Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048231
Nº Convencional: JSTJ00029705
Relator: SOUSA GUEDES
Descritores: BURLA AGRAVADA
FALSIFICAÇÃO
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
CONSTITUCIONALIDADE
CRIME CONTINUADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
SENTENÇA
MOTIVAÇÃO
Nº do Documento: SJ199602290482313
Data do Acordão: 02/29/1996
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CONST89 ARTIGO 29 N5.
CPP87 ARTIGO 374 N2.
CP82 ARTIGO 30 N1 N2 ARTIGO 48 N2 ARTIGO 228 N1 B ARTIGO 313 ARTIGO 314 C.
DL 118/82 DE 1982/04/19 ARTIGO 20.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC42509 DE 1992/04/23.
ACÓRDÃO STJ PROC45817 DE 1994/01/12.
ACÓRDÃO STJ PROC47520 DE 1995/07/06.
ASSENTO STJ DE 1992/02/19 IN BMJ N414 PAG573.
Sumário : I - Enquanto o benefício ilegítimo requerido pelo artigo 228, n. 1, alínea b), do C.P. de 1982, pode revestir diversas naturezas, o enriquecimento ilegítimo pressuposto pelo artigo 331 do mesmo diploma legal existe quando se traduz numa entrada patrimonial indevida na esfera patrimonial do beneficiário, à custa do sujeito passivo.
II - O facto de o Colectivo não considerar provado (por dúvidas) que o arguido tivesse conseguido o seu objectivo de obter um enriquecimento ilegítimo para terceiro não exclui a sua (provada) intenção de alcançar um benefício ilegítimo - e isso basta para se julgar preenchido o ilícito típico do artigo 228 do C.P. de 1982 - quando subscreveu, mandou subscrever ou visou documentos elaborados por sua decisão que não correspondiam à realidade dos factos que pretendiam certificar.
III - A aplicação do regime do concurso real de infracções aos crimes de burla agravada e de falsificação, fundada na aplicação dos artigos 228, n. 1, alínea b) e 313, n. 1, do C.P. de 1982, não viola o preceito do artigo 29, n. 5 da Constituição.
IV - O bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico protegido pela punição da falsificação são diversos e autónomos entre si, pelo que, quando a conduta do agente preenche as previsões dos dois ilícitos penais, estaremos perante crimes distintos, a punir em concurso real.
V - Se o circunstancialismo envolvente dos crimes permaneceu no tempo a motivar a conduta do agente e a propiciar as subsequentes, verifica-se a facilidade com que - através do ardil de documentos falsificados - se obtinham financiamentos indevidos, torneando as leis em vigor, emergindo assim, como consideravelmente diminuida a culpa do agente e, com isso, a justificar a continuação criminosa.
VI - O artigo 374, n. 2, do C.P.P. não exige que o tribunal distinga, em princípio, entre a prova que serviu para formar a convicção positiva e a negativa, sendo que, muitas vezes, a convicção negativa resulta da absoluta falta de provas e, outras vezes, de que a positiva prejudica irremediavelmente a negativa.
VII - Demonstrado que a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior aos factos e as circunstâncias destes (aliás, ocorridos há mais de 10 anos), a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as exigências da reprovação e prevenção, a suspensão da execução da pena imposta - 3 anos de prisão e 20 dias de multa - não viola o artigo 48 n. 2 do C.P.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. No Tribunal de Círculo de Alcobaça responderam, mediante acusação do Ministério Público, os arguidos
- A,
- B,
- C,
- D,
- E,
- F,
- G e
- H, todos com os sinais dos autos, sob a imputação de haverem praticado, o A - 9 crimes de falsificação previsto e punido pelo artigo 228, ns. 1 - alínea a) e 3 do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante designados sem menção do diploma a que pertencem) e 10 crimes de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313, n. 1 e 314, alíneas a) e c), as arguidas B e C - 6 crimes de falsificação e 6 crimes de burla agravada das espécies referidas, os arguidos D, E, F e H - 1 crime de falsificação da espécie referida e 1 crime de burla agravada dos artigos 313 e 314, alínea c), e o arguido G - 2 crimes de falsificação e 2 crimes de burla agravada dos tipos acabados de citar.
O Colectivo decidiu assim a matéria de facto:
Encontram-se provados os seguintes factos:
O primeiro arguido foi Presidente da Câmara Municipal da Nazaré desde 1983 a 3 de Janeiro de 1994 e os restantes arguidos eram funcionários da mesma Câmara à data dos factos.
Com o intuito de obter maiores comparticipações da Administração Central para a execução de obras na autarquia a que presidia, o primeiro arguido actuou do modo que se passa a descrever, se bem que com a intervenção dos restantes arguidos nos respectivos actos:
1 - NOVO EDIFÍCIO DOS PAÇOS DO CONCELHO:
Pela Resolução do Concelho de Ministros n. 41/85 de 22 de Agosto de 1985, foi concedido auxilio financeiro ao
Município da Nazaré para a construção de um novo edifício dos Paços do Concelho, tendo-lhe sido processado 20000000 escudos: 10000000 escudos no ano de
1985 e 10000000 escudos no ano de 1986: posteriormente e ainda no ano de 1986 foi-lhe processada a quantia de 3298000 e autorizado o processamento de metade de
6702000 escudos.
Perante a solicitação da Direcção Geral da Administração Autárquica, no sentido de lhe serem enviados os elementos comprovadores das verbas já gastas, a Câmara Municipal da Nazaré remeteu um ofício em 5 de Novembro de 1986, subscrito pelo primeiro arguido, acompanhado de 24 autos de medição constantes da relação de folha 37, relativos às obras em apreço, no montante de 10042661 escudos e 90 centavos, e considerando que a obra tinha sido executada por administração directa.
Na verdade a obra em questão havia sido realizada por administração directa e empreitada, adjudicada à firma
Pedros, Limitada. Porém a obra a que se referem os autos de folhas 63 a 106 enviados à D.G.A.A., havia sido efectuada por empreitada da referida firma, num total de 5148255 escudos e 50 centavos, enquanto os enviados totalizavam 6665173 escudos e 90 centavos, sem que deles constasse qualquer aumento de quantidades.
Esta actuação foi decidida pelo primeiro arguido, que remeteu os autos à D.G.A.A., tendo dado ordem às segunda e terceira arguidas para subscreverem os mesmos, determinando aquela Direcção Geral a justificar tais verbas e a creditar parte delas em benefício da
Câmara Municipal da Nazaré.
2 - ESTRADA MUNICIPAL N. 604 SÍTIO DA NAZARÉ - PAREDES:
A realização desta obra foi aprovada pelo Despacho
Conjunto n. 5/81 de 24 de Abril de 1981 em cooperação entre a Câmara Municipal da Nazaré e a de Alcobaça assumindo a Administração Central o encargo de participar em 37,2 porcento do custo total previsto.
Quando o primeiro arguido iniciou as suas funções como
Presidente da Câmara Municipal da Nazaré, já esta edilidade vinha assumindo a responsabilidade pela execução da totalidade da obra, tendo já aberto o respectivo concurso público.
Por força deste concurso público, veio a obra a ser adjudicada ao empreiteiro I em 23 de Fevereiro de 1983 por 22483785 escudos.
O Estado participou para esta obra em 12719899 escudos.
Da obra em questão, os autos de medição contratuais
(folhas 111 e seguintes) ascendem a 19030435 escudos, e as revisões de preços (folhas 226 e seguintes) a 4268503 escudos, num tal de 23298938 escudos.
Porém os autos de medição enviados à C.C.R. de Lisboa e
Vale do Tejo referiam terem sido todos os trabalhos efectuados por administração directa, constando entre eles os autos ns. 13/84, 21/84, 30/84, 34/84 e 39/85 (folhas 187, 191, 195, 199 e 217, respectivamente), num total de 6797700 escudos, que respeitavam a trabalhos a mais; o auto n. 39/86 (folha 218), no valor de 24885 escudos, que respeitava a trabalhos a mais; e o auto de medição n. 129/86 (folha 224), no valor de 4467900 escudos, que respeitava a obra nova.
Todas estas situações foram alteradas por ordem do
G.A.T., com prévio acordo do primeiro arguido, que posteriormente pôs o seu visto nos autos, tendo ordenado que fossem subscritos pelos terceira e quinto arguidos.
A sua elaboração teve a finalidade de induzir em erro a Administração Central e a comparticipar aquelas despesas.
3 - ATERRO SANITÁRIO:
O Estado assumiu, de acordo com o Despacho Conjunto n. 143/81, publicado no D.R. II série de 15 de Dezembro de 1981, o encargo de participar com 43,9 porcento do custo total da obra ora em apreço, a qual foi prevista para 40000000 escudos.
Por despacho de 19 de Junho de 1987 pelo Secretário de
Estado da Administração Local foi fixado o prazo máximo de execução desta obra até 31 de Setembro de 1987.
Esta obra desdobrou-se em três fases, tendo a terceira fase sido adjudicada em 2 de Fevereiro de 1987 à
Carpintaria e Serração Mecânica da Benedita, Limitada, por concurso limitado.
Relativamente à mesma, existe na Câmara Municipal da
Nazaré o auto de medição n. 11/88 (folhas 267 e seguintes), referente a trabalhos a mais efectuados pelo empreiteiro citado, no montante de 600774 escudos.
Porém, com a finalidade de se obter a comparticipação do Estado para estes trabalhos, foi elaborado outro auto de medição, com o n. 123/87 e com a data de 1 de
Dezembro de 1987 (folhas 262 e seguintes) donde consta que os trabalhos referidos haviam sido executados por administração directa.
Remetido tal auto à C.C.R. de Lisboa e Vale do Tejo, veio a Administração Central a ser determinada por ele a comparticipar também aqueles trabalhos em 43,9 porcento, convencida de que o mesmo era verdadeiro.
O referido auto foi alterado e elaborado pela segunda arguida, por ordem do G.A.T., com o acordo do primeiro arguido, que posteriormente também lhe apôs o seu visto.
4 - SISTEMA INTEGRADO DE TRATAMENTO DE ÁGUAS RESIDUAIS
DE ALCOBAÇA E NAZARÉ:
Por despacho publicado na II série do D.R. de 21 de
Dezembro de 1983, a Administração Central assumiu o encargo de comparticipar com 50 porcento do custo total da obra em apreço.
Os trabalhos contratuais atingiram, de acordo com folhas 570 e 571, o montante de 40559915 escudos e 50 centavos sem I.V.A..
A participação do Estado foi de 23682614 escudos.
Este montante considerou o auto n. 95/84, no valor de
402191 escudos e 50 centavos (folhas 276, 293 e 294), que diz respeito a uma obra nova realizada pelo empreiteiro e não por administração directa, e os autos de medição ns. 81/84, 17/85, 25/85, 43/85, 54/85,
55/85, 56/85, 64/85, 4/87, 47/85, 48/85 e 55/86 (folhas
275 e 277 e seguintes), que se referem a trabalhos a mais executados pelo empreiteiro, e não trabalhos contratuais ou trabalhos por administração directa.
Tais autos foram elaborados pelos segunda, terceira e quarto arguidos, por ordem expressa do G.A.T., mediante acordo do primeiro arguido, que posteriormente os visou, e remetidos à C.C.R.L.V.T., assim determinando a Administração Central a conceder uma participação superior à devida.
5 - RENOVAÇÃO DA REDE DE ÁGUAS DE VALADO DE FRADES:
Em 19 de Março de 1985 a Câmara Municipal da Nazaré solicitou o financiamento da obra em referência, no montante de 35000000 escudos.
Por decisão da Comissão das Comunidades Europeias de 10 de Abril de 1986, foi concedida a contribuição do FEDER de 17500000 escudos, e fixado o prazo de execução das obras entre Dezembro de 1985 e Dezembro de 1986.
O anúncio do concurso foi feito em 26 de Novembro de
1986 e a adjudicação ocorreu em 16 de Fevereiro de 1987
à empresa Prediobra por 27119390 escudos.
Porém em 18 de Setembro de 1986 foram remetidos pela autarquia, através da C.C.R.L.V.T., os autos de medição ns. 6/86 e 7/86, no montante de 3416786 escudos e
10957933 escudos, respectivamente, a fim de serem pagos, e deles constando que os trabalhos haviam sido efectuados por administração directa.
Em relação a estes autos o FEDER suportou a despesa de
13125000 escudos.
Tais autos de medição foram elaborados pela segunda arguida, por ordem do G.A.T., com acordo do primeiro arguido, que posteriormente os subscreveu, tendo ordenado que os terceira e sexto arguidos os subscrevessem.
O envio dos referidos autos teve como fim a obtenção de um benefício ilegítimo para a autarquia da Nazaré.
6 - REFORÇO DO ABASTECIMENTO DE ÁGUA À NAZARÉ:
Em 19 de Março de 1985 a Câmara Municipal da Nazaré pediu às instâncias comunitárias o financiamento desta obra, no montante de 132000000 escudos.
Por decisão de 10 de Abril de 1986 a Comissão das
Comunidades Europeias concedeu uma contribuição de
66000000 escudos.
No pedido de financiamento constavam, entre outras, a obra do Reforço da Conduta Adutora da Paliteira da
Nazaré e a Distribuição de Água ao Rio Novo.
Relativamente à primeira a Câmara Municipal da Nazaré enviou à C.C.R.L.V.T. os autos de medição ns. 1 a 5 de
1985, no valor de 20019714 escudos, fazendo constar dos mesmos que os trabalhos haviam sido realizados por administração directa.
Acontece contudo que esta obra já havia sido realizada em 1981, por empreitada adjudicada à firma Ortécnica em
9 de Julho de 1981 por 11959830 escudos, tendo os autos de medição então elaborados servido para elaborar também os atrás referidos, com valores actualizados.
Remetidos à C.C.R.L.V.T., tinham o fim de conseguir para a Câmara Municipal da Nazaré um benefício ilegítimo e uma comparticipação ilegítima.
Esta elaboração foi efectuada pela segunda arguida, por ordem do G.A.T. e prévio acordo do primeiro arguido, que posteriormente os subscreveu e ordenou que os terceira e sétimo arguidos os subscrevessem.
Relativamente à obra de Distribuição de Água ao Rio
Novo, a Câmara Municipal da Nazaré enviou C.C.R.L.V.T. os autos de medição ns. 22, 23 e 24 de 1985, no total de 1822781 escudos, deles fazendo constar que os trabalhos haviam sido realizados por administração directa.
A elaboração dos referidos autos, levada a efeito pela segunda arguida, por ordem do G.A.T. com o acordo do primeiro arguido, teve por base uns autos de medição de obra executada pela Cooperativa de Habitação Económica
"O Lar da Nazaré" no âmbito do processo de loteamento n. 91/82, existentes na Câmara, e que, por esse motivo, foram por engano considerados. Com efeito a referida obra, embora executada pela Cooperativa, obedecia a um projecto elaborado pelo G.A.T. que se encontrava arquivado na Câmara e como esta havia também participado na parte inicial daquela obra, por lapso, lançou mão dos autos referentes apenas a trabalhos executados por aquela cooperativa.
Os autos em referência, elaborados da maneira supra referida, foram também subscritos pelos terceira e sétimo arguidos.
7 - EMPRÉSTIMO CONCEDIDO PELA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS
AO ABRIGO DA LINHA DE CRÉDITO KFW:
A Câmara Municipal da Nazaré solicitou, ao abrigo desta linha de crédito um empréstimo de 64145000 escudos para financiamento de diversas obras, tendo a conclusão do contrato ocorrido em 30 de Abril de 1987.
A Câmara, através do primeiro arguido e por ofício por si subscrito, aceitou todas as cláusulas propostas, nomeadamente a 15.4, que refere "o montante do empréstimo concedido poderá ser revisto por forma a não existirem duplos financiamentos".
De entre as oito obras objecto do financiamento, figurou a Construção do Colector para o Esgoto
Doméstico das zonas de Vale Paraíso, Calhau e Areal, que já havia sido comparticipada em 50 porcento pela Administração Central, tendo sido atribuído um crédito a mais à Câmara no valor de 5015794 escudos e 20 centavos.
8 - FINANCIAMENTO CONCEDIDO PELO EX-FUNDO ESPECIAL DE
TRANSPORTES TERRESTRES:
Pelo despacho n. 216/85 do Ministério do Equipamento
Social foi estabelecida a favor da Câmara Municipal da
Nazaré a comparticipação de 12000000 escudos para o projecto relativo ao ordenamento do trânsito naquela vila.
No âmbito deste projecto veio a ser financiada uma obra, tendo sido paga pelo Estado, em 1985 e 1986, a quantia 4816343 escudos. O primeiro arguido procedeu ao envio, entre outros de muito valor, de dois autos de medição, no valor total de 16933160 escudos, relativos a obras de beneficiação efectuadas por administração directa, nas Avenidas ... e ... A reparação de tais avenidas havia sido efectuada pela
Tecnopul e paga com as areias cedidas pela Direcção
Geral de Portos, sem qualquer encargo para o município.
Foi com base nos autos então elaborados que foram elaborados os dois autos de medição referidos.
Em função destes dois autos recebeu a Câmara Municipal da Nazaré a quantia de 6841000 escudos.
Os autos em referência foram elaborados por ordem do primeiro arguido, que posteriormente neles apôs o seu
"visto" e ordenou que o oitavo arguido igualmente os subscrevesse.
Teve o arguido como fim determinar a Administração
Central a comparticipar com a referida quantia, fazendo-a convencer de que aqueles autos eram verdadeiros.
9 - CONSTRUÇÃO DO POSTO DE TURISMO DA NAZARÉ:
Esta obra foi realizada em 1985, mas nunca esteve incluída no plano de actividades da Câmara Municipal da
Nazaré, nunca foi a concurso nem nunca teve caderno de encargos.
Foi o primeiro arguido quem, verbalmente, solicitou à firma Fialho & Paulo Limitada, para que procedesse às obras de construção do Posto de turismo, as quais seriam pagas com recurso à areia a extrair das obras do
Porto de Abrigo da Nazaré.
Efectuada a obra, importou a mesma em 2237793 escudos.
Como não foi possível proceder ao levantamento das areias para pagamento dos trabalhos, o primeiro arguido ordenou que tal pagamento se efectuasse com cimento existente nas instalações da Câmara Municipal e a ela pertencente, no valor de 718184 escudos.
Para a parte restante, ordenou o primeiro arguido à firma Fialho & Paulo, que se encontrava a efectuar outros trabalhos para a autarquia, que aumentasse os valores desses trabalhos, a fim de se pagar dos custos de construção da obra em apreço.
Assim, mediante indicações para o efeito fornecidas pelo primeiro arguido, aquela firma indicou, a fim de serem levadas em conta nos respectivos autos de medição, as seguintes quantias:
- nas obras dos Balneários da Praia do Sul, 957419 escudos (resultantes de diferenças de medição, de trabalho);
- nas obras de uma Passagem Desnivelada 562190 escudos
(inscritos como se trabalhos a mais se tratassem).
O primeiro arguido agiu com a intenção de beneficiar a referida firma que, de outra forma, não poderia receber tais importâncias por não ter sido a autarquia a mandar executar a obra.
Ficou contudo por pagar a quantia de 468446 escudos.
Os arguidos E, F, G e H, agiram determinados por uma ordem hierarquicamente superior, convictos de que apunham a sua assinatura em documentos legalmente elaborados e desconhecendo do seu destino.
O arguido A agiu livre e conscientemente, com a intenção de alcançar para a autarquia da Nazaré os benefícios atrás descritos.
As arguidas B e C e o arguido D, agiram determinadas por ordens do G.A.T. e do Presidente da Câmara da Nazaré.
O G.A.T. de Caldas da Rainha, como gabinete de apoio técnico, dependente da C.C.R., tinha a seu cargo o acompanhamento e supervisão dos documentos para as candidaturas a financiamentos. Reunia mensalmente com as Câmaras e representantes das mesmas a fim de lhes conceder directivas e orientações naquela matéria. Numa dessas reuniões foi avançado pelos Presidentes das
Câmaras presentes que para poderem obter na totalidade os custos das obras, transformariam os autos de trabalhos a mais em autos de obra por administração directa.
Os quatro primeiros arguidos confessaram parcialmente os factos, mas com relevância para a descoberta da verdade. E os restantes arguidos confessaram integralmente os factos que em relação a si resultaram provados.
Provou-se ainda em relação ao primeiro arguido, A, que o mesmo enquanto autarca agiu em benefício da população da Nazaré, colocando o município da Nazaré entre os seis primeiros municípios mais desenvolvidos do Distrito de Leiria. Foi um Presidente interessado e dinâmico, mas nas relações intra funcionais actuou sempre com autoritarismo.
Quando confrontado com a desconformidade dos documentos supra descritos pela Inspecção Geral de Finanças, tentou regularizá-los, tendo sido posteriormente considerados justificados os pagamentos feitos pelo
FEDER no âmbito do Reforço do Abastecimento de Água à
Nazaré e Remodelação da Rede de Água de Valado Frades.
Foi um dos fundadores da Associação de Municípios do
Oeste, tendo desempenhado as funções de Presidente do
Conselho de Administração da mesma.
Tem tido intervenções na Associação Nacional dos
Municípios, merecendo o respeito e apreço dos seus participantes.
A arguida B, actualmente a exercer funções na Câmara Municipal de Alcobaça, é tida como uma funcionária impoluta e cumpridora, merecendo o maior respeito funcional e social.
A arguida C, actualmente desvinculada da Câmara Municipal da Nazaré, entrou para esta em Junho de 1983, como consultora para as obras particulares, no regime de "part-time".
Depois de passar a exercer aquelas funções a tempo inteiro, em Abril de 1986 passou a assegurar as funções de chefe de divisão, tendo a seu cargo a chefia técnica de obras públicas e particulares, oficinas, trânsito e toda a parte operacional da Câmara. As decisões sobre as obras a realizar, adjudicação e financiamento eram-lhe alheias. Os documentos e autos que assinou fê-lo na sua qualidade de técnica e chefe de divisão após orientações recebidas pelo G.A.T. e ordens do
Presidente da Câmara.
Enquanto exerceu funções na Câmara Municipal da Nazaré foi sempre respeitada nos serviços que chefiava.
Mostrou-se sempre zelosa, disponível, cumpridora e competente.
O arguido D foi colocado na Câmara
Municipal da Nazaré em Agosto de 1984, em comissão de serviço, como chefe dos serviços técnicos. Os autos que assinou fê-lo por orientação recebida do G.A.T. e ordem do Presidente da Câmara.
Desconhecia os contratos de financiamento de obras, proveniência e destino desses financiamentos.
Os restantes arguidos foram sempre funcionários cumpridores e honestos, actuando sempre em conformidade com as ordens que superiormente recebiam.
O tribunal fundou a sua convicção nos documentos juntos aos autos; nas declarações dos arguidos; e nos depoimentos das testemunhas J sócio da Cooperativa "..." desde a sua fundação em 1978/79, foi Secretário e depois
Presidente da Assembleia geral daquela, até 1988, acompanhou a execução do processo de loteamento n. 91/82; L, engenheira do G.A.T. de
Caldas da Rainha desde 1976, é actualmente Directora daquele Gabinete, revelou a forma como aquele serviço deve funcionar; M, desenhadora de 2. classe da Câmara Municipal da Nazaré, trabalhou junto das segunda e terceira arguidas, mostrou saber os termos em que aquelas trabalhavam, e a influência e domínio exercido pelo primeiro arguido sobre todos os funcionários; N, fiscal na Câmara Municipal da Nazaré desde 1977 até há cerca de três anos revelou também a forma de funcionamento dos serviços camarários e o domínio exercido pelo primeiro arguido nos mesmos: O, engenheiro da
Direcção Geral de Portos, mostrou saber os trâmites da reparação das Avenidas da República e P, custeadas por aquela Direcção Geral; Q, fiel de armazém da Câmara Municipal da
Nazaré há cerca de treze anos, teve conhecimento da saída de sacos de cimento para a firma Fialho & Paulo,
R, construtor civil e sócio gerente da Firma Fialho & Paulo, revelou os termos em que havia sido feita a obra do Posto de Turismo da Nazaré; relevaram também os depoimentos das testemunhas S, Presidente da Associação Nacional de Municípios; T, Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa; U, arquitecta e que já desempenhou as funções de Presidente da Câmara
Municipal de Cascais; V, actual Presidente da Junta de Freguesia de Famalicão da
Nazaré, foi também Presidente da mesma Junta em dois mandatos do primeiro arguido como Presidente da Câmara
Municipal da Nazaré; X, foi
Presidente da Junta de Freguesia de Valado de Frades em dois mandatos do primeiro arguido como Presidente da
Câmara Municipal da Nazaré; Z,
Presidente da Região Autónoma da Madeira, que conheceu o primeiro arguido como seu parceiro na representação portuguesa na Conferência dos Poderes Locais e
Regionais do Conselho da Europa; W,
Procurador Geral Adjunto; Y,
Presidente da Câmara de Pedrogão Grande; e AA, Presidente da Câmara da Guarda, todos mostraram conhecer o arguido A e terem acompanhado o seu trabalho e esforço como Presidente da Câmara
Municipal da Nazaré, evidenciaram por ele apreço, estima e admiração pelo empenho que evidenciou no desenvolvimento do município da Nazaré. As testemunhas BB, engenheiro na Câmara Municipal de Alcobaça há cerca de vinte anos, mostrou conhecer a segunda arguida como uma técnica competente, e evidenciou saber as limitações das autarquias na obtenção de financiamentos, nomeadamente à data da prática dos factos destes autos; CC, actual vereador na Câmara Municipal da Nazaré: e
DD, actual Presidente da Câmara
Municipal da Nazaré, mostraram conhecer o trabalho da terceira arguida à data dos factos como técnica daquela
Câmara, pois também nessa altura desempenhava funções na mesma; EE; FF e GG, todos vereadores em mandatos anteriores, mostraram conhecer os arguidos E, F e G, evidenciaram por eles o maior apreço pela forma zelosa como desempenharam as suas funções.
Dos factos constantes da acusação não se provou, com relevância para a decisão da causa que com a actuação descrita em 1 relativamente à construção do novo edifício dos Paços do Concelho o primeiro arguido quisesse obter para a autarquia um enriquecimento em prejuízo da Administração Central; que com a actuação descrita em 5 relativamente à obra de renovação da rede de águas de Valado de Frades, o primeiro arguido quisesse obter um enriquecimento para a autarquia em prejuízo do FEDER ou das instâncias comunitárias; que o primeiro arguido de entre as obras concorrentes ao financiamento do FEDER, no âmbito da obra do reforço do abastecimento de água à Nazaré, quisesse que constasse a de distribuição de água ao Rio Novo, na parte em cuja execução havia sido custeada pela Cooperativa de Habitação Económica "..."; que o arguido tivesse introduzido para concessão do empréstimo ao abrigo da Linha KFW a obra da construção do colector para esgoto doméstico das zonas de Vale Paraíso, Calhau e Areal, com o fim de prejudicar a referida linha de crédito; que relativamente à obra descrita em 9 referente ao Posto de Turismo da Nazaré, o primeiro arguido tivesse actuado por forma a obter um enriquecimento para a autarquia da Nazaré em prejuízo da Administração Central; não se provou finalmente que os arguidos, à excepção do arguido A tivessem actuado com consciência de que as suas condutas não eram permitidas, com intenção de beneficiar ilegitimamente a Câmara Municipal da Nazaré e determinando as entidades competentes a comparticipar financeiramente em montantes superiores aos devidos.
Da contestação apresentada pelo arguido A, não se provou com relevância para a decisão da causa que aquele não deu indicações concretas quanto ao modo como haviam de ser preparados os documentos necessários à candidatura dos financiamentos; que o gasto total da obra dos Paços do Concelho foi de
31902809 escudos e 50 centavos, sendo 7170123 escudos e
50 centavos com a aquisição de materiais, 9102684 escudos pela empreitada e 15630000 escudos pela a aquisição do edifício; que quanto ao Posto de Turismo da Nazaré o arguido não deu ordem para serem inscritos quaisquer trabalhos no que respeita aos balneários e à passagem desnivelada.
Cabe acrescentar que a referida peça processual contém uma vasta narração que não são factos, mas meras alegações e conclusões jurídicas, que não poderão ser referenciadas nesta sede.
Das restantes contestações, nenhum facto com relevância para a decisão da causa cumpre assinalar como não provado.
2. Face à precedente matéria de facto, o tribunal colectivo tomou a seguinte decisão:
I - Julgou a acusação improcedente relativamente aos arguidos B, C, D,
E, F, G, H, que absolveu;
II - Julgou a acusação procedente quanto ao A, que condenou pela forma que segue:
- por um crime de falsificação de documentos, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 228, ns. 1 alínea b) e 3, na pena de um ano e seis meses de prisão e 20 dias de multa a 5000 escudos por dia, na alternativa de 13 dias de prisão;
- por um crime de burla agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 313, n. 1, 314, alínea c) e 30, n. 2, na pena de dois anos de prisão;
- em cúmulo jurídico, na pena única de três anos de prisão e 20 dias de multa a 5000 escudos por dia, na alternativa de 13 dias de prisão, pena esta que, nos termos do artigo 48, n. 2, foi declarada suspensa na sua execução pelo período de 4 anos;
- no pagamento das custas e demais alcavalas legais.
3. Recorreram desta decisão o Ministério Público e o arguido A.
Em síntese, o Ministério Público, na sua motivação, concluiu que:
I- Omitindo, quanto aos factos não provados, a respectiva fundamentação, foi violado o artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal, o que constitui nulidade sanável (Assento de 6 de Agosto de 1992);
II- Quanto aos factos provados atinentes à "Renovação da Rede de Águas de Valado de Frades", devia o arguido ter sido condenado por um crime de burla agravada dos artigos 313 e 314, alínea c) e não apenas por um crime de falsificação;
III- O mesmo se passa relativamente ao pagamento do custo das obras do Posto de Turismo da Nazaré;
IV- Não existe, de forma alguma, o condicionalismo do artigo 30, n. 2, pelo que não se verifica a figura do crime continuado, devendo o arguido ser condenado por 8 crimes de falsificação de documentos e 7 crimes de burla agravada, um deles na forma tentada;
V- O conjunto de circunstâncias que rodeou a prática destes crimes afasta a aplicabilidade da suspensão da execução da pena, pelo que foi violado o artigo 48; deverá, todavia, o arguido beneficiar das leis de clemência publicadas, excepto da Lei n. 15/94, por força do seu artigo 9, n. 3, alínea a).
Por sua vez a motivação do arguido contém, em resumo, as seguintes conclusões:
A) Existe no julgamento do Colectivo erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis ao caso e erro na interpretação das normas concretamente aplicáveis;
B) No caso descrito como "novo edifício dos Paços do
Concelho", está demonstrada a inverificação de um requisito típico do crime do artigo 228, n. 1 - a intenção de alcançar um benefício ilegítimo;
C) No caso da "Estrada Municipal n. 604", está igualmente demonstrada a inverificação de qualquer dos requisitos típicos essenciais do crime do artigo 228, n. 1, alínea b);
D) No mesmo caso, verifica-se, em relação a ambos os crimes - burla e falsificação - uma situação de erro sobre a ilicitude, não censurável ao arguido e excludente da culpa (artigo 17, n. 1), que o tribunal não atendeu;
E) Ainda neste caso da "Estrada Municipal n. 604", nenhum facto permite a subsunção da conduta do arguido aos artigos 313 e 314, alínea c), antes pelo contrário; o erro de direito é claro;
F) O mesmo que vem de dizer-se é aplicável aos casos do
"aterro sanitário" e do "sistema integrado de tratamento de águas residuais da Nazaré e Alcobaça", em relação quer à falsificação, quer à burla agravada;
G) No referente ao caso da "renovação da rede de água de Valado de Frades", os factos provados não permitem a subsunção ao crime de falsificação intelectual - faltando designadamente a intenção de enriquecimento ou de causar prejuízo ilegítimo; antes ficou provado o contrário;
H) O mesmo se pode afirmar quanto ao caso do "reforço da conduta adutora da Paliteira" - e não existem aí os crimes do artigo 228, n. 1, alínea b) ou dos artigos
313 e 314, alínea c); de resto, ocorre também neste caso a situação do artigo 17, n. 1;
I) No caso do financiamento pelo ex-FEETT, além de faltarem os requisitos tipicos essenciais da falsificação e da burla, inexiste o dolo e verifica-se uma vez mais a situação prevista no artigo 17, n. 1;
J) No caso do "Posto de Turismo da Nazaré", inexistem os elementos típicos da falsificação intelectual e da burla;
L) A aplicação do regime do concurso real aos crimes de falsificação e de burla agravada só pode fundar-se em interpretação dos artigos 228, n. 1, alínea b) e 313, n. 1 que os torna materialmente inconstitucionais, por ofensa do artigo 29, n. 5 da Constituição da República Portuguesa;
M) Assim, deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, devendo ser ainda declarada a referida inconstitucionalidade material dos aludidos artigos, quando interpretados segundo o acórdão de 19 de Fevereiro de 1992, in D.R., I - A, n. 84, de 9 de Abril de 1992.
Decalcando a posição assumida na sua motivação, o arguido respondeu à do Ministério Público nos termos de procurar demonstrar que este não tem razão.
Reciprocamente, também a resposta do Ministério Público
à motivação do arguido vai no sentido da improcedência do recurso deste.
Requereu o arguido alegações por escrito.
Nas que produziu, limitou-se (folha 4116) a dar como boas as razões expendidas na sua motivação e na sua resposta, já referidas.
Por sua vez a Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo (folha 4100), sem deixar de notar que devem extrair-se as pertinentes consequências da entrada em vigor do Código Penal de 1995, pronunciou-se pela total improcedência do recurso do arguido e pelo provimento parcial do recurso do Ministério Público, na parte relativa à "renovação da rede de águas de Valado de Frades", por entender que os respectivos factos integram o crime de burla agravada, embora integrada na continuação criminosa e sem reflexo nas sanções decretadas.
4. Cumpre decidir.
Recurso do Arguido:
O recorrente pretende demonstrar que o acórdão recorrido enferma de erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis ao caso e de erro na interpretação das normas concretamente aplicadas.
Sem razão, porém.
Conforme o acórdão afirma a folha 3981, o arguido A, em todos os casos examinados, "agiu livre e conscientemente, com a intenção de alcançar para a autarquia da Nazaré os benefícios atrás descritos", afirmação que apenas complementa o provado a folha 3973
- de o arguido ter actuado do modo descrito no texto do acórdão "com o intuito de obter maiores comparticipações da Administração Central para a execução de obras na autarquia a que presidia". E o acórdão demonstra bem que aqueles benefícios eram ilegítimos, por serem obtidos pela autarquia em violação das leis em vigor, e que através da falsidade inserida nos documentos descritos na matéria de facto provada conseguiu a Câmara Municipal da Nazaré "obter, na generalidade, benefícios financeiros da Administração ou do Feder que de outro modo não obteria".
Por outro lado, o acórdão analisa concretamente a estrutura e requisitos típicos dos crimes de falsificação e de burla dos artigos 228 e 313 do Código Penal de 1982, sendo inatacável a sua observação de que
"o crime de falsificação, ao conter em si mesmo mentira e engano, constitui uma forma ardilosa de induzir em erro a vítima e levá-la a actuar de certa maneira que, se não existisse, não actuaria daquela forma", para concluir mais adiante (folha 3992) que foi a falsidade introduzida nos referidos autos que "a Administração
Central (diga-se o Estado) foi levada a participar com dinheiros, que se não fosse tal falsidade não participaria. E o arguido A sabia isso mesmo.
Por isso usou esse ardil para obter subsídios que sabia serem ilegítimos, prejudicando patrimonialmente aquela".
De resto, a classificação do benefício ou do enriquecimento como ilegítimos releva de uma conclusão jurídica, que não de mera realidade factual; conclusão que decorre menos da circunstância de o benefício ou o enriquecimento não terem apoio legal do que da circunstância (que o colectivo bem demonstrou a folhas
3989 e 3991) de o benefício ou o enriquecimento da autarquia serem procurados ou alcançados contra as leis reguladoras de cada caso apreciado.
Tudo com uma indispensável precisão: enquanto o benefício ilegítimo pode revestir diversas naturezas, o enriquecimento ilegítimo existe quando se traduz numa entrada patrimonial indevida na esfera do beneficiário,
à custa da do sujeito passivo.
No caso do "novo edifício dos Paços do Concelho", é manifesto que os documentos subscritos pelo recorrente e elaborados por sua decisão (e depois remetidos à
D.G.A.A., levando a esta a creditar parte das verbas neles inscritas em benefício da Câmara Municipal da
Nazaré) não correspondiam à realidade dos factos que pretendiam certificar, designadamente de a obra ter sido executada por administração directa, quando a verdade é que o tinha sido por administração directa e por empreitada adjudicada à firma Pedros, Limitada.
E nem o facto de o Colectivo não considerar provado
(por dúvidas) que o arguido tivesse conseguido o seu objectivo de obter um enriquecimento ilegítimo para a autarquia exclui a sua (provada) intenção de alcançar um benefício ilegítimo - e isso basta para se julgar preenchido o ilícito típico do artigo 228 do Código Penal.
O mesmo se diga quanto ao caso da "Estrada Municipal n. 604".
Também aí o recorrente, com a predita intenção, tomou
"parte directa na execução" dos crimes de falsificação e de burla (artigo 26 do Código Penal), constituindo-se seu autor material.
Com efeito, o GAT só actuou "com prévio acordo do primeiro arguido" (e de outra maneira não poderia o GAT actuar, como é sabido, dadas as suas estrutura e competências) e o recorrente - além de apor o seu visto nos documentos (e o valor deste visto é bem aferido no acórdão recorrido) - ordenou aos 3 e 5 arguidos que os subscrevessem.
Ora, em tais documentos, que foram produzidos em contradição com a realidade dos factos, "com a finalidade de induzir em erro a Administração central e a (levar) a comparticipar aquelas despesas", além de terem sido adrede alterados os custos reais da obra, certificou-se que os trabalhos foram feitos por administração directa, quando a obra fora adjudicada, por concurso público, ao empreiteiro I.
Por esta forma obteve o arguido para a Câmara Municipal da Nazaré um enriquecimento ilegítimo (comparticipação do Estado), pois tais obras não eram comparticipáveis (artigo 20 do Decreto-Lei n. 118/82, de 19 de Abril, conjugado com o Despacho Normativo n. 167/82, de 12 de Agosto e Despacho Conjunto publicado no D.R. de 2 de Abril de 1984, II Série, 2841).
De resto, os GAT não dão ordens aos presidentes das câmaras municipais, sendo tão só gabinetes de apoio técnico e de fiscalização, tendo a seu cargo o acompanhamento e supervisão dos documentos para as candidaturas a financiamentos; e o visto do presidente da câmara (essencial ao processamento dos documentos - artigo 53, alíneas a) e e) do Decreto-Lei n. 100/84, que reviu a Lei n. 79/77, de 25 de Outubro) - consubstancia um verdadeiro acto autenticador da sua correspondência com a realidade.
Não colhe, aliás, o argumento de que - quer em relação
à falsificação quer à burla - estaremos perante um erro sobre a ilicitude, não censurável ao agente e como tal excludente da culpa, nos termos do artigo 17, n. 1 do Código Penal, por isso que o acórdão é muito claro neste aspecto (e referindo-se a todos os casos examinados):
"Não se provou... que os arguidos, à excepção do arguido A, tivessem actuado com a consciência de que as suas condutas não eram permitidas".
E mais adiante:
"Em todas as falsificações operadas e enviadas à Administração Central ou ao FEDER, via C.C.R.L.V.T., aquele (arguido A) actuou com pleno conhecimento da aludida ilicitude, querendo introduzir no mundo e tráfico jurídicos factos que sabia não serem verdadeiros, com a intenção de obter para o Município da Nazaré um benefício ilegítimo".
Excluída está, portanto, qualquer especulação sobre a figura do erro sobre a ilicitude.
É de todo semelhante a actuação do arguido nos casos do
"aterro sanitário" (folha 3975), do "sistema integrado de tratamento de águas residuais de Alcobaça e Nazaré"
(folha 3976), da "renovação da rede de águas de Valado de Frades" (folhas 3976 e 3977), do "reforço do abastecimento de água à Nazaré" (folhas 3977 e 3978), do "financiamento concedido pelo ex-fundo especial de transportes terrestres" (folha 3979 e do "Posto de
Turismo da Nazaré" (folha 3980), o que nos dispensa de mais largas considerações para, também nestes casos, dar como boas, mutatis mutandis, as reflexões anteriores, tendentes a demonstrar a sem razão do recorrente.
Mostra-se com efeito correcta a incriminação efectuada no acórdão recorrido, configurando-se: no caso 1, um crime de falsificação; em cada um dos casos 2, 3 e 4 um crime de falsificação e outro de burla; no caso 5, um crime de falsificação; no caso 6 (atinente à conduta da
Paliteira), um crime de falsificação e outro de burla, esta na forma tentada; no caso 8, um crime de falsificação e outro de burla; e, no caso 9, um crime de falsificação, sendo todos estes crimes das espécies devidamente descritas no acórdão em análise.
Conforme acima se deixou dito, não pode confundir-se o beneficio ilegítimo (ou a intenção de o obter) com o enriquecimento ilegítimo (ou a intenção de o obter), e a não prova do último não exclui o primeiro.
Finalmente, o recorrente desenvolve uma tese segundo a qual a aplicação do regime do concurso real aos crimes de falsificação e de burla agravada só pode fundar-se em interpretação dos artigos 228, n. 1, alínea b) e 313 do Código Penal que os torna materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 29, n. 5 da C.R.P.
Esta estranha tese não merece o mínimo acolhimento.
O que o artigo 29, n. 5 da C.R.P. diz é que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime".
Ora, "o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos" (artigo 30, n. 1 do Código Penal) e o assento de 19 de Fevereiro de 1992 (in B.M.J. n. 414 - 73) demonstra que, seguindo o critério teleológico adoptado pelo referido artigo 30, n. 1, são diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico protegido pela falsificação, pelo que, quando a conduta do agente preenche as previsões da burla e da falsificação, estaremos perante crimes distintos, a punir em concurso real.
Tratando-se de crimes distintos (e não é o legislador constitucional quem define a unicidade e a pluralidade ou diversidade dos crimes) e não do mesmo crime, logo se vê que não pode ter o menor apoio a tese da violação do artigo 29, n. 5 da C.R.P.
5. Recurso do Ministério Público:
I- Não existe a invocada falta de fundamentação dos factos não provados, violadora do artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal.
Quando o Colectivo, no seu acórdão, indica as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, fá-lo relativamente aos factos provados e não provados, não exigindo o referido artigo que o tribunal distinga, em princípio, entre as provas que serviram para formar a convicção positiva e a negativa, sendo que muitas vezes a negativa resulta da absoluta falta de prova e outras vezes de que a positiva prejudica irremediavelmente a negativa.
Vão no sentido indicado os acórdãos deste Supremo
Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1992, 12 de
Janeiro de 1994 e 6 de Julho de 1995, nos recursos ns. 42509, 45817 e 47520, respectivamente.
II- Caso da rede de águas de Valado de Frades (caso n. 5).
Já acima se estabeleceu a distinção entre a intenção de obter benefício ilegítimo (requisito do artigo 228 do Código Penal) e a de obter enriquecimento ilegítimo (artigo 313).
Provou-se (folha 3977) a intenção do arguido (ao acordar com o GAT a elaboração dos documentos desconformes com a realidade, ao subscrevê-los e ao enviá-los através da C.C.R.L.V.T.) de obter um benefício ilegítimo para a autarquia da Nazaré, mas não a do enriquecimento ilegítimo, pois o Colectivo é claro
(folha 3993) ao dizer que na intenção do arguido não estava "subjacente a obtenção de enriquecimento ilegítimo", tratando-se tão-só de uma antecipação indevida de um subsídio devido.
Logo, e quanto a este caso, não pode falar-se em crime de burla, por faltar um dos seus requisitos essenciais.
III- Posto de Turismo da Nazaré (caso n. 9).
Procedem aqui as mesmas razões do caso anterior.
Provou-se tão-somente que o arguido agiu (folha 3980) com a intenção de beneficiar a firma Fialho & Paulo,
Limitada, em ordem a que esta recebesse (e não chegou a receber tudo) o que lhe era devido e que não conseguia receber através do levantamento das areias do Porto de
Abrigo, como fora acordado.
Não se provou a intenção de obter (para a autarquia ou para a dita firma) um enriquecimento ilegítimo (que, de resto, não existiu), o que seria essencial para que se configurasse o crime de burla.
IV- Não merece censura a integração que o acórdão faz da conduta do arguido na figura do crime continuado
(artigo 30, n. 2 do Código Penal), estando devidamente fundamentada tal subsunção. Não se diverge da conclusão do colectivo, ao considerar verificados a homogeneidade na forma de comissão dos crimes, o quadro da solicitação de uma mesma situação exterior e a considerável diminuição da culpa do agente destas derivada, sendo que a conexão temporal é apenas um indício da permanência do apelo da dita situação exterior à reiteração criminosa.
Ora, o que é certo é que o circunstancialismo envolvente permaneceu no tempo a motivar a primeira conduta e a propiciar as subsequentes, verificada a facilidade com que - através do ardil dos documentos falsificados com o apoio do G.A.T. - se obtinham financiamentos torneando as leis em vigor, emergindo, assim, como consideravelmente diminuída a culpa do agente.
V- Também não faremos reparo à suspensão da execução da pena única decretada (artigo 48, n. 2 do Código Penal).
O acórdão recorrido demonstra suficientemente que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e às circunstâncias destes (aliás ocorridos há cerca de 10 anos), a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as exigências de reprovação e prevenção, pelo que a referida suspensão não viola o predito artigo 48.
6. Código Penal de 1995:
Ao crime previsto e punível pelos artigos 228, ns. 1 - alínea b) e 3, 30, n. 2 e 78, n. 5 do Código Penal de 1982, cuja pena abstractamente aplicável era de prisão de 1 a 6 anos e multa até 120 dias, corresponde agora o crime previsto e punido pelos artigos 256, ns. 1 - alínea b) e 4, 30, n. 2 e 79 do Código Penal de 1995, cuja pena abstractamente aplicável é a de prisão de 1 a 5 anos.
Mantendo-se embora o mínimo da pena de prisão, baixou o seu limite máximo e desapareceu a pena complementar da multa, o que significa um certo desagravamento da punição abstracta.
No caso presente, em que não se diverge do critério do
Colectivo de situar a pena de prisão muito próxima do seu limite mínimo (a pena concreta foi de um ano e seis meses de prisão), não se justifica qualquer alteração em tal pena, mas revogando-se a pena de multa.
Vê-se, por conseguinte, que o regime do Código Penal de
1995 é mais favorável ao arguido que o anterior, pelo que aquele deve prevalecer (artigo 2, n. 4 do Código Penal).
Fica, assim, o arguido condenado, pelo crime previsto e punido pelos artigos 256, ns. 1 - alínea b) e 4, 30, n. 2 e 79 do Código Penal de 1995, na pena de um ano e seis meses de prisão.
Ao crime previsto e punido pelos artigos 313, n. 1, 314, alínea c), 30, n. 2 e 78, n. 5 do Código Penal de 1982 corresponde agora, no Código Penal de 1995, o crime previsto e punido pelos artigos 217, n. 1, 218, n. 2, alínea a), 30, n. 2 e 79.
Ao primeiro cabia a pena abstracta de 1 a 10 anos de prisão e ao segundo a de 2 a 8 anos de prisão.
A pena concreta, pelo primeiro crime, foi de 2 anos de prisão, duplicando o mínimo legal, embora se aproxime muito mais deste do que do máximo aplicável.
No regime actual, qualquer excesso sobre o mínimo legal de 2 anos de prisão (que se justificaria face ao critério do Colectivo, de que não divergimos) implicaria uma pena superior à aplicada e, portanto, um regime punitivo desfavorável ao arguido, inaplicável por força do referido artigo 2, n. 4.
Assim, mantém-se a condenação pelo indicado crime dos artigos 313, n. 1, 314, alínea c), 30, n. 2 e 78, n. 5 do Código Penal de 1982.
Em cúmulo jurídico (artigo 78, n. 1 do Código Penal de
1982, que corresponde ao artigo 77, n. 1 do Código Penal de 1995), fica o arguido condenado na pena única de três anos de prisão.
Porque o artigo 50, n. 1 do Código Penal de 1995 reproduz, no essencial, o artigo 48, n. 2 do Código Penal de 1982, nenhuma observação há a fazer no que respeita à suspensão da execução da pena, que vai mantida nos termos do acórdão recorrido.
7. Pelo exposto, decide-se negar provimento aos recursos, alterando-se, porém, a decisão, nos moldes sobreditos (n. 6).
O recorrente A pagará 8 UCS de taxa de justiça, com a procuradoria de 1/3 e o legal acréscimo.
29 de Fevereiro de 1996
Sousa Guedes,
Sá Ferreira,
Ferreira da Rocha,
Araújo dos Anjos.
Decisão Impugnada:
Acórdão do Círculo de Alcobaça.