Se tal acontecer, a matéria devolvida para conhecimento do tribunal superior não coincide com a totalidade da que foi considerada como desfavorável; a não incluída na impugnação adquire a força de caso julgado. Em dois actos processuais, pode o recorrente, visado com uma pluralidade de decisões desfavoráveis, restringir o objecto do recurso: no requerimento de interposição e nas conclusões da alegação. (…) nas conclusões da alegação, se o recorrente referir que não se pronuncia sobre o assunto respeitante a algumas decisões desfavoráveis, por já não estar interessado em submetê-las à apreciação do tribunal superior, ou se, pura e simplesmente, ao assunto dessas decisões não alude, o recurso fica restringido às restantes decisões desfavoráveis (art. 684.º,n.º 3).» E mais adiante (p. 154), diz, ainda, o ilustre jurista: «Se o recorrente ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objecto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» Não se perca de vista que o recurso per saltum implica que nele apenas se suscitem questões de direito, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 721.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil. Daqui decorre, desde logo, ter o recorrente optado por não recorrer da matéria de facto. Depois, das conclusões terá que se inferir que existe uma restrição da matéria de direito, tendo o recurso como único objecto a apreciação da questão da licitude da conduta do Banco recorrente. De fora do âmbito do recurso estão, assim, as questões relativas aos demais pressupostos da obrigação de indemnizar. Isto é tanto mais evidente quanto o dano se apresenta como condição essencial da responsabilidade (MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, p. 329). Se não houver dano não há responsabilidade delitual ou contratual, nada importando que tenha sido praticado um facto ilícito. A opção adoptada no recurso, de crítica exclusiva do entendimento subscrito pela decisão recorrida quanto à ilicitude, implica a aceitação do decidido quanto aos demais pressupostos e, particularmente, quanto ao dano. Atento o teor da decisão recorrida e as conclusões do recorrente apenas está em questão: a) saber se não ocorreu nenhum facto ilícito praticado pelo banco sacado, aqui BST, quando aceitou uma ordem de revogação fundada em justa causa, não podendo, pois, o banco ser responsabilizado; b) formular jurisprudência de carácter uniformizador «no sentido do entendimento de que a revogação de um cheque só é admissível, durante o período de apresentação a pagamento (art. 29º LUCH), se sustentada em justa causa». II.B.2. A resposta às questões colocadas pressupõem os seguintes patamares de análise: 1. Contradição de acórdãos sobre as mesmas questões fundamentais de direito – revogação da 2.ª parte do artigo 14.º do Dec. 13004 ou, a entender-se vigente, sua interpretação conjugadamente com o n.º 2 do art.º 1170.º do C. Civil; 2. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões. 3. Apreciação crítica das teses em confronto na sua aplicação ao caso concreto. II.B.3. A primeira questão a resolver nos recursos ampliados para efeitos de uniformização de jurisprudência é a de saber se existe ou não oposição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito. Ocorre a identidade da questão, se à aplicação normativa está subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica. No caso vertente está em discussão a eficácia da revogação operada no período legal de apresentação e o carácter ilícito da actuação do sacado que aceitou uma tal revogação. O conflito terá que se colocar entre a decisão proferida nestes autos e os acórdãos invocados como fundamento. Destes, apenas um diverge da corrente que foi acolhida na decisão recorrida e que é o acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001, sustentando “que o sacado é livre de se conformar com a ordem de revogação dada pelo sacador ainda que dada na pendência do prazo de apresentação”. Tanto basta que para que estejam reunidos os pressupostos para a uniformização de jurisprudência pretendida, sendo certo que a delimitação de uniformização deve pautar-se pelos próprios limites da divergência que são estes: vinculação ou não do banco sacado à aceitação da ordem de revogação do cheque no período da respectiva apresentação. II.B.4. Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões. II.B.4.1 A primeira questão a tratar nestes autos prende-se com o facto de saber se o banco sacado pode ser responsabilizado, perante o seu portador legítimo, pelo pagamento de um cheque emitido por um titular de conta de depósito à ordem, que posteriormente, mas durante o prazo de apresentação a pagamento, emitiu uma ordem de revogação desse mesmo cheque emitido e entregue ao portador, que, entretanto, o apresentou a pagamento. As questões a decidir, no âmbito do presente recurso, situam-se em dois quadros distintos: (i) No quadro disciplinado pelas normas de direito internacional que integram a LUCH; (ii) No quadro do direito extracambiário interno, com referência, designadamente, ao art. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004, aos arts. 1.º, n.º 2 e 1.º-A, n.º 1 do DL n.º 454/91, na redacção do DL n.º 316/97 e ao art. 1170.º, n.º 2, do C. Civil. II.B.4.2. O Quadro Normativo Estabelecido na LUCH. A LUCH não fornece propriamente uma definição de cheque, embora, após fixar nos arts. 1.º e 2.º alguns dos respectivos requisitos essenciais e não essenciais – e, entre os primeiros, se devendo conter «o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada» (art. 1º, n.º 2) –, complementa a sua configuração como título com o disposto no seu artigo 3.º: «O cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção, expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque. A validade do título como cheque não fica, todavia, prejudicada no caso de inobservância destas prescrições». Como afirmam FERRER CORREIA/ANTÓNIO CAEIRO (Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2 Julho/Dezembro de 1978, p. 457), «[n]a lição dos tratadistas, o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita.» Na base de emissão do cheque, conforme se dispõe na primeira parte do art. 3.º da LUCH, acima transcrito, surpreendem-se duas relações jurídicas distintas, ambas estabelecidas entre o emitente (sacador) e determinado Banco (sacado): a relação de provisão e a convenção ou contrato de cheque. O cheque emitido com violação do imperativamente disposto na primeira parte do art. 3.º da LUCH não é ferido de nulidade, nos termos genericamente previstos no art. 294.º do Código Civil, atento o regime especial contido na última parte daquele mesmo preceito (José Maria Pires, O Cheque, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 28). Garante-se, deste modo, a autonomia da relação cambiária, relativamente, quer à relação causal subjacente, quer às diversas convenções extracartulares. «Assim se facilita a circulação do cheque e a boa fé dos seus portadores, que beneficiam sempre da garantia do sacador, quanto ao pagamento. De facto, o art. 12.º da Lei Uniforme estabelece que “o sacador garante o pagamento”» (J. M. PIRES, ibidem). O Banco sacado não é (co-)obrigado cambiário, no sentido de que não interveio na relação cartular, nem assinou o cheque – O sacado não pode, nos termos previstos nos art.os. 4.º e 25.º da LUCH, aceitar o cheque (título pagável à vista) ou avalizá-lo –, não estando compreendido no elenco dos co-obrigados referidos no art. 40.º da referida Lei. Não existe também qualquer relação jurídica entre o sacado e o tomador do cheque, já que o tomador não participa na convenção de cheque celebrada entre o titular da provisão e o Banco, nem o sacado participa no negócio de emissão. O Banco está vinculado, perante o sacador, e em regra, ao pagamento do cheque – não como obrigado cambiário, mas em contrapartida da relação de provisão e da convenção de cheque com aquele estabelecidas. Feitas estas precisões de carácter genérico sobre a disciplina do cheque abordemos agora, especificamente, o tema da revogação do cheque. Dispõe o artigo 32.º LUCH que «a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação. Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.» O prazo de apresentação do cheque (pagável no país em que foi passado) é de oito dias, nos termos do art. 29.º LUCH. Assim, na interpretação meramente literal do preceito, a revogação do cheque só produz efeito findo o prazo de oito dias, mas, se não for revogado, pode ser pago pela entidade sacada mesmo depois do prazo referido. Ora, no quadro de previsão do art. 32.º da LUCH, «revogar um cheque é proibir o seu pagamento; é dá-lo como não emitido… … O sacador do cheque, depois de fazê-lo entrar na circulação, dá ordem ao banqueiro para que não o pague». Interessa, tendo em vista a aplicação actual do regime contido no art. 32.º da LUCH, bem como as questões que a esse respeito se colocam, reconstituir, com recurso aos trabalhos preparatórios da Convenção, o espírito que presidiu à adopção da redacção final. Segue-se, para tanto, a condensação efectuada no Assento n.º 4/2000 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Fevereiro de 2000, pp. 570 a 586), que recorre substancialmente à obra de referência de BOUTERON, sobre o cheque (Le Statut). Os trabalhos da Convenção assentaram no projecto de articulado anteriormente redigido por um comité de peritos, consideradas as Resoluções da Conferência da Haia de 1912. Em matéria de revogação de cheques, o comité de peritos não transpôs o regime anteriormente constante do art. 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912, limitando-se a recomendar «que os Estados tomem medidas de ordem civil para impedir a revogação do cheque durante o prazo de apresentação». Apresentadas várias emendas, centrar-se-ia a discussão sobre a proposta italiana, inspirada no sistema germânico de irrevogabilidade relativa, como via intermédia ou compromissória entre os sistemas de livre revogabilidade (Reino Unido, Finlândia, Suécia e Dinamarca) e de irrevogabilidade rígida (França). A primeira parte da redacção do art. 32.º da LUCH, que veio a ser adoptada, correspondia à do aludido art. 17.º das Resoluções da Haia, consagrando a citada posição intermédia e contando com o apoio do representante de Portugal, que propôs, alem disso, sem êxito, que se adoptasse uma fórmula idêntica à do artigo 14.º, n.º 2, do Dec. n.º 13.004. Para garantir aos Estados em que vigorava um sistema de livre revogabilidade a preservação e consistência da respectiva lei interna, ficou consagrada a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa adoptado, através da alínea a) do art. 16.º do Anexo II, que dispõe: «Qualquer das Altas Partes Contratantes, por derrogação do art. 32.º da lei uniforme, reserva-se a faculdade de, no que respeita aos cheques pagáveis no seu território: a) Admitir a revogação do cheque mesmo antes de expirado o prazo de apresentação; (…).» Porém, Portugal, não formulou, quanto a este ponto, qualquer reserva, pelo que vigora sem derrogações, o art. 32.º da LUCH. A primeira parte do art. 32.º da LUCH radica assumidamente na protecção do portador do cheque, bem como na credibilização do próprio cheque como meio de pagamento (pontos acentuados no decurso das sessões de trabalho). FERRER CORREIA e ANTÓNIO CAEIRO (obra citada, pp. 466, 467) defendem o carácter limitado da norma. Segundo estes autores, não sendo o Banco sacado obrigado cambiário, não dispondo contra ele o portador do cheque, no estrito âmbito dessa relação, de direito de acção, a visada protecção do interesse do portador quedar-se-ia sem tutela efectiva (salvaguardado, relativamente ao sacador, o seu direito de regresso) – contradição ou imperfeição justamente apontadas nas sessões de debate da Convenção, como anteriormente, aquando das Resoluções da Haia, já o tinham sido. Seguir-se-ia que, não estando o sacado obrigado perante o portador, «ele é livre de se conformar ou não com a ordem de revogação, mesmo durante o prazo da apresentação do cheque. Se deseja manter boas relações com o sacador, provavelmente acatará a ordem, apesar de ela o não obrigar. (…) Em resumo: se pagar, pagará bem, mas nada o obriga a fazê-lo. Nisto se esgota o alcance da referida norma». O Banco sacado, na hipótese considerada, ficaria constituído árbitro da situação, cabendo-lhe dirimir os interesses conflituantes, por um lado, do cliente/sacador e, por outro, do portador, bem como da defesa da fé no título, como meio de pagamento. Sobre esta tese se pronunciou, o Assento n.º 4/2000 (cit., p. 582), nos seguintes termos: «a afirmação de que o sacado é livre de se conformar ou não com a revogação ou que, “se pagar, pagará bem, mas nada obriga a fazê-lo”, tudo para se significar que ele actua de acordo com a lei se não acata a ordem de revogação, mas também não a infringe se se conformar com esta, constitui, ao que nos parece, uma negação da evidência». A LUCH, no seu art. 32.º, primeira parte, estabelece imperativamente – pelas referidas razões de protecção do portador, bem como de credibilização do próprio cheque como meio de pagamento – que o pagamento do cheque (pagamento devido, nos termos do art. 28.º), não pode ser proibido, mediante revogação, durante o prazo de apresentação. A injunção aí contida não tem unicamente como destinatário o sacador. Com fundamento, precisamente, na convenção de cheque, não se dirige apenas àquele, mas também ao sacado: constitui-se como lex contractus relativamente às relações entre ambos. O sacado incumpre-a – e viola o comando legal – se, dentro do prazo de apresentação, acatar a ordem de proibição, recusando o pagamento do cheque. Transcreve-se do ac. do STJ, de 5 de Julho de 2001, (Proc. 01A1461, CJ, ano IX, tomo II, pp. 146 a 149): «Ora o art. 32.º da LUC é muito claro: “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”. Portanto, enquanto não findar o prazo de apresentação a pagamento (que é de oito dias, contados da data aposta como de emissão: arts. 1.º, n.º 5 e 29.º da LUC), a revogação do cheque não tem efeitos, não é eficaz. Consequentemente, se a revogação efectuada dentro do prazo de apresentação não tem efeitos, o Banco sacado não pode recusar o pagamento (pelo motivo da revogação), porque fazê-lo seria dar efeitos a um acto que a lei diz que os não tem: a recusa de pagar, dentro do prazo de apresentação e pelo fundamento da revogação, seria um acto ilícito». De acentuar que a vinculação do sacado à directiva contida no art. 32.º da LUCH não o converte, certamente, em obrigado cambiário, que o não é, não podendo, a esse título, ser accionado pelo portador, ou sancionado pelo incumprimento. O sancionamento ou não do incumprimento em causa, entendido por exorbitante dos objectivos da Convenção, deverá obter-se na diversidade do quadro de direito interno dos diferentes Estados-membros (Neste sentido, vide os artigos 19.º do anexo II da Convenção e o artigo 7.º da Convenção Destinada a Regular Certos Conflitos de Leis em Matéria de Cheques, designadamente os seus n.os 6.º e 7.º). Foi tal entendimento que resultou da discussão dos trabalhos da Convenção, designadamente em resposta à proposta do delegado português de fazer incluir uma cláusula semelhante à previsão contida na 2.ª parte do artigo 14.º do Dec. 13.004, como se salienta no Assento n.º 4/2000 (p. 582), relacionando a inutilidade da proposta com o facto de que «uma tal previsão invadiria o domínio do direito comum, em matéria de perdas e danos». Sobre o carácter vinculativo do artigo 32.º para o sacado, não é despiciendo invocar o argumento aduzido no acórdão deste Tribunal de 10 de Maio de 2007, in www.dgsi.pt: «Do teor do dito art.º 32.º da LUCH, na parte transcrita, retira-se inequivocamente uma ideia: Findo o prazo de apresentação a pagamento, o sacado não deve pagar o cheque. Esta ideia constitui, ela mesma, argumento a favor da posição de obrigatoriedade de pagamento. Se se entendesse que devia pagar, então teríamos a irrelevância da referência legal ao prazo. O antes e depois equivalia--se.» Percorrendo a doutrina e a jurisprudência comunitária não se encontram contributos relevantes para a discussão sobre a responsabilidade do sacado relativamente ao portador. O leque das opções continua a ser o mesmo que existia no momento da discussão da Convenção, com o sistema francês a manter a posição da irrevogabilidade, o sistema da livre revogabilidade e o sistema germânico que continua a vigorar em diversos países (Itália, Espanha, Alemanha), sendo que em Itália (com uma norma semelhante ao artigo 32.º da nossa Lei Uniforme) se aceita a recusa de pagamento de um cheque, até por mero arbítrio. Na procura da exacta definição do instituto de revogação do cheque, importa analisar agora se devem ser tratadas como tal as situações de furto ou extravio, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque. Compaginada a redacção do art. 32.º da LUCH, com a do art. 17.º das Resoluções da Haia de 1912, verifica-se que do âmbito da previsão daquele normativo estão excluídos os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque. Apenas o art. 21.º da LUCH incidentalmente se ocupa da matéria, por razões de necessidade do comércio, a propósito da aquisição, a non domino e de boa fé, do cheque. Previu-se, por outro lado, na parte final do art. 16.º do ANEXO II da CGLUCH: «Qualquer das Altas Partes Contratantes tem, além disso [da faculdade de derrogação do regime contido no art. 32.º da LUC, relativo à revogação de cheques, faculdade prevista nas alíneas a) e b) da primeira parte do preceito], a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos». Os trabalhos preparatórios da CGLUC dão conta dos debates na matéria e da impossibilidade de, à semelhança do regime contido na 2.ª parte do art. 17.º das Resoluções da Haia, ser obtida consagração, no texto da LUCH, do mecanismo procedimental de oposição ao pagamento por parte do sacador, em caso de extravio, furto, emissão ou apropriação fraudulentas do cheque. Escreve-se, a esse respeito, no Assento n.º 4/2000, (cit., p. 577/578): «No que concerne aos casos de perda ou ’vol’ (palavra que, na interpretação do delegado italiano, abrange todo o delito que provocou ou acompanhou a emissão do cheque) – matéria em que, como dissemos, os peritos não tinham retomado os textos dos artigos 17.º, 2.º parágrafo, e 31.º das resoluções da Haia –, a Conferência decidiu adoptar a reserva proposta pela delegação polaca e rejeitar qualquer solução distinta das que haviam sido precedentemente admitidas para a letra e constituíam os artigos 16.º, 2.º parágrafo, e 40.º, 3.º parágrafo, da LULL. (Na verdade, destas duas regras, apenas a primeira – protegendo o adquirente de boa fé de um título de que outrem fora, por qualquer maneira, desapossado – viria a ser consagrada na LUC, mais precisamente, no seu artigo 21.º)». E conclui-se (ibidem): «Daí que se tenha exarado no relatório: “Propusemos que se regulasse a situação, em caso de 'perda ou vol'. Pusemos em destaque que em tal caso o sacador ou um portador devia ser autorizado a opor-se ao pagamento mediante bloqueio da conta enquanto a questão não fosse esclarecida em processo judicial sumário. As divergências constatadas em matéria de 'procédure' impediram a unificação visada segundo aqueles princípios.” (Cf. J. Bouteron, Le Statut, cit., pp. 435-442.)». Também, separando águas entre casos de revogação e os demais, acima considerados, sustentou o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em parecer não publicado: «Noutras [situações] figurar-se-ão vícios tais que nem de revogação – logo, de aplicabilidade do artigo 32.º – deva rigorosamente falar-se. Não pode, em casos tais, pretender-se aplicável o artigo 32.º apenas porque o titular da conta criou, com a comunicação ao banco, uma aparência de revogação. Ninguém, decerto, sustentará que um cheque furtado e depois subscrito a título de saque com assinatura falsa possa ser pago dentro do prazo de apresentação, só porque o aparente sacador advertiu imediatamente o banco interditando-lhe o pagamento. Nem se estará aí perante uma revogação, nem se integraria, consequentemente, a previsão do art. 32.º». Em síntese: Os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, embora muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do art. 32.º da LUCH, não decorrendo desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques pelo sacado. II.B.4.3. O Quadro de Direito Extracambiário Interno: A vigência na ordem interna da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004. Dispõe o artigo 14.º do Decreto n.º 13.004, de 12.1.27, que «a revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no art. 12.º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento da referida revogação.» Acrescenta o § único do mesmo artigo que «se porém o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos». Relativamente à questão da vigência, na ordem interna, da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004, entende-se dever a mesma obter resposta afirmativa, pelas razões constantes do citado Assento n.º 4/2000. Entre as soluções estabelecidas na LUCH (considerando, designadamente, o sacado como não obrigado cambiário) e a contida no segmento normativo em causa não se verifica uma relação de oposição. Assim como a LUCH, por força de uma Convenção self-restraint, se desinteressa de eventual sancionamento pelo incumprimento de uma obrigação do Banco sacado, uma vez que não releva de uma – inexistente – vinculação cambiária, relegando a questão para o ordenamento interno dos diferentes Estados--membros, também a disposição constante da 2.ª parte do art. 14.º do Dec. n.º 13.004 não pretende regular a relação cartular, antes historicamente exprimindo determinada medida de política legislativa, em vista do reforço da tutela do próprio cheque como meio de pagamento. Não uma relação de oposição, mas de complementaridade, em suma. Nas palavras do Assento: «uma solução de direito comum para uma questão de direito comum». A obrigatoriedade de pagamento do Banco sacado perante o portador do cheque (em tese geral, não se cuidando, agora, de eventuais causas justificativas de recusa de pagamento) não poderá fundar-se, nem na relação cambiária, nem na convenção de cheque, res inter alios acta, relativamente ao Banco a primeira, quanto ao portador a segunda. A vinculação, como regra, decorre da própria lei, do valor do cheque, pela mesma assumido, como meio de pagamento. Certamente, meio de pagamento, sucedâneo da moeda legal no cumprimento de obrigações pecuniárias (e não pagamento, com efeitos liberatórios, nos termos previstos no art. 550.º do Código Civil) – «meio de pagamento cuja emissão deve estar coberta por disponibilidades constituídas por moeda escritural, representativa da moeda legal emitida pelo Estado (moeda metálica) ou pelo banco emissor (notas)». Meio de pagamento, que transcende o quadro contratual privatístico em que foi gerado, cuja dimensão pública, aí implicada a protecção ao portador e a geral confiança na circulação do título, bem como a tutela penal do cheque, vem, além dos segmentos que se devem ter por vigentes do Dec. n.º 13.004, nuclearmente regulada no DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro, republicado pelo DL n.º 316/97, de 19 de Novembro, com as sucessivas alterações sofridas. A imposição legal de pagamento dirigida ao Banco sacado, decorre, em termos gerais, do art. 28.º da LUCH (regulando-se nos arts. 40.º e ss. os procedimentos relativos ao não pagamento) e dos arts. 6.º, n.os 2, 8.º e 9.º do DL n.º 454/91, na redacção introduzida pelo DL n.º 316/97, cit. e pela Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto. Escreve-se, a este respeito, no ac. do STJ, de 10 de Maio de 2007, proferido no processo n.º 07B939 e inserto em www. dgsi.pt.: «... não se vislumbra, nesta primeira parte do art.º 32.º, ou em qualquer outro sítio, a possibilidade conferida ao sacado de pagar ou não pagar o cheque. Se atentarmos, por exemplo, nos artigos 6.º, n.º 2, 8.º e 9.º do DL n.º 454/91, de 28.12 e, bem assim, no art.º 28.º da LUCH, vemos que a regra é a imposição de pagamento ao sacado. Os casos de não pagamento são ressalvas. Aliás, a colocação nas mãos do sacado da possibilidade de pagar ou não pagar, de acordo com o seu critério, é de uma violência enorme na relação de confiança que deve haver entre os intervenientes na relação cambiária em causa e entre o público em geral». Paralelamente, foram disciplinados procedimentos visando a obrigatoriedade da rescisão da convenção de cheque, bem como a regularização das situações de falta de pagamento: arts. 1.º, 1.º-A e ss. (redacção do DL n.º 316/97). Nas soluções de direito interno referidas, vem desenhada uma translação da tutela do cheque: a protecção do portador e da confiança do título é obtida, não com recurso à tutela cambiária (assente na garantia prestada pelo emitente e por eventuais endossantes e avalistas), mas através da tutela do próprio cheque, como meio de pagamento economicamente relevante (assente, com reforçada segurança, na instituição bancária sacada e fornecedora do módulo respectivo). Numa pesquisa sobre a doutrina estrangeira e portuguesa sobre esta matéria e que não havia sido especificamente tratada na doutrina e na jurisprudência anteriormente referida também não lográmos obter argumentos relevantes para rebater a tese que se nos afigura mais acertada. Assim, CLAUS WILHELM CANARIS (obra citada por Sofia Calvão, 1988, pp. 498 a 501) fundamenta a faculdade do banco de não pagar o cheque revogado numa vinculação contratual com o sacador, decorrente quer dum vínculo autónomo quer do próprio contrato do cheque, como cláusula acessória deste. Tratando do contrato de cheque, SOFIA DE SEQUEIRA CALVÃO (Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1992, p. 52) afirma que, nos termos do referido contrato, há o dever de observar a revogação de cheque. «Pacificamente, depois de decorrido o prazo de apresentação.» Em notas às afirmações supra a referida AUTORA sustenta que o preceito do artigo 32.º da LUCH se reporta ao direito externo e abstracto do cheque, contestando a perspectiva de quem pretende tirar ilações dessa norma para interpretar o contrato de cheque ou aqueles que defendem que tal norma visou a correcção dos princípios gerais deste. Finalmente há a referir a posição de ALBERTINO PARENTE (já citada) que, em alternativa à impossibilidade de o sacado aceitar a revogação do cheque no período de apresentação, formula uma solução alternativa: «Parece-nos que existe outra via que deve ser considerada nesta; é a ordem de não pagamento dada ao banco sacado. Logo que esta ordem seja dada, quer durante o prazo de apresentação, quer fora dela, o banco sacado não pode pagar o cheque constituindo-se em responsabilidade, caso o faça, perante o sacador. Com esta ordem de não pagamento ultrapassam-se todas as dificuldades levantadas quanto ao pagamento ou não do cheque revogado durante o prazo de apresentação e o banco sacado fica, sem qualquer dúvida, sempre isento de responsabilidade para com o sacador como é ponto assente.» Estas três perspectivas ou não abordam ou omitem a singularidade do sistema português, quer ao nível do sancionamento penal das infracções relacionadas com os cheques quer ao nível da subsistência da norma do artigo 14.º do Dec. 13.004. II.B.4.4. Os casos de extravio, furto, outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, não estão contidos no âmbito de previsão do art. 32.º da LUCH, como vimos. No direito extracambiário interno, esta matéria estava regulada, expressis verbis, no § único do art. 14.º do Dec. n.º 13.004, cuja vigência, à luz do Assento n.º 4/2000, terá cessado com a adopção da LUCH. Através do DL n.º 316/97, ao aditar o n.º 3 ao art. 8.º do DL n.º 454/91, são objecto de previsão pelo legislador situações de «falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque», constituindo causas de recusa justificada de pagamento por parte do Banco sacado (n.º 2 do artigo, igualmente na redacção daquele decreto-lei). Tais situações não cabem no conceito de revogação (ver J. M.Pires, obra citada, p. 107 e 108) nem estão compreendidas na proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, por parte do sacador, constante da alínea b) do art. 11.º do mesmo diploma [alínea c), na redacção anterior ao DL n.º 316/97]. É a proibição de pagamento, constante da referida disposição legal, que traduz o conceito de revogação do cheque, constante do art. 32.º da LUCH, integrando-a, mediante a verificação de determinados requisitos, na protecção penal do portador. Por outro lado, rege relativamente a Portugal, sem modificação alguma, o art. 32.º da LUCH, que não prevê excepção ao aí imperativamente disposto. Restringida a proibição de revogação do cheque durante o prazo legal da respectiva apresentação a pagamento, a certeza de tal regime adequar-se-á à segurança de circulação do título, naquele limitado período de tempo, bem como à protecção do portador. Como entender a invocação de justa causa de revogação, respaldada no art. 1170.º, n.º 2 do Código Civil? Para o efeito, e conforme opinião dominante, admite-se que a convenção de cheque se reconduz ou radica no contrato de mandato, modalidade do contrato de prestação de serviço (arts. 1155.º e 1157.º e ss. do C. Civil), mais precisamente, mandato conferido também no interesse do mandatário (o Banco sacado e fornecedor do módulo de cheques). Diz-se no acórdão deste Tribunal de 03.02.2005, proc. 04B4382, igualmente inserto em www. dgsi.pt: «A chamada "convenção de cheque" constitui uma modalidade de mandato específico, sem representação, para a realização de actos jurídicos precisos: os inerentes ao pagamento de cheque.» A qualificação do mandato como conferido também no interesse do mandatário implicaria, atento o disposto no n.º 2 do art. 1170.º citado, o afastamento do poder de revogação ad nutum, sem especificação das causas que o justificaria, exigindo-se o acordo do Banco, «salvo ocorrendo justa causa». No caso concreto, dado como adquirida a inexistência de justa causa, o banco não estaria obrigado a acatar a ordem de revogação. De qualquer modo, a aplicabilidade dessa norma sempre seria de afastar, dado o carácter especial e imperativo da 1.ª parte do artigo 32.º da LUCH, prevalecente sobre a norma geral do artigo 1170.º do Código Civil. II.B.4.5. Invocado, finalmente, o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI (Instrução nº 25/2003, BO n.º 10, de 15.Out.2003). Regulamento, emitido sob forma de instrução pelo Banco de Portugal, tendo como destinatários instituições bancárias e outras entidades especialmente autorizadas pelo emitente a participar no SICOI, no exercício das competências de regulação, fiscalização e promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos, nos termos previstos nos arts. 14.º da Lei Orgânica do mesmo Banco (aprovada pela Lei 5/98, de 31 de Janeiro) e 92.º, alínea a) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – RGICSF (versão consolidada, publicada em anexo ao DL n.º 201/2002, de 26 de Setembro). Não constituirá a instrução em causa fonte imediata de direito, a dever ser autonomamente apreciada pelo Tribunal. Retém-se que a norma inserta na Parte II, n.º 1. alínea a), sob a epígrafe, Cheque revogado – por justa causa, reportando-se ao art. 1170.º, n.º 2 do Código Civil, considera «furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade», tudo casos que não podem ser qualificados de «revogação de cheque», para os efeitos previstos e regulados no art. 32.º da LUC. Estabelece a mesma norma, a final, que «o motivo concretamente indicado pelo sacado, no registo lógico [contido nas instruções concretas anteriormente transmitidas pelo sacador ao sacado], deve ser aposto no verso do cheque». Especificação que visará regular o disposto nos arts. 40.º e 41.º da LUCH, em que não vem prevista a exigência ou não de menção dos motivos de recusa (diferentemente do art. 19.º do Dec. n.º 13.004, onde se referia que o sacado «é obrigado a declarar por escrito o motivo da recusa»). Especificação que, no caso, falta. Como enquadrar normativamente tal omissão? No caso dos autos, todos os cheques foram devolvidos através do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), simplesmente com a aposição dos seguintes dizeres no verso: «cheque revogado por justa causa – falta vício na formação da vontade», ou «cheque revogado – falta vício na formação da vontade». Verificava-se, aliás, nas datas em que os cheques foram apresentados a pagamento, falta de provisão. Considerou-se na sentença que, «não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação». Tal entendimento afigura-se-nos isento de reparos, tanto mais que outro entendimento conduziria à inutilização da legislação tão laboriosamente estruturada com vista à protecção do cheque. Relativamente à exigência de motivação, transcreve-se do parecer do Conselho Consultivo, cit., o seguinte excerto: «Dir-se-á mesmo, na específica óptica do artigo 40.º, que só uma recusa motivada e não a mera recusa que se apresente externamente desprovida da intencionalidade vinculada pela lei se mostrará normativamente justificada. Por isso o sistema jurídico liga, em geral, à falta de fundamentação consequências graves, que podem atingir radicalmente a validade dos actos jurídicos. Esse fundamento deverá, pois, quando for caso disso, ser declarado pelo sacado, supondo, obviamente, que o portador opte por esta via no preenchimento do requisito dos seus direitos de acção. Através do exercício destes direitos é concedida ao portador tutela cível e penal». II.B.4.6. O raciocínio em questão, formulado na perspectiva da LUCH sai reforçado, face ao disposto nos n.os 2 e 3 do art. 8.º do DL n.º 454/91, redacção do DL n.º 316/97, que disciplinam, precisamente, os casos de recusa justificada de pagamento. Determina-se que o sacado deverá recusar justificadamente o pagamento do cheque (n.º 2). Exige-se para a justificação de recusa de pagamento a existência de sérios indícios (n.º 3). O sacado, deste modo, na hipótese considerada, ao recusar o pagamento dos cheques, sem justificar os motivos, limitando-se a apor a fórmula tabelar que do verso dos mesmos consta e sem avaliar dos indícios relativos aos vícios abstractamente invocados (indícios no caso inexistentes), violaria o disposto nos arts. 40.º da LUCH e 8.º, n.os. 2 e 3 do DL n.º 454/91, redacção do DL n.º 316/97. Como afirma Evaristo Mendes («O actual sistema de tutela da fé pública do cheque», Direito e Justiça, separata, Vol XIII, 1999, tomo I, p. 228): «Seja como for, para o sistema de protecção assim concebido ter verdadeira efectividade prática – e foi essa a intenção do legislador – o requisito dos “indícios sérios” deve ser interpretado de modo exigente, considerando, portanto, como ilícita a recusa de pagamento sempre que o banco não demonstre estar na posse de elementos dos quais resulta uma forte probabilidade de se haver verificado uma das mencionadas anomalias» Um último contributo para a tese que resulta do atrás exposto é trazido por Alberto Luís («O Problema Da Responsabilidade Civil Dos Bancos Por Prejuízos Que Causem a Direitos de Crédito», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 59.º, n.º 3, Dezembro de 1999, p. 902): «A obrigação de pagamento do sacado frente ao portador é uma obrigação ex lege, já que não nasce de um negócio jurídico, porque nenhum pacto une o portador ao banco sacado. A responsabilidade do banco, em caso de não pagamento injustificado do cheque é, pois, de natureza extracambiária e abarca as perdas e danos produzidas pelo incumprimento do pacto de disponibilidade. E o não pagamento será injustificado se o banco sacado acatar a ordem de revogação do seu cliente e em consequência não pagar, tendo fundos para isso, o cheque que lhe for apresentado dentro do prazo de apresentação.» II.B.5. A recusa do pagamento constitui o banco sacado, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, na obrigação de indemnizar o tomador do cheque. Como já resultou do que atrás se disse, a responsabilidade pelo não pagamento do cheque relativamente ao tomador não é contratual. Também não colhe apoios na jurisprudência ou na doutrina a tese de responsabilidade contratual relativamente ao tomador, assente numa cessão de créditos (ao acórdão deste Tribunal, relatado no BMJ n.º 387, p. 598 foi junto um parecer subscrito pelo Prof. MOTA PINTO que defende esta posição), uma vez que a cessão como contrato não pode ser revogada unilateralmente pelo cedente, sendo inversa a regra decorrente do artigo 32.º da LUCH. Decorre da conjugação das normas atrás citadas uma obrigação do banco sacado directamente para com o tomador, só passível de ser configurada como extracontratual (Neste sentido e apenas a título exemplificativo, vejam-se os acórdãos deste Tribunal de 05.07.01, proc. 1461/01-1.ª Secção, de 02.11.04, proc. 2968/04-1.ª Secção, de 03.02.05, proc. 4382/04-2.ª Secção, de 15.03.05, proc. 380/05-6.ª Secção, os dois primeiros insertos em Sumários e os dois últimos em www.dgsi.pt) Valem aqui as regras gerais da responsabilidade civil, mormente os artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do CC. Dispõe o artigo 483.º, n.º 1, Código Civil que «[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.» São pressupostos da responsabilidade extracontratual a prática de um facto voluntário do agente, ilícito (violador de um direito de outrem ou de disposição legal), a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto ilícito culposo e o dano. A ilicitude pode derivar da violação de direitos alheios ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (violação de normas de protecção). É nesta segunda variante da ilicitude que se pode integrar a conduta do sacado. Por outro lado, agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou censura do direito, E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias – art. 487.º, n.º 2, do C. Civil. Conforme decidido nos acórdãos deste STJ de 02.06.97, proc. 96B503 e de 7.12.05, proc. 3451/05- 6ª, o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º n.º 1 da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483º do CCIV66». O banco sacado comete, assim, um acto ilícito e culposo e será responsável pelos danos que, em relação de causalidade adequada, tal comportamento determine. A relação de causalidade adequada existe se: 1– O facto foi «conditio sine qua non» do resultado; 2– À luz das regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que de tal facto decorresse tal resultado de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos; 3– O efeito tenha resultado pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo. Se do não pagamento do cheque decorre prejuízo, parece ser claro que se verificam as apontadas exigências para a consideração de tal relação de causalidade. De facto, um banco que recusa o pagamento dum cheque revogado determina que, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, o tomador se veja privado do respectivo montante. Da revogação resulta normalmente o afastamento do pagamento voluntário por parte do sacador e é utópico presumir-se que este disponha de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade (se a ordem de revogação visa evitar o pagamento de um cheque validamente emitido e detido pelo tomador, naturalmente que o sacador procurará evitar outras vias de cobrança, designadamente a executiva). Temos, então, que o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos. Podia dizer-se, em contrário do supra exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento. Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada. Mas, numa situação idêntica à dos autos, o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que apresentado a pagamento no prazo legal) impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere, sendo utópico presumir que este disponha de património que garanta solvabilidade. Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente a falta absoluta de provisão. Se o cheque apresentado a pagamento fosse recusado por falta de provisão, nada nos diz que o cheque não pudesse ser novamente apresentado a pagamento e obtivesse provisão. II.B.6. É chegado o momento de concluir, tomando por base as premissas anteriores. O Banco Réu (sacado) não poderia ter recusado o pagamento do cheque, com fundamento na sua revogação, visto que o mesmo foi apresentado dentro do prazo legal. Tal recusa só seria legítima se fundada em justa causa — furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade. No caso dos autos resulta da matéria provada que tal como julgado em 1.ª instância, sob uma invocação formal de viciação dos cheques, o que na verdade se verificou foram meras ordens de revogação, a que o sacado deu cumprimento, recusando o pagamento – com violação do disposto no art. 32.º da LUCH. Como se disse na sentença recorrida: «Não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado, que o consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação.» A recusa operada foi ilegítima face ao disposto no art. 32.º LUCH, pelo que, nos termos do art. 14.º, 2.ª parte do Decreto 13.004 e 483.º C. Civil, o Réu terá que responder por perdas e danos, se verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil. Conforme decidido nos acórdãos deste STJ de 02.06.97, proc. 96B503 e de 7.12.05, proc. 3451/05- 6ª, o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º n.º 1 da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483º do CCIV66». Isto mesmo admite o recorrente nas suas alegações, reconhecendo que não pode acatar uma mera ordem de revogação sem incorrer em responsabilidade extracontratual. Na sua tese o comportamento do banco não seria sancionável, por ter sido invocada uma justa causa (o que não se provou). Não vem questionado e, por isso, há que acatar o que foi decidido na 1ª instância quanto à existência dos demais pressupostos da responsabilidade civil, valendo aqui, designadamente, os artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do CC. Pelo que o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento. Não vindo, também, questionado que o montante dos danos equivale ao valor dos cheques (questão, aliás, que releva de matéria de facto), nem merecendo reparos o entendimento da instância recorrida sobre os juros moratórios, improcederá totalmente o recurso. III. – Pelo exposto, acordam negar a revista, mantendo, consequentemente, a integralidade da decisão recorrida, com condenação da recorrente nas custas e uniformiza-se a jurisprudência nos termos seguintes: Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil. Lisboa, 28 de Fevereiro de 2008 Paulo Sá (relator) Duarte Soares Azevedo Ramos Silva Salazar (vencido – junto declaração)(1) Sebastião Povoas (vencido nos termos da declaração junta)(2) Moreira Alves Salvador da Costa (vencido conforme declaração junta)(3) Ferreira de Sousa Santos Bernardino (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Cons. Salvador da Costa) Nuno Cameira Alves Velho Moreira Camilo Armindo Luís Pires da Rosa Bettencourt de Faria Sousa Leite Salreta Pereira Custódio Montes (vencido conforme declaração de voto)(4) Pereira da Silva (vencido conforme declaração que junto)(5) Rodrigues dos Santos João Bernardo Urbano Dias (junto declaração de voto)(6) João Camilo (vencido conforme declaração que se junta)(7) Mota Miranda (vencido conforme declaração anexa)(8) Alberto Sobrinho Oliveira Rocha (vencido nos termos da declaração)(9) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Oliveira Vasconcelos Fonseca Ramos Mário Cruz Rui Maurício (vencido nos termos da declaração de voto apresentada pelo Exmo. Cons. Salvador da Costa) Cardoso de Albuquerque Garcia Calejo Serra Baptista (dispensei o visto) Mário Mendes (dispensei o visto) Lázaro de Faria Noronha do Nascimento (1)Declaração de voto: Vencido. Entendo que o proémio do art.º 14º do Decreto n.º 13.004, de 27 de Janeiro de 1927, se encontra tacitamente revogado na totalidade. Por outro lado, o que do art.º 32º da LUC resulta não é que o Banco sacado tenha assumido qualquer obrigação, cambiária ou não, para com o portador do cheque, nem qualquer responsabilidade para com ele se não lhe efectuar o pagamento do cheque que entretanto tenha sido revogado, mas a sua responsabilização para com o sacador, na hipótese de revogação dentro do prazo de apresentação a pagamento, apenas se, não aceitando injustificadamente a ordem de revogação, efectuar o pagamento do cheque depois de findo esse prazo, já não sendo responsável perante o sacador se pagar o cheque ao tomador dentro do mesmo prazo, uma vez que durante ele a revogação não produz efeito. Por outro lado ainda, a admitir-se a responsabilização do Banco sacado para com o portador do cheque cujo pagamento foi recusado com base na revogação pelo sacador, a existência de causa virtual consistente na falta de provisão apenas não exclui a causalidade real, o nexo causal efectivo, sem dispensar a existência de dano como requisito de responsabilidade civil, sendo que o dano indemnizável não corresponde ao valor dos cheques, - visto o portador destes continuar titular dos direitos cambiários respectivos bem como da relação jurídica subjacente -, mas aos incómodos, despesas, lucros cesantes e risco acrescido. Assim, concederia a revista e formularia sumário de acórdão uniformizador nos termos sugeridos na declaração de voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Dr. Salvador da Costa. (2) Declaração de Voto Fui vencido, nuclearmente, pelo que passo a expor: 1 – Antes de tudo, a questão da admissibilidade do julgamento ampliado da revista nos casos de recurso “per saltum”. O julgamento ampliado tem como escopo primeiro “assegurar a uniformidade da jurisprudência” só assim se justificando o alargamento do conclave que, na revista comum, se limita a três ou a cinco julgadores, de acordo com o disposto no artigo 729.º do Código de Processo Civil. Ora, tendo o julgamento em plenário função preventiva (evitar que a deliberação colida com jurisprudência anteriormente firmada – Artigo 732.º-A) ou reparadora (eventual contradição com outro aresto das Relações ou do Supremo Tribunal de Justiça – artigo 678.º, n.º4) impõe-se o esgotamento das possibilidades de apreciação antes de chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. Esta figura sucedeu ao antigo recurso para o Tribunal Pleno (artigos 763.º a 770.º e 26.º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro – LOTJ) que se destinava a fixar doutrina com força obrigatória geral pela via dos assentos (desaparecidos com a revogação do artigo 2.º do Código Civil – artigo 4.º do Decreto-lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro – já antes declarado inconstitucional – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96 de 28 de Maio de 1996). Mas manteve, no essencial, semelhante escopo inspirando-se, também, na anterior redacção do n.º 3 do artigo 728.º do Código de Processo Civil (revogado pelo artigo 3.º do Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro). E como nota o Dr. Lopes do Rego, “o novo figurino da uniformização de jurisprudência traduz convolação para um modelo de precedente judicial qualificado, cujo respeito será normalmente assegurado pela iniciativa das partes – que não deixarão seguramente de impugnar por via de recurso, quaisquer decisões que não se conformem com a jurisprudência precedentemente uniformizada” (…) “no sistema do precedente judicial qualificado, que agora se adopta, ao Supremo Tribunal de Justiça passa a ser lícito avaliar se deve ou não manter a orientação jurisprudencial previamente definida.” (apud “A uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Processual Civil”, 1997, p. 23/24). Não existe, assim, um recurso autónomo para uniformização de jurisprudência, antes uma diferente tramitação (e composição do colégio) na revista ou no agravo (neste, “ex vi” do n.º 2 do artigo 754 do Código de Processo Civil). Mas toda a dogmática da figura pressupõe que a decisão recorrida seja um acórdão – das Relações – a conflituar com um outro acórdão-fundamento das Relações ou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a contrariar Acórdão uniformizador. (cf. o n.º 4 do artigo 678.º – “… do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação…”), sendo que tal parece também resultar da revista preventiva (n.º 2 do artigo 732.º-A). Se a parte – com mera preocupação de celeridade (afinal a razão primeira do recurso “per saltum”) optou pela via do artigo 725.º, preterindo a intervenção da Relação, não me parece poder utilizar a revista ampliada (este entendimento está implícito no Cons. Amâncio Ferreira, in “ Manual dos Recursos em Processo Civil” 7ª ed. 295,ao referir que a uniformização da jurisprudência “faz-se presentemente por meio da revista e do agravo interpostos na 2ª instância”). Isto porque nesta terão de confrontar-se acórdãos de tribunais superiores que não decisões de primeira instância que, em principio, não terão a dignidade de, só por si, provocarem a intervenção do pleno do mais alto tribunal. 2 – Ainda que assim não se entenda, estou seguro que, no caso em apreço, não se verificam os pressupostos do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil – revista alargada a titulo preventivo – sendo notoriamente inexistente a situação pressuposto de revista alargada resolutiva do n.º 4 do artigo 678.º. A escassa jurisprudência anterior, a sua pouca relevância e a inexistência de um debate alargado e aprofundado com marcada dissenção a nível doutrinário não aconselhariam aquele tipo de recurso. (cf. Prof. Castanheira Neves, apud “O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais, 1983) e o Prof. Teixeira de Sousa (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, 394). Nesta linha, refere o Dr. J. A. Barreto Nunes (“Debate e avaliação da reforma de processo civil em matéria de recursos, in “Revista do Ministério Público, 20.º, n.º 79 – Julho - Setembro 1999, p.119) que o artigo 732.º-A “é muito mais exigente no preenchimento dos requisitos conducentes à uniformização, do que o era o revogado artigo 763.º. O simples facto de haver agora um acórdão em oposição com outro no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão fundamental de direito não é, por regra, requisito suficiente para ser uniformizada jurisprudência, exceptuadas as situações previstas no artigo 678.º, n.º 4 (…).” E continua: “Parece-nos, porém, que o legislador foi extremamente sensato ao abordar e tratar esta questão. (…) …qualquer grande questão de direito, conflituante, antes de ser uniformemente decidida, deve passar previamente pela reflexão profunda dos doutrinadores e pelo crivo frequente da jurisprudência.” (cf. ainda, e a propósito dos requisitos da necessidade e da conveniência, o Dr. Abrantes Geraldes, in “Valor da Jurisprudência Cível” – CJ/STJ, Ano VII, T. II, 1999, 13; Prof. Teixeira de Sousa, ob. cit., 558 ; Conselheiro A. Baltazar Coelho – “Algumas notas sobre o julgamento ampliado da revista e do agravo.” – CJ/STJ. Ano V, T I, 1997, 20; e Dr.ª Isabel Alexandre, “Problemas Recentes de Uniformização da Jurisprudência em Processo Civil” – R.O.A, 60.º - Janeiro 2000 – I, 135). Sou convicto que, só nos casos em que existe jurisprudência uniformizada e se perfila a possibilidade de a contrariar é que “se revela necessário” o julgamento alargado. Inexistindo prévia uniformização esse julgamento só é “conveniente” perante o risco de contradição com jurisprudência sobre questão suficientemente debatida e trabalhada também na doutrina. A assim não se entender há o risco de banalização do Supremo Tribunal de Justiça no seu papel uniformizador e, quiçá, de anquilozamento da jurisprudência limitando a sua evolução e aperfeiçoamento. Daí que não entenda existir necessidade ou conveniência de uniformizar jurisprudência, pelo que se aconselharia mera revista simples. 2.1- Votaria no sentido de, como questão prévia, se deliberar não conhecer do recurso, como revista ampliada, mandando-o seguir os ulteriores termos de revista comum. O despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a que se refere o n.º 1 do artigo 732.º-A, não vincula o plenário que sempre pode entender não se perfilarem os pressupostos daquele tipo de revista. É, aliás, o princípio geral de todas as decisões singulares (v.g. despachos do relator – artigos 700.º e 705.º – ; despachos de admissão de recurso proferidos nos termos do n.º 1do artigo 689.º) poderem ser alterados pelo colectivo, sempre considerando que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal colegial e é no colégio que reside a sua função soberana. Neste sentido opina também o Conselheiro A. Baltazar Coelho:“ O entendimento contrário, ou seja, o da insindicabilidade da determinação do presidente da revista ou do agravo poderem ser julgados na forma não se me afigura sustentável, logo porque, como resulta dos princípios gerais enformadores do instituto dos recursos ordinários, e quanto ao seu julgamento particularmente das que disciplinam o recurso de apelação, paradigmático para todos os outros, os tribunais superiores são em principio órgãos judicantes colegiais.” – ob. cit., 28). Nem se diga que tratando-se de mero juízo de conveniência, tem uma componente discricionária que o torna insindicável. É que, o acto discricionário também pode ser discutido por erro nos pressupostos de facto ou de direito. (E note-se que o Presidente tem mero voto de desempate (artigo 709.º n.º5) que não se confunde com voto de qualidade.Tal inculca não ter o legislador querido envolvê-lo na fisiologia da discussão, que apenas dirige, só podendo desbloquear o risco de um “non liquet”). 2.2- De qualquer modo, e ao contrário do que acontecia com os assentos, em que o acórdão do tribunal pleno culminava com um segmento afirmativo do sentido a dar à norma, o que se compreendia pela sua função cripto-legislativa, o acórdão uniformizador não tem de o fazer, e duvido que essa prática seja a melhor. (cf. aplaudindo essa forma, Conselheiro Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7.ª ed, 305); Dr. Ribeiro Mendes, “Os Recursos em Processo Civil”, 106). A função primeira do Supremo Tribunal de Justiça é a jurisdicional, como instância de recurso, não podendo esquecer-se que o cerne é julgar uma revista, que se nega ou concede a final. É na argumentação e nos fundamentos da decisão que se irá optar – ou definir – por uma corrente doutrinária ou jurisprudencial, sendo que a “ratio decidendi” será encontrada pelas partes e por todos os comentadores ou meros leitores do texto. A prolação do “assento” final, na modalidade de proposição conclusiva, neste tipo de acórdãos, só serve para enfatizar um carácter vinculativo ou obrigatório de uma decisão que é, apenas, meramente persuasiva e mutável. Ademais, tratando-se, neste caso de situação controversa e em que o Tribunal está tão dividido, desaconselharia a formulação final da regra interpretativa formal. 3 – Se o exposto não bastasse, está inverificado um dos pressupostos da responsabilidade civil: o dano. Qualquer deles tem uma componente de facto e uma componente de direito (v.g. a culpa, na perspectiva de falta de diligência ou na vertente da violação de preceito regulamentar; o nexo de causalidade. na vertente naturalística ou cinemática e na que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil) sendo que o dano na quantificação do prejuízo material é facto mas a integração para ressarcibilidade, e respectivos termos, é matéria de direito. (cf. quanto à natureza do dano, Prof. Castro Mendes, “Conceito Jurídico de Prejuízo”- Jornal do Foro”, 16.º-1952, 41 ss; A. Lagostena –Bassi e L. Rubini, “La liquidazione del danno”, I, Milano, 1974; Prof. Gomes da Silva, “O dever de prestar e o dever de indemnizar”, 1944). O Prof. Castro Mendes distingue o prejuízo – ou dano/facto – como “um mal, um evento nocivo, uma consequência desagradável”. (ob. cit. 45). As partes só podem acordar nos factos. O direito, sua interpretação e aplicação, inclui-se nos poderes cognitivos do juízo de revista. “In casu”, e para além de não resultar da matéria de facto assente a prova do prejuízo, face à resposta negativa ao quesito pertinente e, até, a montante, à sua deficiente alegação (artigos 52.º e 53.º da p.i), ocorreu impugnação (artigo 88.º da contestação) sendo que a base instrutória tal não reflectiu inequivocamente. E nunca o recorrente aceitou a existência de dano referindo na sua alegação que este “não se presume, demonstra-se” e que “sem prova de dano não se pode (…) estabelecer o nexo entre o facto ilícito e o prejuízo sofrido.” Daí que, ainda que se admitisse existir ilicitude e culpa, tal só geraria responsabilidade aquiliana se causasse dano (artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil). Só perante um dano – pressuposto essencial da responsabilidade civil – pode haver ressarcimento. Concederia, pois, a revista, sendo que e, no aqui eventualmente omisso, adiro à argumentação dos votos de vencido dos Exmos. Conselheiros Salvador da Costa e Urbano Dias, cujas cópias me foram facultadas. Sebastião Póvoas (3) VOTO DE VENCIDO 1. Os factos jurídicos concretos (causa de pedir) que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido pela A. (pagamento da indemnização) traduzem-se na alegação de que o R. a. agiu ilicitamente por ter aceite a ordem de revogação, dada pelo sacador e ter recusado o pagamento dos cheques, apresentados a pagamento pelo autor, no prazo legal; b. e ainda, no dano que causou ao A., coincidente com o montante dos cheques não pagos. O R., na contestação, para além de ter impugnado a ilicitude da sua conduta, impugnou também o alegado dano patrimonial peticionado. Controvertido o facto, cabia à A. o ónus de demonstrar que não havia recebido o valor dos cheques, como alegara. Levado o facto ao questionário, o tribunal considerou-o não provado. Logo, não vem demonstrado o dano, cujo ressarcimento é a essência duma acção de indemnização por facto ilícito – art. 483.º, 1 do CC. Por isso, não se tendo provado o dano – mesmo para quem entende que coincide com o valor dos cheques -, a acção tinha que improceder, não cabendo no silogismo judiciário formulado tal conclusão, sendo, por isso, ilegal a passagem da sentença onde se diz que “o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao autor de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques. Tal é o prejuízo para a autora resultante do não pagamento dos cheques pelo réu”. É violado o art. 483.º,1 do CC por se condenar o R. numa indemnização correspondente a um dano que, contraditado, se não provou nem consta da matéria de facto. E maior violação é ainda para quem, como Menezes Cordeiro, citado por Salvador da Costa, no seu voto de vencido, entende que a responsabilidade do banqueiro não coincide com o valor dos cheques mas integra, antes, os incómodos, as despesas, os lucros cessantes e o acrescido risco que o comportamento do sacado cause ao tomador do cheque, factos que nem sequer vêm alegados. 2. O Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar a matéria de facto dada como provada pelas instâncias: pode e deve, no entanto, decidir o direito de acordo com os factos provados, no contexto do art. 659.º, do CPC. Com efeito, o art. 729.º, do CPC prescreve os termos em que julga o tribunal de revista: n.º 1 – “aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”. E, para saber quais os factos provados, rege o art. 659.º que, no n.º 2, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados”, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Portanto, por ser questão de direito, o Supremo tem toda a legitimidade para indagar se existe o dano alegado, não estando vinculado pela conclusão da sentença de condenar o R. no pagamento da indemnização de dano que não se provou – conclusão, aliás, ilegal por não emergir da premissa menor (factos provados). Claro que os factos integradores do dano, a não se terem provado directamente, podiam provar-se por presunção judicial; no caso, contudo, isso era inviável, por se não ter demonstrado qualquer facto conhecido para concluir esse facto desconhecido - art. 349.º do CC. 3. Nas suas conclusões, o R. apenas se refere ao facto praticado que diz não ser ilícito e que, por isso, não deve ser condenado. Nessas conclusões, o R. não aceita o dano porque, como diz nas suas alegações, o mesmo não resulta da matéria de facto. Por outro lado, ao questionar, nas conclusões, a sua condenação por não ser ilícita a sua conduta, implicitamente questiona a existência do dano, devendo o tribunal aplicar a lei aos factos – veja-se o lugar paralelo em que a jurisprudência considera implícito o pedido de cancelamento do registo em acção de reivindicação por quem não seja titular registado. 4. A tudo isso acresce que vem demonstrado que a conta sobre a qual foram emitidos os cheques não tinha provisão. Ora, mesmo a considerar-se que o dano coincide com o valor dos cheques, como entende a posição vencedora, a acção improcederia porque vem demonstrado que a revogação dos cheques não foi a causa do dano: esse dano já resultava do facto de a conta não estar provisionada, não sendo, em tal caso, o banco obrigado a pagar os cheques – art. 3.º da LUCH. A falta de provisão não é, no caso, causa virtual do dano, mas a sua verdadeira causa real, por ocorrer já antes da aceitação da ordem de revogação dos cheques. Por isso, na pressuposição de que o dano é o valor dos cheques, com o que não concordamos, nem sequer há nexo causal entre o facto da aceitação da revogação dos cheques e os danos invocados porque o A. demonstrou que, mesmo que a aceitação da revogação dos cheques dada pelo sacador fosse ilícita, o dano resultaria sempre do facto de a conta não estar provisionada. A causa real do dano é a falta de provisão; e a aceitação da revogação do cheque nem sequer é causa virtual porque, havendo falta de provisão, nunca aquele facto poderá causar o dano: “causa virtual é o facto (real ou hipotético) que tenderia a produzir certo dano, se este não fosse causado por um outro facto (causa real)” – A. Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 9.ª ed., pág. 640. O crédito da indemnização nasce na data da verificação do dano e essa data é a da falta de provisão da conta bancária. A alusão da sentença ao disposto no art. 1.º do DL 316/97, de 19.11 não tem qualquer relevância para o caso dos autos porque a sua finalidade visa tão só rescindir a convenção do cheque a quem ponha em crise a confiança na sua circulação e não a responsabilização do banco pela aceitação da revogação do cheque. 6. Diga-se, ainda, que o dano é elemento estrutural da obrigação de indemnizar que, inexistindo, impede a procedência do pedido de indemnização, accionado pelo instituto da responsabilidade por facto ilícito. “O art. 483.º, 1….., apenas inclui na obrigação de indemnizar os danos resultantes da violação” A. Varela, Ob e vol. Cits, pág. 957 e, por isso, a mesma pressupõe a indagação do facto ilícito e do quantum indemnizatório, questão de direito que só através dos factos provados se pode definir, tarefa essa que, como é sabido, cabe ao Supremo sindicar. 7. Finalmente, diga-se que o Supremo Tribunal de Justiça se pode pronunciar sobre o mérito da causa, por o recurso per saltum ser admissível – art. 725.º, 1 do CPC – mas não devia firmar jurisprudência por essa espécie de recurso não ser admissível para fixar jurisprudência e, no caso dos autos, por se não verificarem os pressupostos para a fixação de jurisprudência, como se demonstra, respectivamente, nos votos de vencido de Sebastião Povoas e de Salvador da Costa. Revogaria a sentença, absolvendo o R. do pedido e não firmaria jurisprudência por se não verificarem os respectivos pressupostos. Custódio Montes
(5) DECLARAÇÃO de VOTO I. QUESTAO PREVIA Da inadmissibilidade do determinado julgamento ampliado da revista, por se estar ante recurso "per saltum" (artº 725º do CPC): Na verdade: O despacho a que alude o ultimo normativo á colação trazido, como, outrossim, destacado pelo Ex mo Conselheiro Sebastião Póvoas na sua declaração de voto que, também neste conspecto, sem qualquer reserva, acompanhamos, em boa e noticiada companhia nos encontrando, frise-se, não vincula o plenário, tendo, isso sim, em substância, natureza de decisão interlocutória, para o efeito se podendo invocar o prescrito nos art 687º nº 4 e 689º nº 2 do CPC, tal-qual mente recordado pelo Ex: mº Conselheiro José Martins da Costa na sua declaração de voto junta ao AUJ nº 3/99 de 18 de Maio, in DR I serie A, nº 159 de 10-07-99. Prosseguindo: II- Outro entendimento sufragado, o recurso, como revista ampliada julgado, dissentimos da encontrada solução de direito, do,enfim, proclamado naufrágio da pretensão recursória, como vítrea, em nosso modesto entender, antes, sem embargo do valimento dos argumentos,"ex adverso",invocados, se perfilando a justeza da concessão da revista, nenhuma, note-se, consequencia tirada, pelo plenário, como sucedido, ao nível da tramitação processual, tal se impondo, do embora, em nosso critério, sempre com o devido respeito por “construção" díspar, da organização da base instrutória, ao arrepio do consignado no artº 5llº nº 1 do CPC e nos artºs 342º nº 1 e 483º nº l, ambos do CC, sopesado que se está ante acção visando efectivar a responsabilidade civil extracontratual do recorrente, os pressupostos daquela não olvidando, bem como a significância da resposta negativa ao levado à base instrutória. Pereira da Silva |