Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4561
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
PODER-DEVER
Nº do Documento: SJ200802130045615
Data do Acordão: 02/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ADIADO PARA A PRÓXIMA SESSÃO
Sumário :

1 – Tendo trazido a Lei n.º 48/2007 alterações significativas ao teor do art. 281.º do CPP (suspensão provisória do processo) é de aplicar imediatamente esta nova redacção ao processo em recurso, à luz do disposto no n.º 1 do art. 5.º do CPP, por se não verificar qualquer excepção do seu n.º 2.

2 – Da alteração do n.º 1 daquele art. 281.º, resulta que em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, sempre que se verificarem os respectivos pressupostos:

podia o Ministério Público decidir-se com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 59/98);

o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 48/2007).

3 – A Exposição de Motivos da respectiva proposta de lei confessa a intenção de «alargar a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso» já fora consubstanciada em outras iniciativas legislativas e regulamentares como da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal) e cujo art.º 12.º, em relação à pequena criminalidade, prevê que os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, a aplicação de diversas medidas entre as quais a suspensão provisória do processo [n.º 1, al. b)], directivas e instruções genéricas que vinculam os magistrados do Ministério Público, nos termos do respectivo Estatuto (n.º 3). Devendo o Ministério Público reclamar ou recorrer, nos termos do CPP e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, das decisões judiciais que não acompanhem as suas promoções destinadas a prosseguir os objectivos, prioridades ou orientações de política criminal previstos naquela lei (art. 17.º). O que foi retomado nas Directivas e instruções genéricas em matéria de execução da lei sobre política criminal, já emitidas pelo Procurador-Geral da República.

4 – A Lei n.º 48/2007, acentuou a natureza de poder-dever conferido pela norma do n.º 1 ao Ministério Público ao substituir a expressão “pode (…) decidir-se (…) pela suspensão do processo” por esta outra, claramente impositiva: “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina (…) a suspensão do processo», mas já assim se devia entender no domínio da redacção dada pela Lei n.º 59/98, mas pretendeu-se afastar a interpretação de que “o pode decidir-se” constituía uma mera faculdade concedida ao Ministério Público a usar discricionariamente e afirmar a interpretação de que verificados os respectivos pressupostos, se impunha ao Ministério Público a suspensão provisória do processo.

5 – Por outro lado, o acrescentamento, no mesmo n.º 1 do art. 281.º do CPP, da expressão “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente” reforça ainda esta interpretação e dá direitos acrescidos a estes sujeitos processuais, a que hão-de necessariamente corresponder as acções, os expedientes necessários à sua concretização, dentro da garantia de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrada (art. 20.º) e levada ao art. 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do CPP: «2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.»

6 – E a remissão do n.º 2 do art. 307.º do CPP para o artigo 281.º obtida a concordância do Ministério Público, significa que, encerrado o debate instrutório, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas determina, se for o caso a suspensão provisória do processo.

7 – O arguido e o assistente podem, pois, pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos: no decurso do inquérito, ao Ministério Público por requerimento; findo o inquérito, ao juiz de instrução, na “acção” adequada à efectivação desse direito e que só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP, pois só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.

Decisão Texto Integral:

1.

AA, Procurador-Adjunto, arguido no proc. n.º .../07.9YRCBR, da Relação de Coimbra, notificado de acusação contra si deduzida pelo Ministério Público, pela prática de um crime do art. 292.º, n.º 1 do C. Penal, requereu a abertura da instrução, pedindo que fosse dado sem efeito o despacho de acusação formulado, substituindo-o por outro que suspenda provisoriamente o processo, nos termos do art. 281.º, n.º 1 do CPP, uma vez obtida a concordância do Ministério Público, de acordo com o art. 307.º, n.º do mesmo diploma legal.

Foi esse requerimento rejeitado liminarmente por se ter entendido inadmissível, no caso, a instrução.

Inconformado recorre o arguido para esse Supremo Tribunal de Justiça dessa rejeição, sustentando que deveria ter sido o mesmo requerimento deferido e aberta a instrução.

Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pronunciando-se pela procedência do recurso e pela substituição da decisão recorrida por outra em que se admita a requerida abertura da fase de instrução.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público que se pronunciou igualmente pela procedência do presente recurso, sem embargo de reconhecer que a solução não é isenta de algumas dúvidas, entendendo que a fase de instrução tal como foi requerida pode ter utilidade e, acima de tudo, para além de permitir ao arguido o controlo de um poder-dever por parte do Ministério Público, permite-lhe também tentar evitar ao mesmo tempo a sujeição a julgamento com os inerentes malefícios que lhe são comummente apontados e, não é expressamente proibida por lei.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

São os seguintes os elementos relevantes para a apreciação da questão colocada.

O arguido, notificado da acusação, requereu a abertura de instrução, invocando o art. 287.º, n.º 1 a) e n° 2 do CPP e que o crime do art. 292.º n.º 1 do C. Penal, de que fora acusado, é punível com uma pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, pelo que, cabendo na previsão do art. 281.º, n.º 1 do CPP, lhe confere a faculdade de, em sede de instrução, reagir à decisão do Ministério Público da não promoção da suspensão provisória da processo, nos termos do art.307.º, n.º 2 do mesmo diploma. A abertura da instrução permitia-lhe o controlo judiciário dessa decisão do Ministério Público e construir no debate instrutório o diálogo entre os vários sujeitos processuais que nele podem intervir, no sentido da obtenção de um consenso que viabilize a suspensão provisória do processo, finalidade que se enquadra nos objectivos que, com o debate, a lei pretende que se atinjam.

O arguido, não contestando a factualidade vertida na acusação, ofereceu prova, designadamente quanto à quantidade e qualidade de álcool ingerido imediatamente antes do acidente, se teria ou não consciência de que se encontrava alcoolizado e se tal circunstância era evidente e ainda relativamente ao que as mesmas terão presenciado antes e após o despiste do veículo conduzido pelo arguido e quanto ao tempo e oportunidade que teve de deixar o local.

Esse requerimento foi objecto do seguinte despacho:

«(…) 2 – De harmonia com o estatuído no art.° 286.°, n.° 1, do CPP, a instrução – fase jurisdicional do processo preliminar – visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Daí que, sendo requerida por arguido – como no caso –, na sequência de acusação, terá por necessária finalidade a submissão a competente magistrado judicial da indagação da admissibilidade legal do acto acusatório pela aferição da pertinente indiciação da realização pelo sujeito passivo dos elementos constitutivos da(as) imputada(as) infracção(ões) criminal(ais), ou pela verificação da existência doutras razões jurídicas – de direito material ou adjectivo, (activa, causas de exclusão da ilicitude ou culpa, prescrição, amnistia, etc.) – que o inviabilizem ou neutralizem, total ou parcialmente, (cfr. ainda arts. 308.°, n.ºs. 1 e 2, e 283.°, n.º 2, do CPP) (Vide, a propósito, entre outros, Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III — Editorial Verbo, 1994 –, pags. 125/133; Prof. Jorge de Figueiredo Dias, Para Uma Reforma Global do Processo Penal Português, pág. 38; e Raul Soares da Veiga, O Juiz de Instrução e a Tutela dos Direitos Fundamentais, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (Almedina), pags. 183/220, maxime pág. 199).

No essencial demanda-se do juiz de instrução a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório bastantemente demonstrativo da existência de crime e do seu responsável (autor, co-autor, cúmplice), e pela formulação de juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do incriminado sujeito – em sede de julgamento – a reacção penal ou medida de segurança, e não já o policiamento da soberana discricionariedade do M.° P.° quanto ao juízo de oportunidade de sujeição do agente delitivo a julgamento, em razão de ponderosos – ou ponderáveis – critérios de utilidade ou conveniência, nos limites legais, pela opção pela acusação ou pela suspensão provisória do processo – prevenida no art. 281.º do CPP – como na situação sub judice, como é de mediano entendimento.

Por conseguinte, havendo o arguido expressamente assumido a realização do imputado acto comportamental, e, por isso, a indiciação da assacada infracção criminal, (cfr. art.° 7.° do requerimento de abertura de instrução), muito mal se compreende o impulsionamento da fase instrutória tão-só com vista ao virtual condicionamento – quiçá coactivo (!)– do Ministério Público á revisão e alteração da sua oportuna opção de acusar em detrimento do recurso ao enunciado mecanismo de suspensão provisória do processo, cuja prossecução, com o devido respeito por diversa opinião – máxime pela plasmada no aresto invocado (Ac. da RL de 16/11/2006, disponível em http://www.gde.mj.ptljtrl), que, naturalmente, não sufragamos –, roçaria o absurdo jurídico.

3 – Como assim, apresentando-se-me como axiomática a respectiva inadmissibilidade/proibição legal, em conformidade com o estatuído no normativo 287.°, n.º 3, parte final, do CPP – sem outras considerações por despiciendas –, rejeito liminarmente o requerimento de abertura de instrução formulado pelo identificado cidadão-arguido.»

2.2.

Admissibilidade da instrução

Sustenta o recorrente que a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução com fundamento em inadmissibilidade legal, violou os arts. 287.º, n.º 3 e 307.º n.º 2 do CPP (conclusão 1). E que a doutrina e jurisprudência têm entendido que não foi vontade do legislador definir um âmbito lato de denegação da instrução, mas outrossim que a ratio legis do art. 287.º, n.º 3 do CPP é a da restrição máxima aos casos de rejeição do requerimento de abertura de instrução (conclusão 2), sendo legalmente inadmissível a instrução em sede de processo sumário e sumaríssimo (art. 286.º, n.º 3 do CPP), a requerida por quem não tem legitimidade para tal ou fora dos casos previstos na lei [art. 287.º, n.º 1 a) e b) do CPP], ou ainda por falta de tipicidade legal (cfr. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2 Ed., pág. 163, TRP de 0903.2005 e de 23.02.2005, in www.dgsi.pt) (conclusão 3).

O recorrente, com o seu requerimento de abertura de instrução, pretendeu colocar em causa a decisão do Ministério Público de deduzir acusação, quando poderia/deveria ter-se socorrido do mecanismo da Suspensão Provisória do Processo (conclusão 4) e a lei não exclui a possibilidade de requerer a abertura de instrução com esta finalidade, pelo que rejeitar o requerimento com fundamento na inadmissibilidade legal é interpretar e aplicar o dispositivo legal previsto no art. 287.º, n.º 3 do CPP de forma ampla, quando o mesmo se reveste de carácter restritivo (conclusão 5).

Em sede de instrução – diz – é possível a apreciação de questões de direito ou de facto subjacentes à acusação, designadamente no que concerne ao grau de culpa (conclusão 6). A aplicação da suspensão provisória do processo pode ter lugar em sede de instrução, com a concordância do Ministério Público – art. 307.º n° 2 do CPP (conclusão 7) visando o recorrente demonstrar, com a instrução, que estão preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo art. 281° do CPP e pugnar pela sua aplicação, fazendo uso do contraditório a que tem direito (conclusão 8), pois que ao requerer a abertura de instrução não tem de o fazer exclusivamente baseado em pura matéria de facto, ele pode requerê-la em função de uma discordância em relação à qualificação jurídica dada a esses factos, ou baseada no seu tratamento jurídico em termos de consequências político-criminais (conclusão 9).

Antes de se entrar na apreciação desta razões de discordância do recorrente, importa notar que as normas aplicáveis, designadamente o art. 281.º do CPP sofreram alterações com algum significado nesta querela e que se deverão ter por aplicáveis de imediato.

Na verdade, a Lei n.º 48/2007, que entrou em vigor a 15 de Setembro passado (art. 7.º), não integra qualquer norma transitória que contemple a sua aplicação no tempo.

Assim, na resolução das questões que nesse âmbito se coloquem, dever-se-á atender ao disposto no art. 5.º do CPP, pelo que as alterações em matéria de recurso serão aplicadas imediatamente, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1).
Importará, no entanto e face ao disposto no n.º 2 desse art. 5.º, acautelar as situações em que dessa aplicação imediata possa resultar:
— Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa [a)]; ou
— Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo [b)].
Nesses casos, a Lei n.º 48/2007 não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência.
Vejamos o que dispõe hoje o art. 281.º do CPP (suspensão provisória do processo):

«1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:

a) Concordância do arguido e do assistente;

b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;

c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;

d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;

e) Ausência de um grau de culpa elevado; e

f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

2 - São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:

a) Indemnizar o lesado;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público;

d) Residir em determinado lugar;

e) Frequentar certos programas ou actividades;

f) Não exercer determinadas profissões;

g) Não frequentar certos meios ou lugares;

h) Não residir em certos lugares ou regiões;

i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;

j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;

l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;

m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.

3 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.

4 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.

5 - A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.

6 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.

7 - Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.»

Do confronto da redacção daquele artigo dada pela Lei n.º 59/08, resulta que foi alterada a redacção dos n.ºs 1, 2 e 3 em diversas alíneas, n.º 6 e foi aditado o n.º 7.

Da alteração do n.º 1, a que agora importa para o caso sujeito, resulta que em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, sempre que se verificarem os respectivos pressupostos:

podia o Ministério Público decidir-se com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 59/98);

o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 48/2007).

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X-02, que originou a Lei n.º 48/2007, explicaram-se assim, essas alterações:

«A suspensão provisória do processo passa a poder ser aplicada a requerimento do arguido ou do assistente. Ainda no âmbito da suspensão, restringe-se o requisito de ausência de antecedentes criminais passando a exigir-se apenas que não haja condenação ou suspensão provisória anteriores por crime da mesma natureza. Também o requisito da culpa diminuta é transformado em previsão de ausência de culpa elevada. Nos crimes de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados pelo resultado permite-se que o Ministério Público determine o arquivamento independentemente da pena aplicável, em nome do interesse da vítima, desde que não haja, de novo, condenação ou suspensão provisória anteriores por crime da mesma natureza. Através destas alterações pretende alargar-se a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso»

Mas impõe-se que se explicite que esta confessada intenção de «alargar a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso» já fora consubstanciada em outras iniciativas legislativas e regulamentares e se revela noutro plano.

Referimo-nos à Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal) e cujo art.º 12.º, em relação à pequena criminalidade, prevê que os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, a aplicação de diversas medidas entre as quais a suspensão provisória do processo [n.º 1, al. b)], directivas e instruções genéricas que vinculam os magistrados do Ministério Público, nos termos do respectivo Estatuto (n.º 3). Devendo o Ministério Público reclamar ou recorrer, nos termos do CPP e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, das decisões judiciais que não acompanhem as suas promoções destinadas a prosseguir os objectivos, prioridades ou orientações de política criminal previstos naquela lei (art. 17.º). O que foi retomado nas Directivas e instruções genéricas em matéria de execução da lei sobre política criminal, já emitidas pelo Procurador-Geral da República.
Como se viu já, com a Lei n.º 48/2007, acentuou-se a natureza de poder-dever conferido pela norma do n.º 1 ao Ministério Público ao substituir a expressão “pode (…) decidir-se (…) pela suspensão do processo” por esta outra, claramente impositiva: “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina (…) a suspensão do processo».

Já assim se devia entender no domínio da redacção dada pela Lei n.º 59/98, mas pretendeu-se afastar a interpretação de que “o pode decidir-se” constituía uma mera faculdade concedida ao Ministério Público a usar discricionariamente e afirmar a interpretação de que verificados os respectivos pressupostos, se impunha ao Ministério Público a suspensão provisória do processo.

Entendia-se (cfr. o Relatório sobre as Formas de processo penal especiais e institutos de consenso e oportunidade, de 14.7.2005, do Ministério Público de Vila Nova de Gaia), e deve continuar a entender-se, que a aplicação de uma pena, mesmo que materialmente justa, passados vários anos sobre o facto que se pune, traduz-se sempre – e especialmente na pequena criminalidade – na falta de realização de justiça plena, seja porque esse facto, com o decurso do tempo, perdeu o desvalor que revelava, dando origem a uma censura mais branda do que aquela que a proximidade do facto permitiria, seja porque o próprio arguido mais dificilmente irá relacionar a essa censura com o facto que lhe deu origem, ou ainda porque o interesse e confiança da vítima e da comunidade na punição decresce.

Nesse contexto, as formas processuais especiais e os institutos de consenso e oportunidade previstos no Código de Processo Penal, para além de potenciarem uma maior celeridade, pela sua estrutura desburocratizada, são mais económicos para o sistema pela redução de diligências que proporcionam e por envolverem uma menor implicação de recursos humanos e materiais. Essa economia permite também uma significativa redução do tempo que medeia entre o facto e a reacção penal correspondente.

Dificilmente se compreende a baixa adesão aos mecanismos que o legislador criou – cujo campo de aplicação tem vindo a sucessivamente ampliar por via legislativa – com vista a possibilitar uma mais rápida e desburocratizada realização de justiça, sem contudo abrir mão dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Tanto mais que refira-se que a aplicação destes institutos não constitui um poder discricionário e, como tal, insindicável dos magistrados, o que se revelaria uma intrusão destemperada do princípio da oportunidade no nosso ordenamento jurídico.

Devem antes ser aplicadas pelo titular do processo sempre que deste resultem preenchidos, de facto e de direito, os pressupostos de que depende a sua aplicação.

É, pois, este poder/dever de aplicar os institutos de consensualização e formas de processo especiais que vai temperar o espírito de oportunidade que também lhes subjaz, sem contradizer – antes com ele se compatibilizando – o princípio da legalidade, pedra angular do nosso sistema penal.

Aliás, Pierrette Poncela fala expressamente das «sanções aplicadas pelo Procurador da República» e justifica assim o título: «O título do nosso parágrafo poderá prestar-se à contestação. Com efeito, convencionou chamar-se a estas sanções (dispensa de pena e suspensão do processo) medidas alternativas ao processo. É certo que elas têm um regime jurídico específico, mas também são sanções que respondem à comissão de uma infracção penal; podem, pois, ser qualificadas não de penas mas sim de sanções penais» (Droit de la Peine, 2.ª Ed., pág. 177).

E fazem entre nós, seguramente apelo aos critérios atendíveis na escolha e determinação das penas, designadamente dos art.ºs 70.º e 71.º do Código Penal, a ponderar em primeiro lugar pelo Ministério Público, com o mesmo rigor que é exigido ao julgador (Sobre a relevância da actuação do Ministério Público na questão da medida da pena, cfr. ponto H da Recomendação n.º R(92)/17, de 19.10.92, do Conselho da Europa e Simas Santos, Intervenção no 5º Congresso do Ministério Público, O Princípio da Igualdade, a Medida da Pena e o Ministério Público, a 19-11-98).

Por outro lado, o acrescentamento, no mesmo n.º 1 do art. 281.º do CPP, da expressão “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente” reforça ainda esta interpretação e dá direitos acrescidos a estes sujeitos processuais, a que hão-de necessariamente corresponder as acções, os expedientes necessários à sua concretização, dentro da garantia de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrada (art. 20.º) e levada ao art. 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do CPP: «2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.»

Vem esta menção a propósito do teor do n.º 2 do art. 307.º do CPP, já referido, e que dispõe que encerrado o debate instrutório, no momento em que o juiz de instrução profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, «é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério Público».

Ora, a remissão para a disciplina do n.º 1 do art. 281.º, correspondentemente aplicável, visa a redacção actual, nos termos atrás interpretados, inclusive quanto à possibilidade de o arguido ou o assistente pediram a suspensão provisória do processo e o poder-dever que, por tal normativo, é imposto ao juiz de instrução.

Temos, assim e em esquema, que o arguido e o assistente podem pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos.

Enquanto no decurso do inquérito, aqueles sujeitos processuais se podem dirigir ao Ministério Público, dominus dessa fase processual, por mero requerimento, já ao seu direito a pedir, ao juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, tem de corresponder uma adequada “acção”, destinada a efectivar esse direito e que ocorre já depois de findo o inquérito e tomada posição final pelo Ministério Público

A acção dirigida ao juiz de instrução, findo o inquérito, como é o caso, só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP. Só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.

Face ao texto resultante da revisão de 1998 já se devia, aliás, entender assim.

Com efeito, no texto que passou a vigorar, o Ministério Público findo o inquérito podia, além do mais, arquivar o processo, suspender provisoriamente o processo ou deduzir acusação.

E, como se viu, pois que nessa parte não houve alterações, o art. 307.º, n.º 2 já dispunha que o juiz de instrução, na “comprovação judicial” das opções do Ministério Público, podia pronunciar, não pronunciar ou suspender provisoriamente o processo, diligenciando, neste último caso, pela obtenção da concordância do Ministério Público.

Ou seja, a falada “comprovação judicial”, em espelho com os poderes conferidos ao Ministério Público, podia (pode) conduzir a um de três resultados possíveis, entre os quais se conta a suspensão provisória do processo; o que significa que o pedido formulado no requerimento que conduz à instrução e a esse “reexame” podia (pode) ser o da aplicação de qualquer uma dessas três soluções, incluindo, assim, a suspensão provisória do processo.

E as restantes regras do CPP convocadas não inviabilizam, mas favorecem este entendimento.

Com efeito, o n.º 1 do art. 286.º dispõe que “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Mas daí não se pode concluir pela exclusão da suspensão provisória do processo, uma vez que ela constitui uma “sanção penal” que conduz à não submissão (eventual) da causa a julgamento, ou seja a um dos fins visados exactamente pela instrução, através da comprovação judicial.

Isto é, o requerimento de abertura da instrução com vista à suspensão provisória do processo não viola a regra sobre a finalidade da instrução. A comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 citado, não pode ser restrita ao domínio do facto naturalístico, mas há-de compreender, sempre que relevante, a dimensão normativa dos factos, susceptível de conduzir ou não a causa a julgamento.

Depois, o requerimento de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (n.º 3 do art. 287.º do CPP).

Ora, em norma nenhuma do CPP se incluiu esta hipótese como sendo de inadmissibilidade (legal) da instrução.

Sobre a inadmissibilidade da instrução prevista na lei, que não incluiu o pedido de suspensão provisória do processo pode ver-se Simas Santos e Leal-Henriques, (Código de Processo Penal Anotado, II, 2ª Ed., pág. 163). Já em sentido contrário se coloca Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal…, pág. 738, anotação2-l) e pág.723, anotações 16-18], que ancora a sua posição no entendimento de que a posição do Ministério Público de determinação (ou não) da suspensão provisória do processo só é susceptível de reclamação hierárquica. No entanto, esta posição estará demasiado presa à origem da intervenção do juiz na suspensão provisória do processo, relacionada com a jurisprudência constitucional, quando, como se analisou, a evolução do instituto e a sua regulamentação apontam para uma atribuição de poderes ao juiz de instrução, em verdadeiro “espelho” em relação ao Ministério Público, que vai muito além da origem histórica da consagração da sua intervenção, tanto mais que, como se viu, pode agora ser requerida quer ao Ministério Público, quer ao juiz de instrução.

Finalmente, não se vê que a necessidade de concordância do Ministério Público, que não usou do instituto da suspensão provisória do processo, com a sua aplicação por “sugestão” do juiz de instrução, tão pouco inviabilize a possibilidade que se vem considerando.

Desde logo, não se pode esquecer que se trata, como se viu, de um espaço de diálogo e de consenso no seio do processo penal, que nasce, pois, da aproximação de posição inicialmente muito distantes ou até antagónicas; o primeiro dos pressupostos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 281.º para a suspensão provisória do processo é a «concordância do arguido e do assistente», que inicialmente se opõem nas suas posições. Do mesmo modo a circunstância de o Ministério Público não ter feito uso do poder-dever que aquele n.º 1 encerra não quer dizer que não concorde coma posição, argumentada, do juiz de instrução, que contribua para que a situação se apresente numa outra perspectiva e seja receptivo a uma mudança de posição.

Depois, como é o caso sujeito, sem serem, na essência, contestados os factos da acusação, é oferecida prova da verificação dos pressupostos do n.º 1 do art. 281.º do CPP, pelo que pode acontecer que da instrução resultarem verificados elementos necessários à suspensão do processo que, durante o inquérito não haviam sido suficientemente esclarecidos e assim se justificar a mudança de atitude do Ministério Público concordando com a suspensão provisora do processo quando anteriormente não fizera uso dessa possibilidade.

3.

Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, que deve ser substituído por outro que ordene a abertura da instrução, se outra razão a isso não obstar.

Sem custas.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008

Simas Santos (Relator)

Santos Carvalho

Rodrigues Costa