Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6816/18.4T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO
ATO ILÍCITO
POSSE DE MÁ FÉ
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
INTERPELAÇÃO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
BEM IMÓVEL
VALOR LOCATIVO
REPARAÇÃO DO DANO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 01/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A privação do uso de um prédio urbano, de rés-do-chão, com cinco divisões e com um valor locativo de €460,00, decorrente de acto ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa actuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo.

II. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito.

III. Na fixação de indemnização, num caso com estes contornos, deve, como fez a Relação, recorrer-se à equidade (art. 566º, nº 3, do Código Civil).

Decisão Texto Integral:                                                             


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA, BB, CC e DD instauraram a presente acção declarativa contra EE, pedindo:

a) que seja declarado que os Autores são proprietários, na proporção de um quarto para cada um deles, do prédio identificado nos itens 1º e 4º da petição inicial;

b) a condenação do Réu a reconhecer aos Autores aquele direito de compropriedade e a restituir-lhes o referido prédio, completamente livre e devoluto de pessoas e bens;

c) a condenação do Réu, como possuidor de má-fé, no pagamento aos Autores da quantia de 5.200,00 Euros pela ocupação respeitante aos meses de Novembro e Dezembro de 2017 e Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2018, assim como na quantia de 400,00 Euros mensais enquanto durar a ocupação abusiva e de má fé.

Alegaram os AA., em resumo, que:

São comproprietários, na proporção de um quarto para cada um, do prédio urbano constituído por casa de habitação de rés-do-chão, com 5 divisões, sito na Rua..., ..., também conhecida por lugar ..., ..., concelho ....

A aquisição do direito de propriedade plena do imóvel adveio aos Autores por sucessão testamentária, em que foi testadora FF.

Alegaram também que, há mais de 20 anos, quer por eles, quer por antepossuidores, sem interrupção, estão na posse desse imóvel, exercendo sobre ele todos os actos próprios do direito de propriedade, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente e na convicção de dele serem donos.

Sucede que o Réu habita, sem título e contra a vontade dos AA., o dito prédio, tendo já sido interpelado para desocupá-lo.

O imóvel tem um valor locativo mensal e, se os Autores o arrendassem, como é sua vontade, o que já poderia ter acontecido a partir, pelo menos, de Novembro de 2017, poderiam auferir de uma renda mensal nunca inferior a €400,00.


O Réu contestou, defendendo-se por excepção (ilegitimidade activa e passiva) e por impugnação.

Alegou, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que:

O prédio em causa nunca foi propriedade da testadora FF.

A 31 de Agosto de 1977, GG vendeu a HH, por declaração de compra e venda, esse prédio, pelo preço de 145 000$00.

HH faleceu a 3 de Julho de 1995, no estado de casado com II, que faleceu a 2 de Novembro, sendo pais do Réu e de JJ.

HH e II não deixaram testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

O prédio identificado na petição inicial pertence ao acervo hereditário por óbito dos pais e transmitiu-se, por sucessão hereditária, aos filhos do casal: o Réu e seu irmão JJ.

De qualquer modo, quer por si, conjuntamente com seu irmão JJ, quer por antepossuidores, estão na posse do imóvel, praticando os actos próprios de proprietário, que o R. enuncia, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de exercerem um direito próprio e em tudo se comportando como donos e, por todos, como tal sendo considerados.

O contrato de compra e venda celebrado entre GG (como vendedor) e FF (como compradora) está afectado de simulação, já que houve um acordo entre os outorgantes no sentido de  ser  FF, que tinha estatuto de emigrante, a aparecer como compradora, em vez de HH, a fim de que, desse modo, este (verdadeiro comprador) viesse a retirar a vantagem de deixar de pagar a correspondente sisa pela transmissão do imóvel (parcela de terreno).

HH, que, desde 31 de Agosto de 1977, detinha a posse da parcela de terreno que foi objecto da compra e venda em causa, também acordou com o vendedor e a sua cunhada FF que aparecesse como compradora, porque, entretanto, havia negociado com esta que o terreno seria dividido em duas partes iguais (HH ficaria com a metade Nascente e FF ficaria com a metade Poente), como veio a acontecer mais tarde.

Alegou ainda, a título subsidiário, a aquisição da propriedade do prédio por acessão industrial imobiliária, em virtude das obras que aí foram realizadas pelo seu pai.

Concluiu nos seguintes termos:

«a) devem ser julgadas procedentes por provadas as excepções deduzidas e, em consequência, o R. absolvido do pedido;

b) se assim não for, devem as excepções deduzidas serem julgadas procedentes por provadas e, em consequência, ser o R. absolvido da instância;

c) de qualquer modo, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência ser o R. absolvido do pedido;

d) e cumulativamente, deve ser declarado que os únicos herdeiros de HH e esposa II são seus filhos: JJ e EE (aqui R.), não havendo quem com eles possa concorrer;

e) cumulativamente deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e, em consequência,

i) ser declarado que o R. (conjuntamente com seu irmão, co-herdeiro JJ) são donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado e descrito nos n.ºs 1 e 4 da petição inicial e nos documentos n.º 2 e 3 com a mesma juntos e identificados, ainda, na Parte III (n.º 37 a 42-inclusivé) e documentos n.º 6, 7, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57 juntos com esta contestação-reconvenção;

ii) Serem os AA. reconvindos condenados a reconhecer que o R. EE (e seu irmão JJ) são os únicos donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários do prédio referido e identificado na anterior al. i), por virtude de o haverem adquirido por prescrição aquisitiva ou usucapião nos termos narrados nesta contestação-reconvenção;

f) serem os AA. condenados a reconhecerem que teriam de devolver ao R.-reconvinte (e a seu irmão JJ) o prédio identificado livre de pessoas, animais e bens (se alguma vez tivesse estado por si ou antecessores ou antepassados, na posse do mesmo);

g) cumulativamente, ser o contrato de compra e venda de 29/12/1977 (conf. doc. n.º 7) ser declarado simulado (simulação relativa) já que o verdadeiro comprador foi o HH (conf. doc. n.º 6) e, em consequência ser considerado que o contrato de compra e venda dissimulado (escondido) é o verdadeiro contrato que vem a consubstanciar a "declaração" que corresponde ao doc. n.º 6 junto com esta contestação-reconvenção;

h) de qualquer modo e em qualquer circunstância deve ser declarado nulo o legado da testadora FF, constante do seu testamento de 16/04/1998, pois que lega (o prédio em causa) bem esse que lhe não pertence e, por conseguinte, não faz parte do seu acervo hereditário;

i) subsidiariamente aos anteriores pedidos ser declarado que o pai do R., HH adquiriu a propriedade do prédio em causa por virtude de acessão industrial imobiliária, devendo pagar aos AA. a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) valor atribuído ao terreno onde estão implantadas as construções (casa de habitação, garagem e anexos-com os respectivos apetrechamentos) já que o valor trazido pelas obras do HH no montante superior a € 150.000,00 foi maior do que o valor que o prédio (parcela de terreno com 745 m2 de superfície) tinha à data da incorporação (de 1978 a 1985 data das várias incorporações) narradas nesta contestação-reconvenção;

j) em consequência dos pedidos elaborados nas alíneas anteriores requer-se a V.Ex.ª que se digne a ordenar o cancelamento de todos os registos ocorridos a partir do registo de propriedade em nome dos seus proprietários GG e mulher KK e, em consequência, todos e quaisquer registos que porventura hajam sido feitos a partir de 29/12/1977 (inclusive)».

Os Autores replicaram, defendendo a improcedência da reconvenção e deduzindo o incidente de intervenção principal provocada dos cônjuges dos Autores, LL, MM, NN e OO, intervenção que foi admitida por despacho de 20-03-2019.

Por seu lado, o R. veio pedir a intervenção principal provocada de JJ e mulher, PP, que foi admitida por despacho de 01-04-2019.

Os chamados não apresentaram articulado próprio.

Foi proferido despacho saneador, no qual se consideraram supridas as invocadas ilegitimidades, em face das intervenções provocadas.

Julgou-se improcedente a deduzida (pelos AA., na réplica) ineptidão da reconvenção.

Não se admitiu a pretendida (pelo R.) ampliação do pedido reconvencional.

Definiu-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas de prova.

Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, com o seguinte resultado:

«Pelo exposto decido:

a). julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaro que os Autores são proprietários, na proporção de um quarto para cada um deles, do prédio supra identificado em I.3 e I.5, e condeno o Réu EE a reconhecer tal direito e a restituir aos Autores o referido prédio, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, absolvendo-o do mais que vinha peticionado;

b). declarar que os únicos os herdeiros de HH e esposa II são seus filhos JJ e o Réu EE, absolvendo os Autores de tudo o que vinha pedido em sede reconvencional.»

Inconformado, recorreu o R. para a Relação ....

Os AA. contra-alegaram e requereram a ampliação do âmbito do recurso (o que foi convolado para recurso subordinado, por despacho de 02-11-2020), relativamente à atribuição de uma indemnização pela ocupação do imóvel por parte do Recorrente.

O Tribunal da Relação proferiu acórdão, no qual se julgou improcedente o recurso interposto pelo Réu e parcialmente procedente o recuso subordinado, pelo que se condenou o Réu a pagar aos Autores, pela ocupação do imóvel identificado nos factos 3 e 5 dos factos provados, uma indemnização de € 300,00 por cada mês, de Novembro de 2017 até cessar tal ocupação.

Julgou-se, na restante parte, improcedente o recurso subordinado e manteve-se, no mais, a decisão recorrida.


Novamente irresignado, o R. interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, referindo que «se necessário, deverá ser considerada excepcional-conf. art.º 672.º do Cód. Proc. Civil), abrangendo a globalidade da decisão recorrida (o, aliás douto, acórdão do Tribunal da Relação ...) (conf. art.º 671.º e seguintes do Cód. Proc. Civil)».

O Exmº Juiz Desembargador Relator proferiu despacho, no qual considerou o seguinte:

«No recurso que agora interpõe, o réu sintetiza as suas pretensões na conclusão 37.ª, onde afirma que "deve o, aliás douto, acórdão recorrido ser revogado e substituído por aliás douto acórdão que contemple o pedido na contestação (para além de considerar improcedentes por não provada a ação interposta pelos AA. absolvendo o R./recorrente do pedido".

Portanto, o réu quer que se julgue procedente o seu pedido reconvencional e improcedente o pedido dos autores.

No que se refere ao pedido reconvencional, salvo melhor juízo, há dupla conforme, pois, nessa parte, o acórdão confirma, "sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância". Com efeito, as ligeiras modificações introduzidas nos factos provados não se traduzem, de modo algum, numa "fundamentação essencialmente diferente".

Note-se, aliás, que o pedido reconvencional naufraga, independentemente do mais, por causa de factos que não se provaram; não pelos que foram jugados provados. Como se diz no acórdão, a usucapião "pressupunha que houvesse uma significativa modificação nos factos julgados provados, nos termos expostos nas conclusões 4.ª a 8.ª, nomeadamente levando para esse grupo os factos que o tribunal a quo tinha considerado não estarem provados" e para o sucesso da invocada acessão imobiliária industrial «tinha que se provar que o pai do réu atuou em nome próprio, e não como procurador de FF, quando se efetuou a construção no prédio em disputa nestes autos, bem como que ele "desconhecia que o terreno onde produziu a intervenção era alheio" [e] tais factos, não estão provados».

No que se refere à desejada absolvição do pedido dos autores regista-se que na petição inicial estes pediram para:

"a) Declarar-se serem os Autores donos, na proporção de um quarto para cada um deles, senhores e legítimos proprietários do prédio supra identificado nos supra itens 1.º e 4.º.

b) Condenar-se o Réu a reconhecer aos Autores aquele direito de compropriedade e a restituir-lhes o referido prédio, completamente livre e devoluto de pessoas e bens;

c) Condenar-se o Réu como possuidor de má-fé, no pagamento aos Autores da quantia de 5.200,00 €uros pela ocupação respeitante aos meses de novembro e dezembro de 2017 e janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro e novembro de 2018, assim como na quantia de 400,00 €uros mensais enquanto durar a ocupação abusiva e de má-fé".

Então, no que toca aos pedidos a) e b) também há dupla conforme.

Mas o mesmo já não se pode dizer relativamente ao pedido c), dado que neste ponto o acórdão condenou o réu a pagar aos autores uma indemnização, "pela ocupação do imóvel", "de €300,00 por cada mês, de novembro de 2017 até cessar tal ocupação".

Sucede que os termos desta condenação não permitem quantificar, de forma objetiva e inequívoca, o real decaimento que daí resulta para o réu, visto que se desconhece em absoluto a data em que irá "cessar tal ocupação". Para este efeito, ao contrário do que afirmam os autores, não se pode considerar unicamente o montante que será devido até este momento.

Ora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, havendo uma "fundada dúvida acerca do valor da sucumbência", atender-se-á "somente ao valor da causa".

No despacho saneador fixou-se o valor da causa em 105.340,00€.

Aqui chegados, conclui-se que no segmento que condenou o réu no pagamento da citada indemnização, o acórdão é recorrível.

Por outro lado, na restante parte que, em virtude da dupla conforme, não admite recurso ordinário, a revista excecional que o réu quer interpor está sujeita a uma apreciação prévia do STJ, não competindo ao tribunal da relação tomar posição quanto a essa matéria.»

Concluiu nos seguintes termos:

«a) admito o recurso de revista interposto pelo réu na parte em que ataca o segmento do acórdão que o condenou "a pagar aos autores, pela ocupação do imóvel identificado nos factos 3 e 5 dos factos provados, uma indemnização de € 300,00 por cada mês, de novembro de 2017 até cessar tal ocupação", o qual tem efeito meramente devolutivo;

b) na restante parte:

- não admito o recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 671.º n.º 3 do Código de Processo Civil;

- cabe ao STJ, nos termos do artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, tomar posição quanto à admissibilidade do recurso de revista excecional;

c) indefiro o solicitado pelo réu no requerimento de 9-2-2021.»

O Recorrente deduziu reclamação, nos termos do art. 643º do CPC, defendendo não se verificar dupla conforme e dever ser admitida a revista “normal”.

Foi proferida, neste Supremo Tribunal, decisão que não admitiu o recurso de revista interposto, nos termos gerais, relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da petição inicial e na reconvenção, indeferindo-se a reclamação e confirmando-se o despacho reclamado.

Considerando-se adequadamente admitido o recurso (revista “normal”) na parte atinente à indemnização, entendeu-se, antes da decisão dessa questão, submeter-se o caso à Formação, dada a revista excepcional interposta quanto aos outros segmentos, ponderando-se o seguinte:

«Haverá que submeter o caso à Formação para os efeitos do disposto no art. 672º, nº 3, do CPC, o que se considera dever ocorrer antes da apreciação da questão da indemnização, visto estar em causa um pedido consequencial e acessório dos vertidos nas al.s a) e b) da petição (tal como se considerou na decisão da reclamação ao abrigo do art. 643º do CPC), que deve ser apreciado em conjunto com a matéria a eles atinente (caso seja admitida a revista excepcional) ou então isoladamente, arrumada que fique a matéria dessas alíneas (se a revista excepcional não for admitida).»


Os autos foram remetidos à Formação, que decidiu não admitir a revista excepcional, devolvendo os autos para apreciação da revista “normal” admitida.


*


As conclusões do Recorrente são do seguinte teor:

«1 - Vem o R. recorrente interpor recurso de revista excepcional nos termos do disposto no art.º 672.º do Cód. Proc. Civil.

2 - Não obstante o disposto no n.º 3 do art.º 671.º do Cód. Proc. Civil, de facto ocorre que:

a) Estão em causa questões cuja apreciação pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estão em causa interesses de particular relevância social;

c) O presente acórdão recorrido está em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito não tendo sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

3 - Sendo ónus do recorrente/requerente que estes:

a) Indiquem as razões pelas quais a apreciação da questão, pela sua relevância é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Indicar as razões pelas quais os interesses em causa têm particular relevância social;

c) Indicar os aspectos de identidade que determinam a contradição jurisprudencial alegada, demonstrando-a conjugação de cópia do acordão fundamento, com nota de trânsito em julgado (conf. António Santos Abrantes Geraldes-Recurso no Novo Código de Processo Civil-2014-2.ª edição-fls. 330).

4 - Preenchendo o requisito da relevância jurídica, ocorre que estão em causa nos presentes autos assuntos de elevado grau de complexidade:

a) A aquisição da propriedade por usucapião;

b) A aquisição da propriedade por via da acessão industrial imobiliária;

c) O princípio da livre apreciação da prova, envolvendo a problemática de:

1. a prova deve ser apreciada na perspectiva de uma solução da questão de direito que surja no horizonte como provável ou se;

2. a prova deve ser apreciada na perspectiva das várias soluções plausíveis da questão de direito (o que leva a considerar todos os factos constantes dos autos para uma apreciação cuidada-dificilmente se entenderá que tal ou tal facto é irrelevante ou não dispõe de características capazes de o tornar útil para que seja alcançada a verdade material);

d) o valor a atribuir às confissões gravadas na presença do juiz e ainda não transcritas ou não constantes da respectiva ata de audiência de julgamento, se têm ou não o valor de confissão plena (prova plena);

e) como tratar o aproveitamento de factos instrumentais cujo conhecimento é divulgado durante a fase de instrução e julgamento.

Tudo são questões de direito com interpretações diversas e (tantas vezes) contrárias que convirá esclarecer.

5 - É ainda preenchido o requisito da relevância social na medida em que a questão da propriedade privada é um bem social na sociedade democrática (mesmo num dos seus pilares) e os seus modos de aquisição (da propriedade imóvel) como a usucapião e a acessão industrial imobiliária, frequentes na nossa sociedade suscitam, permanentemente problemas (conflitos) que determinam a importância de (de modo casa vez mais seguro) ser possível a sua resolução com razoável dose de certeza de que se está a administrar justiça.

6 - Entre o acórdão recorrido o dos autos em que é afirmado que "havendo confissão judicial, a força probatória contra o depoente depende da sua redação a escrito, isto porque se não for, é livremente apreciada pelo tribunal”

7 - No entanto no acórdão fundamento já se propõe que “1- A assentada do depoimento de parte vislumbra-se como atuação quase inútil, ou, no mínimo, prolixa a redundante que apenas serve para complexizar e atrasar a tramitação processual; 2- Na verdade, sendo o depoimento gravado nos modernos meios técnicos para o efeito, tanto basta para que toda a (i)relevância e alcance probatório do depoimento sejam- salvo nos casos em que a gravação deficiente – perfeita e cabalmente verificados e sindicados, quer pelo julgador da 1ª Instância, quer pelo tribunal da Relação, tanto na parte não confessória, como na parte confessória” (Acórdão do TRG - Proc. n.º 1190/12.5TBGMR.G1 – Relator – Dr.ª Maria da Purificação Carvalho, 15/09/2014 (conf. doc. transcrito na Parte XVI destas alegações).

8 - Assim também mais um requisito ocorre para a admissão do recurso de revista excecional.

9 - Admite-se, no entanto que não ocorra a dupla conforme que determina a necessidade da revista excecional, então este recurso tornar-se-á um recurso de revista normal.

10 - De facto o Tribunal da Relação julgou procedente em parte, a impugnação da matéria de facto elaborada pelo R/recorrente e nesse sentido

a) alterou substancialmente a redação dos Factos n.º 10 e 27;

b) acrescentou os Factos 30, 31, 32, 33 e 34.

11- Não podemos adivinhar qual seria o teor da sentença a elaborar pela 1ª Instância se houvesse entendido como provados os factos que o Tribunal “a quo” entendeu dar. E só com tal conhecimento poderíamos dizer se havia ou não dupla conforme.

12- Para além disto temos ainda a arguição das nulidades das respostas a indeferir a impugnação levada a cabo pelo R./recorrente a múltiplos Factos que a 1ª Instância considerou “Não Provados” e, tendo o R./recorrente impugnado tais decisões, o tribunal “a quo” manteve a decisão, sem que apresentasse os fundamentos de facto e de direito que justificassem tal decisão de forma clara e convincente.

13 - O R. recorrente impugnando a decisão sobre a matéria de facto elaborou factos

a) que numerou de 30 a 92 (conf. Parte VIII);

b) a cada um deles atribuiu como prova, quer as passagens de identificação da gravação que identificou, quer os documentos dos autos que especificou da sua colocação nos mesmos autos

14 - Excepto as matérias que deram origem à correção do texto dos Factos 10 e 27 e as que deram origem ao acréscimo dos factos 30, 31, 32, 33 e 34 todos os demais foram impugnações consideradas improcedentes,

15 - O que ocorreu com as impugnações que surgiram os Factos 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71,72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, e 92.

16 - Tendo todos sido considerados improcedentes, o que no entendimento do R./recorrente ocorreu sem que fossem apresentados os fundamentos de facto e de direitos que justificassem essa decisão de improcedência.

17 - Assim, é decidido não considerar provados os factos que estão em 31, 39, 40, 41, 46, 49, 52 e b53 porque "não são factos essenciais nem instrumentais". Não é fundamento.

18 - Ainda é decidido "considerando as dúvidas já expostas" (que não são claras) (nem de considerar) "quanto à actuação de FF, não se pode dar como provado o que está em 36 e 43". Também não consiste fundamento.

19 - "O que está em 37, 38 e 42 e é relevante já se encontra nos factos 13 a 15 e 17 dos factos provados. O resto não é um facto instrumental ou essencial". Também aqui a decisão não é fundamentada. Não se diz o que é o resto. Não se diz o que se entende por relevante.

20 - "Não há prova suficiente para o que está em 44"; "O que está em 45, que não figura nos factos provados, não é um facto instrumental ou essencial". Mas e que é que não figura do 45 nos factos provados? E porque não é facto instrumental ou essencial? Nada disto é esclarecido na decisão.

21 - Porque é que são excepcionadas (não sendo levadas aos factos provados) nos números 47, 48 e 50 as datas de ocupação dos imóveis, se as datas de ocupação constam dos mesmos documentos? Também não está fundamentado.

22 - Assim como estão assentes os fundamentos de facto (e até de direito) que determinaram a não admissão da matéria de facto de natureza confessória por parte não só dos AA. como do interveniente LL, já que se encontram documentadas nas passagens da gravação individualizadas para o efeito.

23 - No que respeita à decisão. E assim na decisão que não considerou a pretensão de serem considerados confessados os factos identificados desde o 54 ao 63 (inclusive), apenas se diz "recordar que se considerou parciais e merecedores de pouca confiança os depoimentos dos autores (e o do réu)". Tendo em conta que dos depoimentos só se aproveita o que prejudicar o declarante, temos que esta razão invocada (a da parcialidade e pouca confiança) não tem que ser tida em conta.

24 - E dizer-se que "regista-se que não se encontra em 54 a 63 qualquer facto que, na relação àqueles, se deva considerar como sendo um "facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária". Não integra qualquer ideia de fundamento justificativo (até porque é uma conclusão).

25 - Também não são apresentados os fundamentos que levaram a repudiar a impugnação da matéria de facto que pretende a inclusão como provados ao Factos 64 a 83. Na impugnação relatam-se factos da vida real; factos que não aparecem provados contidos no complexo inicial dos "Factos Provados" e que no entender do R./recorrente, merecem do mesmo constar, não só por terem sido provados, como também porque fazem parte da solução plausível da questão de direito que o R./recorrente entende que deve prevalecer.

26 - E não se vislumbra fundamentação que suporte a recusa de integrar os factos 64 a 83 no complexo dos "Factos Provados". E o R./recorrente não esquece que "se deu como provado, com tudo o que daí emerge, que os pais do réu viveram na casa desde pelo menos 1985 até morrerem e que o réu aí vive". Mas o R./recorrente recorda que na sua matéria de facto alegada, afirma que iniciou a sua posse, ocupando e vivendo com a família na casa e causa em 1983, casa essa cuja construção iniciou em 1978. Daí a razão da elaboração do Facto 71. Daí a necessidade de ao recusar razão ao R./recorrente, explicitar os fundamentos da decisão.

27 - Está nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça entender que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, (no caso a solução plausível da questão de direito sugerida pelo R./recorrente) (conf. n.º 3 do art.º 682.º do Cód. Proc. Civil). O que se espera venha a ocorrer.

28 - No entanto se for entendido que procedeu as nulidades do acórdão descritas nas presentes alegações, que o processo baixe ao tribunal "a quo", a fim de que seja feita a reforma da decisão anulada" (conf. n.º 2 do art.º 684.º do Cód. Proc. Civil).

29 - De qualquer modo ainda que a decisão sobre a matéria de facto seja considerada definitiva (o que só por mera hipótese de raciocínio se admite) há a considerar que:

30 - Há que ter em conta que "É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais vale por si. Por isso o que se ficou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião - Oliveira Ascensão-Direitos Reais-5.ª edição, pág. 382).

31 - "Facto 84- Quer por si, quer por antecessores, antepossuidores e anteriores proprietários o R. (conjuntamente com seu irmão JJ, ambos únicos herdeiros de seus pais HH/II) estão na posse do identificado prédio desde 1977 (a parcela de terreno) e desde 1983 (a casa de habitação já construída e pronta a habitar) (portanto há mais de 5, 10, 15, 20, 30 e 35 anos) cultivando-o, conservando-o, podendo arrendá-lo e receber as respectivas rendas, desenvolvendo construções (construíram a casa de habitação da família) estruturas (muros, garagem, anexos e canalizações) venerando construções, espaços cobertos, jardim e culturas, desmoitando terreno a mato e arbustos, derrubando arvoredo como entendia, cuidando das águas, abrindo um poço, sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém e em tudo se comportando como donos e, por todos, como tal sendo considerados, sendo que a sua posse sempre foi pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que sempre haveriam adquirido o referido e identificado prédio por prescrição aquisitiva ou usucapião que aqui se invoca expressamente para todos os efeitos legais."

32 - Deve a procuração em que a FF constitui mandatário o HH ser considerada de acordo com o seu texto e (no máximo) conceder poderes ao procurador para a representar nas Repartições Públicas.

33 - Os AA. nunca quiseram arrendar o prédio em causa (não o arrendaram) são sábias e adequadas as considerações das conclusões do Tribunal de 1ª Instância que se encontram na Parte XXIII destas alegações, assim devendo ser revogado o, aliás douto, acórdão recorrido do Tribunal da Relação ....

34 - Também por via da acessão industrial imobiliária ao R/recorrente assiste razão por preencher os requisitos do art.º 1340.º do Cód. Civil:

a) construção de obra em terreno alheio;

b) valor das obras trazido ao prédio superior ao valor do prédio que o prédio tinha antes das obras;

c) boa fé;

d) pagamento do prédio antes das obras

35 - Valor esse que o R./recorrido se dispõe a pagar logo que seja o mesmo determinado.

36 - Assim deve ser julgado procedente por provado o pedido reconvencional.

37 - Assim deve o, aliás douto, acórdão recorrido ser revogado e substituído por aliás douto acórdão que contemple o pedido na contestação (para além de considerar improcedentes por não provada a acção interposta pelos AA. absolvendo o R./recorrente do pedido;

38 - Deverá também considerar procedente por provado o pedido reconvencional e em consequência:

d) e cumulativamente, (a julgar a ação improcedente por não provado), deve ser declarado que os únicos herdeiros de HH e esposa II são seus filhos: JJ e EE (aqui R.), não havendo quem com eles possa concorrer;

e) cumulativamente deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e, em consequência,

i) ser declarado que o R. (conjuntamente com seu irmão, co-herdeiro JJ) são donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado e descrito nos n.ºs 1 e 4 da petição inicial e nos documentos n.º 2 e 3 com a mesma juntos e identificados, ainda, na Parte III (n.º 37 a 42-inclusivé) e documentos n.º 6, 7, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57 juntos com a contestação-reconvenção e na declaração de fls. 148 a 149v destes autos;

ii) Serem os AA. reconvindos condenados a reconhecer que o R. EE (e seu irmão JJ) são os únicos donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários do prédio referido e identificado na anterior al. i), por virtude de o haverem adquirido por prescrição aquisitiva ou usucapião nos termos narrados nesta contestação/reconvenção;

f) serem os AA. condenados a reconhecerem que teriam de devolver ao R.- reconvinte (e a seu irmão JJ) o prédio identificado livre de pessoas, animais e bens (se alguma vez tivesse estado por si ou antecessores ou antepassados, na posse do mesmo);

g) cumulativamente, ser o contrato de compra e venda de 29/12/1977 (conf. doc. n.º 7) ser declarado simulado (simulação relativa) já que o verdadeiro comprador foi o HH (conf. doc. n.º 6) e, em consequência ser considerado que o contrato de compra e venda dissimulado (escondido) é o verdadeiro contrato que vem a consubstanciar a "declaração" que corresponde ao doc. n.º 6 junto com esta contestação-reconvenção;

h) de qualquer modo e em qualquer circunstância deve ser declarado nulo o legado da testadora FF, constante do seu testamento de 16/04/1998, pois que lega (o prédio em causa) bem esse que lhe não pertence e, por conseguinte, não faz parte do seu acervo hereditário;

i) subsidiariamente aos anteriores pedidos ser declarado que o pai do R., HH adquiriu a propriedade do prédio em causa por virtude de acessão industrial imobiliária, devendo pagar aos AA. A quantia de € 3.537,70 (três mil quinhentos e trinta e sete euros e setenta cêntimos) valor atribuído ao terreno onde estão implantadas as construções (casa de habitação, garagem e anexos-com os respectivos apetrechamentos) já que o valor trazido pelas obras do HH no montante superior a € 150.000,00 foi maior do que o valor que o prédio (parcela de terreno com 745 m2 de superfície) tinha à data da incorporação (de 1978 a 1985 data das várias incorporações) narradas nesta contestação-reconvenção;

j) em consequência dos pedidos elaborados nas alíneas anteriores requer-se a V.Ex.ª que se digne a ordenar o cancelamento de todos os registos ocorridos a partir do registo de propriedade em nome dos seus proprietários GG e mulher KK e, em consequência, todos e quaisquer registos que porventura hajam sido feitos a partir de 29/12/1977 (inclusive);

k) e ainda cumulativamente com os demais pedidos, serem os AA. Condenados no pagamento das custas judiciais e procuradoria condigna.

39- O, aliás douto acórdão recorrido violou o disposto nos art.º 5º e n.º 4 e 5 do art. 607.º ambos do Cód. Proc. Civil e o disposto nos art.ºs 1287.º e 1288.º, 1296.º e n.º 1 e 4 do art.º 1340.º todos do Cód. Civil.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável:

a) deve a, aliás douta, decisão sobre a matéria de facto, na parte impugnada ser revogada e substituída por, aliás douto acórdão que comtemple as alterações propostas e contemple as conclusões nesta matéria;

b) deve a decisão sobre a matéria de direito ser revogada e substituída por, aliás douto, acórdão que comtemple as conclusões narradas absolvendo o R. do pedido na acção e considerando procedente por provada a reconvenção que condene os AA. no pedido reconvencional;

c) Porque assim será feita INTEIRA JUSTIÇA.»

Contra-alegaram os AA., pugnando pela manutenção da decisão impugnada.


*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assume-se, in casu, como questão a tratar a da atribuição de indemnização pela privação de uso do imóvel em causa. Na verdade, não tendo sido admitida a revista excepcional, persiste, para apreciação, esse segmento da decisão recorrida, que se entendeu ser susceptível de revista “normal”.


II


No Acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública outorgada aos 29 de dezembro de 1977, GG e mulher declararam vender a FF, que declarou comprar, pelo preço de Esc. 28.400$00 uma parcela de terreno com a área de 1470 m2, sita no Lugar ..., da freguesia ..., do concelho ..., (…) que faz parte da descrição predial nº. ...55 e do artigo ...83 rústico (cfr documento junto a fls. 44 verso e seg., a fls. 108 a 111 e a fls. 133 a 139).

2. Por testamento outorgado aos 21 de Agosto de 1985, FF declarou, em primeiro testamento e por conta da quota disponível, legar a sua irmã II, o prédio urbano composto por casa de habitação de e junto quintal, sito na no Lugar ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...00.º (cfr. documento de fls. 129 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) e a sua irmã QQ, o seu prédio de habitação, composto por casa de habitação, com cave e rés-do-chão e junto quintal, sito no mesmo Lugar ..., à data omisso à matriz.

3. Por testamento outorgado aos 16 de Abril de 1998, FF declarou revogar qualquer outro testamento feito anteriormente e legar a JJ, filho de sua irmã II, e a AA, a BB, a CC e a DD, estes filhos da sua irmã QQ, em comum e partes iguais, o prédio urbano constituído por casa de habitação de rés-do-chão com 5 divisões, sito na Rua..., ..., também conhecida por lugar da Laje, ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...00.º (cfr. documento de fls. 9 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

4. Neste mesmo testamento, FF declarou legar a sua irmã QQ, o seu prédio urbano composto por casa de habitação, com cave e rés-do-chão e junto quintal, sito no Lugar ..., inscrito na matriz sob o artigo ...74.º (cfr. documento de fls. 9 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

5. O imóvel referido em 3. está atualmente descrito com a área de 735 m2 sob o n.º 3137 na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...87.º da União de freguesias ..., artigo matricial este que teve origem no anterior artigo urbano n.º ...00.º da extinta freguesia ..., concelho ... (cfr. documentos de fls. 10 verso e seg. e de fls. 11 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

6. Por documento de 10 de abril de 2012, aquele JJ declarou repudiar aquele legado, tendo o respetivo cônjuge prestar o necessário consentimento para o ato (cfr. documento de fls. 11 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

7. Por documento de 11 de abril de 2012, RR e SS, solteiros, filhos daquele JJ declararam repudiar "o legado que por direito de representação lhe pertencia após o repúdio inicial de seu pai" (cfr. documento de fls. 15 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

8. A aquisição do direito da propriedade do imóvel referido em 3. e 5. está registada a favor dos Autores pela Ap. ..., de 2012/04/30, tem como causa "legado" (cfr. documento de fls. 10 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

9. Desde data não concretamente apurada que o Réu habita o prédio referido em I.3 e I.5 e recusa-se a fazer a sua entrega aos Autores.

10. Em novembro de 2017 o réu foi interpelado para desocupar o prédio.

11. O prédio referido em I.3 e I.5 tem um valor locativo mensal de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros).

12. A construção da casa do lado nascente foi a primeira a ser iniciada.

13. Em 03/07/1985, HH requereu à Câmara Municipal ... "a concessão de licença por 90 dias, para proceder no Lugar ..., freguesia ..., a obra de construção destinadas a garagem".

14. O projeto foi aprovado em reunião da Câmara Municipal ... em 31/07/1985.

15. Foi, entretanto, passado o Alvará de Licença de Obras n.º ... em 06/08/1985, concedido a HH, válido até 4 de novembro de 1985.

16. Em 3 de Julho de 1995 faleceu HH.

17. A Câmara Municipal concedeu à viúva II a instalação do "Ramal Domiciliário de Esgotos n.º ..., a instalar na habitação sita na Rua ... - ...", ....

18. Do que resultou que o ramal domiciliário para saneamento n.º … foi instalado e a II pagou o seu custo em prestações.

19. A FF (solteira), II (mãe do Réu/Reconvinte) e QQ (mãe dos Autores) eram irmãs.

20. A FF era emigrante em ....

21. Os pais do Réu/Reconvinte habitavam uma casa com poucas condições de habitabilidade e salubridade, numa "ilha" sita no Lugar da ..., freguesia ..., concelho ....

22. A mãe dos Autores habitava também um prédio sem condições de habitabilidade e salubridade.

23. Quem habitou a casa pela primeira vez, em data não concretamente apurada, foi a Autora AA e o marido LL.

24. Só depois é que a casa foi ocupada pelos pais do Réu, que aí viveram, pelo menos, desde 1985 até às suas mortes.

25. Nem o Réu, nem os seus pais, pagaram alguma vez o imposto IMI.

26. O terreno de onde foi implantada a construção valia, respetivamente, € 2 057,68, € 2 400,90, € 2 882,04 e € 3 537,70 em 1979, 1980, 1981 e 1982.

27. As obras levadas a cabo, que se consubstanciarem na construção da casa de habitação, garagem, anexos, jardim, horta e pomar, realizadas nos anos de 1979 a 1985, trouxeram à parcela de 735 m2 o valor de € 13 653,36.

28. Em 2 de Novembro de 2017 faleceu II.

29. Os únicos os herdeiros de HH e esposa II são seus filhos JJ e o Réu EE.

30. GG fez a declaração que se encontra na folha 229, datada de 31 de agosto de 1977, onde afirma ter vendido a HH uma parcela com 1450 m2, pelo preço de Esc. 145.000$00, sita no Lugar da ..., freguesia ..., ter recebido Esc. 80.000$00 e que o restante preço seria pago no dia da escritura.

31. A transmissão a que se refere a escritura mencionada em I.1 esteve isenta de Sisa nos termos do artigo 7.º n.º 1 a) do Decreto-Lei 540/76, de 9 de junho.

32. Com data de 14 de agosto de 1978, FF declarou constituir seu procurador HH concedendo-lhe "poderes para a representar em qualquer Repartição Pública ou Particular em que a sua presença se torne necessária, podendo assinar todos e quaisquer documentos que sejam necessários para os indicados fins".

33. A 27 de dezembro de 1983, HH invocando a qualidade de procurador de FF, apresentou nas Finanças uma declaração para inscrição na matriz, em nome desta, do prédio com a área de 735 m2 e com o artigo urbano ...00.º.

34. A 17 de abril de 1985, HH invocando a qualidade de procurador de FF, apresentou nas Finanças uma declaração para inscrição na matriz, em nome desta, do prédio com a área de 1470 m2 e com o artigo urbano ...74.º.



III


Com a rejeição da revista excepcional, transitou em julgado o Acórdão da Relação no que concerne à questão da propriedade do imóvel em apreço, o que significa manter-se o que foi decidido na sentença proferida na 1ª Instância quanto a essa matéria, recordando-se que aí se declarou que os Autores são proprietários, na proporção de um quarto para cada um deles, do prédio supra identificado em I.3 e I.5, condenando-se  o Réu EE a reconhecer tal direito e a restituir aos Autores o referido prédio, completamente livre e devoluto de pessoas e bens.

O que continua em discussão é a questão da indemnização pela privação do uso do imóvel.

Os AA. pediram a condenação do Réu, como possuidor de má fé, no pagamento da quantia de 5.200,00 Euros, pela ocupação respeitante aos meses de Novembro e Dezembro de 2017 e Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2018, assim como na quantia de 400,00 Euros mensais enquanto durar a ocupação abusiva e de má fé.

Os AA. alegaram que o Réu tem impedido que eles possam dispor do bem em causa; que o referido imóvel tem um valor locativo mensal, ou seja, o rendimento mensal que qualquer pessoa, pela sua ocupação, uso e detenção material tem de pagar e, assim,  se os Autores o arrendassem, como é sua vontade e poderia ter acontecido a partir, pelo menos, de Novembro de 2017, poderiam auferir de uma renda mensal nunca inferior a 400,00 Euros, uma vez que se trata de uma vivenda de rés-do-chão, com 5 divisões, a cinco minutos do centro da cidade de ..., e a ocupação que o Réu vem exercendo passou a ser abusiva e de má fé, nomeadamente a partir de Novembro de 2017, já que não é titulada e é exercida contra a vontade dos Autores ( 1271º do C. Civil).

Na 1ª Instância, julgou-se improcedente o pedido de indemnização.

Considerou-se que consta da matéria apurada que o prédio em causa tem um valor locativo mensal de €460,00 (ponto I.11 dos factos provados), mas não resultou provado que seja vontade dos Autores arrendarem o prédio (ponto II.3 dos factos não provados).

Prosseguiu-se, dizendo que, no caso, está demonstrado que o imóvel geraria rendimentos resultantes da colocação da casa no mercado de arrendamento, não sendo esta, contudo, a concreta utilização pretendida, e mais está demonstrado que os Autores, contra o que é a sua vontade, estão privados de dispor do prédio em causa como bem entenderem no âmbito do seu direito de propriedade, por causa do comportamento do Réu. Observou-se, no entanto, que «a causa de pedir não vem estribada nessa privação do uso, mas sim numa específica perda de rendimentos, aliás claramente rotulada como “lucros cessantes”, o que impede a atribuição de qualquer indemnização a esse título, sob pena de alteração ilegítima dos fundamentos da pretensão dos Autores». E acrescentou-se que, não tendo os Autores demonstrado a concreta intenção de colocação do imóvel no mercado de arrendamento, não têm eles direito a embolsar a indemnização peticionada, pois «afastada a possibilidade de atribuir uma indemnização pela mera privação do uso – não pode, in casu, concluir-se por qualquer prejuízo efectivo dos Autores, dado que, face à não prova daquela intenção, não resulta ter ocorrido qualquer perda, potencial ou efectiva, na esfera jurídica dos Autores».

O Tribunal da Relação divergiu desta posição.

Começou por assinalar que, se é certo não se ter provado que os Autores tinham "vontade" de arrendar o imóvel em causa, também é verdade que «se provou que o réu ocupa esse bem contra a vontade daqueles e que lá se mantém, não obstante ter sido, em novembro de 2017, interpelado para o desocupar». E passou, em face disso, às seguintes considerações:

«Temos como pacífico que a privação do gozo de uma coisa constitui um ilícito que no nosso ordenamento jurídico origina a obrigação de indemnizar o respetivo proprietário, porquanto impossibilita-o de dela dispor e fruir. Salvo melhor juízo, «não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, que possa servir de base à determinação da indemnização. Com efeito, "(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afetada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excecionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização" (…). Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que "o simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano". (…) Entende-se, na realidade, que a privação do uso de um bem é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305.º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa. A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação[1]

Não obstante as divergências existentes na jurisprudência e na doutrina sobre esta questão, pelos motivos expostos, seguimos o entendimento de que a mera impossibilidade do uso e fruição do bem constitui em si mesma um dano indemnizável, que será calculado "pelo recurso à equidade, com vista a encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa".

Na situação sub iudice provou-se que o valor da renda mensal do imóvel é de €460,00. Todavia, como resulta do pedido, os autores (apenas) pediram o pagamento de € 400,00 mensais.

 Como sabemos, o juiz não pode condenar "em quantidade superior (…) do que se pedir"; tem que haver "correspondência entre o requerido e o pronunciado".

Então, não é possível, como neste recurso os autores pretendem em primeira linha, fixar esse valor mensal em € 460,00; uma condenação em tais termos estaria ferida de nulidade por ultra petita.

 Por outro lado, se o recurso à equidade decorre, justamente, da circunstância de não estar provado que existia o propósito de os autores darem de arrendamento o prédio, não se apresenta como adequado estabelecer a indemnização num montante mensal igual ao do valor locatício.

Sendo assim, entende-se como justo e proporcional fixar a indemnização mensal devida pelo réu aos autores, pela privação do uso do imóvel, em €300,00.

Finalmente, para evitar equívocos, deve dizer-se que a modificação que, no âmbito da reapreciação do julgamento da matéria de facto, se operou no conteúdo do facto 10 não interfere com este pedido, porquanto ele não abrange qualquer período anterior a novembro de 2017.»


O Recorrente, na 33ª conclusão, refere que:

«33 - Os AA. nunca quiseram arrendar o prédio em causa (não o arrendaram) são sábias e adequadas as considerações das conclusões do Tribunal de 1ª Instância que se encontram na Parte XXIII destas alegações, assim devendo ser revogado o, aliás douto, acórdão recorrido do Tribunal da Relação ....»


Na parte XXIII das alegações, escreve o Recorrente (antes de citar, sobre a matéria, a sentença proferida na 1ª Instância):

«Não se perfilha, na totalidade, a argumentação que leva a condenar o R. ao pagamento de mensalidades pela ocupação que vem fazendo, na defesa do seu direito de propriedade.

É entendimento do R./recorrente que mais adequada à realidade apurada é a decisão, sobre tal matéria, elaborada pelo Tribunal de 1ª Instância, que colhe o inteiro apoio do R./recorrente, razão pela qual, com a devida vénia aqui é reproduzida pois à mesma adere».


Como se vê, o Recorrente aderiu à tese explanada na sentença, pretendendo, assim, que, tal como nela se decidiu, se conclua pela sua absolvição, no que toca ao pagamento de uma indemnização pela ocupação que vem fazendo do prédio.


Estamos perante o dano da privação do uso, decorrente da impossibilidade, por acto de outrem, de alguém dispor e fruir de um bem que lhe pertence.

A questão é controversa, exigindo uns que o lesado faça a alegação e prova das utilidades ou vantagens que deixou de auferir ou auferiria (não fora estar privado do bem) e entendendo outros que a privação do uso, só por si, impossibilitando o proprietário de utilizar como entender aquilo que lhe pertence, já constitui um dano, que, deve, ainda que com recurso à equidade, ser alvo de reparação.

No (recentíssimo) Ac. do STJ de 17-11-2021, Rel. Barateiro Martins, Proc. nº 6686/18.2T8GMR.G1.S1, publicado em www.dgsi.pt, entendeu-se (se bem que com um voto de vencido) que:

«I - A ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo.

II - Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.

III - Indemnização que, em tal hipótese, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, deve ser fixada equitativamente (cfr. art. 566.º, n.º 3, do CC).»


Na fundamentação deste aresto (no qual se elencam, em nota de rodapé, acórdãos deste Supremo Tribunal favoráveis à indemnização pela privação do uso, com fundamento na simples privação do uso normal do bem ou exigindo, para essa indemnização, a prova da desvantagem resultante da privação do uso), refere-se, a dado passo, que:

«(…) se é certo que o dano não se confunde com a ilicitude e que o que está em causa é impossibilidade de se satisfazer (pela utilização do bem de que se está privado) uma necessidade concreta, o certo é também que colocar exigências alegatórias/probatórias ao nível das utilidades concretas pretendidas por parte do lesado esvazia o funcionamento e préstimo da figura do “dano de privação do uso” […].

Ao direito subjetivo absoluto (como é o caso do direito de propriedade dos AA.) é intrínseco um dado conteúdo patrimonial, que se traduz numa nota de utilidade, pelo que sempre que tal utilidade não possa ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo direito (como é, no caso, a intervenção do R.), tem que se considerar que ocorre um dano, que corresponde à utilidade ordinária e normal do bem e que é a consequência (dano consequencial) que a lesão tem na esfera da pessoa lesada.

Só assim não sucederá se, em concreto, se demonstrar que a pessoa lesada não tem qualquer interesse nas faculdades/utilidades ordinárias e normais do bem ou se por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio o lesado não tiver qualquer possibilidade de utilização do bem, hipóteses em que será de concluir não ter existido tal dano consequencial e em que, se fosse outro o entendimento, se poderia falar dum enriquecimento injustificado do lesado (ao conceder-se-lhe uma indemnização em dinheiro por uma vantagem que não iria utilizar).

Mas, em todas as demais hipóteses – ou seja, nada disto se demonstrando – estaremos, com todo o respeito por opinião diversa, perante uma privação do uso que configura um dano indemnizável.»


Chama-se a atenção, no mesmo acórdão, para casos similares, como sucede com a situação prevista no art. 1045º do C. Civil (em cujo nº 1 se estabelece que  se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado (…) ), surgindo como decisiva, para afeitos da atribuição da indemnização, a falta de entrega ao locador do prédio até aí arrendado e não restituído no fim do contrato, independentemente do uso efectivo  que ele pretendesse dar-lhe, caso a coisa lhe fosse atempadamente entregue.


No Ac. do STJ de 29-10-2020 (Rel. Tomé Gomes), Proc. nº 515/04.1TBGDM.P1.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, expendeu-se, em dado trecho da fundamentação, sobre a problemática da privação do uso, o seguinte:

«Segundo o n.º 1 do artigo 564.º do CC, o dever de indemnizar compreende não só os danos emergentes, como também os lucros cessantes; e, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo normativo, além dos danos presentes - já verificados - serão ainda considerados os danos futuros, desde que previsíveis.

Numa aproximação conceitual, diremos que a privação do uso e fruição de um bem sofrida pelo seu titular ou detentor em consequência de um facto ilícito de outrem exprime o próprio evento danoso concretizável na sua projeção consequencial sobre o património do lesado.

Esta privação consistirá, desde logo, na supressão da disponibilidade material do bem e, consequentemente, na frustração do aproveitamento das utilidades económicas do mesmo, por parte do lesado, durante o tempo em que perdurar a privação, o que se traduz numa diminuição temporária do desfrute de um elemento patrimonial.

Tal privação assumirá assim, objetivamente, os contornos de um dano primário – dano-evento -, independentemente dos múltiplos danos secundários consequenciais que daquele derivem.

O valor económico dessa diminuição corresponderá ao valor dos aproveitamentos que o lesado deixou de ter e que eram suscetíveis de ser obtidos através de uma aplicação do bem segundo a sua função económica normal aferida pelo contexto de vida ou atividade do lesado. É certo que o lesado poderá, na maioria das situações, suprir a falta desses aproveitamentos, recorrendo a bens substitutivos, casos em que o dano corresponderá, em princípio, ao valor das despesas de substituição.

Mas pode bem suceder que o não possa ou não queira fazer, seja porque não possui disponibilidades financeiras para o efeito, seja porque não encontra um bem que satisfaça as necessidades goradas, ou mesmo por qualquer outra razão objetiva ou meramente subjetiva. Em qualquer destes casos, o titular do bem não deixará, por isso, de sofrer a falta do aproveitamento económico na utilização do bem patrimonial objeto da violação durante o período da privação.

Esta falta de aproveitamento tanto pode consistir na mera frustração da aplicação direta do bem à satisfação imediata das necessidades goradas, como ainda alcançar os ganhos que poderia obter através da disponibilidade material do bem de que ficou privado, em particular, quando se trate de bens de investimento. Na primeira hipótese, estaremos perante um dano emergente; na segunda, perante a frustração de lucros cessantes.

Nesta perspetiva, o dano ocorrerá logo que à privação corresponda a falta de aproveitamento económico do bem, em qualquer das suas dimensões, por parte do seu titular ou detentor.»


Perante esta elucidativa caracterização do dano de privação de uso, merece reparo, com todo o respeito, a restrição feita pela 1ª Instância, ao entender que os AA. não se estribaram na privação do uso, mas sim numa específica perda de rendimentos, aliás claramente rotulada como “lucros cessantes”, e, assim, considerou não poder arbitrar uma indemnização a esse título. Ora, os AA. pediram uma indemnização por estarem privados do gozo e fruição do imóvel, que lhes pertence, face à ocupação pelo R., que, apesar de interpelado para o efeito, não fez a sua entrega. Trata-se, na verdade, de uma situação de privação do uso.

Entende-se, tal como exposto nos citados acórdãos, que a privação do uso e fruição de um bem sofrida pelo seu titular ou detentor, em consequência de um facto ilícito de outrem, exprime o próprio evento danoso que se projecta sobre o património do lesado – que se vê impossibilitado de retirar as utilidades económicas que entender de um bem que lhe pertence – e que é gerador da obrigação de indemnizar (arts. 483º, 562º, 566º e 1305º do C. Civil).

No caso presente, provou-se que:

«27. Desde data não concretamente apurada que o Réu habita o prédio referido em I.3 e I.5 e recusa-se a fazer a sua entrega aos Autores.

28. Em novembro de 2017 o réu foi interpelado para desocupar o prédio.

29. O prédio referido em I.3 e I.5 tem um valor locativo mensal de €460,00 (quatrocentos e sessenta euros).»


Não se provou que:

«3. É vontade dos Autores arrendarem o prédio referido em I.3 e I.5»


Temos, pois, que o R. se recusa a fazer a entrega do imóvel aos AA., apesar de ter sido interpelado para o entregar, interpelação que, naturalmente, é indicativa de que os AA., na qualidade de proprietários, pretendem fazer uso de tal imóvel, que tem  o valor locativo de €460,00 mensais, o que revela estar em condições de utilização (como vem sucedendo, por parte do R.) e, portanto, de dele se retirarem os benefícios próprios de um imóvel desta natureza (prédio urbano constituído por casa de habitação de rés-do-chão, com 5 divisões).

É verdade não se ter provado que seja vontade dos AA. arrendarem o prédio, mas há que lembrar que das “respostas” negativas (porque não se logrou provar determinada matéria) não se pode extrair o seu contrário, nem será de concluir,  a partir daí, que os AA. não pretendam retirar do imóvel as utilidades que este seja susceptível de oferecer, gozando-o e fruindo-o, como proprietários que são, o que estão impedidos de realizar, por força de um acto ilícito do R., que não tem título para a ocupação que vem fazendo. Além disso não se provou a existência de circunstâncias que, não fora ocupação que vem sendo levada a cabo, impossibilitem, de qualquer modo, a utilização do imóvel por parte dos seus proprietários.

Conforme se entendeu no citado Ac. do STJ de 17-11-2021, também neste caso não há razões para se exigir dos lesados mais do que aquilo que conseguiram provar, como seja a demonstração de que pretendem arrendar o imóvel, sendo de repetir aqui o que nesse aresto se considerou: «se, na ponderação final, não deve admitir-se para o lesado um benefício indevido, também é inadequado que seja o lesante a colher benefícios».


O Tribunal da Relação recorreu à equidade para fixar a indemnização, considerando, desde logo, que, não estando provado que existia o propósito de os Autores darem de arrendamento o prédio, não seria adequado estabelecer a indemnização num montante mensal igual ao do valor locatício. Teve por justo e proporcional fixar a indemnização mensal devida pelo Réu aos Autores, pela privação do uso do imóvel, em €300,00, que entendeu ser devida desde Novembro de 2017 (data da interpelação para entrega do prédio) até cessar a ocupação.

Dentro do que cabe ao Supremo Tribunal fazer neste domínio, que é «sindicar os limites de discricionariedade das instâncias no recurso à equidade» (Ac. do STJ de 25-09-2018, Rel. Roque Nogueira, Proc. 2172/14.8TBBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt), nada há a objectar ao montante encontrado, sendo certo que o Recorrente não questiona especificamente esse valor, para o caso de a sua tese (na linha do que, nesse aspecto foi definido na sentença da  1ª Instância, a cujos fundamento adere), de total afastamento da obrigação de indemnizar, não vingar.


Improcede a revista.


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Sumário (da responsabilidade do relator)

1. A privação do uso de um prédio urbano, de rés-do-chão, com cinco divisões e com um valor locativo de €460,00, decorrente de acto ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa actuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo.

2. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito.

3. Na fixação de indemnização, num caso com estes contornos, deve, como fez a Relação, recorrer-se à equidade (art. 566º, nº 3, do Código Civil).



IV


Pelo que se deixou exposto, na improcedência do recurso de revista, mantém-se a decisão recorrida.

- Custas pelo Recorrente.


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Lisboa, 20-01-2022


Tibério Nunes da Silva (relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Fátima Gomes

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[1] Cita-se aqui o Ac. da Rel. de Lisboa de 11-12-2019, Rel. Carlos Castelo Branco,  Proc. 3088/19.7YRLSB-2, publicado em www.dgsi.pt.