Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32/14.1TBMTR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
DANO BIOLÓGICO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DA REVISTA; CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / INDEMNIZAÇÃO EM DINHEIRO.
Doutrina:
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 115.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 566.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 7793/09.8T2SNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-12-2017, PROCESSO N.º 589/13.4TBFLG.P1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-12-2017, PROCESSO N.º 390.12.2TBVPA.G1.S1;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1;
- DE 07-03-2019, PROCESSO N.º 2023.14.0T2AVR.P1.S1.
Sumário :
I - O dano resultante da incapacidade permanente (ainda que parcial), na medida em que representa uma diminuição somática e funcional do lesado, não pode deixar de ser considerado um dano patrimonial (futuro), tanto mais, que, em regra, essa «capitis diminutio» obriga a um maior esforço na realização de tarefas;

II - No que toca ao dano biológico, deve ser fixada indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente, ainda que, no imediato, a diminuição funcional não tenha reflexo no montante dos rendimentos auferidos pelo lesado e mesmo que o lesado não fique impossibilitado de continuar a exercer a sua profissão;

III - Não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização pelo dano futuro, tais danos devem calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer, e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exato valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no art. 566°, n.º 3, do C.C..

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório


1. AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 199.192,14, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora, em resultado de um acidente de viação ocorrido em 30.03.2012, no qual foram intervenientes o veículo de matricula ...-...-VL, conduzido pela autora, e o veículo de matrícula ...-CL-..., conduzido pelo seu proprietário CC, atribuindo ao condutor deste último veículo, segurado na ré, a culpa exclusiva na produção do acidente.

2. A ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente, os invocados danos e respetivos montantes.

3. Posteriormente, a autora requereu a ampliação do pedido, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe € 278.492,14, o que foi deferido (cf. despacho de fls. 430-431).

4. Na 1ª instância, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a ação, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 193.400,00, acrescida de juros de mora, contados desde a data da decisão até integral pagamento.

5. Desta decisão apelaram a autora e a ré, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão em que, julgando parcialmente procedente os recursos:

- Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 125.000,00, a título de dano patrimonial futuro/dano biológico, com referência à data da decisão da 1ª instância, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da decisão da 1ª instância e até efetivo e integral pagamento.

- Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 60.000,00, a título de danos não patrimoniais, tendo por referência a data da sentença de 1ª instância, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da decisão da 1ª instância e até efetivo e integral pagamento.


- No mais, confirmou a sentença recorrida.

6. Irresignada com o assim decidido, veio a ré interpor a presente revista dizendo em conclusão:

a) Para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, a afetação físico-psíquica de um indivíduo constitui um dano autónomo, que vem sendo designado como dano biológico.

b) Trata-se de um dano futuro, que se justifica pela diminuição ou a perda das capacidades funcionais de um indivíduo, donde podem resultar danos suscetíveis de avaliação pecuniária (vertente patrimonial do dano biológico), e/ou danos insuscetíveis de avaliação pecuniária (vertente não patrimonial do dano biológico).

c) A primeira das vertentes do dano biológico (a patrimonial) verifica-se sempre que, devido ao défice funcional do indivíduo, há previsibilidade de perda efetiva de remunerações no exercício da profissão habitual do lesado, ou é previsível uma restrição nas suas possibilidades de acesso a atividades profissionais ou económicas, com a consequente perda de oportunidades de incrementos pecuniários; a segunda das vertentes (a não patrimonial) reflete a acrescida penosidade e o esforço suplementar que o lesado passa a ter de suportar na sua vida pessoal e profissional, em resultado da incapacidade de que ficou afetado.

d) No que respeita aos danos futuros decorrentes do dano biológico que afeta a autora, vem provado que: ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 19 pontos, compatível com o exercício da sua profissão de enfermeira, que é exercida atualmente pela autora, embora com limitações na realização de atos que exijam esforços físicos maiores; necessita de ajuda de terceiros para as atividades da vida diária que impliquem esforços maiores; não mais pode trabalhar como modelo; deixou de dançar com regularidade; tem dores na anca direita e no joelho esquerdo, que a impossibilitam de fazer a sua vida com normalidade; apresenta uma sintomatologia ansiosa que se grava com a condução automóvel, praticando uma condução defensiva e humor de tonalidade subdepressiva; nasceu em 14-08-1990.

e) Acontece que o douto acórdão recorrido atribuiu à autora uma indemnização de € 60.000,00 a título de danos não patrimoniais, tendo atendido para o efeito a alguns danos futuros que a autora padecerá em função do seu défice funcional, a saber, a impossibilidade da autora continuar a ser modelo fotográfico; as dores na anca e no joelho que a impossibilitam de fazer a sua vida com normalidade; e a necessidade de ajuda de terceiros e de esforços acrescidos para certas atividades diárias.

f) É de aceitar o montante de € 60.000,00 fixado para compensação de todos os danos não patrimoniais, presentes e futuros, que a autora suportou e suportará ao longo da sua vida devido ao défice da sua integridade física e psíquica.

g) Porém, na fixação do quantum indemnizatório pelo dano biológico, deve ter-se em conta aqueles factos/danos objeto de indemnização por via do dano não patrimonial, o mesmo é dizer, que a vertente não patrimonial do dano biológico está já contemplada na indemnização atribuída por danos não patrimoniais, tal como o eventual dano patrimonial que eventualmente venha a ocorrer por impossibilidade da autora continuar a ser modelo fotográfico.

h) Com efeito, tendo esses danos sido contemplados no montante arbitrado a título de dano não patrimonial futuro, não é aceitável que sejam de novo atendidos e valorizados na fixação do quantum indemnizatório da vertente patrimonial do dano biológico, pois isso significaria uma duplicação no ressarcimento pelos mesmos danos.

i) Assim sendo, a única matéria de facto provada a atender para determinar o valor da indemnização pelo dano biológico é a seguinte: a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 19 pontos; esse défice funcional é compatível com o exercício da sua profissão de enfermeira; exerce atualmente a sua profissão de enfermeira, ainda que com limitações na realização de atos que exijam esforços físicos maiores; nasceu em 14.08.1990; a data da cura ocorreu em 12.11.2013.

j) Não existindo uma perda efetiva de rendimentos futuros em consequência do défice funcional, mas apenas uma necessidade de maior esforço no exercício da profissão habitual e das atividades diárias do lesado, o cálculo ou fixação do montante indemnizatório do dano biológico não deve ser feito de acordo com o princípio da teoria da diferença consagrado no artigo 566º, nº 2 do Código Civil, mas por recurso à equidade, de acordo com o estabelecido no artigo 566º, nº 3 daquele Código.

l) O STJ tem lançado mão de um conjunto de fatores que devem ser considerados na fixação do “quantum” indemnizatório pelo dano biológico que são: as circunstâncias concretas da situação do lesado, designadamente, o grau do défice funcional de que ficou a padecer e a sua repercussão em todos os atos da sua vida e ao longo desta; a esperança média de vida do lesado à data do seu nascimento; a remuneração a ter em conta para efeitos do cálculo da indemnização não é a auferida pelo lesado, como nas situações de perda efetiva de rendimentos, mas a sua remuneração média mensal nacional do nível profissional do lesado que vigorava à data da cura, de forma a assegurar a igualdade entre os cidadãos; o recurso a fórmulas matemáticas para determinação do capital passível de repor ao lesado os rendimentos perdidos, sem enriquecimento ilegítimo, ainda que com função meramente auxiliar e orientadora; a necessidade de uniformização mínima de critérios e de decisões quanto ao arbitramento de indemnizações fixadas com recurso à equidade, por imposição dos princípios gerais e constitucionais de aplicação uniforme do Direito e da igualdade entre os cidadãos.

m) Respeitando estes critérios, e tendo em conta os factos provados atendíveis (de acordo com o supra alegado e concluído) no presente caso para fixação da quantia indemnizatória pelo dano biológico, a situação fáctica que se apresenta perante este Supremo Tribunal é a seguinte: a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 19 pontos; esse défice funcional é compatível com o exercício da sua profissão de enfermeira; atualmente, a autora exerce a sua profissão de enfermeira, ainda que com limitações na realização de atos que exijam esforços físicos maiores; à data da cura, 12.11.2013, a autora tinha 23 anos; a remuneração média mensal dos trabalhadores por contra de outrem com nível de qualificação de profissionais qualificados, em 2013, data da cura, era de € 724,00; a esperança média de vida da autora à nascença era de 77,5 anos.

n) Apesar de não estarmos perante uma situação de perda efetiva de rendimentos futuros, a fórmula que vem sendo usada pela jurisprudência, ainda que a titulo meramente auxiliar, para alcançar um capital produtor de rendimento que substitua a perda pelo lesado e que se extinga no fim da sua vida provável, com redução de ¼ desse resultado, por antecipação do capital, pode ser um recurso orientador para determinação do valor indemnizatório máximo para o caso dos presentes autos. O resultado dessa operação ([724x12]x19%-[1/4]) é de € 67.473,18.

o) Para além desse valor máximo da indemnização, urge sobretudo atender às decisões que vêm sendo proferidas pelo STJ, de forma garantir o respeito dos princípios da igualdade entre os cidadãos, a proporcionalidade, da segurança jurídica e da uniformização na aplicação do Direito.

p) Tendo em conta a jurisprudência mais atual do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, os vários acórdãos melhor identificados e mencionados no corpo das alegações de recurso, que são comparáveis à situação destes autos, verifica-se que o douto acórdão recorrido não aplicou devidamente os fatores que devem ser tomados em consideração na fixação do “quantum” indemnizatório pelo dano biológico de acordo com o que vem sendo entendido e decidido por este STJ, tendo fixado uma indemnização manifestamente excessiva, desalinhada com o que vem sendo arbitrado por este Supremo Tribunal para casos similares.

q) Por tudo o exposto, a indemnização devida para ressarcimento do dano biológico que atinge a autora, não deve ser superior a € 50.000,00, valor que se considera equitativo e de acordo com o quadro jurisprudencial mais recente.

r) A douta sentença recorrida violou, por omissão de aplicação e por erro de interpretação, as normas previstas nos artigos 13º, nº 1 e 2 da CRP, e 8º, nº 3 e 566º, nº 3 do Código Civil.

Termos em que, deve o recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida que condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 125.000,00 a título de indemnização por dano patrimonial futuro/dano biológico, substituindo-a por outra que atribua à autora a quantia de € 50.000,00.

7. A autora, por sua vez, interpôs recurso subordinado, assim concluindo:

1ª - Os valores fixados pecam por defeito como referido está na Douta Sentença, a propósito dos danos futuros atribuídos.

2ª – Repetindo-nos, uma vez que não correspondem à justa medida das coisas, violando inequivocamente o principio da equidade. Na verdade,

3ª – Sendo a equidade uma forma de Justiça é também a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. Como já se disse,

4ª - O objetivo essencial do valor a fixar é proporcionar à lesada uma compensação ou benefício de ordem material, aliás a única possível, que lhe possibilite compensar os prejuízos sofridos e também desfrutar de alguns prazeres ou distrações da vida, mesmo de ordem espiritual, que atenuem de alguma forma a sua dor.

5ª - A indemnização tem em vista compensar o lesado das dores e desgostos sofridos, o que só será conseguido se a indemnização não for meramente simbólica.

6ª - A compensação por danos não patrimoniais para responder ao comando do artº 496º do CC e constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa viabilizando um lenitivo para os danos suportados e a suportar.

7ª – Ao enquadrar toda a matéria na parte do pedido formulado a título de danos futuros, ressalta que um dos anseios da A consiste em ver atribuído a título de danos futuros um quantum indemnizatório que a compense dos prejuízos sofridos.

8ª - Deve ainda ter-se em consideração, como é evidente, que as limitações às capacidades laborais da lesada não deixarão de ter reflexos negativos na respectiva carreira contributiva para a segurança social, repercutindo-se no valor da pensão de reforma a que venha a ter direito e que têm de acrescer ao dano futuro, fixando-se o montante total neste segmento em valor não inferior 197.904,00€.

9ª - Ao não serem devidamente sopesados os montantes atribuídos pelos danos reclamados, são infringidos, entre outros, os artigos 487º, 496º, 562º, 566º do CC.

10ª – Face ao que exposto fica, deverá ser atribuído à A. o valor global de 282.904,00€ (197.904,00€ + 85.000,00€).

11ª - Deve ainda ser aplicado o contido nos artigos 559º e 805º CC à quantia que se reclama, desde a constituição em mora até integral pagamento.

12ª - A razão de ser dos juros de mora, devidos nos termos do citado 805º, nº. 3 do CC, não é a justiça comutativa mas sim a equidade, pois que o legislador se mostrou sensível a este respeito, justificando que o mal da espera pelo recebimento da indemnização (ao menos a partir da citação) fique a cargo do lesante, muito em especial tratando-se de responsabilidade por facto ilícito.

8. Nas contra-alegações, pugnou-se pela alteração do acórdão, no sentido pugnado nas respectivas alegações de recurso.


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9. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[1]

Assim sendo, cumpre apreciar e decidir, se deve ser alterado o quantum indemnizatório relativo ao dano biológico, na vertente patrimonial, e aos danos não patrimoniais sofridos pela autora.


***


II – Fundamentação de facto


10. As instâncias deram como provado que:

1. Pelas 17.45 horas, do dia 30/03/2012, ao km 140,920, da E.N. …, nos limites do lugar de …, freguesia de …, desta comarca;

2. Ocorreu um embate, entre os veículos ligeiros de matrículas ...-CL-... e ...-...-VL.

3. O CL era conduzido pelo seu “proprietário” CC;

4. O VL, “propriedade” de DD, era conduzido pela A.

5. O CL seguia no sentido … – …, e o VL, em sentido contrário.

6. Em local onde existe uma curva de 90º, à direita, atento o sentido de marcha do CL;

7. E onde a via tem 6,60 metros de largura;

8. O CL circulava pela hemi-faixa esquerda da via, atento o seu sentido de marcha, a 5,50 metros da sua berma direita.

9. Tendo saído da curva a direito, invadindo a hemi-faixa esquerda, destinada ao trânsito dos veículos que circulavam em sentido contrário, onde nesse momento se encontrava o VL, embatendo-lhe e projetando-o a mais de 10 metros.

10. O piso da via era liso e estava seco;

11. Não havia fumo, nevoeiro ou obstáculo que impedisse a visibilidade.

12. Do embate resultaram ferimentos para a A.;

13. Que ficou encarcerada no VL, e teve de ser desencarcerada, durante quase uma hora.

14. Posteriormente, foi transportada ao Hospital … e após ao de … .

15. Foram-lhe diagnosticados politraumatismos, com traumatismo major abdominal, torácico e de membros, fratura do úmero direito, fratura da diáfise do fémur esquerdo (que foi objeto de encavilhamento), da rótula esquerda, da coluna D12, dos ramos isquiopúbicos à direita, da sacro, da asa ilíaca esquerda e de múltiplos arcos costais à esquerda.

16. Sofreu traumatismo torácico, com pneumotórax direito, contusão pulmonar direita e pneumopericárdico, insuficiência respiratória, corrigido com suporte ventilatório; fratura dos arcos costais; traumatismo abdominal fechado, laceração e contusão hepática; traumatismo pélvico, com fraturas de asas do ilíaco, fratura do sacro, fratura do ramo isquiopúbico direito; traumatismo dos membros com contusão cotovelo esquerdo e edema de partes moles, fraturas do úmero direito e fémur esquerdo, objeto de tração esquelética; traumatismo das partes moles com escoriações múltiplas dispersas e ferida cortocontusa da região ciliar, que foi suturada. [2]

17. A A. esteve internada 35 dias, 10 deles em coma induzido.[3]

18. Depois, fez tratamentos de fisioterapia e sujeitou-se a sessões de musculação nos membros afetados.

19. Foi também submetida a nova operação para lhe ser retirado o ferro introduzido na perna esquerda, e esteve internada três dias, de 26/09/2013 a 29/09/2013, no Hospital de …, … .

20. Em consequência do acidente, a A. apresenta as seguintes lesões/cicatrizes:

a) No crânio, a A. apresenta uma área de pelada, localizada na região occipital, terço médio, com 7 por 2 cm. de maiores dimensões;

b) Na face, apresenta tumefacção localizada no terço interno da sobrancelha esquerda, sem deformidade na superfície aparente;

c) No tórax, apresenta área cicatricial, hiperpigmentada, ligeiramente aderente a planos profundos, localizada na região axilar direita, com 4,5 por 4 cm. de maiores dimensões;

d) No membro superior direito, apresenta cicatriz, eupigmentada, vertical, ligeiramente aderente aos planos profundos, no braço esquerdo, rectangular, com 19 por 1 cm. de maiores dimensões; área cicatricial hipopigmentada, ligeiramente aderente a planos profundos, localizada no terço inferior da face posterior do braço; múltiplas áreas cicatriciais hipopigmentadas, localizadas na face posterior do antebraço, a maior das quais com 2,5 por 0,5 cm. de maiores dimensões; sem alteração da mobilidade articular do ombro, com diminuição da força muscular do ombro (grau 3 em 5); ligeira diminuição da força muscular do polegar direito; [4]

e) No membro inferior esquerdo, apresenta cicatriz em Y, localizada na face lateral da anca esquerda hiperpigmentada, quelóide, não aderente a planos profundos, com 15 por 2 cm. de maiores dimensões; cicatriz rectangular, hiperpigmentada, quelóide, localizada na face anterior do joelho, com 15 por 2 cm. de maiores dimensões; cicatriz, rectangular, hiperpigmentada, quelóide, não aderente a planos profundos, com 6 por 1 cm. de maiores dimensões, sem alterações da mobilidade da articulação coxo-femural e do joelho.[5]

21. Sofreu um dano estético permanente de grau 5, numa escala de 0 a 7, de gravidade crescente.

22. Padeceu de um défice funcional temporário total entre 30-03-2012 e 04-05-2012 e de 26-09-2013 a 29-09-2013 e de um défice funcional temporário parcial de 05-05-2012 a 25-09-2013 e de 30-09-2013 a 12-11-2013, sendo a repercussão temporária na atividade profissional de 593 dias.

23. Ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 19%, compatível com a atividade profissional de enfermeira, atualmente exercida pela autora, ainda que com limitações de atos que exijam esforços físicos maiores, como levantar ou virar doentes.[6]

23-A. A retribuição média mensal que a atividade profissional de enfermeira proporciona em termos nacionais ascende a cerca de € 900,00, com a previsão de aumento mediante a progressão na carreira.[7]

24. Necessita de ajuda de terceiros para as atividades da vida diária que impliquem esforços maiores.

25. Antes do acidente, trabalhava 2 horas por dia, como mulher de limpeza, a € 5,00 euros/hora;

26. Fazia fotos, passagens de modelos, filmes e videoclips, como modelo fotográfico, modelo de passerelle e atriz, para poder, com o dinheiro assim ganho, estudar.

27. Ganhava € 50,00, por sessão fotográfica, € 75,00, por passagem de modelos e uma quantia variável, por filme e vídeo-clip, nunca inferior a € 250,00.

28. Tinha já um acordo com a EE, de …, para, a partir de Abril de 2012, trabalhar regularmente, auferindo o ordenado de € 500,00/mês, 14 meses ao ano.

29. Devido ao acidente, não pôde concretizar essa intenção;

30. Nem mais pôde trabalhar como modelo.[8]

31. Nem pôde voltar a trabalhar como mulher de limpezas.

32. A A. deixou de dançar com regularidade.[9]

33. Perdeu o 3º ano do curso de enfermagem, que então frequentava.

34. No ano seguinte, retomou o curso de enfermagem, que viria a concluir.

35. A A. tem dores na anca direita e no joelho esquerdo que a impossibilitam de fazer a sua vida com normalidade.[10]

36. Sofreu um quantum doloris de grau 6, numa escala de 0 a 7, de gravidade crescente.

37. Sujeitou-se a acompanhamento e tratamento psicológico.

38. A A. apresenta uma sintomatologia ansiosa que se agrava com a condição automóvel, praticando uma condução defensiva. Apresenta humor de tonalidade subdepressiva.[11]

39. Encontra-se medicada para controlo de ansiedade e regularização do sono.[12]

40. As “marcas” físicas e psíquicas ficaram-lhe para sempre gravadas na mente, martirizando-a.

41. A A. nasceu em … .8.1990.

42. Mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 00….19, estava transferida para a R. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo CL.

43. A R. já assumiu, na totalidade, a responsabilidade do seu segurado no dito acidente.

44. A R. já pagou à A. a quantia de € 19.194,61, tendo sido € 3.994,61 para reembolso de despesas e € 15.200,00, a título de adiantamento por conta da indemnização total.


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11. Por sua vez, foi dada como não provada a seguinte factualidade:


1. A autora viu-se “obrigada” a requerer a aposentação antecipada (antes da idade mínima de reforma).

2. A autora foi obrigada a aposentar-se por força das circunstâncias, sequelas físicas supra descritas e limitações sofridas.

3. O acidente destruiu o relacionamento afetivo que a autora até então mantinha.

4. As sequelas supra descritas, em termos de repercussão na atividade profissional, são incompatíveis (com referência à data da consolidação das lesões) com o exercício da atividade profissional que a autora exercia à data do acidente, bem como de todas as outras na sua área de preparação técnico-profissional e acarretam a incapacidade total para o exercício da sua atividade profissional habitual, deixando de todo de poder trabalhar.

5. A autora sofre de depressão associada a deterioração negativas, secundária ao stress pós-traumático vivencial.

6. Dadas as sequelas físicas e psíquicas, a autora continua a sofrer graves limitações de desempenho e gratificação sexual, repercutindo-se de forma negativa na atividade sexual, sendo fixável no grau 3.

7. A parte do seu salário afeta as suas despesas não seria superior a 500,00€ (quinhentos euros), dispondo a mesma de um valor mensal líquido de cerca de 3.220,00€.

8 As lesões sofridas pela A. provocaram na mesma um estado sequelar que determina uma incapacidade permanente absoluta.

9. Sendo, em termos de repercussão na atividade profissional, incompatíveis com o exercício da atividade profissional que a autora exercia à data do acidente, bem como de todas as outras na sua área de preparação técnico-profissional, e face à sintomatologia nunca mais pode exercer a sua atividade profissional.

10. Cifra-se no montante de 600,00€ a perda do casaco, tipo Serra da Estrela, que envergava e ficou inutilizado.

11. A interveniente despendeu na sequência do acidente ajuizado (cf. recibo 16.04.05553 20160413 a titulo de DESPESAS JUDICIAIS Trib. Trabalho € 622,20).

12. As despesas reclamadas pela interveniente decorrem do âmbito da atividade da Interveniente, estão previstas no cálculo do prémio e como tal não são reembolsáveis.


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III – Fundamentação de direito

12. Do quantum indemnizatório

De harmonia com o disposto no art. 483º, n.º 1, do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

Deste dispositivo legal retira-se que a responsabilidade civil extracontratual pressupõe um facto voluntário e ilícito, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Na presente revista não é questionada a verificação dos aludidos pressupostos, estando apenas em causa a fixação do montante indemnizatório, nos termos suscitados nas conclusões de ambos os recursos.

Vejamos, pois.

Estabelece-se no art. 564º, do Código Civil que: o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (nº1); na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (nº2).

Por sua vez, a obrigação de indemnizar, a cargo do causador do dano, deve reconstituir a situação que existiria "se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" - art. 562º, do Código Civil.

Não sendo isso possível ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – art. 566º, nº1, do Código Civil. Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará segundo a equidade, conforme preceitua o nº3, do art. 566º, do Código Civil.

No que respeita à reparação do dano na responsabilidade civil extracontratual resultante da circulação de veículos automóveis, como sucede in casu, importa ainda ter presente que o critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações é fixado pelo Código Civil e que os critérios e valores constantes da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, muito embora possam ser ponderados pelo julgador, têm exclusivamente em vista a elaboração de proposta pela empresa seguradora, visando a regularização extrajudicial de sinistros.


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12.1. Sendo este, em linhas gerais, o quadro normativo a considerar, analisemos, em primeiro lugar, a questão atinente ao dano decorrente do défice funcional permanente de que a autora ficou afetada em consequência do acidente descrito nos autos.


O acórdão recorrido, reduzindo o montante arbitrado na 1ª instância, fixou a indemnização pelo dano biológico e pela perda de capacidade de ganho em € 125.000,00.

Ambas as recorrentes se insurgem contra esta decisão.

A autora pretende que se fixe esta indemnização em € 197.904,00.

A ré, por sua vez, sustenta que a indemnização devida para ressarcimento do dano biológico não deve ser superior a € 50.000,00 e que o acórdão recorrido atendeu a alguns danos futuros de que a autora padecerá em função do seu défice funcional, concretamente, a impossibilidade de continuar a ser modelo fotográfico, as dores na anca e no joelho que a impossibilitam de fazer a sua vida com normalidade e a necessidade de ajuda de terceiros e de esforços acrescidos para certas atividades diárias, pelo que os mesmos não podem ser duplamente valorados.

Vejamos, pois.

Não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, deve a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exato valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no art. 566°, n.º 3, do C.C.

Foi, precisamente, com base na equidade que o Tribunal da Relação fixou o montante indemnizatório, aqui em causa.


Ora, como o Supremo Tribunal da Justiça já observou em diversas ocasiões, “o julgamento de acordo com a equidade envolve um juízo de justiça concreta e não um juízo de justiça normativa, razão por que a determinação do quantum indemnizatório não traduz, em rigor, a resolução de uma questão de direito.


(…)


Neste contexto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos.


A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”.[13]


Pois bem.

Na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, maxime do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional ou dano biológico, em que se traduz a incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; por isso mesmo, não deve ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução.[14]

Como, a este respeito, se referiu no ac. do STJ de 26.1.2017 (proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização.”.

Em suma:

Para além de danos de natureza não patrimonial, a afetação da integridade físico-psíquica de que o lesado fique a padecer é suscetível de gerar danos patrimoniais, caso em que a indemnização se destina a compensar não só a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afetação, no período de vida expetável, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais e/ou de índole pessoal ou dos custos de maior onerosidade com o desempenho dessas atividades.

 Neste âmbito, para determinar a indemnização pelos danos futuros, utilizam-se habitualmente os seguintes critérios orientadores:

- A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado;

- As tabelas financeiras ou outras fórmulas matemáticas, a que, por vezes, se recorre, têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;

- Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia;

Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (que, em Portugal, segundo os últimos dados do INE, tratando-se de uma pessoa do sexo feminino, como in casu, se situa nos 83 anos), e ao período de vida ativa (em regra, até aos 70 anos).

Tendo presente estes parâmetros, para a decisão da questão em análise, importa considerar:

- O défice funcional permanente de 19%, que, muito embora não tenha impossibilitado a autora de exercer a sua atividade profissional de enfermeira, comporta limitações de atos que exijam esforços físicos maiores e a impede de se dedicar a atividades que anteriormente exercia (cf. designadamente, os pontos 22, 24, 26, 27, 28, 29 e 30, dos factos provados);

- A idade da autora (tinha 21 anos, à data do acidente) e os demais vectores acima referidos para projetar o impacto que a sua limitação funcional terá no futuro (cf. designadamente, os pontos 23-A, 24, 27, 28, dos factos provados);

- A circunstância de o dano funcional de que ficou afetada poder comprometer eventuais promoções na sua carreira e/ou outras opções profissionais;

- A redução do capital assim obtido, em resultado da sua entrega antecipada, para que o valor encontrado corresponda a um capital (produtor de rendimento) que tendencialmente se extinga no final do período provável de vida deste.

Ter-se-á ainda em conta que:

Ao contrário do que sustenta a ré/recorrente, a Relação, no acórdão sob impugnação, ao fixar a compensação por danos não patrimoniais, atendeu somente “às lesões de interesses imateriais (isto é que não atingem de forma direta ou imediata o património do lesado)”, por isso mesmo, insusceptíveis de avaliação pecuniária (as dores físicas, o sofrimento moral, o desgosto por não poder trabalhar como modelo, os complexos de ordem estética).

Nesta conformidade, não se reconhece qualquer razão à ré/recorrente quando afirma que certos danos (futuros) de que a autora padecerá em função do seu défice funcional não podem, na vertente patrimonial, ser valorados.

Assim sendo, atendendo à repercussão danosa das lesões sofridas pela autora, no plano estritamente material e económico, afigura-se-nos mais acertado fixar o montante indemnizatório de € 90.000,00, o qual se mostra consentâneo com os padrões jurisprudenciais habitualmente utilizados em casos que podem apresentar alguma similitude com o dos autos.[15]


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12.2. A par da ressarcibilidade dos danos patrimoniais, na fixação da indemnização deve, como se sabe, atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, n.º 1, do CC).

O seu montante será fixado equitativamente pelo tribunal tendo em conta as circunstâncias referidas no art. 494º, do CC (art. 496º, n.º 3, do CC), ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjetivismo, os padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência.

Importa, essencialmente, garantir que a compensação por danos não patrimoniais, para responder atualísticamente ao comando do artigo 496º, do CC e constituir uma efetiva possibilidade compensatória, seja de forma a viabilizar um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.


Como afirma Mota Pinto
[16], os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis: não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano e compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um "preço de dor" ou um "preço de sangue", mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.

Posto isto.

O acórdão recorrido fixou a compensação por danos não patrimoniais em € 60.000,00.

A autora pugna pela atribuição de € 85.000,00, enquanto que a ré se conforma com o valor arbitrado pela Relação.

Ora, no caso em análise, com particular relevo para a decisão desta questão, há que ter em consideração as intervenções cirúrgicas a que a autora foi submetida, os períodos de internamento, os tratamentos a que foi sujeita, o quantum doloris e o dano estético, as repercussões psicológicas do acidente. De igual modo, é de ponderar a sua idade à data do sinistro, o natural desgosto por ter interrompido a frequência do 3º ano do curso de enfermagem e a prática de determinadas actividades, bem como o esforço acrescido que, ao nível da sua vida pessoal, terá de desenvolver para executar as tarefas diárias, agravada pela necessidade de, em algumas situações, ter que recorrer à ajuda de terceiras pessoas (cf. pontos 12, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 30, 32, 33, 35 a 40, dos factos provados).

Neste contexto, não vemos razões para divergir do montante fixado pela Relação, que se tem por adequado e equitativo.


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14. Dos juros de mora

O acórdão recorrido fixou os montantes indemnizatórios reportando-se à data da sentença proferida na 1ª instância e, nessa medida, condenou a ré a pagar juros de mora sobre as referidas quantias a partir daquela mesma data.

A autora, porém, insurge-se contra esta decisão, sustentando que os juros de mora são devidos desde a constituição em mora, ou pelo menos, desde a citação.

Quid juris?


Nas obrigações pecuniárias a indemnização (pela mora) corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora – art. 806º-1, do CC.

Porém, sendo o crédito ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, exceto se a falta de liquidez for imputável ao devedor – n.º 3 do art. 805º, do CC.

É o que sucede na presente ação em que está em causa o apuramento da responsabilidade pela produção dos danos e a fixação do quantum indemnizatório.

Consequentemente, nem o crédito é líquido, nem a falta de liquidez é de imputar à ré.

Assim, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, em regra, o devedor constitui-se em mora desde a citação – art. 805º, n.º 3, do CC.

Deste modo, ao contrário do que pretende a recorrente, os juros – em princípio – seriam (apenas) devidos desde a citação, nos termos previstos no art. 805º, nº3, do CC.

E dissemos, em princípio, porque, no caso sub judice, a indemnização foi objeto de cálculo atualizado à data da sentença proferida na 1ª instância.

Neste contexto, decorrendo – expressamente - do acórdão recorrido que o julgador atualizou os montantes indemnizatórios por referência à data da prolação da sentença na 1ª instância, é de manter a condenação em juros de mora desde essa data, e não desde a citação (cf., a este respeito, o acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº 4/02, in D.R. I-A de 27/6/02 que consagrou doutrina neste sentido).


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IV – Decisão

15. Nestes termos, negando provimento ao recurso da autora e concedendo parcial provimento ao recurso da ré, acorda-se em:

- Condenar a ré a pagar à autora, a título de indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, a quantia de € 90.000,00 (noventa mil euros).

- Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

As custas da ação, na parte alterada, ficam a cargo das partes, na proporção dos respetivos decaimentos.

A autora suportará as custas do recurso por si interposto, sendo as do recurso da ré a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento.


Lisboa, 10/12/2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

__________________

[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[3] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[4] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[5] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[6] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[7] Aditado pela Relação.
[8] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[9] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[10] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[11] Redação introduzida pela Relação, no âmbito da reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
[12]
[13] Cf. o ac. STJ de 14.12.2017, proc. nº 589/13.4TBFLG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[14] cf., neste sentido, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 28/01/2016, proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, o ac. do STJ de 4/06/2015, proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1, bem como os acórdãos deste mesmo Tribunal ali mencionados, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[15] Cf., por exemplo, os acórdãos do STJ de 18.10.2018, proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1 e de 7.3.2019, proc. 2023.14.0T2AVR.P1.S1 e o acórdão por nós relatado datado de 20.12.2017, proc. nº 390.12.2TBVPA.G1.S1.
[16] Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 115.