Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2302
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUÍS FONSECA
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
VALOR PROBATÓRIO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
POSSE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200407130023022
Data do Acordão: 07/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 6527/03
Data: 02/19/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- O documento particular, ainda que reconhecida a sua autoria, só pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante.
II- Nas relações com terceiros a declaração constante do documento particular, apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"A", Lda deduziu embargos de terceiro á execução ordinária para pagamento de quantia certa que "B", S.A. move contra a executada Construções ...-"C", Lda, pedindo que, recebidos os embargos e suspensa a execução, venham a final a ser julgados procedentes, levantando-se a penhora sobre os bens penhorados.
Alega para tanto que, na sequência do despacho proferido nos autos de execução apensos, foram penhorados bens móveis, sendo tais bens propriedade da embargante pois os adquiriu à sociedade D - Construções S.A.
Contestou a exequente, pedindo a improcedência dos embargos.
Saneado e condensado, o processo seguiu seus termos normais, realizando-se a audiência de Julgamento.
Foi proferida sentença onde, julgando-se improcedentes os embargos de terceiro, se ordenou o prosseguimento da execução relativamente aos bens penhorados a fls. 63 a 65 dos autos.
A embargante apelou, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 19 de Fevereiro de 2004, julgado improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
A embargante interpôs recurso de revista para este Tribunal, concluindo, assim, a sua alegação do recurso:
1- Extrai-se da factura e recibo nº 2016 de 31/5/2002 que os bens objecto de penhora foram transferidos e integrados no património da embargante, aqui recorrente, deixando os mesmos de pertencer à citada D - Construções, S.A.
2- A factura e o recibo nº 2016 de 31/5/2002, juntos aos autos a fls..., consubstanciam documentos particulares, aptos a demonstrarem o negócio de compra e venda neles titulado entre a recorrente e a sociedade D.
3- A recorrida não logrou demonstrar, nem sequer através de prova testemunhal que não produziu que a declaração de venda a que se reporta a factura nº 2016 e respectivo recibo, não correspondia à vontade de quem a emitiu ou que essa vontade haja sido afectada por vício de consentimento do declarante, ou sequer suscitou o incidente da falsidade dos documentos em crise.
4- Como estatui o nº 2 do artigo 376º do Cód. Civil, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
5- Ora, esta disposição normativa traduz uma presunção derivada da regra da experiência, segundo a qual quem afirma factos contrários aos seus interesses, o faz por saber que são verdadeiros.
6- Subsumindo o preceito legal em análise ao caso vertente, é óbvio que se a sociedade D não tivesse vendido à recorrente os bens objecto destes autos, não teria emitido recibo de quitação.
7- A recorrida não alegou a existência de simulação entre a recorrente e a sociedade D, em ordem a ilidir a força probatória da factura e recibo juntos aos autos a fls...
8- Desde que esteja estabelecida a autoria de documento particular e nele se contenha uma declaração feita ao declaratário e contrária aos interesses do declarante, como sucede no caso vertente, tal declaração representa uma confissão do seu autor, pelo que a esse documento deve ser atribuído valor probatório pleno, nos mesmos termos em que o é a confissão.
9- A recorrente goza da presunção da titularidade da posse dos bens objecto destes autos, dado inexistir outra presunção fundada em registo anterior ao início da sua posse.
10- Goza ainda a recorrente da presunção da realidade da escrita porquanto os documentos em questão, tituladores da aquisição por parte desta dos bens objecto de penhora em causa nestes autos, foram lançados na sua contabilidade como custos fiscais.
11- E esta presunção da realidade da escrita só é ilidível mediante prova em contrário que a recorrida não fez, sendo certo que o vendedor e o comprador dos bens em crise - in casu a Sociedade D e a recorrente, são ambas comerciantes, razão porque gozam de tal presunção.
12- Não tendo sido posto em causa a força probatória da escrita comercial da recorrente, impõe-se considerar que a factura e recibo nº 2016 de 31/5/2002 têm a força probatória plena por se tratar de documentos idóneos e aptos a provar a transmissão por via aquisitiva dos bens neles titulados.
13- Cumpriu assim a recorrente com suficiência o princípio geral do ónus da prova estatuído no art. 342º do Cód. Civil, carecendo por isso de falta de fundamentação mínima a decisão sobre a matéria de facto proferida em sede de 1ª instância.
14- Em todo o caso, por força da presunção da realidade da escrita consignada no art. 44º do Cód. Comercial, estamos perante uma situação de inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º do Cód. Civil.
15- Competindo por isso à recorrida ilidir a presunção legal decorrente da realidade da escrita da recorrente, o que não logrou fazer.
16- Assim, a diligência executiva em causa, ofendeu a posse e o direito de propriedade que a recorrente detém sobre os bens penhorados.
17- O acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 344º, 351º, 668º, nº 1, als. b) e c) do C.P.C., e 1251º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1268º e 1302º e segs. do Cód. Civil, e art. 44º do Cód. Comercial.
Contra-alegou a recorrida, pronunciando-se pela improcedência do recurso e pedindo a condenação da recorrente, como litigante de má fé, em multa e indemnização à recorrida não inferior a 2.500 euros.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
As instâncias julgaram apenas provado que no âmbito do processo de execução a que os presentes autos se encontram apensos, foram penhorados os bens móveis descritos no auto de penhora de fls. 63 a 65 cujo teor se dá por reproduzido.
É pelas conclusões da alegação do recurso que se delimita o seu âmbito - cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.
As questões suscitadas no recurso respeitam a saber se:
a) a factura e recibo nº 2016 de 31/5/02, constituem prova plena da transmissão dos bens que foram penhorados para o património da recorrente;
b) a recorrente goza da presunção da titularidade da posse dos bens que foram penhorados;
c) a recorrente goza da presunção da realidade da escrita, invertendo-se, assim, o ónus da prova.
Analisemos tais questões:
a) Dispõe o art. 374º, nº 1 do Cód. Civil que a letra e assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado.
Acrescentando o art. 376º, nº 1 do Cód. Civil que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
Neste caso, a embargada B impugnou a factura em questão, não fazendo tal documento prova plena das declarações nele contidas.
Aliás, ainda que a autoria de tais documentos (factura e recibo) esteja reconhecida, fazendo prova plena que a pessoa que assinou os documentos fez as declarações deles constantes, os mesmos já não fazem prova plena de que tais declarações são verdadeiras - cfr. acórdão do S.T.J. de 6/3/80 publicado na RLJ, ano 114, págs. 278 e segs., e as decisões e doutrina nele citadas e ainda o que consta da RLJ, ano 110-85, BMJ 318-415, 313-338, 239-165, 267-125, 268-204, 189-256, 295-374, CJ ano 76, pág. 762, XIII, tomo 5-197 e ainda Vaz Serra no BMJ 111 e 112.
Refere o Prof. Vaz Serra, R.L.J., ano 114, pág. 287: « Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.»
Portanto, o documento, ainda que reconhecida a sua autoria, só pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante.
Nas relações com terceiros a declaração constante do documento apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
Neste caso, a embargada "B" & Cª é terceira, valendo apenas as declarações constantes da factura e do recibo em causa, como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
As instâncias consideraram que tais documentos, não constituíam prova suficiente para julgar provado o quesito onde se perguntava se os bens móveis penhorados e descritos em A) foram adquiridos pela embargante à sociedade D - Construções S.A. em 31/5/02.
Não tendo havido ofensa de disposição da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - cfr. art. 722º, nº 2 do C.P.C., este Tribunal não pode censurar eventual erro na apreciação das provas, feita pelas instâncias.
Competia à embargante provar o facto constitutivo do seu direito - cfr. art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, isto é, que os bens penhorados haviam sido por si adquiridos, tendo, pois, o ónus da prova de tal facto, não o tendo logrado fazer, suportando, pois, as respectivas consequências.
b) Afirma a recorrente que goza da presunção da titularidade da posse dos bens objecto dos autos, dado inexistir outra presunção fundada em registo anterior ao início da sua posse.
Mas o que está previsto na lei - art. 1268º, nº 1 do Cód. Civil, é que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
Quer dizer, caso a recorrente estivesse na posse das coisas penhoradas, gozava da presunção da titularidade do direito.
Mas a recorrente não fez prova da posse.
Portanto não beneficia da presunção legal.
c) Afirma a recorrente gozar da presunção da realidade da escrita, só ilidível mediante prova em contrário que a recorrida não fez, estando-se perante uma situação de inversão do ónus da prova.
Trata-se de uma questão nova pois não foi levantada anteriormente a este recurso.
Ora, os recursos visam o reexame e modificação das decisões recorridas, não criar decisões sobre matéria nova - art. 676º, nº 1 do C.P.C., na interpretação jurisprudencial pacífica - cfr. entre outros, o acórdão do S.T.J. de 21/3/93, C.J./S.T.J., ano I, tomo I, pág. 70.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.
A recorrida pediu a condenação da recorrente como litigante de má fé.
A recorrente apresentou uma solução jurídica da causa que não foi acolhida por este Tribunal.
Porém, tal não significa que esteja a litigar de má fé.
Com efeito, «Tem a doutrina e a jurisprudência entendido, sem discrepâncias, que a sustentação de teses controvertidas na doutrina e a interpretação de regras de direito, ainda que especiosamente feitas, mesmo que integre litigância ousada, não integra litigância de má fé (cfr. Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, 2º vol., pág. 263, o parecer do Conselho Superior da Ordem dos Advogados publicado na Revista daquela Ordem, nº 10, pág. 516, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Julho de 1982, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 319, págs. 319, págs. 301 e s., e Acórdão nº 376/91 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 2 de Abril de 1992)» - cfr. Ac. nº 200/94 do Trib. Const. De 1/3/1994; DR, II, de 30/5/1994, pág. 5315, citado pelo Dr. Abílio Neto, « Código de Processo Civil Anotado », 16ª ed. actualizada, pág. 638.
Pelo exposto, nega-se revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Não se condena a recorrente como litigante de má fé.
Custas pela recorrente.

Lisboa,13 de Julho de 2004
Luís Fonseca
Lucas Coelho
Santos Bernardino