Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
611/17.5T8MTS-B.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
Data do Acordão: 09/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

A admissibilidade de um recurso de revisão fundado na falsidade de um depoimento não exige que tal falsidade tenha sido previamente reconhecida por sentença transitada em julgado nem tão pouco que esse depoimento tenha sido a causa exclusiva da decisão do Tribunal.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 611/17.5T8MTS-B.P1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA interpôs recurso de extraordinário de revisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.12.2018, que confirmou integralmente a sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho ..., no qual fora declarado lícito o seu despedimento.

Foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação ... que decidiu o seguinte: “Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Social em não admitir o recurso extraordinário de revisão, do acórdão do TRP de 18.12.2018, por inexistir motivo para a sua revisão.”

Notificado do Acórdão, AA interpôs recurso de revista.

O seu recurso apresenta as seguintes Conclusões[1]:

“1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20 de Setembro de 2021, que não admitiu o recurso extraordinário de revisão interposto pelo recorrente, do acórdão do TRP de 18/12/2018, por (alegadamente) inexistir motivo para a sua revisão;

2. Na súmula, da responsabilidade do signatário: A -  Não foi expressa qual a falsidade contida nas declarações de parte de BB; B - O nosso sistema jurídico-processual não impede que o julgador chegue a duas decisões aparentemente contraditórias em jurisdições diferentes, fruto do princípio da livre apreciação da prova e das regras específicas de cada jurisdição, in casu a laboral e a penal; C -    Face à conclusão anterior, era ainda mais imperioso ter sido alegada a concreta falsidade do depoimento e o nexo de causalidade com a decisão a rever;

3. O Acórdão cuja revisão se pretende, validou a sentença do Tribunal do Trabalho ... que se escorou nos documentos juntos a fls. 50v a 52 - certidão extraída do processo-crime com o auto de notícia e o auto de constituição de arguido e na decisão instrutória do processo crime - a fls. 136v a 141 - onde o recorrente havia sido pronunciado pela prática de um crime de furto qualificado;

4. Em termos de prova testemunhal as duas testemunhas ouvidas - CC e DD, agentes da Polícia de Segurança Pública -valeram na fundamentação da decisão da matéria de facto: “As testemunhas CC e DD, agentes da PSP, confirmaram as diligências efetuadas por esta autoridade policial e confirmação da convicção de que a autoria do furto pertencia ao autor destes autos. Afirmaram ainda que, para além do reconhecimento da pessoa do autor nas imagens de videovigilância por pessoas que bem o conheciam, pelo modo como foi praticado o furto era evidente que se tratava de alguém que conhecia muito bem o interior das instalações, o local onde estavam colocados os sensores de alarme e mesmo as câmaras de vigilância.”

5. Referiram-se sempre à convicção da entidade empregadora na pessoa do seu administrador BB, que lhes foi transmitida durante a investigação.

6. Como ficou escrito na peça inicial do Recurso de Revisão: “A pedra basilar da sentença foram as declarações de parte de BB -administrador e legal representante da Ré, tendo ficado manifestado na sentença: “No julgamento realizado nos autos prestou declarações BB, administrador e legal representante da ré, o qual descreveu com minúcia os factos decorridos, caracterizando a surpresa e o choque que sentiu quando se apercebeu que era o autor quem aparecia nas imagens de videovigilância. Afirmou que nunca lhe suscitou quaisquer dúvidas que a pessoa que via nas imagens era o autor (não só pela forte semelhança da figura, como pelo modo de andar), mas para obter confirmação chamou outros trabalhadores da ré, próximos do autor, os quais corroboraram sua convicção. Apesar da qualidade do depoente, o seu depoimento foi inteiramente credível pela espontaneidade e coerência com que foi prestado, pela sinceridade revelada em sua postura e a ausência de qualquer outra razão para que imputasse a autoria dos factos ao autor que a sua certeza. Na verdade, deste depoimento (e sem que nada nos autos o contrariasse) resulta que a ré depositava inteira confiança no autor, havendo uma proximidade relacional entre este e as chefias da ré, de modo que se sentiram fortemente abalados com a constatação dos factos.”

7. O referido BB refere a sua convicção pessoal (e alegadamente dos colegas de trabalho do A. [que não foram ouvidos]), que viram as imagens e reconheceram o A. não só pela forte semelhança da figura (rosto e corpo), como também pelo modo de andar.

8. Mais, o recorrente foi absolvido no processo-crime sobre os mesmos factos, por acórdão unânime do Coletivo do Juiz 3, do Juízo Central Criminal ..., de 6 de Fevereiro de 2020, confirmado integralmente por decisão sumária do TRP.

9. Sendo que o recorrente não foi absolvido com base no princípio in dubio pro reo, mas porque os Juízes que compunham o Coletivo ficaram completamente convencidos que não foi o ele a praticar os factos.

10. As declarações do BB, tal como relatadas (sic) no acórdão crime: - “é legal representante da assistente desde há 25 anos. Conheceu o arguido quando este lá começou a trabalhar. O arguido era responsável e bom funcionário, estava no top 10 das “pessoas mais importantes da empresa” (sic). Era estimado por todos, cumpridor. Era também amigo do arguido – foi ao casamento e algumas festas em casa do arguido e da esposa, que também foi trabalhadora da empresa. Jogavam todos futebol. Numa segunda feira de manhã, pelas 8:00 h, ligaram dando conta que tinham sido assaltados. Quando lá chegou constatou que estava tudo remexido e já lá estavam 2 agentes da polícia. Afirmou que o arguido também esteve presente na visualização das imagens. Existem 60 câmaras nos 3 armazéns. Esclareceu que não houve disparos de alarmes – não sabiam se tinha sido na sexta à noite, no sábado ou no Domingo – saíram pelas 21:00 h/23:00 h. Os trabalhadores da assistente EE e FF foram os primeiros a chegar na segunda à empresa. A foto 7 – fls. 21 – corresponde à telha que foi partida. Nos circuitos de CCTV viu uns vultos a rastejar numas partes dos corredores do armazém – havia um buraco na parede – mas não foi por aí que entraram “porque aí havia alarmes” (sic). Continuou, narrando que quando chegou à empresa foi logo ao “galinheiro” – de onde tinha sido retirado telemóveis. A rede tinha um buraco ao fundo, na rede que cortaram. A porta do galinheiro fica sempre aberta. Em frente à porta tem câmaras de CCTV (2 ou 3) e dois sensores de alarme (de movimento). Questionado, disse que os alarmes do teto têm abrangência até 30 cm acima do nível do solo. Os sensores de parede têm abrangência de 15 metros/20m. Vão até ao solo. Só fora do galinheiro é que há sensores, tanto de teto, como de parede. Os sensores de parede estão junto das entradas. A meio dos corredores tem ideia que não existem. Onde o vulto rastejava só há sensor de teto. O declarante não sabia da abrangência dos sensores. Os aspetos físicos dos sensores são diferentes e estão colocados em locais diferentes. Por onde o vulto rasteja só há um sensor de teto. Onde fizeram o buraco na rede não havia qualquer sensor, nem de parede, nem de teto. Havia uma câmara de vigilância. Há imagens de uma lanterna a movimentar-se e a pessoa a entrar e depois a rastejar no galinheiro certamente para fugir à CCTV. Cada corredor tem duas câmaras de vigilância - um em cada ponta - filmam cerca de 1/2 metros para a frente. O código do alarme é pessoal - têm as pessoas que ter autorização para tal. Viram as imagens de CCTV (o declarante e o arguido que o acompanhava na ocasião) - tentaram focar as imagens da camara 12 - onde estava o buraco na rede. Conseguiram balizar a hora. A meio da tarde vê imagens onde vê uma cara, reconhecendo de imediato o arguido: pelo andar (de meio do corredor para cá) - “Tem um gingar próprio, pés para fora”. Quando a imagem capta a cara, confirmou a sua suspeita inicial. Desde o vulto a andar, até à captação da cara: 5/10 segundos, no total. Depois disto fez uma pausa. Disse ao arguido para ir para a sala dele. Regressou para ver as imagens e repetiu - chamou a GG e viram os dois e ainda a HH. O arguido e o declarante viram logo de início as imagens - o arguido não objetou nem manifestou qualquer reserva para desempenhar tal tarefa. Foi depois o Eng. II quem fez a captação e zoom das fotos 1 a 3 - fls. 46 e ss. Entregaram depois todos estes elementos à polícia. Depois chamou o arguido e perguntou-lhe “Você sabe porque estamos a desconfiar de si?”. O arguido ripostou, perguntando repetidamente “Esta a desconfiar de mim, está a desconfiar de mim?”. Na terça feira a polícia viu as imagens e foram falar com o arguido. No dia seguinte, pelas 9:00h atendeu um telefonema do arguido (n. desconhecido), “Não fui eu, não fui eu”, “Venha a empresa falar connosco”. Nunca mais o arguido veio falar com a empresa. A instâncias do Assistente declarou: durante o dia o arguido ficou, por vezes, sozinho a ver as imagens de CCTV. Era normal, o depoente teve que se ausentar por vezes. O seguro nada pagou, pois que o contrato continha uma cláusula de exclusão de responsabilidade em caso de furto por funcionário. À defesa do arguido respondeu: as imagens de fls. 41 e ss. não têm apontado a hora. A primeira imagem em que aprece o vulto tem registada a hora 00:36:45 h. Esta câmara (camara 12) tinha um adiantamento de hora de 11 minutos. A hora real seria de 00:25:45 h. O mesmo sucedia com as demais câmaras, nos seguintes moldes: “Pc 1: adiantamento de 13 minutos; PC 2: adiantamento de 15 minutos; PC 3: adiantamento de 11 m (inclui camara 12); PC 4: adiantamento de 13 m.” (sic). O teto do escritório é o mesmo do “galinheiro”: mas por cima desta cobertura tem 7 ou 8 alarmes. Todos sabem que a porta do galinheiro estava aberta. Do local 12 apontado na foto n.º 2 de fls. 21 àquele assinalado na foto n.º 6 de fls. 22, “pelo menos demoraria 20 minutos”. (sic). O arguido estava a construir uma casa - queixava-se que ganhava pouco. Mas só isso. No departamento do arguido há mais alarmes - de tecto e de parede - é mais difícil aí entrar do que na zona do galinheiro.

11. Posto isto, ficou escrito no acórdão do crime:

Sendo estes os meios de prova coligidos para os autos, que considerações a tecer sobre os mesmos? Começamos por dizer que as diligências realizadas pela PSP, documentadas nos autos e esclarecidas pelas supra apontadas testemunhas, conseguiram determinar o percurso que o assaltante efetuou para entrar nas instalações da assistente e dentro destas, tendo sido analisadas as imagens de videovigilância, as quais permitiram visualizar um indivíduo no interior das instalações da assistente a cometer os factos objeto dos autos. Mas a questão cerne é a de saber se se pode afirmar, com a certeza necessária e bastante e processo penal, que tal indivíduo é o aqui arguido. E temos para nós que sérias e incontornáveis dúvidas persistem que obstam a dar uma resposta positiva a tal pergunta, antes ficámos convencidas de que não foi o arguido quem praticou tais atos.

12. Concluindo o coletivo: E tais dúvidas não se dissiparam, ao invés, com o exame realizado e documentado a fls. 211 a 251, que visou o confronto dos fotogramas extraídos das imagens recolhidas pela CCTV com as imagens extraídas da página do facebook do arguido, porquanto aí se concluiu que “(…) as provas de imagem suportam de forma limitada a afirmação de que (…)” se trata da mesma pessoa. As afirmações do legal representante da assistente de que reconheceu o arguido como sendo o indivíduo captado nas imagens das câmaras da CCTV “pela sua forma peculiar de andar”, o que foi corroborado por algumas das testemunhas acima identificadas, o certo é que tal se mostra insuficiente para afastar as tais fundadas dúvidas. Mais se diga que a forma pouco precisa/descritiva como o legal representante deu nota em que consistia tal “peculiar” andar, remetendo-se para um certo “gingar”, pouco ou nada acrescentou para o esclarecimento das apontadas dúvidas.  Também a descrição feita pela testemunha FF – Era andar do arguido - um andar um pouco aberto” - foi genérica, sendo que a testemunha EE nada acrescentou - O andar foi-lhe familiar, mas não foi por aí (sic). Temos, no entanto, a descrição mais concreta feita pela testemunha JJ - O arguido tem uma “forma de andar dançante, pernas ligeiramente arqueadas, forma descontraída com os pés ligeiramente para fora” (sic). No entanto, diga-se que tal descrição não se deveu à espontaneidade da testemunha, mas a uma insistência do tribunal para que, tanto quanto possível, traduzisse por palavras a sua inicial descrição “forma particular de andar”. Na sessão de julgamento seguinte, as demais testemunhas afirmaram as testemunhas KK, II, LL e MM, a este propósito, o seguinte, respetivamente: “O arguido abre os pés para o lado um pouco. Balança o corpo/ginga”; “pés para fora, dançante e curvado (não é recto)”; “afasta os pés tipo NN, coloca o peso mais na ponta dos pés” e, por fim, “forma descontraída, ginga, balança, pés para fora. O individuo caminhava a uma velocidade normal - parecia que tinha todo o tempo do mundo”. Sendo certo que o fizeram já de uma forma mais escorreita quando em confronto com o depoimento da testemunha JJ, o certo é que não podemos esquecer que tais depoimentos foram prestados na sessão seguinte de audiência de julgamento… Quanto a este particular ponto - a forma de andar - temos para nós que a pessoa retratada nas imagens captadas no interior do armazém da assistente, quando confrontadas estas com aquelas outras captadas no exterior do ..., onde, aliás, a testemunha LL reconheceu o arguido, não se trata da mesma pessoa. Isto é: tendo este coletivo visto ambas as imagens vídeo, não conseguimos estabelecer correspondência entre as formas de andar das figuras humanas captadas nos dois referidos filmes, nem tão pouco o filme captado nas instalações da assistente permite retirar as apontadas características do andar do arguido dadas pelas testemunhas arroladas na decisão instrutória (que frise-se, não são, ademais, coincidentes, nas descrições feitas). Mais: o indivíduo retratado nas imagens captadas no interior do armazém da assistente apresenta, para este coletivo, uma compleição física diversa da do arguido - coxas mais estruturadas/largas do que as deste, o mesmo sucedendo com o tronco. E foi esta, desde logo, a primeira impressão que nos causaram tais imagens. Diga-se que de forma curiosa esta foi a mesma percepção que tiveram as testemunhas arroladas pela defesa que afirmaram ter visto essas mesmas imagens, pelo que se concluiu pela espontaneidade e veracidade dos seus depoimentos. Frise-se ainda que o segmento de vídeo captado no interior das instalações da assistente em causa nos autos em que é visível uma pessoa a andar na direcção da câmara que depois vem a desligar é breve e fugaz, tornando-se quase imperceptível, numa primeira visualização, lograr distrinçar em concreto a identidade de quem quer que seja, pelo que muito se estranha a reação que a testemunha LL descreveu ter tido ao ver a imagem em filme corrido a pedido do BB, sendo que salvaguardou esta testemunha não ter tido memória se a imagem foi parada ou não. E que credibilidade atribuir às demais testemunhas indicadas na decisão instrutória inquiridas que afirmaram em audiência a sua firme convicção de que era o arguido a pessoa captada em tais imagens? Nenhuma. Vejamos as razões: à testemunha FF foram em primeira linha exibidos os fotogramas extraídos de tais imagens e juntos aos autos; às testemunhas II e MM começou por ser exibida uma imagem parada e só depois, cerca de uma hora depois, viu a imagem em movimento. Quando às testemunhas EE, JJ e KK tais imagens lhe foram exibidas, já se comentava no seio da empresa que o arguido seria um dos suspeitos. Diga-se ainda que não se compreendem as razões pelas quais a testemunha LL “viu, depois, as imagens vezes sem conta”, como afirmou em audiência. Torna-se assim incompreensível quais as razões que levaram as apontadas testemunhas a desenvolver os necessários mecanismos psicológicos para o seu autoconvencimento que de forma tão veemente verbalizaram em sede de audiência de julgamento, pois que com base nos mesmos dados - leia-se, nas imagens vídeo e nas fotos juntas aos autos - não logrou este coletivo alcançar o mesmo resultado, ao invés. E contra isto não se diga que as testemunhas tinham mais um dado do que este coletivo, qual seja o de conhecerem e conviverem com o arguido desde há vários anos. Se tal é verdade, o mesmo se verificou com as demais testemunhas que afirmaram não ter reconhecido nessas mesmas imagens (leia-se, no interior do armazém da assistente) o aqui arguido. A este propósito cabe ainda frisar que o presente julgamento se estendeu por várias sessões, nas quais sempre o arguido esteve presente, tendo sido possível a imediação por este tribunal quanto à sua compleição física, à sua postura física e ainda à sua forma de andar. De tudo isto, e da observação atenta que fez este coletivo de tais imagens, ficamos tentados em afirmar que nos parece temerária a convicção firme trazida ao julgamento pelas testemunhas indicadas na decisão instrutória, bem como do legal representante da assistente, de que a pessoa ali retratada se trata do aqui arguido. Importa ainda deixar sublinhados dois pontos: - as razões invocadas pela testemunha II para ter desde logo suspeitado do arguido, não se mostram consentâneas com a demais prova coligida, mormente com o depoimento da testemunha OO, na parte em que este foi perentório em afirmar que “as câmaras são visíveis, não estão ocultas, qualquer trabalhador olhando sabe onde estaca cada uma e todas as câmaras.” - a inquietação que a instância da assistente a tal testemunha II quis deixar a pairar sobre a possibilidade de ter sido o arguido a apagar as imagens de uma das câmaras de vigilância, ou ainda a possibilidade daquele ter procedido à eliminação de algumas das imagens, mostrou-se totalmente estéril, porquanto a testemunha OO já havia prestado vários esclarecimentos a este propósito: não se consegue apagar as imagens ao mesmo tempo que se estão a ver as mesmas; a inexistência de algumas imagens pode verificar-se caso haja desligamento de uma câmara que está em linha com outra; eliminar as imagens captadas numa só noite é muito moroso, sendo muito mais rápido retirar os discos rígidos do que eliminar as imagens gravadas, sendo que o arguido era conhecedor de tal, atento o conhecimento que tinha do sistema de cctv. Acresce que não se apurou em sede de julgamento qualquer “motivo” para que o arguido tivesse praticado os factos em causa nos autos, mormente dificuldades económicas, sendo que as queixas por este verbalizadas junto do “patrão” de que “ganharia pouco” se trata, a nosso ver, de um mero e corrente desabafo por todos os que trabalham por conta de outrem. Ademais, inexistiam à data quaisquer divergências/conflitos laborais entre o arguido e a assistente. O arguido ocupava um cargo de chefia e responsabilidade, merecendo a confiança da sua entidade patronal E não se diga que a existência de um encargo em curso, como seja o da construção de uma casa para habitação própria, é motivo bastante para a prática dos factos objeto dos autos, como se pretendeu deixar a pairar em sede de alegações orais finais… Não existem testemunhas da prática dos factos e não se conseguiu localizar qualquer um dos telefones subtraídos - frise-se que foram interpeladas as operadoras de comunicações móveis nacionais e todas informaram que os telemóveis subtraídos cujos IMEIs são conhecidos não funcionaram nas respetivas redes - cfr. informações de fls. 122, 147 e 254. A par disto, temos a demais prova coligida para os autos pelo arguido, em relação à qual já fomos fazendo referência. Relembrando que não compete ao arguido fazer prova da sua inocência, pois que se presume este inocente, impondo-se antes à acusação que faça, ela si, prova dos factos que ao arguido se imputam. As testemunhas inquiridas, a transcrição das sms trocadas entre o arguido e a sua filha e as imagens recolhidas pelo sistema de CCTV instalado no exterior do ..., convergem, de forma convincente, atenta a forma espontânea e descomprometida como tais testemunhas depuseram, para um ponto comum: na noite em causa nos autos, e à hora, ou melhor, na janela horária, em que as apontadas imagens captadas nos armazéns da assistente foram captadas, o arguido estaria noutro local, na companhia de outras pessoas, local esse distanciado daquele onde se encontram instalados os armazéns da assistente. Assim, impossível seria ao arguido cometer os factos descritos em 1. a 8. dos factos provados, no intervalo de tempo que mediou entre estes e os factos provados descritos em b) e c). Mais ainda se fez qualquer prova que por alguma forma contrariasse o descrito em d. e permitisse convencer que o arguido, após o seu regresso a casa pelas 1:00 h da manhã ainda tratasse de atuar como o descrito em 1. dos factos provados. Por tudo isto, importou julgar não provada a factualidade imputada ao arguido na decisão instrutória no sentido de ter sido este quem praticou os factos objeto dos autos e julgar provada a demais factualidade invocada pelo arguido em sua defesa, bem como de algumas das testemunhas por si arroladas, no decurso da audiência de julgamento.

13. A decisão sumária do TRP que, como se referenciou, confirmou integralmente a decisão da 1ª Instância: Decisão: Pelo exposto, julga-se manifestamente improcedente o recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

14. Os Senhores Desembargadores “a quo” tiveram dificuldade em compreender a extensão da falsidade do depoimento do BB? Tão só, como resulta evidente de tudo o que foi dito: ter identificado o recorrente nas imagens de vigilância que deram origem ao processo crime e ao despedimento destes autos, reputando-o como autor do furto.

15. Isto está dito com clarividência da transcrição da valoração do depoimento do referido sujeito no processo-crime e no processo laboral, de uma forma minuciosa, tal qual era obrigação processual dos respetivos juízes.

16. - Não é necessário transcrever o depoimento! Onde consta esse ónus? Revisitada e Lei, a doutrina e a jurisprudência nada obriga à transcrição, que até pode ser ordenado posteriormente pelo tribunal!! O que releva é que o BB identificou o recorrente como o autor do furto e ficou demonstrado que não foi ele!!!

17. Mais, o recorrente não se cingiu a afirmar que foi prestado depoimento falso pelo BB, explicou com detalhe o que foi dito pelo cavalheiro e a interação desse depoimento com a decisão a rever, explicitando a respetivo nexo de causalidade, que lhe parece “público e notório”.

18. Com a recurso de revisão seguiu suporte digital contendo: a)  Declarações de BB na instrução - Refª depoimento BB instrução 1 e 2; b) Declarações de BB no julgamento crime - Refª depoimento BB crime; c) Declarações de BB neste tribunal - declarações de parte BB processo de trabalho.

19. Do que foi transcrito das diversas decisões sobre o tema se percebe que o depoimento do BB foi a única ligação do recorrente com os factos, que deram origem, nestes autos, ao seu despedimento e à sua validação judicial.

20. É manifesto e explícito o nexo de causalidade entre a falsidade do depoimento do BB com a decisão a rever…

21. E tanto os Senhores Desembargadores “a quo” entenderam de forma inequívoca a questão, que tiveram a oportunidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar a petição de recurso de revisão, que é um poder dever, não o tendo feito.

22. A falta do convite ao aperfeiçoamento, a entender-se que era devida, sempre tornaria nula o Acórdão in questio por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) - 2º segmento e 2, que pode ser arguida em sede de alegação de recurso.

23. Neste sentido, e se de acordo estamos que o Código de Processo Civil não fulmina com a nulidade a omissão do despacho de convite ao aperfeiçoamento (nomeadamente no artigo 590.º), só podemos concluir estarmos perante uma irregularidade, o que imediatamente afasta, do nosso ponto de vista, a tese de que a simples omissão daquele convite é geradora, de forma automática, de uma nulidade processual, ainda que secundária.

24. Por fim, o recorrente explicita as inverdades propaladas pelo BB:

Factos inverídicos referidos no depoimento realizado em sede instrutória pelo Sr. BB e que contrariam as declarações de parte prestadas nos autos:

a) Refere que o A. esteve sempre ao lado dele, desde o início da manhã a ver as imagens e que só o mandou retirar quando terá visto a imagem da cara do assaltante e achou que era ele, em meados da tarde;

b) Expôs que o A. estava descontente porque achava que deveria ganhar mais;

c) Refere que o arguido conhecia profundamente o sistema de CCTV, que era ele quem o controlava. Que era ele quem montava as câmaras;

d) A PSP nunca teve dúvidas que quem surgia nas imagens era o A.;

e) Refere que o A. tinha um andar peculiar “em bicos de pés”, colocando primeiro no chão a ponta do pé;

f) Diz que o A. ia ao armazém onde ocorreu o furto, no mínimo, dez vezes por dia;

g) Alude que terão sido apagadas imagens do sistema;

h) Diz que o A. lhe ligou no dia seguinte e que lhe disse para ele aparecer na empresa para conversarem;

i) Referencia que as imagens do Iodo bar não têm hora - juntam-se no suporte digital as imagens coligidas do processo-crime para que o Sr.  BB seja confrontado com elas e poder verificar se têm ou não hora e se reconhece o A. nas mesmas;

j) Por fim, se o trabalhador nos dias seguintes aos factos deixou de comparecer na empresa sem qualquer justificação.

25. O recorrente juntou suporte digital das imagens do CCTV da recorrida -Cfr. no suporte digital anexo com a designação “processo fim” - onde ser pode verificar que não foi o arguido a perpetrar os factos: i) o recorrente é careca e o assaltante tem claramente cabelo; ii) o andar do impetrante nada tem de caraterístico, não oscilando entre “andar nas pontas dos pés” relatado pelo Sr. BB no depoimento da instrução ou “andar com os pés para fora” relatado maioritariamente pelos seus colegas no julgamento do processo crime; iii) o autor do furto é mais alto e mais encorpado (peito e pernas) de que o recorrente; iv) a imagem quem se vê do rosto é tudo menos esclarecedora sobre a identidade de meliante, única parecença com o recorrente: uma barba (pera)! v) a sobrancelha e o nariz que se veem bem delimitados, não são do recorrente.

26. Porque se verifica fundamento para a revisão da decisão transitada em julgado nos presentes autos, deve julgar-se o presente recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se que se sigam os termos necessários para a causa ser novamente instruída e julgada, aproveitando-se a parte do processo que o fundamento da revisão – declarações de parte de BB – não tenha prejudicado”.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Fundamentação

Independentemente da natureza jurídica do recurso de revisão, muito controvertida na doutrina, o mesmo constitui um mecanismo processual que põe em causa a segurança do caso julgado, em nome da justiça material. Nas palavras de ALBERTO DOS REIS, “o recurso de revisão apresenta, à primeira vista, o aspecto duma aberração judicial: o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado”[2]. A exceção aberta à autoridade do caso julgado apresenta-se como necessária em casos em que “o prestígio do Estado, na vertente da função jurisdicional, seria fortemente afectado se uma decisão judicial só por ter transitado em julgado, não pudesse jamais ser reformada, apesar de ser patente que ela se obteve de modo fraudulento, flagrantemente contrário ao direito”[3].  Surge, por conseguinte, como algo de excecional, sendo que a lei (artigo 696.º do CPC) contém um elenco taxativo das hipóteses em que tal recurso é admissível.

E uma delas é, precisamente, a falsidade de um depoimento (no caso dos autos um depoimento de parte) que tenha sido determinante para a decisão do Tribunal (artigo 696.º, alínea b).

Existe na jurisprudência deste Tribunal uma divergência entre Acórdãos em que se decidiu que apesar da mudança da letra da lei ocorrida em 2003 “só a alegação da existência da falsidade de depoimentos devidamente atestada por uma decisão transitada em julgado (…) poderá constituir fundamento para um recurso extraordinário de revisão” (Acórdão de 14/07/2016, processo n.º 241/10.TVLSB.L1-A.S1, em que foi Relatora a Conselheira ANA PAULA BOULAROT, e em que o Relator nos presentes autos foi Adjunto) e em que se decidiu que não era necessária “uma sentença transitada em julgado para atestar a alegação da existência dessa falsidade” (Acórdão de 13/12/2017, processo n.º 2178/04.5TVLSB-E.L1.S1, Relator Conselheiro ALEXANDRE DOS REIS). Afigura-se-nos que as razões excecionais de justiça material que subjazem a este recurso e a sua teleologia depõem para que deva prevalecer este segundo entendimento.

No caso vertente, aliás, no julgamento criminal o Tribunal da Relação teve o cuidado de afirmar que a absolvição do ora Recorrente não se devia à mera aplicação do princípio in dubio pro reo, tendo manifestado a sua convicção de que o Réu era inocente.

Como a Secção Social deste Tribunal já teve a ocasião de afirmar a prova de um crime como o furto ou o roubo mesmo que como justa causa de despedimento deve também ela ser particularmente “forte” dada a natureza “infamante” desse tipo de acusação.

Dada a importância dos interesses que estão em jogo para o Recorrente – não apenas interesses patrimoniais, mas questões atinentes à sua própria dignidade e integridade moral – justifica-se que no caso concreto o caso julgado, apesar da sua inegável importância, ceda perante as exigências de justiça material.

A lei exige, é certo, que o depoimento falso tenha sido determinante para a decisão.

Mas como este Tribunal já decidiu, em Acórdão de 07/10/2020, proferido no processo n.º 2262/16.2T8PNF.P1.S1 (Relatora Conselheira Graça Trigo), “não é de exigir que a falsidade do meio probatório em crise tenha sido a causa exclusiva da decisão, bastando que tenha, de acordo com a teoria da causalidade adequada comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, sido uma das causas da mesma decisão”. E como nesse mesmo Acórdão se afirma “apurar se, excluído o depoimento falso, a decisão de facto se manterá ou não, é o objetivo da “fase rescisória” do recurso extraordinário de revisão e não da presente “fase rescidente” na qual apenas cabe proceder à apreciação da verificação do fundamento invocado para o recurso”.

Não se exige, por conseguinte, que o depoimento falso tenha sido causa exclusiva da decisão, podendo tratar-se de uma concausa.

Na sentença da 1.ª instância afirmou-se o seguinte:

“No julgamento realizado nos autos prestou declarações BB, administrador e legal representante da ré, o qual descreveu com minúcia os factos decorridos, caracterizando a surpresa e o choque que sentiu quando se apercebeu que era o autor quem aparecia nas imagens de videovigilância. Afirmou que nunca lhe suscitou quaisquer dúvidas que a pessoa que via nas imagens era o autor (não só pela forte semelhança da figura, como pelo modo de andar), mas para obter confirmação chamou outros trabalhadores da ré, próximos do autor, os quais corroboraram sua convicção. Apesar da qualidade do depoente, o seu depoimento foi inteiramente credível pela espontaneidade e coerência com que foi prestado, pela sinceridade revelada em sua postura e a ausência de qualquer outra razão para que imputasse a autoria dos factos ao autor que a sua certeza. Na verdade, deste depoimento (e sem que nada nos autos o contrariasse) resulta que a ré depositava inteira confiança no autor, havendo uma proximidade relacional entre este e as chefias da ré, de modo que se sentiram fortemente abalados com a constatação dos factos. As testemunhas CC e DD, agentes da PSP, confirmaram as diligências efetuadas por esta autoridade policial e confirmação da convicção de que a autoria do furto pertencia ao autor destes autos. Afirmaram ainda que, para além do reconhecimento da pessoa do autor nas imagens de videovigilância por pessoas que bem o conheciam, pelo modo como foi praticado o furto era evidente que se tratava de alguém que conhecia muito bem o interior das instalações, o local onde estavam colocados os sensores de alarme e mesmo as câmaras de vigilância. Relevantes foram também os documentos juntos aos autos a fls. 50v a 52 (certidão extraída do processo-crime com o auto de notícia e o auto de constituição de arguido que instruiu o processo disciplinar) e a fls. 136v a 141 (decisão instrutória que pronunciou o autor pela prática do crime de furto sofrido pela ré). Desta prova, da ponderação conjunta das declarações prestadas em audiência, dos documentos apresentados, nomeadamente da decisão instrutória (que é de igual modo uma ponderação judicial dos indícios existentes contra o autor), ficou este Tribunal com a convicção de que foi o autor quem praticou o furto sofrido pela ré.”

Resulta da motivação que o depoimento de parte pode ter sido determinante para a decisão pelo que está preenchido o pressuposto do artigo 696.º, n.º 1 alínea b) do CPC. Sublinhe-se que a letra do preceito se basta com esta possibilidade, cabendo às instâncias com competência para apreciar a matéria de facto decidir se o depoimento efetivamente foi uma concausa.

Decisão: Acorda-se em conceder a revista, revogando-se a decisão do Acórdão recorrido e, em sua substituição, decide-se:

a) Admitir o recurso extraordinário de revisão requerido pelo Autor;

b) Determinar a baixa dos autos à 1.ª instância para, conforme previsto no art. 701.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, serem seguidos os termos necessários para a causa ser novamente instruída e julgada, aproveitando-se a parte do processo que o fundamento do recurso de revisão não tenha prejudicado.

Custas do recurso pelo Recorrido.

21 de setembro de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Mário Belo Morgado

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[1] Itálicos, negritos e sublinhados no original.
[2] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1953, p. 335.
[3] FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 9.ª ed., p. 325.