Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
030378
Nº Convencional: JSTJ00004315
Relator: BARBOSA VIANA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196105170303783
Data do Acordão: 05/17/1961
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DG IªS DE 06-06-1961; BMJ 107, 337
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 3/1961
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV. DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CPP29 ARTIGO 668 PARUNICO ARTIGO 669 PARUNICO.
CPC39 ARTIGO 767 PARUNICO.
DL 38630 DE 1952/02/02 ARTIGO 4 PAR1.
DL 38273 DE 1951/05/29 ARTIGO 9 PAR2 ARTIGO 13 ARTIGO 15.
DL 41033 DE 1957/03/18.
CCIV867 ARTIGO 2014 ARTIGO 2366 ARTIGO 2380.
CP886 ARTIGO 122 PAR1 ARTIGO 123.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1959/11/25 IN JR ANO5 PAG902.
ACÓRDÃO RC DE 1956/12/04 IN JR ANO2 T5 PAG1144.
Sumário :
E de natureza civil a responsabilidade imposta pelo paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630, de 2 de Fevereiro de 1952, ao proprietario ou possuidor dos pinheiros e ao industrial a quem se destina a gema pelo pagamento de multas por transgressões de que não sejam autores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em obediencia ao preceito do artigo 669 do Codigo de Processo Penal e dada a impossibilidade do recurso ordinario do acordão lavrado a folhas 134, completado, pelo acordão de folhas 156, o excelentissimo Procurador da Republica junto da Relação do Porto interpos dos mesmos o presente recurso extraordinario, a fim de se fixar a jurisprudencia, com fundamento em que aqueles acordãos estavam em franca oposição com o que proferia a Relação de Coimbra, em 4 de Dezembro de 1956, com transito em julgado, e que se mostra publicado na Jurisprudencia das Relações, de Albano Cunha, ano 2, 1956, tomo V, pagina 1144, na parte em que decidiu ser de natureza penal a responsabilidade do proprietario dos pinheiros e do industrial de resinagem, prescrito no paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630, de 2 de Fevereiro de 1952.


Admitindo o recurso, não so aquele magistrado como, tambem, o reu A, apresentaram alegações tendentes a demonstrar que entre os acordãos recorridos e o acordão anterior, mencionado no requerimento de interposição, existe a oposição exigida pelo citado artigo 669 do Codigo de Processo Penal.


Neste Supremo Tribunal, o excelentissimo magistrado do Ministerio Publico pronunciou-se no sentido de que devia julgar-se verificada tal oposição jurisprudencial, para efeitos do prosseguimento do recurso e, o acordão de folhas 189, subscrito por todos os juizes da Secção Criminal, determinou que se prosseguissem os termos normais do recurso para o Tribunal Pleno.
Arrumada a questão preliminar nessa fase inicial do recurso, o digno Ajudante do Procurador-Geral da Republica expos, no seu lucido parecer de folhas 192, a solução que deveria dar-se ao conflito de jurisprudencia, propugnando pela de que a responsabilidade imposta pelo paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630 aos proprietarios de pinhais e aos industriais de resinagem, pelos pagamentos de multas por transgressões de que não sejam co-autores, fosse considerada, no assento a lavrar-se, de natureza civil, contrariamente a conclusão a que chegara o acordão da Relação do Porto, datado de 28 de Novembro de 1959, e proferido a folhas 134 destes autos.


Tendo os mesmos, seguidamente, corrido os vistos de todos os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça, ha que resolver, agora, o mencionado conflito, e fixar a jurisprudencia.


Tudo visto.


Atento o disposto no paragrafo unico do artigo 767 do Codigo de Procersso Civil, aplicavel ao recurso para o Tribunal Pleno em materia-crime, nos termos do paragrafo unico do artigo 669 do Codigo de Processo Penal, com referencia ao paragrafo unico do artigo 668 deste Codigo, o acordão de folhas 189, que reconheceu a existencia da oposição, não impede que o Tribunal Pleno decida em sentido contrario.


Não se verifica, porem, qualquer razão para que se negue a existencia de flagrante oposição entre o acordão de 25 de Novembro de 1959, da Relação do Porto, e o de 4 de Dezembro de 1956, da Relação de Coimbra, porquanto:
Ao passo que, aquele decidiu que a responsabilidade pelo pagamento da multa cominada no artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630 ao proprietario dos pinheiros e industrial de resinagem e de natureza penal, o acordão da Relação de Coimbra havia resolvido que tal responsabilidade tinha natureza civil.
Não podera, pois, recusar-se a conclusão de que os mencionados arestos tomaram posições de patente incompatibilidade sobre a mesma questão de direito, acrescendo que ambos foram proferidos no dominio da mesma legislação: Decreto-Lei n. 38630, de 2 de Fevereiro de 1952 e Decreto-Lei n. 38273, de 29 de Maio de 1951 -, e que e de presumir o transito em julgado do acordão anterior, pelo simples motivo de que foi proferido em processo que não admitia recurso ordinario.


Firmado definitivamente este primeiro passo do recurso, de conformidade com o acordão que decidiu a sua questão preliminar, passaremos a conhecer do objecto do apontado conflito de jurisprudencia.
O artigo 4 do citado Decreto-Lei n. 38630 esta, assim, redigido:
"Artigo 4 - As infracções ao disposto no Decreto-Lei n. 38273 e no presente diploma serão punidas com as multas seguintes:


1 - Por cada incisão com excesso de largura ou de profundidade:
2 - Por cada ferida aberta em pinheiros de diametro inferior a 0m, 30, medido a 1m,30 de solo, cuja resinagem não esteja autorizada...
3 - Por qualquer outra infracção não especificada nos numeros anteriores, por cada ferida...


Paragrafo 1 - Pelo pagamento da multa responderão solidariamente o proprietario ou possuidor dos pinheiros, o industrial a quem se destinar a gema e o resineiro.


Paragrafo 2 - As transgressões não serão punidas quando se prove que o numero de incisões ilegais não ultrapassa um por cento no pinhal a que respeitam, devendo imputar-se ao risco resultante da resinagem.
Paragrafo 3 - A responsabilidade do proprietario cessara nos termos do disposto no paragrafo 2 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273.
Paragrafo 4 - E reconhecido ao proprietario ou possuidor o direito a indemnização pelos prejuizos causados pela resinagem dos seus pinheiros em obdiencia ao estabelecido no Decreto-Lei n. 38273 e no presente diploma, mas em caso algum ele tera participação na importancia das multas cobradas".


Convem, antes de nada, anotar que, posteriormente, ao Decreto-Lei n. 38630, foi publicado Decreto-Lei n. 41033, de 18 de Março de 1957, sendo este o diploma que agora disciplina as chamadas operações de resinagem.
Porem, este Decreto-Lei n. 41033 manteve em vigor o dispositivo do paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630 que, por sua vez, corresponde ao preceito do paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273, de 29 de Maio de 1951.


Esta referencia ao paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273 torna propicia, não so a sua transcrição textual, como a do seu artigo 13 e paragrafo unico, contendo materia que podera coadjuvar na melhor receptibilidade de solução que queremos dar ao conflito sub judice.
Diz, assim, o paragrafo 1 do citado artigo 9:


"Pelo pagamento da multa responderão solidariamente com o transgressor, sem prejuizo do direito de regresso contra este, o proprietario ou possuidor do pinhal e o industrial por quem o transgressor tiver sido inscrito na Junta Nacional dos Resineiros ou a quem se destinar a gema extraida...".
Por seu lado, o artigo 13 deste diploma mostra-se assim redigido:
"Enquanto não estiverem pagas as multas previstas no presente Decreto-Lei não podera ser transaccionada e sera apreendida para garantia daquele pagamento a resina proveniente da exploração dos pinhais em transgressão. Igualmente serão apreendidos os barris que contiverem...".
"Paragrafo unico - Se a multa não for voluntariamente paga a resina e os barris apreendidos serão vendidos em hasta publica e a importancia obtida, deduzidas as despesas da venda, sera posta pela Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Agricolas a ordem do Tribunal competente para o pagamento da multa e restituição ao arguido do excedente, se o houver. No caso de absolvição, o arguido recebera por inteiro a quantia posta a ordem do tribunal".


E, por ultimo, ainda reportando-nos ao Decreto-Lei n. 38273, diremos que o seu artigo 15 prescreve que os autos de noticia e os respectivos processos de transgressão sejam instruidos e julgados nos termos da "legislação vigente sobre policia florestal e protecção dos arvoredos".
Perante aquele paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630, sucedaneo do paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273, o acordão proferido neste processo exprimiu-se desta maneira:


"Ora, no caso dos autos, embora so os resineiros tenham materialmente praticado os factos considerados transgressivos, o empreiteiro e o dono dos pinheiros voluntariamente omitiram o dever de exercer a adequada vigilancia sobre o trabalho daqueles por forma a evitar que transgredissem o falado preceito do corpo do artigo 4 do diploma de 1952, tanto mais que pelo paragrafo 1 se lhes atribua responsabilidade, havendo assim de parte dos mesmos dono e empreiteiro, como em muitos outros casos, a comissão de infracções por omissão".


E, no segundo acordão da Relação do Porto, que integrou aquele outro, esclareceu-se que se havia considerado os resineiros, como autores materiais da infracção, e que o dono dos pinheiros e o empreiteiro, por virtude de "ausencia de vigilancia" (palavras textuais) eram tambem agentes das mesmas infracções, de conformidade com esse artigo 4 que os considera, juntamente com os resineiros, responsaveis, solidariamente, pelo pagamento das multas.


Deste arrasoado, de perceptibilidade um tanto duvidoso naquilo em que não define, com a necessaria lucidez, se se quis atribuir ao proprietario do pinhal e ao industrial da resinagem mera responsabilidade culposa por omissão de vigilancia, ou se pretendeu inclui-los como autores morais ou instigadores, na propria responsabilidade contravencional do transgressor, resulta, em todo o caso, a conclusão de que os considerou agentes das mesmas infracções que são imputaveis ao violador das disposições preventivas das leis e regulamentos, enfim, aos resineiros, os individuos que sangram os pinheiros para lhes extrair a resina.


Nesta estruturação juridica, assentam os acordãos recorridos a tese de que ao proprietario e ao industrial cabe a sanção da multa prescrita pelo artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630, sanção esta, de caracter criminal, como pura pena que e.


Aceitamos, convictamente, que apos a publicação do Decreto-Lei n. 38273 e 38630, intregrou-se no dominio do direito criminal o ilicito pressuposto por estes diplomas, mas, tão-somente, em relação ao resineiro, aquele que materialmente realize a abertura das incisões para a colheita da resina.
Com efeito, so este, sangrando os pinheiros por forma não permitida pelas disposições regulamentares, viola-as e, por isso, são transgressores, na acepção juridico-penal.


Não devera considerar-se que o sejam, o proprietario do pinhal e o industrial a quem se destina a gema, mesmo a luz dos principios que regem os chamados crimes comissivos por omissão, dado que a omissão se deve ligar ao resultado ou evento, por um nexo causal, e este, não se encontra previsto nos diplomas em referencia, em que se não estabelece para o proprietario e industrial, expressa obrigação de agir ou de não agir de certa maneira.

Dai, o ter de concluir-se que a circunstancia de a Lei - paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630 e paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273 - responsabilizar pela multa as duas referidas entidades, não pode ter significado diferente daquele que os torna sujeitos, simplesmente, de uma obrigação civil acessoria, de natureza exclusivamente patrimonial, criada com vista a garantir o pagamento da multa imposta ao verdadeiro transgressor.
Claro que as asserções que acabamos de formular, consagram as proposições cruciais do douto acordão da Relação de Coimbra, de 4 de Dezembro de 1956, que consideramos, tecnicamente, mais perfeita do que as dos acordãos recorridos.
Debruçando-nos sobre os preceitos do paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630 e paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273, nada encontramos que possa revelar que, quanto ao proprietario de pinheiros ou ao industrial, se quisesse proibir determinada conduta, ou prescrever certo procedimento de fiscalização da actividade propria do resineiro.
Tais preceitos apenas declaram o regime de responsabilidade solidaria pelo pagamento da multa, envolvendo nele tanto o proprietario e o industrial, como o resineiro, mas sem confundir, na perpetração do ilicito criminal, as posições daqueles com a deste, expressamente classificada de transgressor, no explicito texto do paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38723.
Queremos salientar que a lei, atribuindo a qualidade do transgressor somente ao que efectivamente pratica o acto punivel, teve em vista a exclusão do proprietario e industrial do verdadeiro ambito de punibilidade da infracção.
Poderiamos esquematizar, assim, a realidade dos factos, diante das normas legais que ficaram transcritas, estabelecendo tres momentos de apreciação:
1 - O do cometimento do facto punivel pelo resineiro;
2 - O da verificação judicial de tal facto e consequente aplicação da multa; e
3 - O do pagamento desta.
E neste terceiro momento que tem intervenção o proprietario do pinhal e o industrial, quando ja esta proferida a decisão declaratoria da verificação do delito, e individualizada a respectiva sanção.
So neste momento, surge, para aqueles, a responsabilidade solidaria, juntamente com o transgressor, de liquidar a pena pecuniaria, e isto, so por si, constituida razão bastante para que tivessemos de considerar, - quanto a eles - o proprietario e o industrial -, como sendo de natureza civil, tal responsabilidade.
Promana esta responsabilidade de uma obrigação de natureza semelhante aquela que deriva de facto de outrem, não baseada em culpa propria, mas em culpa alheia, fundada no risco, tal como a que a lei civil estabelece, por exemplo, para os patrões ou amos, relativamente aos prejuizos causados por criados de servir ou por quaisquer pessoas encarregadas de certos serviços ou comissões, hipotese contemplada pelo artigo 2380 do Codigo Civil.
E, e tão sintomatica e flagrante essa semelhança que, ressalvando o referido artigo 2380 o direito de regresso dos amos ou comitentes, contra os criados, o aludido paragrafo 1 do artigo 9 do Decreto-Lei n. 38273 ressalva, igualmente, o direito de regresso do proprietario ou possuidor do pinhal e o industrial, contra o transgressor - resineiro.
Não se venha argumentar com a circunstancia aberrante de uma obrigação, - a que resulta do pagamento da multa -, constituir, quanto a uns, uma sanção penal e, portanto uma obrigação de natureza criminal e, para outros, uma obrigação de natureza civil.
A anomalia justifica-se perfeitamente e, sem irmos mais longe, explica-a o proprio relatorio do Decreto-Lei n. 38630, neste trecho que reproduzimos textualmente:
"Contudo, publicado o Decreto-Lei n. 38273 e consideradas as reclamações apresentadas pelas actividades e organismos competentes, reconhece-se ser conveniente complementar e aperfeiçoar o regime promulgando, sobretudo no sentido de uma adaptação progressiva as normas estabelecidas, que alias se destinam menos a fiscalizar e punir do que a educar e convencer".
Muitas vezes, explica tal aberração, o interesse patrimonial do Estado na cobrança das multas e, em direito fiscal, verificam-se constantes desvios de identica natureza, criando-se responsabilidade civil de terceiros pelo seu pagamento, com base no risco.
Como bem salienta o excelentissimo magistrado do Ministerio Publico junto da Secção Criminal deste Supremo Tribunal, desvio semelhante resulta do direito criminal comum, ao prescrever-se a transmissão de responsabilidade pelo pagamento da multa aos herdeiros do condenado se em vida deste a sentença de condenação tiver passado em julgado - paragrafo 1 do artigo 122 do Codigo Penal -, excepção ao principio da intransmissibilidade das penas, fixado no artigo 123 desse diploma.
E, voltando ao direito civil deparamo-nos com os artigos 2014 e 2366 do Codigo Civil que consagram desvios da mesma especie, determinando a transmissão das obrigações do autor da herança aos seus herdeiros.
Em suma: em direito civil, direito criminal e direito fiscal positivos, existem preceitos legais que avigoram a solução juridica em que nos assentamos, para resolver o presente conflito de jurisprudencia.
Pelo exposto, os deste Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno, acordam em proferir o seguinte assento:
"E de natureza civil a responsabilidade imposta pelo paragrafo 1 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 38630, de 2 de Fevereiro de 1952, ao proprietario ou possuidor dos pinheiros e ao industrial a quem se destina a gema, pelo pagamento de multas por transgressões de que não sejam autores".
Não e devido imposto.


Lisboa, 17 de Maio de 1961

Barbosa Viana (Relator) - Mario Cardoso - Eduardo Coimbra
- F. Toscano Pessoa - Amorim Girão - Bravo Serra - Morais Cabral - Lopes Cardoso - Jose Avelino Moreira - Da Mesquita - Alfredo Jose da Fonseca - Amilcar Ribeiro - Pinto de Vasconcelos - Carlos Miranda - Sousa Monteiro.