Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4444/03.8TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
DANO CAUSADO POR COISAS OU ATIVIDADES
DEVER DE VIGILÂNCIA
DEFEITO DE CONSERVAÇÃO
DETENÇÃO
POSSE
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
CONTRATO DE TRABALHO
DEVER ACESSÓRIO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
CULPA IN VIGILANDO
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONCURSO APARENTE
HOSPITAL
DANO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
REMIÇÃO DE PENSÃO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ) / RESPONSABILIDADE CONTRATUAL / RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL.
Doutrina:
- Adriano De Cupis, Il danno, Teoria Generale della Responsabilità Civile, 3.ª edição, Milão, 1979, I, nº 15, 113 e ss..
- Almeida Costa, «Concurso da responsabilidade civil contratual e da extracontratual», Ab Uno ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, 1920-1975, Coimbra Editora, 1988, 559 a 565; Direito das Obrigações, 10.ª edição reelaborada, Almedina, 2006, 546, 547 e nota (1), 551, 552, 559, 587.
- Álvaro Rodrigues, «Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos», Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, XIV (2000), T 3, 194.
- António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, 429, 431 a 434.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 357 e nota (364), 420; «Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda», Parecer, C.J., Ano XII, T4, 31.
- Cláudia Monge, «A Responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados no SNS por atos de prestação de cuidados de saúde»,
www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/respcivil_ebook_completo_rev2.pdf .
- Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, 236 a 239 e 302 a 304.
- Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, «Responsabilidade Médica em Portugal», B.M.J., n.º 332, 40.
- Francesco Benatti, Osservazioni in tema di «doveri di protezione», Studi in onore di Biondo Biondi, IV, Milano, 1965, 483 e ss..
- João Álvaro Dias, «Procriação assistida e responsabilidade médica», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Stvdia Iuridica, 21, Coimbra, 1996, 233.
- Menezes Cordeiro, «Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda», Parecer, C.J., Ano XII, T4, 44; «Violação Positiva do Contrato», Estudos de Direito Civil, I, 1987, 134; Direito das Obrigações, 2.º volume, AAFDL, 1990, reimpressão, 381 a 383.
- Miguel Teixeira de Sousa, O concurso de títulos de aquisição da prestação. Estudo sobre a dogmática da pretensão e do concurso de pretensões, Coimbra, 1988, 347.
- Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, 341, e nota (2), 409, 411.
- Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 1994, 287 a 288.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I, 4.ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 496, 511 a 512.
- Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (lições policopiadas), Coimbra,1983, 210, 212.
- Vaz Serra, «Responsabilidade de Pessoas Obrigadas à Vigilância», BMJ nº 85, 382; in R.L.J., Ano 105, 231 a 233; «Responsabilidade pelos Danos Causados por Coisas ou Actividades», B.M.J., nº 85, 369.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 350.º, N.ºS 1 E 2, 486.º, 487.º, N.º 1, 493.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 27-5-1997, CJ (STJ), ANO V (1997), T2, 105.
-DE 23-5-1995, C.J. (S.T.J.), ANO III, T2, 103.
-DE 26-1-1999, PROCESSO N.º 974/98, 1.ª SECÇÃO; DE 8-2-1994, C.J. (S.T.J.), ANO II, T1, 95.
-DE 8-5-2003, C.J. (S.T.J.), ANO XI, T2, 39.
-DE 7-4-2011, PROCESSO N.º 5606/03.3TVLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Tendo o credor lesado alegado factos constitutivos de um contrato celebrado com o lesante e a violação do mesmo, mediante o seu cumprimento defeituoso, nada obsta a que o tribunal possa qualificar a situação como sendo de responsabilidade civil contratual, sem embargo de o autor pretender a aplicação das regras da responsabilidade civil extracontratual.

II - Há responsabilidade civil contratual, por violação de um contrato de natureza laboral, por parte de uma unidade hospitalar que o celebrou com um seu profissional de saúde, ou seja, pela violação de um direito de crédito, e responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade do mesmo.

III - Para além do dever de prestação, existem, igualmente, numa relação contratual, certos deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa fé, e que as partes devem observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso.

IV - Com a inclusão do dever de proteção violado, no âmbito do contrato, o dano não deixa de assumir natureza delitual, por resultar da violação de direitos absolutos da contraparte, só que ocorrendo na execução do contrato, por violação de deveres de cuidado, que devem ter-se por abrangidos no seu círculo de proteção, o dano reveste, simultaneamente, natureza contratual.

V - Existindo concurso de títulos de imputação ou concurso de pretensões, o lesado pode escolher o título mais favorável a empregar, o regime contratual ou o regime extracontratual, não sendo de aceitar a existência de duas ações, pois que existe uma única conduta ilícita, uma unidade de pedido indemnizatório e de indemnização, tudo se reconduzindo à figura do concurso aparente.

VI - Tendo-se provado que o autor recebeu, por conta do acidente infortunístico sofrido, um valor relativo à reparação total do acidente de serviço, a título de capital de remição da pensão, por incapacidade permanente parcial alusiva a esse acidente, no âmbito de um procedimento administrativo próprio, de natureza extraprocessual, e não em consequência da propositura de qualquer ação judicial, inexiste fundamento legal para deduzir a exceção da incumulabilidade da responsabilidade contratual com a responsabilidade extracontratual.

VII - Quem detém, materialmente, a coisa, em nome próprio ou de outrem, suscetível de causar danos, com o dever de a vigiar, ou terceiro que, por negócio jurídico, tiver assumido o encargo da sua conservação e manutenção, em condições de conformidade, responde, com culpa presumida, pelos danos causados pela mesma, que pode afastar, desde que demonstre que nenhuma culpa houve da sua parte na produção dos danos, ou, não obstante a culpa com que atuou, que o dano se teria produzido ainda que o facto culposo se não tivesse verificado.

VIII - Tratando-se de dano causado pela coisa, em consequência de atividade profissional levada a cabo por uma pessoa, funcionalmente dependente de entidade que sobre ela exerce poderes de direção, disciplina e controlo e que, simultaneamente, detém o domínio e a posse sobre a mesma coisa, que sobre ela conserva o dever de manutenção e vigilância, sem qualquer intervenção autónoma de terceiros (e não de danos que a coisa causar), aquele agente foi, apenas, a causa imediata da produção dos danos, não importando considerar o regime geral da responsabilidade civil, em que ao lesado compete o ónus da prova da culpa do autor da lesão.

IX - Tendo o réu, entidade hospitalar, demonstrado o defeito da prestação efectuada pelo fornecedor de um eletrobisturi causador de danos que vitimaram uma sua profissional de saúde, instrumento imediato da sua mobilização, o qual, contratualmente, assumira o encargo da sua manutenção e vigilância, não se exime da inerente responsabilidade pela sua vigilância, por lhe ser exigível, razoavelmente, face à detenção material sobre a coisa que exercia, em nome próprio, e com a especial obrigação de proceder à sua vigilância, não se abstrair das obrigações que ao fornecedor competiam.

Decisão Texto Integral:

Revista nº 4444/03.8TBVIS.C1.S1

Acção com Processo Comum

Comarca ... – ... – Inst. Central – Secção Cível – J3

Relação ... – 3ª Secção Cível

Supremo Tribunal de Justiça – 1ª Secção Cível

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

AA propôs a presente ação declarativa, com processo ordinário, contra o “HOSPITAL BB, SA”, pedindo que, na sua procedência, o réu seja condenado a pagar-lhe, a título de indemnização, o montante global de €291.357,29, acrescido de juros vincendos, à taxa legal de 4%, desde a citação e até efetivo e integral pagamento, alegando, em síntese, para fundamentar a sua pretensão, que, com a categoria de enfermeira graduada, exercia funções, no “HOSPITAL BB”, em ..., onde, no dia 12 de janeiro de 2001, foi vítima de um acidente, ocorrido na sala de operações.

Tal acidente verificou-se, após a autora ter elevado o estrado do eletrobisturi ali existente, que, então, caiu, repentinamente, atingindo-a sobre a cabeça.

Por força de tal acidente, a autora foi, de imediato, assistida nas urgências, tendo-se submetido, desde então, a inúmeros tratamentos, pois sofreu traumatismo axial da coluna cervical e cervicalgia com limite funcional.

Este acidente ficou a dever-se a culpa da sua entidade patronal que não lhe proporcionou todas as condições de segurança necessárias ao cabal exercício das suas funções, tendo incorrido em responsabilidade civil, nos termos do regime consagrado no artigo 483º, do Código Civil.

Acresce que, mesmo que assim se não entendesse, sempre o réu seria responsável, com base no regime da responsabilidade pelo risco.

Em consequência das lesões sofridas, ficou, temporariamente, incapacitada para o trabalho, sendo ainda afetada por uma incapacidade permanente parcial fixável em 25%, tendo sofrido dores, bem como um prejuízo de afirmação pessoal, com impossibilitada de auferir inúmeras remunerações acessórias, tendo suportado várias despesas, que justificam ser-lhe devido, a título de indemnização, o quantitativo peticionado, ou seja, a título de lucros cessantes, reportados a remunerações acessórias distribuídas por “programa de acesso”, “horas complementares”, “tempo acrescido” e “horas extraordinárias”, que deixará de auferir, o valor de €210.528,25, a título de incapacidade temporária total, a quantia de €13.779,25, a título de incapacidade temporária parcial, a quantia de €2.314,91, a título de incapacidade permanente parcial, fixável em 25%, a partir da data da consolidação das lesões, a quantia de € 63.318,42, a título de quantum doloris, a quantia de €3.000,00, e, a título de prejuízo da sua afirmação pessoal, a quantia de €20.000,00.

Na contestação, o réu concluiu pela procedência da exceção da sua ilegitimidade, e bem assim como pela improcedência da ação, defendendo ainda que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada na produção do acidente em causa, pois não tinha sido informado de qualquer deficiência de funcionamento no eletrobisturi em causa, não podendo concluir-se que o acidente se tenha ficado a dever a uma deficiente organização dos serviços do réu, que tem vindo a celebrar sucessivos contratos de manutenção corretiva e preventiva com a “CC SA”, pelos quais esta se obriga a prestar todos os serviços de manutenção e de assistência técnica, designadamente, ao equipamento em causa nos autos, e que assumiu a responsabilidade pelos danos causados pelos equipamentos abrangidos por tais contratos de manutenção.

Defendeu ainda que a autora apenas tem direito à reparação dos danos, fundamentados no regime especial do DL 503/99, de 20 de novembro, tendo requerido, com base no seu eventual direito de regresso, a intervenção acessória provocada da “CC, SA”.

Na réplica, a autora defende a improcedência das exceções deduzidas, concluindo como na petição inicial.

Admitida a intervenção acessória provocada da “CC, SA”, esta contestou, excecionando a prescrição, considerando que, tendo o acidente ocorrido, em 12 de janeiro de 2001, e tendo sido citada, em 8 de março de 2006, o direito de que a autora se arroga já se mostra prescrito, alegando ainda que sempre procedeu à manutenção do aparelho, de acordo com a melhor técnica, sendo certo que, na reparação, por si executada, no dia 15 de janeiro de 2001, verificou que o amortecedor existente, no interior do braço, estava deslocado da concavidade que o retém, o que, apenas, se pode ficar a dever a um movimento brusco ou a um embate, realidade esta que evidencia que o acidente foi devido a um manuseamento descuidado do equipamento, por parte da autora.

Concluiu pela improcedência da ação e requereu a intervenção acessória da fabricante do aparelho, “DD”, para o caso de se verificar que o mesmo padece de defeito de fabrico, bem como da “EE, SA”, para quem alegou ter transferido a sua responsabilidade civil, a fim de que possam intervir nos autos como suas auxiliares e para que sobre ambas venha a ser admitido exercer o direito de regresso.

A autora apresentou réplica, pronunciando-se sobre a exceção da prescrição, invocada pela “CC, SA”, concluindo pela sua improcedência.

Foi admitida a intervenção acessória de “DD” e de “EE, SA”, tendo esta contestado, confirmando a celebração do contrato de seguro que fundamentou a sua intervenção, defendendo-se, por exceção, com a invocação da prescrição do direito de que se arroga a autora por, na data da citação da “CC SA”, terem já decorrido mais de três anos sobre o conhecimento dos factos que fundamentam o direito indemnizatório que a mesma reclama, alegando ainda que não decorrem dos factos invocados pela autora os pressupostos da responsabilidade civil imputável à sua segurada, e que procedeu à manutenção do equipamento, no cumprimento das indicações do fabricante, pelo que, na sua perspetiva, o acidente ficou a dever-se ou, a um errado manuseamento do material, por parte da autora, ou a um defeito de fabrico, concluindo pela procedência da exceção e pela improcedência da ação.

A autora pronunciou-se pela aplicabilidade, ao caso, do prazo de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 498º, nº 3, do Código Civil, para as hipóteses em que o facto ilícito constitui crime, alegando ainda constarem dos autos documentos que comprovam o exercício tempestivo do direito.

A interveniente “DD” apresentou contestação, na qual arguiu a incompetência internacional do Tribunal Português, considerando ainda que a tal incompetência absoluta acresce a relativa, por violação de pacto privativo e atributivo de jurisdição existente, pelo qual foi atribuída competência exclusiva ao Tribunal alemão, em ..., para dirimir qualquer conflito decorrente do contrato celebrado entre ambas as partes, tendo ainda sido convencionado que a lei aplicável a tais obrigações seria a alemã.

Arguiu, igualmente, a caducidade do prazo de garantia, a prescrição, e, defendendo-se por impugnação, concluiu pela improcedência da ação.

A autora replicou, defendendo a improcedência das exceções.

Respondendo ao convite que lhe foi formulado pelo tribunal, a autora requereu a intervenção principal provocada passiva da “Caixa Geral de Aposentações”, que foi admitida.

No despacho saneador, foram julgadas improcedentes as exceções da prescrição e da incompetência territorial e internacional arguidas, e foi relegado, para momento ulterior, o conhecimento das exceções da “exclusão de indemnização por lucros cessantes”, e da “caducidade da garantia”, invocadas pela chamada “DD”.

A sentença julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu o réu “HOSPITAL BB, SA” e a interveniente “Caixa Geral de Aposentações” do pedido formulado pela autora AA.

Desta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, com subsequente apresentação de alegações, tendo o Tribunal da Relação julgado, parcialmente, procedente o recurso e, em consequência, revogou a decisão impugnada e, em sua substituição, “julgou a ação, parcialmente, procedente, condenando o réu a pagar à autora a quantia já liquidada de €26.413,66, acrescida das quantias a liquidar, posteriormente, em incidente próprio, nos termos do disposto pelo artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, relativas ao dano das despesas com deslocações (subtraídas do valor já recebido de €264,65), ao dano do esforço acrescido que a autora teve e tem de desenvolver, na sua atividade profissional, em resultado de incapacidade temporária e permanente para o trabalho, resultante das lesões sofridas, e ao dano da impossibilidade de prestar serviços pelos quais a autora auferia suplementos remuneratórios, subtraída da quantia de €39.206,80, e acrescida de juros de mora, sobre o montante final da indemnização em dívida, calculados desde 17 de Dezembro de 2003 até integral pagamento desse montante, à taxa anual definida por lei, que tem sido de 4% ao ano, mas absolvendo o réu do demais peticionado”.

Deste acórdão da Relação de ..., o réu, agora com a denominação de “FF, E.P.E.”, interpôs recurso de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as alegações com o pedido da sua revogação e a sua absolvição, formulando as seguintes conclusões que, integralmente, se transcrevem:

A) O art. 493º nº 1 do CC estabelece uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor da coisa ou da pessoa a quem incumba o dever de a vigiar, incumbindo ao agente a quem é imputada a responsabilidade demonstrar que não houve qualquer culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que agisse com a diligência devida.

B) A precaução a ter e o dever de vigilância a cumprir têm um conteúdo indeterminado e dependente das circunstâncias do caso e integram-se num dever geral de prevenção do perigo.

C) A presunção legal de culpa em questão pode ser afastada mediante prova da ausência de culpa ou prova que os danos se teriam igualmente verificado, mesmo sem culpa (art. 493.º, nº 1, in fine).

D) Discorda-se do douto acórdão recorrido ao julgar que o acidente ocorreu num foco de perigo situado em espaço e sob o poder de controle do Recorrente, pois resulta dos pontos 3, 4, 5, 6 e 91 a 95 dos factos assentes, que se trata de um aparelho que é manuseado manualmente pelos seus utilizadores, reconduzindo-se a uma prateleira para equipamentos cirúrgicos (ponto 6 da matéria de facto assente).

E) Pelo que tal manuseamento não se reveste de especial perigosidade ou constitui um foco de perigo para os seus utilizadores, nem acarreta em si um risco específico e acrescido de produção de acidentes para os seus utilizadores o que nem sequer se encontra minimamente justificado no douto acórdão recorrido.

F) No tocante à causa do acidente em questão, o Tribunal “a quo” deveria ter tomado na devida consideração os relatórios periciais juntos aos autos (fls. 1428 e ss. e 1588 e ss.), que tiveram este mesmo aparelho como objeto, bem como os esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos evidenciados naquela mesma douta sentença.

G) Dos quais resulta que a queda do braço do equipamento se deveu ou à queda de um dos seus amortecedores (o único não se encontra articulado mas inserido numa concavidade) durante o seu movimento ascendente ou à perda de eficiência dos amortecedores.

H) Tendo sido precisamente esta a situação que foi detetada na reparação executada logo a seguir ao acidente (pontos 7 e 102 da matéria de facto assente), a qual foi efetuada pela empresa especializada para o efeito que mais nenhuma operação entendeu ser necessária.

I) Por outro lado, nenhuma deficiência havia sido notada no funcionamento do equipamento em causa (pontos 89 da matéria de facto assente), tendo a sua queda ocorrido logo a seguir à A tê-lo elevado.

J) Em face do caráter imprevisível da sua queda, não se vislumbra o que acresceria em segurança para o funcionamento do equipamento, o facto do Recorrente ter incumbido qualquer funcionário seu de vigiar o seu estado.

K) A atuação que se impunha ao Recorrente em matéria de segurança adequada, previdente, e em face da diligência exigível aferida por um bom pai de família, não era ter um funcionário seu para vigiar cada um dos vários milhares de equipamentos que tem ao seu serviço, mas sim adotar a conduta que adotou, ou seja, contratar com a própria empresa que os comercializou a sua manutenção por forma a garantir o seu bom funcionamento.

L) Contratos esses que visavam não apenas garantir a sua manutenção periódica, mas sim assegurar a sua manutenção total por forma a garantir “um rigoroso controle em termos de segurança para os utentes e profissionais de saúde” (cfr. contratos de manutenção de fls. 272 e ss., 276 e ss., 281 e ss., 286 e ss. e 294 e ss.).

M) Nenhuma culpa poderá ser assacada ao Recorrente pela alegada queda do electrobisturi klinopart 1255 -NA- Kreuzer instalado no bloco operatório n.º 7.

N) O Recorrente adotou nesta matéria o comportamento que lhe competia, não lhe sendo exigível cuidado acrescido em relação ao equipamento em questão, pois celebrou sucessivos contratos de manutenção, não só corretiva mas também preventiva, com a Interveniente CC S.A. para garantir o pleno e organizado funcionamento dos seus serviços, a segurança dos seus funcionários e o correto funcionamento do seu equipamento, incluindo as inerentes condições de segurança.

O) Trata-se do contrato nº 29/2000 outorgado pela CC S.A. e pelo ora Recorrente, destinado a ser integralmente executado durante o ano de 2000 (doc. 1 da PI) e do contrato nº 5/01 celebrado entre os mesmos outorgantes, destinado a ser integralmente executado durante o ano de 2001 (doc. 2 da PI).

P) Nos termos destes contratos, a CC S.A. obrigou-se perante o ora Recorrente a prestar os necessários serviços de manutenção e assistência técnica e equipamento da sua marca, indicados na listagem anexa a esse mesmo contrato, em que se enquadra o eletrobisturi Klinopart 1255-NA-kreuzer do bloco operatório nº 7, obrigando-se aquela empresa, designadamente, a garantir um rigoroso controlo em termos de segurança para os utentes e profissionais de saúde.

Q) Sendo este precisamente o resultado a que a CC se obrigou com a celebração de tais contratos.

R) O facto de existir um funcionário do Recorrente que vigiasse o estado deste equipamento, como parece exigir-se no douto acórdão recorrido, em face da forma como ocorreu o acidente, em nada acrescentaria à pretendida segurança no seu funcionamento.

S) Não é exigível ao Recorrente que além da conduta adotada quanto ao equipamento em questão tivesse ainda um funcionário de vigia em relação aos seus equipamentos.

T) Com tal conduta, o Recorrente afastou a presunção de culpa que sobre ele recaía nos termos do art. 493º nº 1 do CC, pelo que ao adotar entendimento diverso, o douto acórdão recorrido efetuou daquela disposição legal uma interpretação errada, violando-a.

U) A questão de saber se existe ou não causalidade adequada insere-se no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça, tal como se decidiu já em seus doutos acórdãos de 02/12/2008, Revista n.º 2096/08 - 6.ª Secção, de 13/01/2008, processo n.º 08A369 e de 26/11/2009, Revista n.º 3178/03.8JVNF.P1.S1 - 2.ª Secção.

V) O art. 563º do CC consagrou a doutrina da causalidade adequada, nos termos da qual o facto que atuou como condição do dano deixará de ser considerado como causa adequada quando, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo.

W) Segundo a doutrina e a jurisprudência maioritárias, determinada ação ou omissão será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as demais que uma pessoa média poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava, em face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.

X) É necessário que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito, pelo qual é razoável responsabilizar o agente, do ponto de vista da ordem jurídica e dos valores que esta quer promover.

Y) A orientação dominante na doutrina e jurisprudência é a que considera causa de certo efeito a condição que se mostra, em abstrato, adequada a produzi-lo, existindo esta adequação se ocorrer probabilidade na ocorrência desse dano, fundada nos conhecimentos de um homem médio colocado na situação concreta do presumível lesante.

Z) O dano apenas deve considerar-se efeito do facto lesivo se, à luz das regras práticas da experiência e a partir das circunstâncias do caso concreto, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal, previsível e razoável dos acontecimentos.

AA) Esta causalidade adequada não se reporta apenas ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas antes a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano (cfr. douto acórdão deste Supremo Tribunal, de 13/01/2009, Revista n.º 3747/08 - 1.ª Secção).

BB) No caso concreto, o douto acórdão recorrido, no que toca à deficitária vigilância julgada existir por parte do Recorrente, limita-se a concluir que “não é possível descartar a existência de um nexo de imputação ao Réu, por incumprimento do dever de vigilância no espaço temporal compreendido entre as referidas ações periódicas de manutenção preventiva do equipamento” e que, “não se provou que o Réu tenha incumbido qualquer funcionário de vigiar o estado do equipamento”.

CC) Porém, à luz da melhor interpretação dos arts. 493º e 563º do CC e tendo em conta os factos assentes nos presentes autos, não há dúvida que não se verifica in casu um nexo de causalidade entre a inobservância do dever de vigilância do aparelho cirúrgico acima identificado e os invocados danos.

DD) Era imprescindível que tendo em conta os concretos conhecimentos que existiam na forma como funcionava este equipamento por parte do Recorrente e tendo em conta a forma encontrada e à data em vigor para garantir o seu funcionamento eficaz e seguro, tivesse sido a falta de mais cuidados, de cuidados acrescidos em relação aos que ficaram provados ter o Recorrente adotado, que gerou os danos sobre a A.

EE) Mesmo que o Recorrente tivesse um funcionário a vigiar o equipamento (se isso fosse exigível, o que não se admite) não seria isso que evitaria este acidente, pois isso sempre seria indiferente à produção do acidente em questão, o que é forçoso concluir-se em face de ter ficado provado o que consta dos pontos 7, 89 e 99 a 103 da matéria de facto assente.

FF) Dos quais resulta que a única operação efetuada pela CC a seguir ao acidente em questão foi apenas a colocação dos amortecedores no sítio e bem assim o reaperto total dos seus componentes, após o que o equipamento ficou de novo operacional, na semana seguinte (ponto 36 da matéria de facto assente).

GG) O que implicou obrigatoriamente o acesso ao interior do braço em que os amortecedores e a concavidade que o retém se encontram instalados, exigindo também o seu ajuste o acesso ao interior desse mesmo braço, pois é no interior que existe o parafuso através do qual esse ajuste é efetuado por forma a manter o ponto de equilíbrio necessário, o que não era percetível pela mera vigilância deste equipamento por um funcionário do Recorrente.

HH) O douto acórdão recorrido, limita-se a concluir que existe nexo que permite imputar ao Recorrente por incumprimento do dever de vigilância do equipamento no espaço temporal compreendido entre as referidas ações periódicas de manutenção preventiva, por não ter incumbido qualquer funcionário seu do dever de vigiar o seu estado, sem que todavia explicite qual seria a mais-valia em matéria de segurança que isso acarretaria no caso em análise para evitar o acidente em causa.

II) Isso, em nada impediria a ocorrência deste acidente, não sendo razoável responsabilizar o Recorrente pelo facto de, além de ter contratualizado com a CC nos termos que se acham provados nos presentes autos, esta não ter um funcionário seu a vigiar os equipamentos objeto dessa manutenção.

JJ) A A é uma enfermeira graduada muito habituada ao ambiente do bloco operatório (como resulta designadamente dos montantes por esta peticionados pelo programa de listas de espera) à qual era familiar o equipamento em questão e que manuseava com muita regularidade, devendo também esta circunstância ser tida em conta para aferir da suficiência das medidas adotadas pelo Recorrente no tocante à vigilância desse equipamento e da previsibilidade da verificação dos danos ocorridos.

KK) Ao decidir que existe um nexo de causalidade entre a omissão do dever de vigilância e a produção do acidente em apreço, o douto acórdão recorrido efetuou portanto uma errada interpretação do art. 563º do CC, violando-o.

LL) O acidente em questão ocorreu em 12/01/2001, num período em que o Recorrente era uma entidade pública, uma vez que a sua transformação em sociedade anónima, ainda que de capitais exclusivamente públicos, só viria a ocorrer em 11/12/2002, por força do Decreto-Lei nº 287/2002, de 10/12.

MM) Ao ressarcimento dos danos emergentes deste acidente é aplicável o disposto no Decreto-Lei nº 248/99, de 2/7 e no Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11, cuja aplicação é incompatível com a aplicação neste caso quer do instituto da responsabilidade civil extracontratual (art. 483º e ss. do CC) quer da responsabilidade pelo risco (art. 499º e ss. do CC), no que concerne à própria entidade empregadora que não pode ser obrigada a prestar mais do que o previsto no aludido diploma legal.

NN) Apenas não seria assim, podendo a A exigir o pagamento das quantias que peticionou nestes autos, caso fosse um terceiro, que não a sua entidade empregadora, o responsável pela ocorrência do acidente.

OO) O ressarcimento dos danos peticionados pela A é regulado pelo DL nº 503/99, de 20/11, que estabelece a forma e os montantes do mesmo em caso de ocorrência de acidente em serviço em que não haja responsabilidade de terceiro, pelo que à A sempre assistiria em qualquer caso apenas o direito ao pagamento dos montantes das prestações previstas naquele diploma legal, as quais já se encontram pagas, cfr. art. 77 da matéria de facto assente.

PP) Por isso, ao condenar o Recorrente nas indemnizações aludidas nas als. a) a i) o douto acórdão recorrido efetuou uma errada interpretação do art. 4º, nºs 1 e 4 e do art. 34º, nºs 1 e 4 do DL nº 503/99, de 20/11, violando-os.

A interveniente “CC, S.A.” interpôs, igualmente, recurso de revista, concluindo as alegações com o pedido de revogação do acórdão da Relação, deduzindo as seguintes conclusões, que se transcrevem, na sua totalidade:

1. O douto Acórdão recorrido considerou parcialmente procedente a presente acção porquanto considerou que o Réu HOSPITAL BB não ilidiu a presunção de culpa prevista no nº 1 do art.º 493º do Código Civil.

2. Salvo o devido respeito por opinião adversa, atendendo a que como foi considerado provado pelas instâncias, foi a Autora ora Recorrida que acionou o braço do electrobisturi para o elevar, que o amortecedor que se encontra no interior do referido braço se deslocou da concavidade que o retém e que para que tal acontecesse era necessário que o movimento ascendente fosse superior à velocidade de recuperação do amortecedor, dever-se-á concluir que a presunção de culpa do nº 1 do art.º 493º do Código Civil foi ilidida pelo Réu HOSPITAL BB, S.A.

3. Ao assim não entender, salvo o devido respeito violou o douto Acórdão recorrido por erro de interpretação o citado no nº 1 do art.º 493º do Código Civil.

4. A Autora ora Recorrida intentou a presente acção exclusivamente contra o HOSPITAL BB, S.A.

5. Os demais intervenientes nos autos são meros intervenientes acessórios.

6. Sucede porém que a Autora ora Recorrida já foi indemnizada pelos danos decorrentes do evento sub judice em sede de responsabilidade contratual do seu empregador e único Réu na presente acção, o HOSPITAL BB.

7. Quando com referência ao mesmo evento se verificam em simultâneo responsabilidade contratual e extracontratual como é o caso dos autos, não são as mesmas cumuláveis, tendo o lesado de optar por uma delas para ser ressarcido pelos danos que eventualmente haja sofrido.

8. Por isso, tendo a Recorrente sido ressarcida em sede de responsabilidade contratual pelos danos decorrentes do evento sub judice, não pode, como pretende, voltar a ser ressarcida em sede de responsabilidade extracontratual pelo mesmo facto danoso.

9. Ao assim não entender, salvo o devido respeito, violou o douto Acórdão recorrido por erro de interpretação os art.º 562º e 762º, nº 1 do Código Civil.

A interveniente “EE” interpôs, também, recurso de revista, concluindo as alegações com o pedido de revogação do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na sua totalidade:

1.º O R. Hospital agiu com a diligência que era exigida nas circunstâncias em que ocorreram os factos ilícitos em causa - não lhe podendo ser imputados quaisquer juízos de culpa -, tendo ilidido a presunção de culpa prevista no art. 493º/1 do C. Civil; cfr. art. 350º do C. Civil - cfr. texto nos 1 a 3.

2º. A A. Recorrida não invocou ou demonstrou - como lhe competia (v. art. 342º do C. Civil) - nem se verificam in casu os pressupostos de que dependeria a responsabilidade dos RR. pelos pretensos prejuízos invocados - cfr. texto nºs 1 a 3.

3º. O douto acórdão recorrido de 2016.04.07 enferma de manifestos erros de julgamento face à matéria de facto dada como provada, tendo violado frontalmente o disposto nos arts. 9º, 342º, 350º, 483º e segs., 493º, 496º, 562º a 566º e 798º e segs., do C. Civil.

A interveniente “DD” interpôs, igualmente, recurso de revista, concluindo as alegações com o pedido de revogação do acórdão da Relação, na parte impugnada, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na sua totalidade:

1. A factualidade dada como provada nos presentes não permite concluir qual a causa da queda do equipamento.

2. O artigo 493º, nº 1 do CC estabelece uma presunção de culpa a favor do detentor de coisa móvel, com o dever de a vigiar, ilidível mediante prova de que nenhuma culpa houve da sua parte.

3. Nos termos do artigo 487º, nº 2 do CC, a culpa deve ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

4. As circunstâncias que rodearam a ocorrência do acidente nos presentes autos não traduzem qualquer risco acrescido, a fazer impender sobre a R. um dever acrescido de diligência.

5. A R. não cometeu qualquer imprudência, imprevidência ou foi negligente, tendo actuado com a diligência que lhe era exigível no caso concreto, pelo que ilidiu a presunção de culpa que o artigo 493º, nº 1 do CC faz recair sobre ela.

6. O douto Acórdão recorrido enferma de erro na interpretação e aplicação dos artigos 493º, nº 1 e 487º, nº 2 do CC.

Nas suas contra-alegações, a autora conclui no sentido de que deve ser negada a revista, mantendo-se o acórdão, nos seus precisos termos, em conformidade com o que se deixa, totalmente, transcrito:

A – O acórdão recorrido não merece qualquer censura porquanto julgou adequadamente e segundo a interpretação devida a norma em causa (art. 493º, nº 1, do CC) a responsabilidade extracontratual do Hospital suportada na não ilisão da presunção de culpa que sobre o mesmo recaia.

Isto porque, como refere, estamos perante um evento danoso causado pela queda de um equipamento médico sobre a cabeça da Autora, estando esse equipamento ao serviço do Réu que o utilizava na sua actividade, pelo que a situação é subsumível ao disposto no referido artigo 493°, n.°1, do C. Civil.

B - E, em primeiro lugar, em razão dos factos provados e dos quais não resulta a causa da queda do electrobisturi sobre a cabeça da Autora, e em segundo porque também não se provou que o Réu tenha incumbido qualquer funcionário de vigiar o estado do equipamento; concluindo que restaria o facto de o Réu ter celebrado um contrato com a empresa fornecedora do equipamento em causa que a obrigava a efectuar a manutenção preventiva dos equipamentos, com a regularidade exigida pelas especificações dos equipamentos, contemplando essas ações, revisão de segurança eléctrica e mecânica, revisão funcional, revisão de qualidade, incluindo ajustes e calibrações, medições dos dados básicos, limpeza e lubrificação dos componentes mecânicos, modificações técnicas e de segurança recomendadas e substituição das peças necessárias, mas questionando se o cumprimento desta obrigação de vigilância do equipamento seria suficiente para ilidir a presunção contida na norma constante do art. 493º, nº 1, do CC, e concluindo que por não se ter provado qual foi a causa da queda do equipamento, e por nada se ter provado quanto às ações levadas a cabo pelo Réu para assegurar que este tipo de acidentes não ocorresse para alem das referidas inspeções periódicas, não é admissível a conclusão de que nenhuma culpa é assacável ao Réu (sublinhado nosso).

C – No caso há uma violação de um direito absoluto, relevante para efeitos de responsabilidade extracontratual.

D - A presunção contida no artigo 493º/1, é uma presunção de ilicitude: perante os danos presume-se que eles foram causados pelo não cumprimento do dever de vigilância de quem tinha a coisa móvel em seu poder, incumprimento este que também se presume.

E – Pelo que não basta ao Réu ter contratualizado com a CC a vigilância e manutenção técnica da coisa, era necessário que se provasse que nenhuma culpa houve ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que houvesse tal culpa. Ou seja, era necessário a prova da inexistência da culpa ou da inexistência da imputação objetiva (os danos não pertenciam à esfera de risco erigida pela violação dos deveres de cuidado), seja por violação do disposto em regras específicas de regulamentação legal, mas sempre por omissão do dever de vigilância fixado no art. 493º, nº 1, do CC, ou do dever geral de agir para remoção do perigo de lesão do direito à integridade física/corporal e, por isso, também, de personalidade, dos eventuais utilizadores desse equipamento.

F – Os recorrentes não ilidiram a presunção de culpa, considerando o expresso no acórdão e a violação de dever resultante dos factos dados como provados que não foram objecto de impugnação:

1 - Ao entrarem na sala de operações n° 7, e já próximas do eletrobisturi, a Autora reparou que este se encontrava descido a cerca de 1,5 m;

2 - Quando fora de utilização, deve o aparelho estar recolhido, ou seja, junto ao tecto a que está fixado;

3 - O suporte Klinoport (eletrobisturi) é utilizado em operações cirúrgicas, e encontra-se instalado a partir do tecto, de tal modo que, sempre que um doente dá entrada no bloco operatório, tem obrigatoriamente de passar por debaixo do mesmo;

G - Ainda que não se tenha apurado a causa concreta da deficiência mecânica o Réu Hospital violou o dever que sobre si impendia de vigilância e de manutenção de forma a manter o eletrobisturi em posição de segurança junto ao tecto,

H - Os recorrentes não invocam, nem desenvolvem qualquer esforço recursivo e argumentativo adequado a pôr em causa a aplicação e interpretação da norma avocada pelo acórdão recorrido, limitando-se a tentar sobrepor a sua interpretação do normativo em causa, desagregado de qualquer elemento novo que ponha em causa o acórdão recorrido, em clara violação do disposto no art. 639º, nº 2, alínea d) do CPC.

I – No plano da prova o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. O que não sucede no caso.

J - O nexo de causalidade naturalístico entre o facto e o dano constitui matéria de facto que escapa ao controle do STJ e a norma do art. 493.º, n.º 1, do CC estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar (…).

K - O R. Hospital, como se refere, foi considerado responsável pelo evento ao abrigo do DL nº503/99, sendo certo que o que está em causa, no tocante à reparação dos danos, não é a responsabilidade contratual do Hospital em face da enfermeira, o fundamento de tal reparação não se encontra na violação de deveres de âmbito contratual.

L – O que justifica que nos casos em que o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade abranja a totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.

M - De facto, o art. 493º, 1, do C. Civil consagra a responsabilidade civil das pessoas com o dever de vigiar coisas ou animais, impondo uma presunção legal de culpa, desde que se prove que o dano foi causado «pela coisa ou animais». Com efeito, diz-nos concretamente o art. 493º, 1 do C. Civil que a pessoa com o encargo de vigiar a coisa «responde pelos danos que a coisa causar…»”.

N - No caso os danos foram causados pela queda do aparelho que o Réu tinha o dever de vigiar, existindo um nexo de causalidade adequada evidente entre o evento - queda do aparelho (coisa vigiada) na cabeça da Autora e os danos que esta queda e embate lhe provocaram e que se mostram devidamente comprovados.

O – E, estabelecido o nexo de causalidade adequada entre a “coisa” e o “dano” (base da presunção), o Réu para afastar a responsabilidade civil deveria provar (art. 493º, 1, 2º parte) que (i) não teve culpa ou (ii) que – tendo culpa - o dano se verificaria mesmo que a não tivesse. O “non liquet” sobre qualquer destes aspectos (falta de culpa, ou relevância negativa da causa virtual) é decidido contra o Réu.

P - O problema dos Recorrentes e designadamente do Réu é a interpretação devida à norma de que emerge a responsabilidade - a ilisão da presunção legal constante do art. 493º, nº 1 do CC.

Q – O acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal ao proceder à interpretação normativa da sobredita norma nos termos em que o fez.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. A autora é enfermeira graduada, em serviço no “HOSPITAL BB”, em ...;

2. No dia 12 de janeiro de 2001, pelas 12 horas, na sala de operações nº 7 do referido hospital, ocorreu um evento envolvendo a autora;

3. O suporte Klinoport (eletrobisturi) é utilizado em operações cirúrgicas, e encontra-se instalado, a partir do teto, de tal modo que, sempre que um doente dá entrada no bloco operatório, tem, obrigatoriamente, de passar por debaixo do mesmo;

4. Sendo tal equipamento um braço fixo no teto, tem que coexistir com outros equipamentos e poder ser colocado, em situação de uso e de não utilização, correspondendo às exigências de um equipamento cirúrgico multifuncional;

5. O suporte Klinoport, fixo a partir do teto, é ajustável, em altura, deve ter, de acordo com as suas especificidades técnicas, um raio de ação e espaço adequado à sua utilização, sendo que, se se encontrar em situação de parque, deve estar a, pelo menos, dois metros de altura do piso da sala de trabalho;

6. A manipulação do equipamento, no que concerne ao movimento ascendente/descendente, que ajusta a altura necessária a cada tipo de intervenção cirúrgica, é feita, manualmente;

7. Do registo da reparação efetuada ao sobredito equipamento, em 15 de janeiro de 2001, consta a informação sumária de “Suporte Kreuzer Klinoport. Colocação amortecedores no sítio. Reaperto total”;

8. A autora foi submetida a várias juntas médicas para avaliação das lesões que apresentava;

9. Na junta médica, realizada no dia 1 de outubro de 2001, foi-lhe declarada uma incapacidade temporária parcial, com as seguintes restrições ao exercício da atividade habitual: 50% e dispensa de serviço noturno;

10. Em 28 de janeiro de 2002, foi mantida a deliberação anterior;

11. Na Junta Médica, realizada no dia 13 de maio de 2002, foi concedida alta clínica e determinada a apresentação ao serviço, a 14 de maio de 2002, tendo sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 0,15%, com a recomendação de que evitasse esforços sobre a coluna cervical;

12. A autora foi submetida a mais uma Junta Médica (2002/09/03) para efeitos de confirmação e de graduação da incapacidade;

13. A primeira ré acordou com a “CC SA” a compra do equipamento em causa, tendo sido esta empresa quem o instalou;

14. O réu tem vindo a celebrar sucessivos contratos de manutenção, não só correctiva, mas, também, preventiva, incluindo do equipamento em causa nos autos;

15. A fls 272 e ss, encontra-se junto aos autos um documento, com o título “contrato nº 29/2000”, subscrito, como primeiro outorgante, pelo “HOSPITAL BB”, ... e, como segundo outorgante, pela “CC, SA”, com o seguinte teor: “(…) o presente contrato tem por objecto o fornecimento, pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante de serviços de manutenção e assistência técnica a equipamentos da marca CC, diversos equipamentos, indicados na listagem anexa (…)”;

16. A fls 276 e ss, encontra-se um documento, com o título “proposta nº 00/bc065 para o ajuste direto nº AD 98/2000”, com o seguinte teor: “propomos um contrato de manutenção, com substituição de peças para o equipamento CC, que se encontra em anexo, referente à assistência técnica durante o ano de 2000, com início em 2000/01/01 (…)”;

17. A fls 281, encontra-se um documento, com o título “Contrato de manutenção com peças nº 00/bc065, proposta de 2000-02-09”, subscrito pela “CC, SA”, e pelo “HOSPITAL BB”, com o seguinte teor: “(…) a CC obriga-se a efectuar a manutenção preventiva dos equipamentos, com intervenções em número e duração especificadas na proposta de preços, para cada sala, de acordo com as especificações de fábrica. Estas intervenções compreendem várias acções, das quais destacamos as principais: revisão de segurança eléctrica e mecânica; revisão funcional; revisão de qualidade, incluindo ajustes e calibrações; medições dos dados básicos; limpeza e lubrificação dos componentes mecânicos; modificações técnicas e de segurança recomendadas (…) Efetuar a substituição dos componentes avariados ou deteriorados, quer nas intervenções preventivas, quer nas correctivas, de acordo com o estipulado no contrato. Estes componentes passam a ser propriedade da CC (…) A CC é responsável pelos danos que, na execução do presente contrato, cause a equipamentos e pessoas. Excluem-se indemnizações por lucros cessantes (…)”.

18. A fls 286 e ss, encontra-se um documento, com o seguinte título: “Contrato de manutenção nº 00/bc065, Lista de equipamentos por tipo”, que contém uma listagem de vários aparelhos de entre os quais consta o seguinte aparelho: Klinoport 1255-NA-Kreuzer;

19. A fls 294 e ss, encontra-se junto aos autos um documento, com o título: “Contrato nº 5/2001”, subscrito em 7 de Março de 2001, do mesmo constando, como primeiro outorgante, o “HOSPITAL BB” -... e, como segundo outorgante, a “CC, SA”, com o seguinte teor: “(…) o presente contrato tem por objecto o fornecimento pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante de serviços de manutenção e assistência técnica a equipamentos da marca CC, diversos equipamentos, indicados na listagem anexa (…)”;

20. A fls 113 a 132, encontra-se junto aos autos um documento, escrito na língua inglesa, que contém várias imagens do equipamento em causa nos autos, bem como um texto, descrevendo, nomeadamente, as funcionalidades do aparelho e diversos modos de manuseamento e instalação;

21. Pelo contrato de seguro de responsabilidade civil, com a apólice nº 000/000/000706, efectuado entre a “EE” e a “CC, SA”, aquela comprometeu-se a assumir o risco decorrente do exercício da exploração da sua actividade comercial e industrial, designadamente, fabricação de componentes eléctricos, bem como de produtos e serviços prestados, documento junto a fls 495 e 619 a 643;

22. O contrato supra-referido teve o seu início de vigência, em 1 de outubro de 1999, e a duração de doze meses, renováveis, encontrando-se em vigor na data do evento supra-descrito;

23. Momentos antes do evento, referido em 5.2, a autora conduzia um troley, sobre o qual ia um doente, sendo ajudada nesse transporte, pela sua colega GG (artigo 1º da base instrutória);

24. A autora conduzia o troley da parte da cabeceira, enquanto a sua colega ia junto aos pés da doente (artigo 2º da base instrutória);

24-A. Ao entrarem na sala de operações nº 7, e já próximas do eletrobisturi, a autora reparou que este se encontrava descido, a cerca de 1,5 m (artigo 3º da base instrutória);

25. A autora dirigiu-se ao estrado do eletrobisturi, a fim de o elevar, para o que pegou nas duas pegas latero-frontais, premindo, ao mesmo tempo que fazia o movimento ascendente (artigo 4º da base instrutória);

26. O braço do eletrobisturi subiu com facilidade, mas a autora, de imediato, foi atingida pelo estrado do eletrobisturi, que caiu sobre a sua cabeça (artigo 5º da base instrutória);

27. A autora abateu-se, repentina e inesperadamente, no chão, em posição de sentada, tendo sido como que compactada pelo aparelho que, em queda, terá um peso que, em concreto, não foi possível apurar (artigos 6º e 7º da base instrutória);

28. Os médicos que se encontravam na sala socorreram a autora, de imediato (artigo 8º da base instrutória);

29. A autora ficou, completamente, estonteada e zonza, perdeu o equilíbrio, pese embora não tenha perdido os sentidos, tendo sido, imediatamente, conduzida para a urgência, onde foi socorrida e submetida a exames médicos, tendo-lhe sido diagnosticado traumatismo axial da coluna cervical, sem deficit neurológico, e cervicalgia com limite funcional (artigos 9º, 10º e 12º da base instrutória);

30. A autora foi tratada, em consulta externa, pela Drª HH, tendo sido, posteriormente, encaminhada, para consulta de Medicina Física e de Reabilitação, e com acompanhamento da neurocirurgia (artigo 13º da base instrutória);

31. Queixas sucessivas e dores constantes, no braço direito e na coluna, determinaram a realização de uma TAC, em 5 de fevereiro de 2001, tendo-lhe sido receitada mais medicação, persistindo, contudo, as dores (artigos 14º e 15º da base instrutória);

32. A ortopedia, face à insistência do quadro doloroso, pediu a colaboração da neurocirurgia, tendo o neurocirurgião solicitado a realização de uma ressonância magnética, em 15 de maio de 2001 (artigo 16º da base instrutória);

33. Na mesma altura, a autora iniciou fisioterapia (artigo 17º da base instrutória);

34. Foi recomendada à autora uma consulta de neurofisiologia, tendo ai realizado um exame eletroneuromiográfico, com estudo de condução nervosa motora e sensitiva, e estudo eletromiográfico (artigo 19º da base instrutória);

35. A queda repentina do suporte do estrado do eletrobisturi foi a causa direta e necessária do ferimento que vitimou a autora, causando-lhe “traumatismo axial da coluna cervical sem deficit neurológico; cervicalgia com limite funcional” (artigo 20º da base instrutória);

36. O eletrobisturi ficou sem ser utilizado, cerca de uma semana (artigo 13º da base instrutória);

37. Em maio de 2003, foi registada nova avaria, com descida espontânea do aparelho, constando da respetiva nota de reparação a menção sumária de “ajuste do suporte do teto da sala 7” (artigo 23º da base instrutória);

38. No dia 5 de agosto de 2003, cerca das 12h, a neurocirurgia solicitou à autora que providenciasse uma caixa de microcirurgia, que não se encontrava no local, razão pela qual a autora acabou por ir procurá-la no arsenal de ortopedia, onde teve que manusear uma série de caixas (artigo 21º da base instrutória);

39. Na ocasião, referida no artigo anterior, ao pegar numa das caixas para identificação do material, a autora sentiu uma dor intensa, na região lombar, o que a obrigou a deixar a dita caixa (artigo 21º da base instrutória);

40. Mais tarde, quando a autora se encontrava já na sua residência, a dor tornou-se progressiva, invadindo todo o membro inferior direito, não diminuindo com a administração de analgésico, tendo-se intensificado, de tal modo, durante a noite, que paralisou o membro inferior direito da autora e determinou que esta se deslocasse ao serviço de urgência (artigo 22º da base instrutória);

41. A autora diligenciou no sentido de obter informações, junto do Conselho de Administração do HOSPITAL BB de ..., sobre o apuramento de responsabilidades, designadamente, sobre se a CC foi chamada a pronunciar-se sobre o problema técnico do suporte Kreuzer Klinoport, quais as conclusões da perícia efectuada ao aparelho, bem como a data em que aquele problema técnico foi notificado àquela empresa, enquanto sinistro (artigo 24º da base instrutória);

42. Não obtendo qualquer resposta, por parte do hospital, a autora recorreu ao Tribunal Administrativo de Círculo de ... para que intimasse o Presidente do Conselho de Administração do HOSPITAL BB a responder à sua pretensão (artigo 25º da base instrutória);

43. O hospital veio dizer que a CC fez deslocar ao hospital, após o evento, técnicos seus para avaliação/reparação da situação e, em 16 de fevereiro de 2002, o seu advogado estava a tratar do assunto, sendo que, como não tinha sido enviado qualquer relatório do sinistro, encontrava-se impossibilitada de proceder ao encerramento do processo de averiguações (artigo 26º da base instrutória);

44. Como consequência direta e necessária do evento supra-descrito, ocorrido no dia 12 de janeiro de 2001, a autora sofreu traumatismo da coluna cervical, desenvolvendo cervicobraquialgia pós-traumática, acompanhada de parestesias de todo o membro superior direito (artigo 27º da base instrutória);

45. Em 5 de março de 2011, a autora apresentava, inicialmente, queixas, a nível da região cervical e região escapular, com falta de força (artigo 28º da base instrutória);

46. A autora encontra-se a fazer fisioterapia, desde a data do evento até ao presente (artigo 29º da base instrutória);

47. A autora iniciou medicina física e de reabilitação, em 22 de janeiro de 2001 (artigo 30º da base instrutória);

48. Foi ainda recomendada à autora, como terapia adjuvante, a prática de natação (artigo 31º da base instrutória);

49. A autora manteve-se, inúmeras vezes, impossibilitada de comparecer ao serviço, designadamente, de 13 de janeiro de 2001 até 28 de outubro de 2001, de 29 de outubro de 2001 até 5 de novembro de 2001, de 15 a 17 de novembro de 2001, de 11 a 26 de julho de 2002, de 27 de julho de 2002 a 27 de agosto de 2002, de 21 de janeiro de 2003 a 25 de janeiro de 2003, de 27 de janeiro de 2003 a 2 de fevereiro de 2003 (artigos 33º a 38º da base instrutória);

50. No ano de 2002, a autora apresentava queixas de cervicalgia e parestesias, no membro superior direito, sendo evidentes sinais objetivos de sofrimento do segmento cervical (artigo 39º da base instrutória);

51. Em 25 de janeiro de 2002, a autora continuava a apresentar períodos de agravamento e melhoria, alternados, que relaciona, respectivamente, com os esforços e o repouso (artigo 40º da base instrutória);

52. Nessa data, foi sugerido pelo serviço de neurocirurgia a remoção cirúrgica do disco C4-C5, sendo certo que tal não poderia garantir a recuperação da autora, uma vez que, imagiologicamente, o compromisso compressivo parece insignificante e os períodos de agravamento e remissão vão contra essa hipótese (artigo 41º da base instrutória);

53. Como consequência direta e necessária do evento supra-descrito, a autora sofreu traumatismo raquídeo, com discopatia pós-traumática C4-C5, com radiculopatia de C5 (artigo 43º da base instrutória);

54. A data da consolidação das lesões situa-se, em 13 de maio de 2002 (artigos 42º e 44º da base instrutória);

55. A autora sofreu um período de incapacidade temporária total para o trabalho, desde a data do evento, até 28 de janeiro de 2002 (artigo 45º da base instrutória);

56. A autora necessitou do auxílio de terceira pessoa, durante cento e oitenta dias, até 28 de janeiro de 2002 (artigo 46º da base instrutória);

57. A autora padeceu de uma incapacidade parcial fixável, em média, em 60%, durante o resto de tempo da doença (artigo 47º da base instrutória);

58. As sequelas que a autora apresenta resultam da discopatia pós-traumática C4-C5, determinante de raquialgias cervicais crónicas e do compromisso mecânico da quinta raiz cervical, determinante de radiculopatia e justificam, em termos do IPP, uma desvalorização de 25 % (artigo 48º da base instrutória);

59. A vida profissional da autora foi afetada pelas referidas sequelas, que se traduzem na dificuldade de realização de gestos laborais (artigo 49º da base instrutória);

60. As sequelas raquídeas exigem esforços acrescidos no exercício da sua profissão habitual (artigo 51º da base instrutória);

61. A autora suporta ainda dores físicas (artigo 52º da base instrutória);

62. A autora sofreu, também, alterações do foro psicológico, desenvolvendo um quadro misto de ansiedade e irritabilidade, bem como um certo grau de insuficiência pessoal, familiar e profissional que está, directamente, relacionado com o evento supra-descrito (artigo 53º da base instrutória);

63. A autora foi seguida, em consulta de psiquiatria, por lhe ter sido diagnosticado um quadro de “depressão major”, com ansiedade (artigo 54º da base instrutória);

64. Muitas das atividades domésticas realizadas pela autora até à data, designadamente, limpezas, passar roupa a ferro, jardinagem, estender roupa, ir às compras, sozinha, tornaram-se tarefas mais custosas para a autora (artigo 55º da base instrutória);

65. Consequentemente, e, nas lides domésticas, a autora viu-se obrigada a manter ao seu serviço uma empregada doméstica, que lhe prestou serviços, de segunda a sábado, em 2001, e de segunda a sexta, em 2002 e 2003, por um período de 4 horas diárias, tendo sido o custo, por hora, em 2001, de €3, em 2002, de €4, e, em 2003, de €5 (artigos 56º e 57º da base instrutória);

66. No ano de 2001, a autora despendeu €3456, tendo-lhe sido liquidado, a título de subsídio de ajuda de terceira pessoa, o montante de €392,25, no ano de 2002, despendeu €3840, no ano de 2003, despendeu €4800 (artigos 58º a 60º da base instrutória);

67. A autora não borda, nem faz crochet ou malha, que são atividades de lazer de que gostava (artigo 61º da base instrutória);

68. A autora sente dificuldades a escrever (artigo 62º da base instrutória);

69. A autora tem dificuldades em fazer longos percursos de carro e, mesmo não conduzindo, não consegue fazer viagens longas (artigos 63º e 64º da base instrutória);

70. A autora tem dificuldades em dormir, porquanto não consegue fazê-lo, na posição lateral direita, pois adormece-lhe o lado esquerdo, o mesmo sucedendo com a posição lateral esquerda e de cúbito dorsal, adormecem-lhe os braços, a perna e seca-lhe a boca (artigos 65º e 66º da base instrutória);

71. Em consequência das constantes insónias, a autora descansa pouco e anda sempre irritada (artigo 67º da base instrutória);

72. A autora deixou de poder cuidar e brincar com a filha, que, à data do acidente, tinha cinco anos e meio de idade, como sempre fizera, não conseguindo, desde então, pegar-lhe ao colo (artigos 71º e 72º da base instrutória);

73. A autora gastou €900,00, com a perícia médico-legal e parecer (artigo 74º da petição inicial);

74. Como tratamento coadjuvante da terapêutica médica foi recomendada à autora a compra de uma banheira de hidromassagem e de um colchão ortopédico, o que importou nos valores de, respetivamente, de €1720,62 e de €1469,65 (artigo 75º da base instrutória);

75. Em consultas médicas, exames, medicamentos e outras despesas médicas, despendeu a autora, até à data da interposição da ação, a quantia de €79,94 (artigo 76º da base instrutória);

76. A autora efetuou deslocações para consultas e tratamentos diversos, com as quais a autora gastou quantia que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 77º da base instrutória);

77. A CGA pagou à autora, por conta do dito evento, a título de reparação total, o capital de €39.206,80 (artigo 78º da base instrutória);

78. Até à data da interposição da presente acção, foram pagas à autora despesas originadas com transportes para fins médicos, no valor de €264,65 (artigo 79º da base instrutória);

79. Até à data da interposição da acção, foi paga à autora, a título de subsídio de assistência a terceira pessoa, a quantia de €392,95 (artigo 80º da base instrutória);

80. Foram ainda pagos os honorários do médico designado pela autora para a acompanhar à Junta Médica, no valor de €84,00 (artigo 81º da base instrutória);

81. Em consequência do evento supra-descrito, a autora deixou de prestar determinados serviços, pelos quais recebia, regularmente, quantias monetárias, designadamente, o programa de acesso “Listas de Espera”, as horas complementares, o tempo acrescido e as horas extraordinárias (artigo 82º da base instrutória);

82. A autora auferiu, no ano de 2000, no âmbito do programa de acesso e enquanto suplementos remuneratórios, o montante de €1.044,17 (artigo 83º da base instrutória);

83. A autora deixou de aferir, no âmbito de suplementos remuneratórios, nos anos de 2001, 2002 e 2003, valor global que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 84º da base instrutória);

84. A título de horas complementares, a autora recebia um montante mensal variável (artigo 85º da base instrutória);

85. Desde abril de 2002 até à presente data, a autora nunca mais pôde fazer horas complementares, devido às lesões que sofreu, o que implicou uma perda de montante que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 86º da base instrutória);

86. A autora, em consequência das lesões sofridas, viu-se impedida de realizar um horário acrescido, o que implicou uma perda de valores que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 87º da base instrutória);

87. Do trabalho suplementar prestado pela autora, no ano de 2000, resultou uma compensação remuneratória de montante que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 88º da base instrutória);

88. Ao estar impedida de proceder a trabalho extraordinário, a autora não recebeu, durante os anos de 2001, 2002 e 2003, quantia que, em concreto, não foi possível apurar (artigo 89º da base instrutória);

89. Nenhum funcionário do réu “HOSPITAL BB, SA”, técnico, paciente ou qualquer outra pessoa o informou de deficiência de funcionamento ou manejamento deste eletrobisturi ou do suporte onde ele se encontra aplicado (artigo 90º da base instrutória);

90. O HOSPITAL BB decidiu, em 11 de maio de 2001, mandar instaurar um processo de averiguações (artigo 93º da base instrutória);

91. O equipamento instalado, pela “CC, SA”, é um suporte de teto, da marca Kreuzer, modelo Klinoport 1705 H, móvel, quer no sentido ascendente e descendente, quer no sentido lateral, pois roda em torno do eixo de fixação ao teto (artigo 94º da base instrutória);

92. E é utilizado como prateleira para equipamentos cirúrgicos (artigo 95º da base instrutória);

93. As suas extremidades encontram-se, uma fixa no teto, e a outra é uma prateleira posicionável (artigo 96º da base instrutória);

94. O referido aparelho é composto, por três corpos, a saber, um eixo fixo ao teto, um braço ligado à extremidade do referido eixo e, na extremidade deste braço, uma prateleira para aí serem colocados equipamentos cirúrgicos (artigo 97º da base instrutória);

95. Quando fora de utilização, deve o aparelho estar recolhido, ou seja, junto ao teto a que está fixado (artigo 98º da base instrutória);

96. A assistência ao referido aparelho consiste, além de outros aspetos, na verificação do seu exterior, verificação das suas funcionalidades e, caso se mostre necessário, o ajuste do ponto de equilíbrio, através de um parafuso existente no referido braço e acessível do exterior (artigo 99º da base instrutória);

97. As três peças, supra-referidas, são peças em metal, sem qualquer mecanismo no seu interior (artigo 100º da base instrutória);

98. O braço que liga tais peças tem, no seu interior, três amortecedores (artigo 101º da base instrutória);

99. Um de tais amortecedores está encaixado numa concavidade (artigo 102º da base instrutória);

100. O seu ajuste é feito, exclusivamente, através de um parafuso de ajuste existente no interior (artigo 103º da base instrutória);

101. Este ajuste consiste em manter equilibrada a respetiva prateleira, em função do peso do equipamento cirúrgico que nesta esteja colocado (artigo 104º da base instrutória);

102. Na reparação que fez ao aparelho, em 15 de janeiro de 2001, a solicitação do HOSPITAL BB, a “CC, SA” verificou que o amortecedor, que se encontra no interior do braço, estava deslocado da concavidade que o retém (artigo 105º da base instrutória);

103. Para que o amortecedor se desencaixasse das concavidades era necessário que, no movimento ascendente, a velocidade de movimentação da prateleira seja superior à velocidade de recuperação do amortecedor (artigo 108º da base instrutória);

104. O aparelho em causa foi submetido, depois do seu fabrico, a teste de qualidade e segurança, pela entidade certificadora “TUV”, do qual resultou a sua aprovação e autorização para ser colocado no mercado (artigos 110º e 111º da base instrutória);

105. O aparelho foi fornecido à “CC SA”, em fevereiro de 1997, tendo sido colocado em funcionamento, pelo menos, em 1998 (artigo 112º da base instrutória);

106. Desde a colocação do aparelho em funcionamento até à data em que ocorreu o evento, jamais foi comunicada à chamada “DD” a existência de qualquer defeito de fabrico ou irregularidades com o mesmo (artigo 113º da base instrutória);

107. O mesmo aparelho permaneceu, após o referido evento, em funcionamento, nas instalações do HOSPITAL BB, pelo menos, até maio de 2003 (artigo 114º da base instrutória);

108. A “CC, SA” nunca solicitou o envio de qualquer peça para o equipamento em causa à chamada “DD” (artigo 115º da base instrutória).

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da cumulação da responsabilidade civil contratual com a responsabilidade civil extracontratual.
II – A questão da culpa do responsável pelo equipamento hospitalar manuseado pela autora aquando do acidente que a vitimou.

I. DA CUMULAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL COM A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
I. 1. A determinação do modelo normativo da responsabilidade é uma questão de qualificação jurídica e, portanto, matéria de direito, de conhecimento oficioso, a cuja indagação, interpretação e aplicação o juiz não está sujeito às respetivas alegações das partes, por força do preceituado pelo artigo 5º, nº 3, do CPC.
Por isso, tendo o credor lesado alegado factos constitutivos do contrato celebrado com o lesante e a violação do mesmo, mediante o seu cumprimento defeituoso, nada obsta a que o tribunal possa qualificar a situação «sub judice» como sendo de responsabilidade contratual, sem embargo de o autor pretender a aplicação das regras da responsabilidade extracontratual[2].
O instituto da responsabilidade civil, sendo uma das fontes da obrigação de indemnização, traduz-se na necessidade, imposta por lei, a quem causa danos a outrem, de colocar o ofendido na situação em que se encontraria se não fosse a lesão, isto é, tem por fim essencial tornar sem dano o lesado.
A responsabilidade contratual resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei, e a responsabilidade extracontratual da violação de direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem.
Contudo, ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é, verdadeiramente, apenas, condição modificativa da obrigação de prestar em obrigação de indemnizar, mas a obrigação é a mesma[3].
Assim, é admissível considerar que há responsabilidade civil contratual, por violação de um contrato de natureza laboral, por parte de uma unidade hospitalar que o celebrou com um seu profissional de saúde, ou seja, pela violação de um direito de crédito, e que ocorrerá responsabilidade civil extracontratual ou delitual, por violação de direitos de personalidade, do direito à vida, à integridade física, à integridade moral, à saúde e à reserva da intimidade da vida privada do mesmo, cujas lesões se situam, para além desse contrato, decorrente de facto ilícito, nesta medida extracontratual, já que os danos se não situam, no âmbito ou perímetro do contrato, estando para além do interesse do cumprimento[4], pelo que “o mesmo facto humano pode provocar um dano simultaneamente contratual e extracontratual”[5].
I.2. Porém, a questão está em saber se se deve aceitar a solução do cúmulo, quando se estiver perante uma hipótese de facto, em abstrato, qualificável com guarida nas duas responsabilidades, se essa deve ser a resposta correta para as situações de concurso de normas.
Cada uma destas modalidades de responsabilidade civil possui esfera particular ou autónoma de atuação, a reclamar uma relação de consunção, não se podendo afirmar que se encontram numa relação de especialidade[6], caso em que a responsabilidade extracontratual estaria afastada.
Com efeito, o nexo sinalagmático interliga, em princípio, tanto as prestações fundamentais, emergentes da celebração do contrato (sinalagma genético), como as prestações da mesma natureza, provenientes do desenvolvimento da relação contratual (sinalagma funcional)[7].
Para além do dever de prestação, existem, igualmente, numa relação contratual, certos deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, e que as partes devem observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso.
Com efeito, devem ter-se por compreendidos no conteúdo da relação contratual os deveres de cuidado necessários para evitar os danos pessoais ou patrimoniais suscetíveis de ser desencadeados, por qualquer uma das atividades que cada parte está obrigada a executar ou legitimada para realizar, em vista desse fim[8].
Alarga-se, assim, a esfera da responsabilidade contratual em relação à responsabilidade aquiliana, porquanto “o genérico dever de «neminem laedere» é absorvido, sempre que estão em causa comportamentos ligados ao fim contratual, nos quadros da responsabilidade «ex contractu»”[9].
Certo é que, com a inclusão do dever de proteção violado, no âmbito do contrato, o dano não deixa de assumir a sua natureza, simultaneamente, delitual, por resultar da violação de direitos absolutos da contraparte, só que ocorrendo esse dano na execução do contrato, por violação de deveres de cuidado, que devem ter-se por abrangidos no seu círculo de proteção, esse dano reveste, também, natureza contratual[10].
Porém, a questão da coexistência ou da prevalência dos dois tipos de responsabilidade coloca-se sempre que um único facto humano do comportamento do agente provoque uma lesão que abra ao credor a tutela contratual e, simultaneamente, a tutela delitual, em relação ao mesmo facto ilícito que se encontre na origem simultânea dos dois, que represente, ao mesmo tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito extracontratual, sendo certo que não pode haver cumulação de responsabilidades resultantes do mesmo facto jurídico, quando tal acarrete duplicação de indemnizações[11].
Realidade distinta acontece quando o mesmo facto produz dois danos, envolvendo um deles responsabilidade contratual, em relação a uma pessoa, e o outro responsabilidade extracontratual, em relação a terceiro, estranho ao negócio, ocorrendo um concurso real de responsabilidade contratual e de responsabilidade extracontratual, enquanto que o caso em análise contende com a situação do concurso aparente das duas modalidades de responsabilidade civil[12].
Com efeito, havendo um só dano, resultante de um único facto, e não danos distintos, e uma só conduta e não duas condutas diferentes, quer do ponto de vista naturalístico, quer do ponto de vista jurídico, com dois regimes legais de proteção do lesado que prevêem tal conduta e visam reparar tal dano, mas cada regime com a sua teleologia própria, “nada justifica a duplicação de ações ou concorrência de pretensões”[13], pelo que, existindo concurso de títulos de imputação ou concurso de pretensões, há uma alternatividade de pedidos que dependem da mesma factualidade, estando em causa um pedido de indemnização com um duplo fundamento[14], em que o lesado pode escolher o título mais favorável a empregar, o regime contratual ou o regime extracontratual, “não parecendo de aceitar a existência de duas ações”[15], antes “intentando apenas uma ação”[16], “existindo uma unidade de pedido indemnizatório e de indemnização”[17].
Assim, as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual em análise reconduzem-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas, em que só, supostamente, se pode falar de um concurso, porque o que se verifica é uma única conduta ilícita, a merecer, portanto, uma única indemnização.
Não se trata, então, de um concurso de ações que gozam de uma total autonomia, mas antes de “uma única acção, a que corresponde no plano material um único direito, fundamentada em diversas normas”[18].
Na verdade, no âmbito do concurso de ambas as variantes da responsabilidade civil, qualquer uma delas, isoladamente considerada, esgotaria a tutela que a ordem jurídica pretende consagrar para estas situações, bastando a fundamentação de uma dessas pretensões para assegurar a procedência da ação.
Em relação ao réu, exige-se já uma cumulação de fundamentos de improcedência, pois que a ação só é improcedente se o forem todas as pretensões concorrentes[19], pelo que, em função do princípio da autonomia privada, sendo aplicáveis, paralelamente, as duas espécies de responsabilidade civil, perante uma situação concreta, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual, consumindo o regime da responsabilidade contratual o da responsabilidade extracontratual, como fundamento da indemnização, de acordo com o princípio da consunção[20], e daí que, existindo um contrato, o credor só pode obter reparação, em sede contratual[21].
Deste modo, não se trata de várias pretensões concorrentes, mas de um concurso de normas que fundamentam a mesma pretensão.
I. 3. Resulta da matéria de facto que ficou demonstrada, com interesse pertinente para a questão decidenda, que, no ano de 2001, a autora despendeu €3456,00, tendo-lhe sido liquidado, a título de subsídio de ajuda de terceira pessoa, o montante de €392,25, no ano de 2002, despendeu €3840,00 e, no ano de 2003, despendeu €4800,00.
Por seu turno, a Caixa Geral de Aposentações pagou à autora, por conta do acidente infortunístico que a mesma sofreu, no âmbito de procedimento administrativo próprio, de natureza extra-processual, relativo à reparação total do acidente de serviço, o valor de €39.206,80, a título de capital de remição da pensão, por incapacidade permanente parcial alusiva a esse acidente.
Alega a interveniente “CC” que, tendo a autora sido ressarcida, em sede de responsabilidade contratual, pelos danos decorrentes do evento «sub judice», pelo seu empregador, o réu “HOSPITAL BB”, não pode, como pretende, voltar a ser indemnizada, em sede de responsabilidade extracontratual, pelo mesmo facto danoso.

Ora, tendo-se provado que a autora recebeu, por conta do acidente infortunístico sofrido, o valor de €39.206,80, relativo à reparação total do acidente de serviço, a título de capital de remição da pensão, por incapacidade permanente parcial alusiva a esse acidente, no âmbito de procedimento administrativo próprio, de natureza extra-processual, e não em consequência da propositura de qualquer outro tipo de ação judicial, inexiste fundamento legal para deduzir, válida e relevantemente, a exceção da incumulabilidade da responsabilidade contratual com a responsabilidade extracontratual que, consequentemente, é de rejeitar, por não ocorrerem os seus pressupostos constitutivos.
II.2. DA CULPA DO RESPONSÁVEL PELO EQUIPAMENTO HOSPITALAR MANUSEADO PELA AUTORA AQUANDO DO ACIDENTE QUE A VITIMOU.

II.1. Alegam os réus que deve entender-se que a presunção de culpa constante do artigo 493º, nº 1, do Código Civil (CC), foi ilidida pelo réu “HOSPITAL BB, SA”, porquanto foi a autora que acionou o braço do electrobisturi para o elevar, sendo, para tal necessário, que ocorresse a deslocação do amortecedor, que se encontrava no interior do braço da concavidade que o retém, resultante de um movimento ascendente superior à velocidade de recuperação do amortecedor, tendo o réu “HOSPITAL BB, SA” atuado com a diligência que lhe era exigível, no caso concreto, adotando, inclusive, o comportamento que lhe competia, sem lhe ser exigível cuidado acrescido em relação ao equipamento em questão, pois que celebrou sucessivos contratos de manutenção, não só corretiva, mas, também, preventiva, com a interveniente “CC SA”, para garantir o correto funcionamento do equipamento, incluindo as inerentes condições de segurança.

II.2. Sendo excecional a responsabilidade civil por facto não praticado pelo próprio, pessoalmente, a reparação do dano causado, fora dos casos previstos na lei, pode fundar-se, nomeadamente, na omissão do dever de vigilância[22].

E a omissão é causa do dano sempre que haja o dever jurídico de praticar o ato omitido, com a consequente obrigação de reparar esse dano, nos termos do disposto pelo artigo 486º, do CC.

A responsabilidade civil por omissões importa, para além do pressuposto específico que consiste no dever jurídico de praticar o ato omitido, a verificação dos demais requisitos legais, nomeadamente, a existência de um nexo de causalidade, de modo a que a realização do ato teria obstado, seguramente ou com a maior probabilidade, à verificação do dano[23].

Dispõe o artigo 487º, nº 1, do CC, que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.

Efetivamente, a lei consagra situações de presunção legal de culpa do responsável, que implicam uma inversão do ónus da prova, mas que são ilidíveis, em princípio, mediante prova em contrário, nos termos do estipulado pelo artigo 350º, nºs 1 e 2, do CC, não se tratando, portanto, de casos de responsabilidade objetiva.

O Código Civil prevê a situação da «culpa in vigilando», nomeadamente, em relação a outrem, estabelecendo o respetivo artigo 493º, nº 1º, do CC, que “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.

Trata-se de uma previsão situada, no âmbito dos denominados delitos complexos, porquanto engloba uma omissão, por parte das pessoas obrigadas à vigilância, por um lado, e um ilícito praticado por outrem ou por algo carecido de vigilância, por outro, onerando com a presunção de culpa da produção do dano quem tiver em seu poder a coisa móvel ou imóvel geradora do evento danoso e, cumulativamente, tiver o dever de a vigiar.

Quem detém, materialmente, uma coisa, suscetível de causar danos, em nome próprio ou de outrem, com o dever de a vigiar, ou terceiro que, por negócio jurídico, tiver assumido o encargo da sua conservação e manutenção, em condições de conformidade, por via de regra, o proprietário ou possuidor, por si ou em nome de outrem, responde, com culpa presumida, pelos danos causados pela mesma, desde que sobre ela possa exercer controlo físico[24].

Com efeito, para afastar a presunção legal culpa, de acordo com o disposto pelo artigo 493º, nº 1, parte final, do CC, importa que o demandado demonstre a presença e atenção continuadas que o conceito de vigilância pressupõe, não bastando a pratica de quaisquer atos genéricos realizados, antecipadamente, sendo que o normativo em apreço isenta o agente de responsabilidade, não obstante a culpa com que atuou, se ele mostrar que o dano se teria produzido ainda que o facto culposo se não tivesse verificado, através de uma outra causa, a denominada causa virtual do dano, mas não exige ao lesante, para se exonerar da responsabilidade, como acontece com os danos causados no exercício de actividades perigosas, a que se reporta o respetivo nº 2, que demonstre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para o evitar[25].

II.3. A responsabilidade pelo facto das coisas é, apenas, uma responsabilidade por facto do homem[26], pelo que quem tem a detenção material da coisa com o encargo da sua vigilância, sob pena de a mesma vir a constituir um perigo para outrem, deve providenciar para que o dano seja evitado, tomando as medidas adequadas, mas isentando-se de responsabilidade se provar que nenhuma culpa houve da sua parte na produção dos danos ou que estes se teriam, igualmente, verificado ainda que não houvesse culpa da sua parte, pondo, assim, em causa o nexo causal entre a omissão de vigilância e o resultado lesivo ocorrido.

O artigo 493º, nº 1, do CC, já transcrito, estipula que “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem,…..”.  

Resulta da análise deste preceito legal que, na previsão da norma, cabem, apenas, os danos que a coisa causar e não os danos causados com a coisa[27], isto é, os danos causados pelas coisas e não os danos causados por alguém com o emprego de coisas, designadamente, intervindo, fisicamente, sobre aquelas, hipótese em que vigora o regime geral da responsabilidade civil, onde se não exclui, à partida, a imputação ao agente[28].

Tratando-se de dano causado pela coisa, em consequência de atividade profissional levada a cabo por uma pessoa, funcionalmente, dependente de entidade que sobre ela exerce poderes de direção, disciplina e controlo e que, simultaneamente, detém o domínio e a posse sobre a mesma coisa, que sobre ela conserva o dever de manutenção e vigilância, sem qualquer intervenção autónoma de terceiros, aquele agente foi, apenas, a causa imediata da produção dos danos, mas sem que tal importe trazer à colação o regime geral da responsabilidade civil, em que ao lesado compete o ónus da prova da culpa do lesante, de acordo com o disposto pelo artigo 342º, nº 1, do CC.

A teoria da responsabilidade pela guarda da coisa ou pelo fato da coisa inanimada, que tem subjacente a noção de guarda, independentemente do caráter intrínseco da coisa e de qualquer falta pessoal do guardião, está consagrada no artigo 1384º, do Código Civil Francês, ao estatuir que "é responsável pelo dano não somente quem lhe deu causa por facto próprio, mas ainda aquele que o causou pelo facto das pessoas por quem deve responder ou pelas coisas que tem sob a sua guarda", presume a responsabilidade do dono da coisa que foi instrumento dos danos por ela ocasionados, que, apenas, a pode ilidir, exonerando-se, totalmente, da responsabilidade, desde que a falta da vítima constitua a causa exclusiva do dano, ou, então, pela prova do caso fortuito ou de força maior ou de uma causa estranha que lhe não seja imputável[29].

Na situação contemplada pelo artigo 493º, do CC, em análise, o dano encontra-se apenas em conexão com a vigilância da coisa, mas ressalvando-se a ausência da culpa, que pode decorrer do cumprimento efetivo da obrigação ou dever jurídico de a guardar[30].

II.4. O acabado de expor contende com a questão decidenda e com os danos causados por instrumentos hospitalares, designadamente, por um eletrobisturi, manuseados por um profissional de saúde, no exercício da sua função hospitalar, da responsabilidade das pessoas que, em virtude da lei ou de negócio jurídico, estavam obrigadas à sua vigilância.

Recuperando o essencial da factualidade que ficou demonstrada, impõe-se registar que, no dia 12 de janeiro de 2001, pelas 12 horas, no HOSPITAL BB, em ..., onde a autora prestava serviço, como enfermeira graduada, conduzindo um troley, da parte da cabeceira, sobre o qual estava deitado um doente, sendo ajudada nesse transporte por uma colega, que ia junto aos pés do mesmo, ao entrarem na sala de operações nº 7, e já próximas do eletrobisturi, a autora reparou que este se encontrava descido, a cerca de 1,5 m, pelo que se dirigiu ao estrado do eletrobisturi, a fim de o elevar, para o que premiu as duas pegas latero-frontais, ao mesmo tempo, que fazia o movimento ascendente, sendo que o braço do eletrobisturi subiu com facilidade, mas a autora, de imediato, foi atingida pelo estrado do eletrobisturi, que caiu sobre a sua cabeça.

O suporte Klinoport (eletrobisturi) é um equipamento com um braço fixo, a partir do teto, ajustável, em altura, que deve ter, de acordo com as suas especificidades técnicas, um raio de ação e espaço adequado à sua utilização, sendo que, se se encontrar em situação de parque, deve situar-se a, pelo menos, dois metros de altura do piso da sala de trabalho, e, quando fora de utilização, deve estar recolhido, ou seja, junto ao teto a que está fixado, para coexistir com outros equipamentos e poder ser colocado, em situação de uso e de não utilização, em correspondência com as exigências de um equipamento cirúrgico.

Este equipamento é um suporte de teto que é utilizado em operações cirúrgicas, sendo manipulado, por ação humana, no que concerne ao movimento ascendente/descendente, de modo a ser ajustado à altura necessária a cada tipo de intervenção cirúrgica, sendo certo que, para que o amortecedor se desencaixasse das concavidades, era necessário que, no movimento ascendente, a velocidade de movimentação da prateleira fosse superior à velocidade de recuperação do amortecedor.

O aparelho foi submetido, depois do seu fabrico, a teste de qualidade e segurança, pela entidade certificadora “TUV”, do qual resultou a sua aprovação e autorização para ser colocado no mercado, tendo sido fornecido à “CC SA”, em fevereiro de 1997, e colocado em funcionamento, pelo menos, em 1998, sendo que, desde esta ocasião até à data em que ocorreu o evento infaustoso, jamais foi comunicada à chamada “DD” a existência de qualquer defeito de fabrico ou de irregularidades com o mesmo.

Do registo da reparação efetuada ao sobredito equipamento, em 15 de janeiro de 2001, ou seja, três dias após o evento danoso, verificou-se que o amortecedor que se encontra no interior do braço estava deslocado da concavidade que o retém, constando da informação sumária “Suporte Kreuzer Klinoport. Colocação amortecedores no sítio. Reaperto total”.

A “CC, SA” instalou o equipamento que forneceu ao réu “HOSPITAL BB, SA”, tendo este vindo a celebrar sucessivos contratos de manutenção, não só corretiva, mas, também, preventiva, em relação ao mesmo equipamento, com aquela interveniente, com início em 1 de janeiro de 2000.

A “CC, SA” é responsável pelos danos que, na execução do contrato, cause a equipamentos e pessoas, excluindo-se as indemnizações por lucros cessantes, assumindo a “EE, SA”, junto daquela, o risco decorrente do exercício da exploração da sua atividade comercial e industrial, designadamente, a fabricação de componentes elétricos, bem como de produtos e serviços prestados, através de contrato, válido na data do evento danoso.

O aludido aparelho permaneceu em funcionamento, nas instalações do HOSPITAL BB, após o referido acidente, pelo menos, até maio de 2003, ocasião em que foi registada nova avaria, com descida espontânea do mesmo, constando da respetiva nota de reparação a menção sumária de “ajuste do suporte do teto da sala 7”.

II.5. Assim sendo, encontrando-se o eletrobisturi descido, a cerca de 1,5 m, quando, fora de utilização, deve estar recolhido, ou seja, junto ao teto a que está fixado, e, na situação de parque, deve situar-se a, pelo menos, dois metros de altura do piso da sala de trabalho, a autora, a fim de o elevar, premiu as duas pegas latero-frontais, ao mesmo tempo, que fazia o movimento ascendente, sendo que o braço do eletrobisturi subiu com facilidade, mas a autora, de imediato, foi atingida pelo estrado do eletrobisturi, que caiu sobre a sua cabeça.

Porém, não se demonstrou que o equipamento tenha sido manipulado pela autora, de modo a ser ajustado à altura necessária ao tipo da intervenção cirúrgica subsequente, em circunstâncias que, em virtude de negligência, desatenção, imperícia ou falta de destreza da mesma, fossem determinantes, causal, adequada e, necessariamente, da saída do amortecedor das concavidades onde se encaixava.

Por outro lado, o réu celebrou com a interveniente “CC SA”, que instalou o eletrobisturi, com início em 1 de janeiro de 2000, sucessivos contratos de manutenção do equipamento, não só corretiva, mas, também, preventiva, permanecendo o mesmo em funcionamento, nas instalações do réu “HOSPITAL BB, SA”, pelo menos, até maio de 2003, ocasião em que foi registada nova avaria, com descida espontânea do aparelho.

Porém, o réu “HOSPITAL BB, SA” não logrou demonstrar que nenhuma culpa houve de sua parte na verificação dos danos que vitimaram a autora, instrumento imediato da mobilização do eletrobisturi, porquanto, embora tenha contratado com a interveniente “CC SA” a manutenção do equipamento, quer corretiva, quer preventiva, desde 1 de janeiro de 2000, ou seja, um ano antes da verificação do evento danoso, este veio a acontecer, não obstante o eletrobisturi ter permanecido em funcionamento, após a data do acidente, só havendo sido retirado de serviço, por volta de maio de 2003, cerca de dois anos depois, na sequência do registo de nova avaria, com descida espontânea do aparelho.

Com efeito, detendo o réu “HOSPITAL BB, SA”, em nome próprio, materialmente, a coisa, suscetível de causar danos, sobre a qual podia exercer controlo físico, com a especial obrigação de proceder à sua vigilância, apesar de ter contratado com a interveniente “CC SA”, fornecedora do bem, o encargo da sua manutenção em funcionamento, responde, com culpa presumida, pelos danos causados pela mesma, não tendo, de modo a afastar a presunção legal culpa que sobre si recaía, de acordo com o disposto pelo artigo 493º, nº 1, parte final, do CC, demonstrado a presença e atenção continuadas que o conceito de vigilância pressupõe.

Na verdade, o réu não podia omitir o cumprimento do seu dever de vigilância sobre o eletrobisturi, com base nas obrigações que impendiam sobre o fornecedor da coisa, relacionadas com o contrato de assistência técnica que celebrou com o mesmo, sendo certo que, tendo o acidente ocorrido um ano após a data da celebração do aludido contrato, o eletrobisturi permaneceu em funcionamento, nas instalações do réu, pelo menos, até maio de 2003, ocasião em que foi registada nova avaria, com descida espontânea do aparelho.

Aliás, provando-se que a autora teve necessidade imperiosa de elevar o eletrobisturi, que se encontrava descido, a cerca de 1,5 m, premindo as duas pegas latero-frontais, ao mesmo tempo que fazia o movimento ascendente, tendo sido atingida pelo respetivo estrado, que caiu sobre a sua cabeça, demonstrou-se, igualmente, o defeito da prestação efetuada pela interveniente “CC SA”, encarregada da manutenção da segurança e funcionamento do equipamento, mas que não é suficiente para considerar que o réu “HOSPITAL BB, SA”, logrou eximir-se à inerente responsabilidade pela sua vigilância.

CONCLUSÕES:

I - Tendo o credor lesado alegado factos constitutivos de um contrato celebrado com o lesante e a violação do mesmo, mediante o seu cumprimento defeituoso, nada obsta a que o tribunal possa qualificar a situação como sendo de responsabilidade civil contratual, sem embargo de o autor pretender a aplicação das regras da responsabilidade civil extracontratual.

II - Há responsabilidade civil contratual, por violação de um contrato de natureza laboral, por parte de uma unidade hospitalar que o celebrou com um seu profissional de saúde, ou seja, pela violação de um direito de crédito, e responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade do mesmo.
III - Para além do dever de prestação, existem, igualmente, numa relação contratual, certos deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, e que as partes devem observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso.
IV - Com a inclusão do dever de proteção violado, no âmbito do contrato, o dano não deixa de assumir natureza delitual, por resultar da violação de direitos absolutos da contraparte, só que ocorrendo na execução do contrato, por violação de deveres de cuidado, que devem ter-se por abrangidos no seu círculo de proteção, o dano reveste, simultaneamente, natureza contratual.
V - Existindo concurso de títulos de imputação ou concurso de pretensões, o lesado pode escolher o título mais favorável a empregar, o regime contratual ou o regime extracontratual, não sendo de aceitar a existência de duas ações, pois que existe uma única conduta ilícita, uma unidade de pedido indemnizatório e de indemnização, tudo se reconduzindo à figura do concurso aparente.
VI- Tendo-se provado que o autor recebeu, por conta do acidente infortunístico sofrido, um valor relativo à reparação total do acidente de serviço, a título de capital de remição da pensão, por incapacidade permanente parcial alusiva a esse acidente, no âmbito de um procedimento administrativo próprio, de natureza extraprocessual, e não em consequência da propositura de qualquer ação judicial, inexiste fundamento legal para deduzir a exceção da incumulabilidade da responsabilidade contratual com a responsabilidade extracontratual.

VI - Quem detém, materialmente, a coisa, em nome próprio ou de outrem, suscetível de causar danos, com o dever de a vigiar, ou terceiro que, por negócio jurídico, tiver assumido o encargo da sua conservação e manutenção, em condições de conformidade, responde, com culpa presumida, pelos danos causados pela mesma, que pode afastar, desde que demonstre que nenhuma culpa houve da sua parte na produção dos danos, ou, não obstante a culpa com que atuou, que o dano se teria produzido ainda que o facto culposo se não tivesse verificado.

VII - Tratando-se de dano causado pela coisa, em consequência de atividade profissional levada a cabo por uma pessoa, funcionalmente, dependente de entidade que sobre ela exerce poderes de direção, disciplina e controlo e que, simultaneamente, detém o domínio e a posse sobre a mesma coisa, que sobre ela conserva o dever de manutenção e vigilância, sem qualquer intervenção autónoma de terceiros [e não de danos que a coisa causar], aquele agente foi, apenas, a causa imediata da produção dos danos, não importando considerar o regime geral da responsabilidade civil, em que ao lesado compete o ónus da prova da culpa do autor da lesão.

VIII – Tendo o réu, entidade hospitalar, demonstrado o defeito da prestação efectuada pelo fornecedor de um eletrobisturi causador de danos que vitimaram uma sua profissional de saúde, instrumento imediato da sua mobilização, o qual, contratualmente, assumira o encargo da sua manutenção e vigilância, não se exime da inerente responsabilidade pela sua vigilância, por lhe ser exigível, razoavelmente, face à detenção material sobre a coisa que exercia, em nome próprio, e com a especial obrigação de proceder à sua vigilância, não se abstrair das obrigações que ao fornecedor competiam.

DECISÃO[31]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar as revistas do réu “FF, E.P.E.” e das intervenientes “CC, S.A.”, “EE, SA” e “DD” e, em consequência, confirmam o douto acórdão recorrido.

                                                              *

Custas da revista, a cargo do réu “FF, E.P.E.” e das intervenientes “CC, S.A.”, “EE, SA” e “DD”, solidariamente.

                                                              *

Notifique.

Lisboa, 07 de fevereiro de 2017

Helder Roque – Relator

Gabriel Catarino

Roque Nogueira

_______________________________________________________
[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gabriel Catarino; 2º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira.
[2] Vaz Serra, RLJ, Ano 105, 231 a 233.
[3] STJ, de 8-5-2003, CJ (STJ), Ano XI, T2, 39.
[4] Menezes Cordeiro, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda, Parecer, CJ, Ano XII, T4, 44; e Violação Positiva do Contrato, Estudos de Direito Civil, I, 1987, 134; Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 1994, 288.
[5] Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (lições policopiadas), Coimbra,1983, 210.
[6] Almeida Costa, Concurso da responsabilidade civil contratual e da extracontratual, Ab Uno ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, 1920-1975, Coimbra Editora, 1988, 559 a 565.
[7] Antunes Varela, Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda, Parecer, CJ, Ano XII, T4, 31.
[8] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, 409; Francesco Benatti, Osservazioni in tema di «doveri di protezione», Studi in onore di Biondo Biondi, IV, Milano, 1965, 483 e ss.
[9] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, 341, e nota (2).
[10] António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, 429.
[11] STJ, de 23-5-1995, CJ (STJ), Ano III, T2, 103.
[12] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, Almedina, 2006, 546 e 547 e nota (1).
[13] Adriano De Cupis, Il danno, Teoria Generale della Responsabilità Civile, 3ª edição, Milão, 1979, I, nº 15, 113 e ss.
[14] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 1994, 287.
[15] Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ nº 332, 40.
[16] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, 411; António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina,2003, 431 a 433; Cláudia Monge, A Responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados no SNS por atos de prestação de cuidados de saúde, www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/respcivil_ebook_completo_rev2.pdf.
[17] Álvaro Rodrigues, Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos, Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, XIV (2000), T 3, 194.
[18] João Álvaro Dias, Procriação assistida e responsabilidade médica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Stvdia Iuridica, 21, Coimbra, 1996, 233; Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (lições policopiadas), Coimbra,1983, 212.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, O concurso de títulos de aquisição da prestação. Estudo sobre a dogmática da pretensão e do concurso de pretensões, Coimbra, 1988, 347.
[20] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, Almedina, 2006, 551 e 552; STJ, de 26-1-1999, Pº nº 974/98, 1ª secção; STJ, de 8-2-1994, CJ (STJ), Ano II, T1, 95.
[21] António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina,2003, 434.
[22] Vaz Serra, Responsabilidade de Pessoas Obrigadas à Vigilância, BMJ nº 85, 382.
[23] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 357 e nota (364); Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 559.
[24] STJ, de 27-5-1997, CJ (STJ), Ano V (1997), T2, 105.
[25] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, Almedina, 1970, 420.
[26] Vaz Serra, Responsabilidade pelos Danos Causados por Coisas ou Actividades, BMJ nº 85, 369.
[27] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 496.
[28] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, Almedina, 2006, 587; STJ, de 7-4-2011, Pº nº 5606/03.3TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt
[29] Méga Code Civil, Dalloz, 2003, 1626 e 1630.
[30] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 511 e 512; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1990, reimpressão, 381 a 383; Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, 236 a 239 e 302 a 304. 
[31] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gabriel Catarino; 2º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira.