Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
363/07.7TVPRT-D.P2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DUPLA CONFORME
PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
MEIOS DE PROVA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A), B) E C) E 2, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 23-11-2011, PROCESSO N.º 1079/07.7TBPRT.P1.S1;
- DE 08-02-2018, PROCESSO N.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-02-2018, PROCESSO N.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1, IN WWW.DSGI.PT;
- DE 17-04-2018, PROCESSO N.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1, SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 24-04-2018, PROCESSOS N.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1, SASTJ, WWW.STJ.PT;
Sumário :
I. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, a rejeição da impugnação da matéria de facto pela Relação, com fundamento em incumprimento do ónus do art. 640º do CPC, pode, se tal rejeição for injustificada, configurar uma violação da lei processual que, por ser imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias enquanto obstáculo à admissibilidade da revista.

II. O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer parte da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação dos “concretos pontos de facto” considerados “incorrectamente julgados” (alínea a) do nº 1), nem dos “concretos meios probatórios” determinantes de decisão diversa (alínea b) do nº 1), nem ainda da “decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c) do nº 1), nem até mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (alínea b) do n.º 2), mas antes a omissão das “razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida”.

III. Na interpretação da referida norma legal não se vislumbra que tal sentido interpretativo, de acrescida exigência, encontre suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação, entendimento que se afigura inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência do STJ no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo.

IV. Em conformidade, conclui-se pela verificação de ofensa às normas processuais ao ter a Relação rejeitado parcialmente a impugnação da matéria de facto com fundamento no não cumprimento do ónus do art. 640º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. Por apenso ao procedimento cautelar para entrega judicial do bem locado, na sequência da resolução de um contrato de locação financeira que o Banco AA, S.A., moveu contra Garagem BB - Comércio de Automóveis, Lda., deduziu a Garagem CC, Lda. embargos de terceiro.

Pede a embargante:

- Que lhe seja reconhecida a qualidade de terceiro relativamente àquele procedimento cautelar, bem como a qualidade de possuidora do prédio urbano, cujos números de inscrição na matriz e de descrição na Conservatória do Registo Predial são, respectivamente, os artigos 548 e 549, os dois urbanos da freguesia de …, do concelho de … e as fichas números 00…5/09…88 e 00…6/09…88 da Conservatória do Registo Predial …;

- Que seja reconhecido e declarado que é credora da embargada/requerente, pelo montante de € 1.186.103,85, que esta seja condenada no pagamento dessa importância, e que seja reconhecido que goza, relativamente a tal crédito, do direito de retenção sobre o imóvel supra identificado.

Alega, em síntese, que, na sequência de um contrato de trespasse celebrado com Garagem DD - Reparação de Automóveis, Lda., em 01-10-2005, passou a ser possuidora (e proprietária) do estabelecimento comercial instalado no aludido imóvel, aí exercendo, desde então, a sua actividade comercial; estabelecimento comercial que a trespassante, por sua vez, havia adquirido, por contrato de trespasse celebrado em 19-08-2005, a Garagens BB – Comércio de Automóveis, Lda. – a embargada/requerida; esta, na sequência da celebração de um contrato de locação financeira com o Banco AA, S.A. – também embargado – havia erigido a edificação onde se encontra instalado o estabelecimento comercial, do que resulta um crédito sobre aquele, relativo a despesas com as obras que aí realizou, no montante de € 1.186.103,85; crédito este que, por força dos aludidos negócios de trespasse, ingressou na esfera jurídica da embargante; o que lhe confere o direito de retenção sobre o edifício onde se encontra instalado o estabelecimento comercial trespassado; direito este ameaçado pelo deferimento da providência cautelar de entrega do bem locado ao Banco AA, S.A.

Liminarmente recebidos os embargos, e notificadas as partes primitivas, o Banco BPI, SA., embargado/requerente, apresentou contestação, na qual invoca a existência de caso julgado entre os presentes embargos e o processo de idêntica natureza que constitui o apenso B); a inoponibilidade, relativamente a si, das entregas a terceiros do imóvel locado pois jamais consentiu em qualquer cessão na posição contratual de locatária financeira que a embargada/requerida, Garagem BB - Comércio de Automóveis, Lda., detinha no contrato de leasing que haviam celebrado, e que teve por objecto mediato o mencionado imóvel; invoca o instituto da desconsideração da personalidade jurídica da embargante; alega que os contratos de trespasse a que aquela alude na sua petição inicial enfermam de vício de nulidade, por simulação; impugna parte da factualidade alegada; e conclui pela condenação da embargante como litigante de má-fé.

Houve réplica.

No despacho saneador conheceu-se imediatamente do mérito da causa, julgando-se os embargos improcedentes.

Entendeu-se, essencialmente, não se verificarem os seguintes pressupostos do direito de retenção: detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem; ser o detentor credor da pessoa com direito à entrega.

Inconformada, a embargante interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Por acórdão de fls. 674, determinou-se o prosseguimento dos autos para apreciação da matéria controvertida.

Identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova realizou-se o julgamento. Após o que foi proferida sentença, a fls. 1494, na qual se decidiu julgar os embargos improcedentes.

De novo inconformada, apelou a embargante, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 1618 foi parcialmente rejeitada a impugnação da matéria de facto e, na parte apreciada, foi essa matéria pontualmente alterada. A final foi proferida decisão de improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


2. Vem a embargante interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1. “No recurso que, oportunamente, a requerente interpôs da decisão proferida em 1ª instância, impugnou ela além do mais, a decisão em tal 1ª instância proferida, quanto à matéria de facto, cumprindo religiosamente todas as exigência[s] exigidas por lei, designadamente pelo artigo 640.°, do CPC, quantos aos recursos relativos à matéria de facto.”

2. “Pelo que, ao ter rejeitado, como rejeitou, o recurso em causa, no que tange à impugnação da matéria de facto, violou o acórdão sob recurso, o comandado nos artigos 640.° e 662.°, os dois do CPC.”

3. “Motivos pelos quais deverá tal acórdão ser anulado, determinando-se que o processo baixe ao Tribunal da Relação do Porto, para que aí seja reapreciada a prova produzida nos autos, tirando-se, dessa reapreciação, as necessárias consequências legais, o que tudo se peticiona.”

         Não houve contra-alegações.


3. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, a rejeição da impugnação da matéria de facto pela Relação, com fundamento em incumprimento do ónus do art. 640º do Código de Processo Civil, pode configurar uma violação da lei processual que, por ser imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias enquanto obstáculo à admissibilidade da revista. Assim, o presente recurso, tendo unicamente como objecto essa questão, é admissível.

        Cumpre apreciar e decidir.


4. Vêm provados os seguintes factos (sem numeração nas decisões das instâncias):


- Em 24 de Julho de 2002, entre a embargada Banco AA, S.A, na qualidade de locadora, e a embargada Garagem BB – Comércio de Automóveis Lda., na qualidade de locatária, esta última representada por EE, seu sócio-gerente, foi celebrado o “contrato de locação financeira imobiliária (construção)” de que consta cópia de fls. 86 a 101, que se dá por integralmente reproduzido nas suas cláusulas e dizeres e tendo por objecto o imóvel acima referido, com os números de inscrição na matriz e de descrição na Conservatória do Registo Predial são, respectivamente, os artigos 548 e 549, os dois urbanos da freguesia de Constantim, do concelho de … e as fichas números 00…5/09…88 e 00…6/0…88, da freguesia de …, Conservatória do Registo Predial de …, sendo o montante de financiamento à construção no valor de 997.595,79 euros e sendo o montante máximo de investimento no valor de 1.032.511,65 euros;

- Tal contrato, por acordo dos seus intervenientes, em Fevereiro de 2003, teve a alteração constante do documento de fls. 115 a 118, que se dá por reproduzido nos seus dizeres e em que além do mais, se alteraram os valores de financiamento à construção e montante máximo, para 1.223.054,15 euros e 1.257.970,00 euros, respectivamente;

- Posteriormente, o acima referido EE, na qualidade de sócio-gerente dessas empresas, efectuou os “contrato de trespasse” e “rectificação”, cujas cópias se mostram juntas de fls. 74 a 85 e se dão por reproduzidos, nos quais foram incluídas a posição de locatária no contrato de leasing acima referido;

- A embargada Banco AA, S.A não teve conhecimento dos trespasses à data dos mesmos, nem deu a sua autorização para a cessão de posição contratual, sendo-lhe posteriormente comunicados tais trespasses (cfr. doc. de fls. 177, que se dá por reproduzido);

- Por carta datada de 26 de Agosto de 2005 o Banco Embargado comunicou à Garagem BB - Comércio de Automóveis, Lda. que “é nossa intenção procedermos à resolução do mesmo [o contrato de locação financeira], caso não efectuem o pagamento das rendas que deixaram de liquidar, acrescidas dos respectivos juros de mora, no prazo de 30 dias contados desde a data da recepção da presente carta”;

- Datada de 15 de Setembro de 2005, a embargada Banco AA, S.A remeteu à co-embargada carta em resposta à que havia recebido em 2 de Setembro de 2005, comunicando-lhe, entre o mais, que “nos termos do artigo Décimo Segundo das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira Imobiliária [Construção], Contrato nº 9…35, V. Exas. estão impedidos de ceder a V. posição contratual, sublocar ou de qualquer forma permitir a utilização do imóvel locado por terceiros, total ou parcialmente, salvo prévia e expressa autorização do Banco AA. Nesse sentido, o Banco AA, expressamente comunica a V. Exas não prestar o seu consentimento ao negócio descrito, não autorizando a ocupação do imóvel por parte de qualquer outra entidade que não

V. Exas.”;

- Todas as pessoas colectivas acima referidas, embargante, co-embargada e Garagem DD, constituem uma única e só entidade de facto;

- Os destinos de todas elas desde sempre foram comandados pela mesma pessoa de sempre, o acima referido EE, sendo ele quem toma todas as decisões por cada uma das referidas sociedades, decidindo com quem elas contratam e em que condições o fazem, tendo-se convencido que, efectuando os trespasses, com os mesmos seria também transmitida a posição contratual no contrato de locação financeira;

- A embargante não é parte no procedimento cautelar apenso; mantendo-se a mesma no mais [aditado pela Relação]


Foi dado como não provado o seguinte facto

- Que o custo total da construção tenha ascendido ao valor de 2.409.158,00 euros, tendo a co-embargada (Garagem BB), pago todas as despesas e/ou valores elencados no art. 58 do requerimento inicial de embargos.


5. Como se referiu supra, tem este recurso como objecto unicamente a questão da alegada violação da lei processual ao ter a Relação rejeitado parcialmente a impugnação da matéria de facto com fundamento em incumprimento do ónus do art. 640º do CPC.

    O acórdão recorrido decidiu não conhecer do recurso de apelação na parte em que vinha impugnada a decisão da matéria de facto que especificamente recaiu sobre os seguintes pontos:

- “Todas as pessoas colectivas acima referidas, embargante, co-embargada e garagem S. Cristóvão V, constituem uma única e só entidade de facto” (provado)

- “O custo da construção tenha ascendido ao valor de 2.409.158, 00, tendo a co-embargada (Garagem BB) pago todas as despesas e/ou valores elencados no art. 58 do requerimento inicial de embargos” (não provado)


Da fundamentação do acórdão recorrido, após referência a que a apelante fundara a impugnação destes pontos da matéria de facto em documentos e depoimentos de testemunhas que especificamente havia identificado, tanto pela referência às folhas dos autos respectivas como pela identificação do nome e transcrição dos excertos relevantes, consta o seguinte:

      “A recorrente, todavia, nada diz sobre as razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida. Ou seja, pretende que este Tribunal reanalise aquela prova, mas sem indicar as razões da sua discordância relativamente à decisão proferida pelo tribunal recorrido. Pelo que se desconhecem, nesta parte, os fundamentos do recurso.

Ora, como se entendeu no Ac. do STJ de 23-11-2011, in CJ, XIX, III, 126:

 “I - Deve ser rejeitada – sem qualquer prévio convite ao aperfeiçoamento – a impugnação da matéria de facto em que apenas se invoque, genericamente, que da audição e ponderação do teor das testemunhas, conjugadas com os documentos juntos, impõe uma resposta diversa aos pontos da matéria de facto que se indicam;

II - Efectivamente, a lei exige que se alegue o porquê da discordância, que se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido;

III - Exigência esta também imposta pelo princípio do contraditório, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar.

Pelo que se rejeita o recurso da decisão de facto, nesta parte”. [negrito nosso]


Insurge-se a Recorrente contra o entendimento do acórdão recorrido.

Vejamos


5.1. Dispõe o art. 640º do CPC:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

(…).”


O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer parte da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação dos “concretos pontos de facto” considerados “incorrectamente julgados” (alínea a) do nº 1), nem dos “concretos meios probatórios” determinantes de decisão diversa (alínea b) do nº 1), nem ainda da “decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c) do nº 1), nem até mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (alínea b) do n.º 2).

   Na verdade, compulsada a apelação, verifica-se que tais ónus se encontram integralmente cumpridos no capítulo intitulado “Impugnação da Decisão Relativa à Matéria de Facto”, fls.1517v a fls.1536, onde a apelante, ora recorrente, subdivide aquelas prescrições em três alíneas (A), B) e C)) e em cada uma alega, autonomamente, o que se lhe oferece, revelando um esforço suficiente na compreensão e na concretização das exigências legais.

      Antes enuncia o acórdão recorrido, como sendo relevante, a omissão das “razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida”, sem, contudo, identificar, de entre os previstos nas supra reproduzidas três alíneas do nº 1 do art. 640º do CPC, o segmento normativo que a apelante incumpriu. 

       Procurando interpretar o sentido da fundamentação do acórdão recorrido, dando-lhe um sentido útil, afigura-se ter a Relação entendido que o legislador – ao impor, na referida alínea b) do nº 1 do art. 640º do CPC, que o recorrente especifique “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” – exigiria também que o mesmo recorrente se pronunciasse sobre a valoração alegadamente correcta desses mesmos meios de prova, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada.

      Na interpretação da referida norma legal, não se vislumbra que tal sentido interpretativo, de acrescida exigência, encontre suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação.

            Senão vejamos.

Não encontra suporte no elemento literal da interpretação normativa porque a especificação dos concretos meios probatórios mais não é do que a identificação individualizada de cada um deles.

      Não encontra suporte no elemento sistemático da interpretação porque, por um lado, a lei estipulou, na alínea a) do nº 2, a especificação dos meios probatórios gravados e aí se bastou com a obrigação de o apelante indicar com exactidão as passagens da gravação e não também de indicar aquelas razões, depreendendo-se vontade deliberada em não incluir esta outra indicação no referido ónus; e porque, por outro lado, em lugares paralelos de consagração e disciplina de outros ónus de alegação recursórios, quando entendeu existir necessidade de exigir ao recorrente a exposição das razões concretas de certa alegação, o legislador o consagrou expressamente (ver maxime quanto ao ónus de alegação dos pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 672º do CPC, a respeito da admissibilidade do recurso de revista por via excepcional).

      Tampouco a sobredita interpretação normativa encontra suporte no elemento teleológico da interpretação, uma vez que, exigindo-se ao tribunal da Relação que, na reapreciação da matéria de facto, proceda ao exame crítico e autónomo das provas formando a sua própria convicção (cfr. arts. 662º, nº 1, 663º, nº 2 e 607º, nº 4, todos do CPC) – não dependente portanto da convicção formada em 1ª instância nem da convicção apresentada pelo apelante – bastará para esse efeito a indicação dos meios de prova que, no entender do apelante, serão relevantes para a pretensão de ver proferida decisão de facto diversa, sendo inútil a enunciação das razões concretas conducentes a tal decisão.

      Esclareça-se ainda que não se afigura que a falta da indicação dessas razões conduza à afectação do princípio do contraditório, na medida em que o apelado, conhecendo os meios de prova em que o apelante sustenta a pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto, dispõe das condições para contraditar tal pretensão.


5.2. Aqui chegados, importa assinalar que a posição ora assumida em resultado da interpretação do regime legal aplicável é inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.


5.3. Por fim, assinale-se que o acórdão do STJ de 23-11-2011 (proc. n.º 1079/07.7TBPRT.P1.S1), cujo sumário é citado no acórdão recorrido em abono da posição nele assumida, apreciou uma situação de facto diferente da aqui tratada, uma vez que, naquele caso, o apelante havia alegado tão-somente que “da audição e ponderação do teor das testemunhas, conjugadas com os documentos juntos aos autos, parece [se] impor uma resposta diversa à matéria dos pontos dos factos a provar”, acrescentando que “deverão assim ser alteradas as respostas à matéria de facto”, o que, no referido acórdão, se sancionou com a rejeição do recurso, subsistindo a dúvida sobre se seria esse desfecho se porventura o aí apelante tivesse identificado os depoimentos relevantes, tivesse indicado o início e o fim da gravação dos trechos importantes e tivesse efectuado a transcrição dos mesmos, tal como foi feito no caso dos autos.


     Conclui-se, assim, pela verificação de ofensa às normas processuais ao ter a Relação rejeitado parcialmente a impugnação da matéria de facto com fundamento no não cumprimento do ónus do art. 640º do CPC.


6. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a baixa dos autos à Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, se apreciar integralmente da impugnação da matéria de facto, designadamente dos pontos cujo conhecimento foi rejeitado.


Custas pelo Recorrido.


Lisboa, 17 de Dezembro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relator)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho