Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1257/18.6SFLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: NUNO A. GONÇALVES
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
UNIÃO DE FACTO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Data do Acordão: 11/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL: - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
Doutrina:
- G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, p. 339;
- Helena Moniz, Crime de trato sucessivo (?),Julgar online, abril de 2018, p. 25;
- J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 280.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.ºS 1 E 2 E 71.º, N.º 1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE LANZAROTE.
DIRETIVA 2011/93/UE.
DIRETIVA 2011/92/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA (CDC), DE 20 DE NOVEMBRO DE 1989.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 5/2017, IN DR N. N.º 120/2017, SÉRIE I DE 2017-06-23;
- DE 06-04-2016, PROCESSO N.º 19/15.7JAPDL.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-04-2016, PROCESSO N.º 657/13.JAPTR.P1.S1;
- DE 14-07-2016, PROCESSOS N.º 677/13.7TAAGH.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-09-2016, PROCESSO N.º 71/13.0JACBR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-11-2016, PROCESSO N.º 444/15.3JAPRT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-05-2017, PROCESSO N.º 110/14.7JASTB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 382/2017.
Sumário :
I. Portugal como subscritor de instrumentos internacionais neste domínio –designadamente da Convenção de Lanzarote -, está obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com menores, abusando o agente de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre a criança, incluindo o ambiente familiar, ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.

II. O bem jurídico protegido com a incriminação de abuso sexual de menor dependente é o livre desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual, ligado  à ideia de que a autodeterminação sexual de crianças, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra carecida de uma proteção especial, não tanto pela falta de madurez para anuir como sobretudo pela viciação da liberdade de decisão ou de resistência derivada da relação de dependência para com o agente.

III. A/o mãe/pai que estabelece uma relação de facto com outra pessoa levando filhas/filhos próprias/os para o seio do agregado da sua “família afetiva”, confia-as/os para educação e/ou também para assistência ao companheiro, esperando e podendo exigir-lhe corresponsabilidade pela educação, formação, proteção, assistência e encargos.

IV. Por sua vez, para a criança filha de uma das pessoas da união de facto, a/o companheira/o desta/e é, no dia a dia, a/o mãe/pai de facto. De tal modo que muitas vezes a criança interioriza e assume o tratamento de mãe/pai à/ao companheira/o de facto da/o respetiva/o progenitor/a.

V. A doutrina  – com escassa dissonância - e a jurisprudência  deste Supremo Tribunal convergem em considerar que a relação de confiança para educação ou assistência inclui, ademais das situações decorrentes da lei, de decisão judicial ou administrativa ou de contrato, também aquelas que se estabelecem através de relações de facto. entre as quais  se incluem as situações hodiernamente cada vez mais frequentes em que as crianças vivem no seio de uma “família afetiva”.

VI. Elemento nuclear da incriminação do abuso sexual de menor entre 14 e 18 anos de idade é a relação especial de dependência materializada na confiança para educação ou assistência.

VII. A coabitação, por si só, não é elemento constitutivo do crime de abuso sexual de menores dependentes.

VIII. É circunstância agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pela Lei n.º 103/2015, que transpôs para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/UE.

IX. Atualmente não há suporte normativo para continuar a entender que constitui um só crime a realização do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico eminentemente pessoal, executada por forma essencialmente homogénea.

X. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a recusar uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autodeterminação sexual, da categoria do «crime de trato sucessivo».

XI. Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração.

XII. O direito penal visa proteger os bens jurídicos que o legislador entender serem dignos desse amparo reforçado.

XIII. Os parâmetros concorrentes na determinante da medida judicial da pena - funcionando dentro da correspondente moldura penal –, são as exigência de proteção do bem jurídico violado (estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual a sanção deixará de cumprir esta função ), a medida da culpa posta na execução do facto (que traça a linha máxima para além da qual a pena se torna desproporcionada senão mesmo parcialmente arbitrária) e as particulares necessidades de ressocialização do agente (que, dentro daqueles duas balizas, deve fazer com que a pena concreta se encoste mais a uma ou à outra) –arts. 40º n.ºs 1 e 2 e 71º n.º 1 do Cód. Penal.

XIV. O montante da reparação ou compensação arbitrada às vitimas especialmente vulneráveis deve obter-se através da equidade.

XV. Quando a vítima é uma criança devem ter-se em atenção a idade, a maturidade, estado de saúde, os seus pontos de vista, as necessidades e as preocupações da/o menor, o tipo de atos sexuais nela praticados, a duração da vitimização, as consequências que possam ter resultado no seu equilíbrio psicológico ou na sua integração social.

Decisão Texto Integral:
O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda:



I. RELATÓRIO:

No Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … - Juiz …, acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada e agravada, previsto e punido pelo disposto no artigo 172º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 171º, n.ºs 1 e 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, foi o arguido

- AA, de 58 anos, com os demais sinais dos autos,

julgado no processo comum supra referenciado.

O tribunal coletivo, por acórdão de 27 de junho de 2019, julgando a acusação procedente, por provada, decidiu requalificar juridicamente os factos imputados e, em consequência, condenou o arguido:

a) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de seis crimes de abuso sexual de menor dependente, p.p. pelo art.º 172.º, n.º 1 e art.º 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão por cada um dos crimes cometidos;

b) em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, na pena única de 8 (oito) anos de prisão;

c) na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, que envolvam contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos – art.º 69º-B, n.º 2 do Código Penal;

d) na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 (cinco) anos – art.º 69º-C, n.º 2 do Código Penal;

e) na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período de 5 (cinco) anos - art.º 69º-C, n.º 3 do Código Penal;

f) a reparar a vítima BB com a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal;

g) nas custas do processo

Decidiu ainda;

h) julgar procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo Centro Hospitalar de …, EPE, e em consequência, condenar o arguido apagar-lhe € 232, 27 acrescidos de juros moratórios.

i) determinar a recolha de uma amostra de ADN ao arguido, para integrar a base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal.

j) determinar que na comunicação a efetuar, seja informado o Instituto Nacional de Medicina Legal da pena aplicada ao arguido, bem como da respetiva localização.

a)  o recurso:

Inconformado, o arguido recorre diretamente para o STJ, afirmando que o recurso se circunscreve, - ainda que sem correspondência com o alegado -, “unicamente o reexame da matéria de direito”.

Remata a motivação com as seguintes:

 - Conclusões:

1)    Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido a fls. (…) e ss. que o condenou, na pena de 8 (oito) anos de prisão, pela prática de seis crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada e agravada, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, do Código Penal, por referência aos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1 alínea b).

2)     Não pode o recorrente conformar-se com o douto acórdão do Tribunal porquanto, decidindo como decidiu, as Meritíssimas Juízas do Tribunal a quo não fizeram uma correta interpretação dos factos nem, tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos à norma jurídica, tendo o presente recurso por objeto unicamente o reexame da matéria de direito, tem por fundamento os n.ºs 1, n.º 2, alínea a) e b), todos do artigo 410.º do CPP.

3)   Entende o recorrente que, da matéria de facto provada, não resulta claramente que a menor lhe havia sido confiada para educação e assistência, pois, o recorrente não tinha qualquer vínculo legal que se pudesse concluir que a menor se encontrava a si confiada para a educação e assistência.

4)      A decisão recorrida refere que o recorrente “não ignorava nem podia ignorar que à data dos factos vivia com a mãe da vítima BB como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, (…)” ponto 21 da matéria de facto.

5)     Da matéria de facto provada não se pode extrair, igualmente, a existência desse vínculo de facto, pois, na perícia à sua personalidade, o recorrente é descrito nas conclusões como: “apresenta baixa socialidade, com reserva, pouca iniciativa social e tendência a estabelecer relacionamentos superficiais, alguma imaturidade, e com baixa autonomia e baixa independência de ideias e opiniões.”

6)      O Tribunal a quo, na sua fundamentação, refere que o recorrente é “homem de família, centrado nesse núcleo que cria à sua volta.” último § página 10 do Acórdão, de forma a fundamentar a aplicação do preceito legal.

7)     A perícia à personalidade do recorrente, não impugnada ou contestada, é completamente contrária às conclusões que o Tribunal a quo retira das declarações do recorrente, e ainda da mãe e avó da BB, entrando em contradição com a fundamentação do Acórdão.

8)    Não é o simples facto de existir uma economia comum onde o recorrente participa financeiramente que se poderá concluir que uma menor se encontra confiada para educação e assistência a determinado adulto, nem bastando para tal que exista coabitação, tornando-se necessário que se desse como provado factos concretos que se traduzissem numa efetiva relação de confiança para educação e assistência.

9)     Na própria fundamentação do Acórdão recorrido, se confunde a relação entre o recorrente e a mãe da menor - monogâmico – com a relação entre o recorrente e a menor, para fundamentar a existência desta se encontrar igualmente confiada ao recorrente para educação e assistência.

10)   Julgamos que continua a ser a intenção do legislador que se verifique o abuso da função ou posição que exerce – constante da redação inicial do artigo 172.º do C.P., ou seja, que o recorrente tivesse um ascendente sobre a menor de tal forma que, prevalecendo-se deste e por causa deste, tivesse praticado os abusos, o que se julga não ter ficado suficientemente provado para que o crime fosse consumado.

11)   Concluir-se que o recorrente tinha o papel de cuidador, que assim se via e que assim o via a menor baseando-se unicamente no facto deste contribuir para as despesas do casal sem que se estabeleça uma relação direta e volitiva dessa contribuição, bem como pelo simples facto da menor tratar o recorrente, ora por AA – declarações da própria mãe da menor – ora por pai, ora por “papi”, é formular uma convicção que não assenta diretamente em qualquer meio probatório que, com a certeza minimamente exigível, se possa concluir pela submissão da conduta do recorrente à norma legal.

12)     A nossa Lei apenas pune os atos sexuais com menores de 18 e maiores de 16 anos, quando for provado o papel de cuidador entre a menor e o agressor, pelo que, cabe ao julgador apreciar com ainda mais rigor os factos relevantes para a condenação pela prática de atos sexuais praticados com maiores de 16 anos.

13)     Sendo o consentimento possível depois dos 16 anos, desde que seja prestado por quem possua o discernimento necessário, e considerando que a Lei opta por considerar que o consentimento numa relação de dependência nunca poderá ser um consentimento livre e com discernimento, deveria o Tribunal a quo ter fundamentado bem os factos que o levaram a acreditar que estava perante uma relação de dependência, não bastando para tal dar como provado um facto genérico.

14)     Resultando na insuficiência para a decisão da matéria de facto provado, bem como, na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, pois, por um lado refere analisar o relatório sobre a personalidade do recorrente, onde no mesmo se conclui por uma personalidade contrária a que se conclui na própria fundamentação, com recurso a uma convicção do julgador que vai contra o próprio relatório e que não encontra alicerce fáctico em nenhum meio probatório, devendo o recorrente ser absolvido do crime a que foi condenado.

15)      Pressupondo que as únicas alíneas do artigo 177.º do C.P. em que o recorrente se poderia enquadrar seriam a relação familiar e/ou a coabitação, a verdade é que tais pressupostos já serviram de fundamento para a submissão da conduta do crime ao tipo legal do crime a que foi condenado.

16)      Ora o papel de cuidador está intrinsecamente ligado à relação familiar (de proximidade) e à coabitação, pelo que, agravando-se o crime nos termos do artigo 177.º, é violar o princípio da proibição da dupla valoração, entendendo o recorrente não existir fundamento legal para a agravação prevista no artigo 177.º do C.P., nem tampouco o Acórdão recorrido referido artigo, e apesar do legislador não ter incluído na previsão do n.º 2 do referido artigo, o artigo 172.º, entendemos que apenas pretendeu conferir ao julgador a hipótese de verificar cada caso concreto.

17)       Da matéria de facto provada resulta que, o período temporal dos factos ocorreu, no máximo por 3 meses (julho a 24 de setembro de 2018), e em dois locais: A habitação do recorrente e o local de trabalho do recorrente, e ainda que todos os atos praticados em ambos os locais, foram essencialmente os mesmos.

18)      Existe uma única resolutiva do recorrente nos atos praticados, uma vez que, da matéria de facto provada não se consegue situar temporalmente com exatidão os mesmos e descrevendo-se estes como tendo sido executados essencialmente de forma homogénea, ocorrendo no mesmo contexto vivencial e espaços físicos (local de trabalho e habitação), não se descortinando ao recorrente diferentes motivações, ou renovação da motivação.

19)      Considerar estarmos perante 6 crimes e não perante um único crime de trato sucessivo, perante a matéria de facto provada, é violar o princípio do in dúbio pro reo, condenando-o por seis crimes sem que existam factos que permitam tal qualificação jurídica com a certeza necessária.

20)      Considerando a matéria de facto provada, o espaço temporal e físico onde se consumaram os atos, a personalidade do recorrente, que os mesmos aconteceram num acordo estabelecido entre recorrente e vítima, da vítima ser a mesma, a homogeneidade dos atos e de não se conseguir demonstrar uma renovação da resolução criminosa, o recorrente apenas poderá ser condenado por um crime de trato sucessivo.

21)      O legislador optou por estabelecer 3 faixas etárias nos crimes relativos à autodeterminação sexual de menores: - menor de 14 anos (para o abuso sexual de crianças); - maior de 14 anos e menor de 16 anos; - maior de 16 anos e menor de 18 anos;

22)      A menor encontra-se na última faixa etária, logo, o crime cometido pelo recorrente foi praticado contra uma adolescente e não uma criança (que em função da pesada pena aplicada ao recorrente, parece que o crime cometido foi contra uma criança).

23)      No crime de abuso sexual de menores dependentes, não se estabelece uma diferença entre os crimes praticados contra menores de 16 ou maiores de 16, nem tão pouco o tipo de atos sexuais, sendo estes consumados, independentemente de existir ou não cópula, porém, estabelecendo diferentes crimes consoante a idade do menor, pretendeu o legislador punir de forma diferente os diversos atos consoante a idade, variando o grau da ilicitude conforme a idade da vítima.

24)      Acresce ainda que, no nosso sistema jurídico-criminal a idade da imputabilidade foi estabelecida por referência precisamente aos 16 anos, reconhecendo o legislador que esse será o marco em que o jovem, sendo ainda menor, é já capaz de se auto determinar e de perceber e avaliar as consequências dos seus atos - por virtude de ter atingido um grau de maturidade que lhe permite ter plena consciência da substância inerente à ação praticada.

25)      A medida de 3 anos de prisão por cada um dos 6 crimes, mostra-se completamente desajustada, excedendo largamente a medida da culpa, considerando, a idade da menor – 16 anos -, o facto dos atos terem sido praticados numa acordo estabelecido entre vítima e recorrente, a baixa iniciativa social do recorrente, a duração dos factos, o contexto em que os mesmos aconteceram, o facto de à menor não lhe serem conhecidas consequências a nível de relacionamento social, amoroso e educação, faz com que não se possa considerar a ilicitude como elevada, mas somente mediana.

26)      Sobre a intensidade do dolo – a decisão recorrido é omissa quanto à intensidade do dolo -, recordando o relatório sobre a personalidade do recorrente, onde se verifica uma pouca iniciativa social, imaturidade, baixa autonomia e baixa independência de ideias e opiniões, bem como que o risco de violência sexual é baixo – o que se pode traduzir no facto do recorrente não revelar uma disposição intrínseca para a prática de crimes contra menores, mas que terá sido um ato isolado na sua vida – como é referido pelo Tribunal a quo acreditar –, a oportunidade criada pelo acordo com a menor, temos pois que, a intensidade do dolo não poderá ser elevada, mas tão-somente baixa.

27)      O recorrente confessou os factos, demonstrando arrependimento e alguma consciência crítica, não tendo quaisquer antecedentes criminais, o que depõe a favor do recorrente.

28)      Sobre as condições pessoais e económicas do recorrente, considerando a matéria de facto provada, o recorrente é pessoa socialmente inserida, trabalhava à data dos factos, possuindo rendimentos que lhe permitam prover a sua subsistência quando colocado em liberdade, dispondo do apoio familiar composto pelo seu filho e a companheira deste.

29)      Ao recorrente era impossível reparar as consequências do seu crime através de atos – na medida em que, neste momento, o melhor que poderá fazer para reparar a sua conduta, além de confessar e assumir o crime, o que já o fez, é afastar-se da BB e da família desta, bem como encontrando-se detido desde o dia …/09, pouco ou nada pode fazer.

30)      Nada ficou provado relativamente às consequências para a menor, sabendo, pelas declarações desta, da sua mãe e da professora CC, que a BB namora, encontra-se bem nas aulas e já fala em ir para a universidade, ou seja, felizmente, os factos não aparentam ter provocado danos de maior na adolescente.

31)      Por fim, considerando o risco de violência sexual ser baixo, da não existência de fatores de risco a relevar, conforme descrito no relatório à personalidade do recorrente, e da sua ausência de antecedentes criminais, julga-se que terá de se concluir que os factos constituem um ato isolado na vida do recorrente, não tendo este uma propensão para a atividade criminosa.

32)      A parca fundamentação do Acórdão recorrido, em tão pesada pena, equivale praticamente à sua omissão, pelo que, o Acórdão apresenta deficiências de falta de fundamentação.

33)      Ponderando tudo o que depõe a favor do recorrente, sem olvidar a gravidade do crime (eventualmente, do ponto de vista jurídico) perpetrado, a verdade é que a pena a aplicar ao recorrente, por tudo o acima exposto, nunca poderia exceder um quarto da pena abstratamente aplicável, neste caso, no máximo 24 meses.

34)      Na determinação da pena única, considerando as exigências da prevenção especial, que se consideram reduzidas face a tudo o que acima se referiu, e sem descurar que as exigências de prevenção geral neste tipo de crime se mostram elevadas, a personalidade do recorrente que demonstra não ter uma tendência criminosa, às motivações acima referidas, a pena única aplicada ao recorrente mostra-se igualmente exagerada.

35)       A decisão recorrida, optou por aplicar às penas parcelares uma pena concreta situada no limite do primeiro terço da pena, mas ao decidir pela medida concreta da pena única, já elevou essa fasquia para acima do segundo terço da pena abstrata a operar por cúmulo, excedendo largamente a medida da culpa do recorrente, entendendo o recorrente que a pena única a aplicar, considerando o limite intransponível da culpa, nunca se poderá situar acima dos 5 anos.

36)      E aqui chegados, considerando todos os fatores que acima já referimos para a determinação da medida da pena e que depõe a favor do recorrente, com especial enfoque na sua inserção social, de não possuir antecedentes criminais, do risco de violência sexual ser baixo, deste não revelar uma personalidade que demonstre uma propensão para atos sexuais com menores, deve, por imposição legal, a pena aplicada ao recorrente ser suspensa na sua execução, por preencher todos os requisitos previstos no artigo 50.º do C.P., pois a simples ameaça de prisão será já fortemente dissuasora da prática de novos crimes por parte do arguido.

37)      O recorrente insurge-se ainda contra a indemnização arbitrada. Vingando a sua tese relativamente ao trato sucessivo, cai por terra um dos fundamentos da fixação do montante indemnizatório, exatamente o número de crimes praticados.

38)      Não se compreende ainda, como é que o Tribunal a quo recorre à analogia de outra decisões cujos crimes praticados não o foram contra o mesmo bem jurídico protegido de que vem o recorrente condenado, estabelecendo um valor sem o mínimo de conexão factual, ou sequer fundamentando-o de uma forma que permita a quem analise a decisão concluir como é que se chegou a esse valor, entendendo o recorrente que a decisão, nesta parte, é nula por omissão do dever de fundamentação da sentença.

39)      Mesmo que assim não se considere, a verdade é que a quantia arbitrada carece de prova suficiente que a justifique, pois, considerando os juízos de equidade, a culpa do agente, a sua situação económica – atualmente desempregado e detido preventivamente – a gravidade do dano, as especiais circunstâncias e as condições económicas da vítima, que nem sequer foram apuradas, o montante arbitrado é completamente desproporcionado, devendo ser reduzido para uma quantia nunca superior a € 1.000,00 (mil euros).

40)       Assim, violou o Tribunal a quo, entre outros, os artigos 40.º, n.º 1 e 2, 50.º, 71.º, 72.º, 77.º, 172.º e 177.º n.º 1, alínea b), todos do Código Penal, os artigos 127.º, 374.º, 375.º, n.º 1, e 379.º, todos do C.P.P, o artigo 32.º da Lei Fundamental, e os artigos 483.º e 496.º do Código Civil.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVERÁ SER REVOGADO O DOUTO ACÓRDÃO EM CRISE NA PARTE EM QUE CONDENOU O RECORRENTE, SENDO DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E ABSOLVENDO-SE O RECORRENTE, OU, CASO ASSIM NÃO SE CONCLUA, SER CONDENADO EM PENA NÃO SUPERIOR A 5 ANOS SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO.

b) resposta do Ministério Público:

Contramotivou o Ministério Público na 1ª instância, refutando os argumentos do recorrente, sem que tenha apresentado conclusões.

Pugna pela confirmação da decisão recorrida, com a consequente improcedência do recurso.

c) parecer do Ministério Público no STJ:

O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu douto e bem estruturado parecer com os seguintes fundamentos:

a. questão prévia: a competência deste STJ para conhecer do mérito do recurso.

5. Dizendo-o visar «unicamente o reexame da matéria de direito», convoca, (…) o Arguido as normas das al.ªs a) e b) do art.º 410º do CPP como fundamento do recurso – (…) cfr. conclusão 2).

E no desenvolvimento da sua tese acusa expressamente a comissão dos vícios da insuficiência para decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável na fundamentação, que são os referidos naquelas normas e que, sabe-se, são fundamento de recurso em matéria de facto – vejam-se conclusões 1) a 12) da motivação,

Pesem tais referências, entende-se que não se trata de arguições contra a decisão de facto em sentido estrito e próprio, mas antes – menos rigorosamente, é certo – de censura à decisão de direito na perspetiva da subsunção dos factos apurados à previsão do tipo do abuso sexual do art.º 172º n.º 1 do CP, designadamente, ao elemento (objetivo) da relação de confiança de menor para educação e assistência para que o Recorrente diz não existir apoio nos factos provados: essa, pelo menos, a ideia que o signatário extrai das conclusões 2) a 11) daquela motivação onde, em momento algum, vê pedido de anulação ou de modificação da decisão de facto mas sim de correção (anulatória) do juízo subsuntivo.

E é por tais razões que nada aqui se objeta quanto à competência deste Supremo Tribunal de Justiça – a substância da arguição sobrepor-se-á à (simples) forma –, que se tratará de recurso exclusivamente de direito, por isso que do conhecimento deste tribunal nos termos do art.º 432º n.º 1 al.ª c) e 434º do CPP.

Entendendo, porém, V. Exas., Senhores Juízes Conselheiros, que está perante arguições em matéria de facto em sentido verdadeiro e próprio, então haverá que declinar tal competência e deferi-la ao Tribunal da Relação de Lisboa, isso pois que «I – compete ao Tribunal da Relação conhecer de recurso de acórdão final do tribunal coletivo em que venha invocado qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP; o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º do CPP, por sua iniciativa, e nunca a pedido do recorrente» e que «II – A circunstância de a invocação dos vícios do art. 410.º do CPP ser manifestamente improcedente irreleva para o efeito de atribuição de competência ao Supremo Tribunal de Justiça, pois qualquer juízo prévio sobre o bem fundado do recurso já constitui conhecimento do recurso e esse cabe à Relação.»[1] .

b. Do mérito do recurso.

6. Na perspetiva que, assim, se tem do objeto do recurso, vêm, então, postas à apreciação deste Supremo Tribunal as seguintes questões:

─ Qualificação jurídico-criminal dos factos apurados: a figuração do elemento do tipo-base do art.º 172º n.º 1 do CP da relação de confiança para educação e assistência e do elemento do tipo agravado do art.º 177º n.º 1 al.ª b) das relações familiar e, ou, de coabitação.

─ A unificação das condutas num só crime por via da figura do crime de trato sucessivo.

─ A medida concreta das penas, parcelares e conjunta, e a suspensão executiva da segunda.

─ O montante da reparação pecuniária.

E diz já o signatário que, acompanhando nos seus momentos fundamentais a peça de contramotivação e, antes dela, o bem sustentado Acórdão Recorrido, é pelo não provimento total do recurso.

Com efeito e muito brevemente:

7. Começando pela integração dos factos no art.º 172º n.º 1 do CP, diz o Arguido que a matéria de facto apurada não sustenta o elemento objetivo do tipo da relação de confiança para assistência e educação de que fala a norma por isso que não se podendo concluir pela verificação do(s) ilícito(s) e por isso que devendo ser absolvido.

Sem razão, porém, (…).

Com efeito, e começando por uma tentativa de definição (telegramática) do ilícito:

(1). Sob a epígrafe de «Abuso sexual de menores dependentes», dispõe o art.º 172º n.º 1 do CP que «Quem praticar ou levar a praticar acto descrito nos n.ºs 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos». E dispõem, de seu lado, os n.ºs 1 e 2 do art.º 171º que «Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos» e que «Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».

O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de autodeterminação sexual de menor entre os 14 e os 18 anos.

Tratando-se de crime de perigo abstrato e de mera atividade.

O tipo objetivo consiste na prática consensual de ato sexual de relevo com menor, v. g., a cópula, a introdução vaginal de partes do corpo e de objetos, o coito oral ou o coito anal.

A especialidade desta incriminação reside na relação de confiança do menor para educação e assistência ao agente.

Tal relação pode resultar da lei, de decisão judicial, de contrato ou de situação de facto.

E o crime é essencialmente doloso, admitindo-se qualquer forma de dolo.

Olhando, ora, para o elenco do provado no Acórdão Recorrido, encontra-se nele sustentação para todos os elementos objetivos e subjetivos do crime.

E encontra-se especificamente para aquele cuja falta o Recorrente quer fazer crer – a relação de confiança da menor ao Arguido para educação e assistência –, imanente na generalidade dos factos assentes e sintetizado no n.º 21 do provado, no segmento em que refere que «Não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data dos factos, vivia com a mãe da vítima BB como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano na educação e no provimento das necessidades da vítima BB, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância».

O que preenche aquele elemento de tipo, aliás, tanto objetiva como subjetivamente.

E não se vendo, de resto, como se possa questionar a sua verificação, sabido que, como acima assinalado e como o próprio Acórdão Recorrido sublinha com apoio em doutrina autorizada, a relação em causa pode resultar, como no caso, de simples situação de facto, é dizer, da relação de convivência more uxorio do Recorrente com a mãe da vítima e do estabelecimento de laços de afetividade, de proteção, de assistência e de educação entre aquele e esta em tudo semelhantes aos de uma relação de filiação.

Pelo que, presente o demais da conduta do Recorrente, não se vê como subtraí-la a previsão do art.º 172º n.º 1 sempre citado

Havendo de improceder este fundamento do recurso.

(2). E o mesmo terá que acontecer com relação à objeção seguinte do Recorrente, esta dirigida ao tipo agravado do art.º 177º n.º 1 al.ª b) do CP e à, alegada, impossibilidade de, sem risco de violação do princípio da proibição da dupla valoração, preencher o requisito de a vítima «se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela, de curatela, ou de dependência económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação».

Na verdade e, de novo, muito sinteticamente:

Nos termos do art.º 177º n.º 1 al.ª b) citado, «As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: […] se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela, de curatela, ou de dependência económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação».

Por comparação ao tipo base do art.º 172º n.º 1 do CP, verificam-se assim no tipo agravado dois requisitos complementares, um, relativo à ilicitude, o outro, à culpa: quanto ao primeiro, que entre o agente e a vítima interceda uma relação familiar – é dizer, uma relação parentesco ou de afinidade (em qualquer grau da linha reta e até ao sexto grau da linha colateral) –, uma relação de tutela ou curatela, uma relação de coabitação ou uma relação de dependência económica, hierárquica ou de trabalho; quanto ao segundo, que o agente pratique o facto com aproveitamento dessa relação.

Requisitos na verdade complementares dos do art.º 172º n.º 1 do CP e não os mesmos deste, em contrário do que pretende o Recorrente:

─ No plano do objetivo, sendo determinante no art.º 172º n.º 1 da existência de uma situação de confiança da vítima ao agente para educação e assistência, é-lhe, porém, relativamente indiferente tanto a fonte dessa situação – a ponto de equiparar fontes legais como o parentesco, a afinidade, a tutela, a curatela ou até o contrato, a, como acontece in casu, simples situações de facto – e, até, o próprio contexto dela – mormente, em termos de existência, sim ou não, de coabitação entre ambos, que não a excluindo, também não a exige.

Já não assim, porém, para o art.º 177º n.º 1 al.ª b): é por ser sensível ao maior desvalor da conduta do n.º 1 do art.º 172º quando protagonizada por familiares, curadores, tutores, coabitantes ou por agentes em posição de dominância hierárquica, económica e laboral, que precisamente o preceito agrava a respetiva pena, em correspondência com o maior grau de ilicitude que a conduta denota por comparação ao tipo-base.

─ No plano do intencional, também o tipo agravado exige um plus relativamente ao fundamental: enquanto o primeiro se basta com o dolo na forma mais simplista da consciência do tipo e da vontade da sua realização, sabendo o agente da ilicitude e censurabilidade da conduta, já o segundo exige deste que, adicionalmente, se mova com a consciência – e vontade – de se aproveitar do (ainda) maior ascendente que normalmente detém sobre a vítima quem é seu parente, afim, tutor ou curador, quem com ela coabita ou de que em ela depende económica, laboral ou hierarquicamente, assim «recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança».

Ora, volvendo ao caso dos autos, é muito nítido na fundamentação de direito do Acórdão Recorrido que o que mais decisivamente convocou o tipo agravado do art.º 177º n.º 1 al.ª b) foi a existência da relação de coabitação entre o Recorrente e vítima BB que ficou assente e decorre, entre outros, dos n.ºs 3., 5., 10. e 21., do provado.

Relação essa que, por isso, só nesse momento operou em termos de tipicidade, sendo que, como já afirmado, bastou à figuração do tipo-base do art.º 172º n.º 1 do CP a existência da relação de confiança para educação e assistência para cuja perfeição, como também já visto, a norma não exige, nem releva, a coabitação.

O que tudo vale por dizer que, em termos da figuração, complexa, do ilícito agravado – isto é da figuração, a um tempo, dos elementos das previsões art.º 172º n.º 1 e do art.º 177º n.º 1 al.ª b) –, a questão da coabitação só foi considerada no momento da aferição da agravação do tipo, por isso que não se podendo falar de dupla valoração dela e da violação da sua proibição,

Razões por que, também por aqui, o recurso haverá de improceder.

8. Mesmo que a factualidade caiba, contra o seu entendimento, na previsão do tipo agravado do crime, sustenta, então, o Recorrente – e cuida-se, já da segunda questão do recurso – que nem assim se pode manter a condenação de 1ª instância, que foi por seis daqueles ilícitos quando praticou apenas um. E esgrime para o efeito com a unificação dos seus atos por via da figura do crime de trato sucessivo, realçando o pouco tempo por que se prolongaram os factos – três meses –, a homogeneidade das correspondentes condutas, a ocorrência delas no mesmo contexto vivencial e espacial e a mediação de tudo pela mesma motivação e por uma única resolução.

Daí conclui que a condenação representa violação do princípio do in dubio pro reo, até porque não existem factos que «permitam tal qualificação com a certeza necessária» – cfr. conclusões 17) a 20).

Sem razão, de novo, (…):

A questão da unidade/pluralidade de infrações foi objeto de aturada e aprofundada análise no douto Acórdão Recorrido, aliás, motivada pela circunstância de, em audiência de julgamento, ter sido proferido despacho de alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos do art.º 358º n.ºs 3 e 1 do CPP, a hipotizar, precisamente, a comissão, não de um, como vinha na acusação, mas de seis daqueles crimes em concurso efetivo.

E desenvolveu-se ali a tese, maioritária na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça – de que foi citado como exemplo o Acórdão de 6.4.2016 - Proc. n.º 19/15.7JAPDL.S1 11 –, que repudia a ideia da unificação. Tese (re)afirmada, v. g., nos, recentes, Acórdãos de 22.3.2018 - Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1 12, de 12.4.2018 - Proc. n.º 104/17.0JACBR.S 13 e de 21.2.2018 - Proc. n.º 1548/16.0JAPRT.P1.S1 14.

O signatário subscreve, sem reservas, tal tese.

E porque, tal como os Exmos. Juízes de … e como o Exmo. Procurador da República:

─ Não vê, no provado, uma só resolução criminosa a desencadear toda a atividade do agente;

─ Vê uma atuação heterogénea do Recorrente – beijos na boca, toques nos seios, introdução de dedos na vagina e coito oral; cópula; cópula e coito oral; coito anal;

─ Vê alguns episódios intervalados por cerca de um mês e, inclusivamente em locais diferentes – na casa onde coabitavam; na garagem anexa; no local de trabalho do Recorrente;

─ Vê a maior parte dos atos localizados com precisão no tempo; e

─ Vê um critério normativo lógico e coerente a agrupar os atos em cada dum dos seis episódios criminosos por que houve condenações,

não vendo e vendo tudo isso, dizia, não encontra motivo que justifique a unificação das condutas num só crime, nem mesmo que em razão de uma qualquer ideia do in dubio pro reo, excecionalmente operante em sede de qualificação jurídica.

E assim sendo, haverá de manter-se a qualificação jurídica que vem do Acórdão Recorrido – autoria material, em concurso real, de seis crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado –, improcedendo também este fundamento do recurso.

(3). As objeções seguintes do Recorrente respeitam à questão da medida concreta das penas, parcelares e conjunta, e à suspensão executiva desta, querendo ver reduzidas, as primeiras, a não mais do que 24 meses de prisão, e, a segunda, nunca fixada em mais de 5 anos e, além disso, suspensa na sua execução nos termos do art.º 50º do CP.

Diz a propósito das penas parcelares que, no escalonamento etário dos [crimes] contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores – vítimas com menos de 14 anos; com mais de 14 e menos de 16; com mais de 16 e menos de 18 –, os crimes praticados cabem no último patamar, por isso que sendo dos de mais baixa densidade de ilicitude; que o grau da sua culpa é pouco acentuado; e que são pouco exigentes as necessidades de prevenção especial.

Acrescenta, quanto à pena única, que, pesem as necessidades de prevenção geral, (sempre) acentuadas neste tipo de ilícitos, a sua personalidade, referida ao conjunto dos factos, não denota uma tendência criminosa.

E remata, em defesa da suspensão executiva, com as (mesmas) baixas exigência de prevenção de socialização.

Não se pode, porém, acompanhar as pretensões do Recorrente. Com efeito:

A escolha das penas e a sua dosimetria estão douta e fundamentadamente explanadas no Acórdão Recorrido e na contramotivação de recurso que o Ministério Público na 1ª instância produziu em seu apoio.

E estão-no por forma a responderem, por antecipação, às objeções do recurso, realçando, quanto às penas parcelares, que as coisas hão-de operar no quadro dos art.ºs 40º e 71º do CP e da, denominada, moldura da prevenção de integração – para o que sublinham o elevado grau de ilicitude, o dolo direto, a confissão parcial e a autocrítica de arguido, tudo a catapultar as ideias da prevenção geral e da culpa para patamares elevados e a da prevenção especial para patamar intermédio, e tudo a justificar, na moldura abstrata de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 4 meses, as seis penas de 3 anos de prisão, cada uma – e, quanto à pena única, que haverá que respeitar os critérios específicos do art.º 77º do CP que, in casu, evidenciam a adequação e proporcionalidade da pena única de 8 anos de prisão, na moldura do concurso de 3 a 18 anos.

Fundamentação que se acompanha e a que nada, com utilidade se tem a acrescentar, sendo que com base nela, o Ministério Público é pela improcedência do recurso (também) nesta parte, por isso que havendo de ser confirmadas tanto as penas parcelares como a pena única.

Confirmação que (ainda) obstará à última pretensão deste segmento do recurso – a suspensão executiva da pena única de prisão – por sempre arredada pelo art.º 50º do CP, que só a admite com relação a penas não superiores a 5 anos.

9. Uma derradeira e (também) brevíssima palavra acerca da indemnização reparatória prevista no art.º 82º-A do CPP, contra cujo montante – € 5 000,00 – o Recorrente se insurge, querendo vê-lo fixado em não mais do que € 1 000,00.

E desse modo para, por mais uma vez, aderir, no mais decisivo, à fundamentação constante do Acórdão Recorrido, que bem justifica a reparação arbitrada e respetivo montante, e assim tanto mais quanto o melhor das razões em que o Recorrente apoia a sua pretensão partia do pressuposto, que não se pode verificar, da redução do número de ilícitos praticados de seis para um por via da figura do crime de trato sucessivo.

Razões por que, por fim, e igualmente por aqui, o recurso haverá de improceder.

II. o objeto do recurso:

O recorrente apresenta para reexame deste Tribunal questões jurídicas que sistematiza do seguinte modo:

1ª – da qualificação jurídica:

a. confiança para educação e assistência;

b. dupla valoração;

c. trato sucessivo;

2ª da medida das penas parcelares e única;

3ª montante da indemnização arbitrada.

Todavia, contradizendo a proposta com que abriu a alegação, não se coibiu de argumentar com:

- a errada apreciação das provas – designadamente a perícia à sua personalidade – (cls. 3ª a 7ª, 9ª, 11ª).

- os vícios da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provado, bem como, na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto” (cls. 8ª, 14ª, 26º. - “a decisão recorrido é omissa quanto à intensidade do dolo”, 29ª - “nada ficou provado relativamente às consequências para a menor” -, e 39ª  - “a quantia arbitrada carece de prova suficiente”)

- inexistência de “factos que permitam tal qualificação jurídica com a certeza necessária” (cls. 19ª);

- o princípio in dubio por reo.

- a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação (cls. 32ª e 38ª).

III. Fundamentação:

1. os factos:

O tribunal, no acórdão recorrido, julgou os seguintes:

 -factos provados:

1. O arguido iniciou há cerca de sete anos uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação com DD.

2. Por volta de 2014, o arguido e DD passaram a coabitar na Rua …, número …, …, em …, área deste município.

3. Com o arguido e DD, passaram a coabitar mais tarde, os filhos de DD, fruto de anteriores relacionamentos, a saber, EE, nascido em 7 de Fevereiro de 2006, e a vítima BB, nascida em 14 de Fevereiro de 2002.

4. Desde sempre que o arguido esteve bem ciente da idade da vítima BB.

5. Em datas não concretamente apuradas, mas localizadas em Julho de 2018, no interior do domicílio comum, prevalecendo-se de períodos do dia em que DD não se encontrava em casa, ou no período noturno, o arguido começou a procurar a vítima BB quando esta se encontrava sozinha.

6. Nessas ocasiões, o arguido beijava a vítima na boca, tocava-lhe nos seios e introduzia os seus dedos na vagina daquela.

7. Nas mesmas circunstâncias, a vítima tocava no pénis do arguido, fazendo-o a pedido deste.

8. Também nessas ocasiões, o arguido chegou a fazer sexo oral à vítima, lambendo-lhe a vagina.

9. Decorrido cerca de um mês após o início destes contactos, em data não concretamente apurada, o arguido levou a vítima BB até à garagem contígua à residência comum, e introduziu o seu pénis na vagina da vítima, friccionando-o repetidamente, sem ejacular.

10. A partir dessa altura, em diversas datas não concretamente apuradas, no interior do domicílio comum, o arguido manteve relações sexuais com a vítima, de coito vaginal, penetrando a vagina da vítima com o seu pénis, e de coito oral.

11. Tais contactos sexuais aconteciam quase diariamente, na semana antes de a vítima ficar menstruada, e também durante o período da menstruação, sem que o arguido usasse preservativo.

12. O arguido chegou a manter relações sexuais de coito vaginal com a vítima fora daquele espaço temporal, sendo que nessas ocasiões usava preservativo.

13. Tais contactos sexuais com a vítima aconteciam nos quartos do domicílio comum.

14. Em data não concretamente apurada, mas localizada no mês de Agosto de 2018, e porque a mãe da vítima se mostrava desconfiada, o arguido passou também a manter relações sexuais de coito vaginal e oral com a vítima no seu local de trabalho, no Edifício …, sito na Rua …, nº…, na … .

15. Para o efeito, o arguido usava uma cave, onde guardava as suas ferramentas, e onde tinha um colchão, que usava para a arguido e vítima se deitarem, quando mantinham relações sexuais.

16. Em data não concretamente apurada, alguns dias antes de … de Setembro de 2018, na cave existente no seu local de trabalho, o arguido, com o seu pénis, penetrou a vítima no ânus.

17. No dia … de Setembro de 2018, durante a manhã, na referida cave do local de trabalho do arguido, este, com o seu pénis, penetrou a vítima na vagina.

18. No contexto dos atos sexuais que manteve com a vítima, o arguido apenas ejaculou uma vez.

19. Por já não conseguir suportar toda esta situação, no dia … de Setembro de 2018 a vítima BB resolveu contar tudo à mãe e denunciar a situação à polícia.

20. Ao agir da forma descrita, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima BB e, por essa via, a sua menoridade.

21. Não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data dos factos, vivia com a mãe da vítima BB como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano na educação e no provimento das necessidades da vítima BB, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar o seu intento.

22. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que ao atuar da forma descrita, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.

23. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou quanto às condições pessoais e antecedentes criminais do arguido:

24. O arguido não possui antecedentes criminais.

25. AA é o filho mais novo de uma fratria de dois elementos, germanos.

26. Em …, AA viveu numa casa térrea, arrendada e com boas condições. O pai de AA era … de maquinas pesadas tipo retroescavadoras e ainda recuperava máquinas antigas. A progenitora do arguido dedicava-se à casa e a educação dos filhos.

27. Foi aos dez anos de idade que o arguido e o irmão integraram um colégio particular, …, e só em períodos de férias regressavam para junto do agregado familiar, em … .

28. Com a revolução do 25 de Abril, o progenitor e o seu agregado familiar foram viver para … atual …, num apartamento arrendado, de pequenas dimensões, onde permaneceram durante cinco anos.

29. Com dezassete anos de idade, o arguido veio para Portugal.

30. Quando chegou a Portugal, AA já tinha concluído o ensino secundário, tendo apenas atrasado um ano com a mudança do ensino de …para … .

31. Em Portugal, AA estudou durante quatro anos no ensino superior, na área de … .

32. Na sequência de um acidente de trabalho, sofreu um derrame na medula e paralisia, o que originou o internamento hospitalar durante um mês, no Hospital … .

33. Com o tempo de recuperação e o cumprimento do serviço militar durante dezoito meses, AA acabou por desistir do ensino superior, optando por trabalhar com o progenitor, proprietário de um estabelecimento comercial, o café chamado “FF”, em …, durante cinco anos.

34. Em 1990, o pai vendeu o café e AA conseguiu integrar a empresa “GG”, onde acabou por permanecer durante trinta anos. Com o encerramento desta empresa, o arguido manteve-se responsável pela manutenção do edifício mas com outro proprietário HH, titular da empresa “Arrendamentos …”, na …, até à sua detenção.

35. Ao nível afetivo, AA contraiu matrimónio em 1991 e em 1992 nasceu o filho. A mãe do filho faleceu quando o menor tinha dezasseis anos.

36. Três anos depois, AA conheceu a DD, mãe da ofendida nos presentes autos, com quem iniciou uma união de facto pouco tempo depois.

37. À data da detenção, AA vivia no agregado familiar, constituído pela companheira e os enteados, atualmente com dezassete e treze anos de idade, numa vivenda construída pelo próprio, em … . AA encontrava-se a pagar 540 euros mensais, referente ao empréstimo bancário da habitação onde residia. A companheira trabalhava como …, na empresa II, auferindo mensalmente 577 euros. AA da sua atividade profissional auferia aproximadamente um rendimento mensal de 1700 euros. O casal tinha de despesas correntes um encargo mensal no valor de 290 euros.

38. Quando colocado em liberdade, AA pretende viver com o filho e a nora até conseguir vender a casa e repartir com a ex-companheira o valor da mesma, de forma a poder comprar um apartamento para viver. Ao nível profissional, AA dispõe de colocação laboral na empresa “JJ, Construção Civil Unipessoal, Lda.”

39. A situação jurídico-penal em que se encontra causou impacto na vida do arguido, levando à desagregação do agregado familiar.

40. Dispõe de apoio familiar recebendo visitas assíduas por parte do filho, nora, irmão, primos e amigos.

41. O arguido interage assertivamente com os seus pares e funcionários deste estabelecimento prisional, não registando ocorrências nem sanções disciplinares.

42. AA reconhece a ilicitude dos seus atos, revelando alguma consciência critica.

43. Evidencia lacunas ao nível do pensamento consequencial e tendência para minimização, desculpabilização e atribuição causal externa dos seus comportamentos.

Quanto ao pedido de indeminização cível:

44. Na sequência da queixa apresentada a vítima foi transportada ao Hospital … onde foi observada e realizou exames de diagnóstico, o que importou uma despesa de € 232,27.

2.2. Factos Não Provados

a. As relações sexuais iniciaram-se em Junho de 2018.

b. O arguido nunca ejaculou.

2. o direito:

É jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que as conclusões da motivação delimitam o objeto do recurso, sendo, por isso, extraordinariamente importantes, para determinar o âmbito de conhecimento do tribunal ad quem.

Assim mesmo se sustenta, entre outros, também no Ac. de 17-10-2018 deste Supremo Tribunal: “sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (…) é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior”.

As conclusões destinam-se a habilitar o tribunal de recurso a conhecer os fundamentos da discordância do recorrente, devendo, por isso, resumir com clareza e concisão as razões em que se alicerça a pretensão reparatória.

O arguido recorreu com o propósito manifesto de ver a sua condenação reapreciada pelo Supremo Tribunal. Todavia, mas não cumpriu com a autoproposição de limitar a impugnação da decisão recorrida à aplicação do direito ao caso ou, na sua expressão, de circunscrever o objeto do recurso “unicamente o reexame da matéria de direito”.

Vejamos em que termos se extravasou e qual o efeito dessa incursão pela factualidade e pela lógica da decisão recorrida:

a) recurso em matéria de facto:

i. invocado erro de julgamento:

Desde logo, afirma que o tribunal errou na apreciação da prova pericial.

Alega que “a perícia à personalidade do recorrente, não impugnada ou contestada, é completamente contrária às conclusões que o Tribunal a quo retira das declarações do recorrente, e ainda da mãe e avó da BB” (cls 7ª).

Que “as conclusões sobre a personalidade do recorrente proferidas segundo a livre apreciação da prova pelo Tribunal a quo, entram em contradição direta com uma perícia médico-legal que indica uma pessoa completamente diferente”.

E, na mesma linha, assevera que o tribunal formulou “uma convicção que não assenta diretamente em qualquer meio probatório” (cls 11) e vai “contra o próprio relatório e que não encontra alicerce fáctico em nenhum meio probatório, devendo o recorrente ser absolvido” (cls 14ª).

Impugna, assim, a convicção do tribunal recorrido argumentando que é contrariada pelo relatório da perícia da personalidade a que foi submetido. Pretende desta forma obter a correção do correspondente julgamento e, consequentemente, a absolvição.

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, cingem-se à matéria de direito, estando fora da sua competência reapreciar a valoração dos meios de prova a que se procedeu nas instâncias –art. 434º do CPP.

Por isso, rejeita-se o recurso na parte em que visa a reapreciação da matéria de facto (provada e não provada).

ii. a arguição de vícios da decisão:

Na mesma via recursiva, argui os vícios da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provad[a], bem como, na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto”.

Sem especificar a qual dos referidos vícios se reporta cada segmento da argumentação, aduz que:

- “não é o simples facto de existir uma economia comum onde o recorrente participa financeiramente que se poderá concluir que uma menor se encontra confiada para educação e assistência a determinado adulto, nem bastando para tal que exista coabitação (cls. 8ª);

- “não bastando para tal dar como provado [uma relação de dependência] um facto genérico” (cls. 13ª).

- não existem “factos que permitam tal qualificação jurídica com a certeza necessária” (cls 19ª):

- “da matéria de facto provada não se consegue situar temporalmente com exatidão os [atos praticados]” (cls. 18º).

- “não se conseguir demonstrar uma renovação da resolução criminosa (cls 20ª);

- “a decisão recorrida é omissa quanto à intensidade do dolo” (cls. 26ª);

- “nada ficou provado relativamente às consequências para a menor” (cls 30ª);

- “a quantia arbitrada carece de prova suficiente”; e

- “nem sequer foram apuradas [as condições económicas da vítima]” (cls. 39ª).

Manifestamente, o que assim alega é, desde logo, que não se provaram alguns factos que considera nucleares (impugnando deste modo o julgamento da matéria de facto) e, por outro lado, que a factualidade provada é insuficiente para que o tribunal tivesse concluído pela existência:

- de uma relação de confiança para a educação e assistência e de dependência económica;

- de uma pluralidade de resoluções criminosas;

- da intensidade do dolo; e

- das condições económicas da vítima,

Sintetizando, argumenta que os factos provados são insuficientes para suportar a condenação criminal e civil, ou em linguagem processual penal, que a decisão recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Contudo, como evidenciam os trechos citados da peça recursória, a invocação, tal como vem explanada, não se compagina com os parâmetros típicos da arguição do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Nem com o vício da invocada “contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto”. Aliás, neste aspeto limitou-se ao jargão sem que tenha exposto, por qualquer modo onde se surpreende antagonismo, como e porque é que a motivação da decisão do julgamento dos factos se contradiz.

Sumariamente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade que o tribunal julgou provada não é bastante para fundamentar a decisão de direito, no caso, seria insuficiente para suportar a condenação.

Seja como for, estabelece a norma do corpo do n.º 2 do art. 410º do CPP, que a arguição dos vícios lógicos tem de cingir-se ao próprio texto da decisão, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum.

Como sublinha G. Marques da Silva, “esta é uma limitação muito importante. Desde logo fica vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objeto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu[2].

O que o recorrente, manifestamente, não cumpriu, confundindo não prova, na sua perspetiva (desmentida pela matéria factual assente), de alguns factos que aponta, com a insuficiência da factualidade provada para preencher os elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) dos crimes (cometidos em concurso real) pelos quais vem condenado e das condições e requisitos para a atribuição da compensação ou reparação arbitrada à vítima.

De qualquer modo, é jurisprudência uniforme[3] deste Supremo Tribunal que, enquanto tribunal de revista, somente lhe compete reapreciar a aplicação do direito. Contudo, pode conhecer, oficiosamente, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. quando se confronte com uma decisão em “matéria de facto ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por se revelar a priori – e pelas simples leitura da decisão impugnada – uma matéria de facto erroneamente apreciada[4].

No Ac. de 28-11-2018, deste Supremo (e desta secção) sustentou-se: “constitui jurisprudência constante e uniforme do STJ, espelhada em imensos arestos, a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal aspeto, não é admissível recurso para o STJ. É que o conhecimento daqueles vícios, situando-se no âmbito da matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito. O STJ, todavia, não está impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação”.

E no Ac. de 12/07/2018 deste Supremo Tribunal: “Constituindo jurisprudência sedimentada e pacífica deste Supremo Tribunal que os vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP não podem constituir objeto do recurso de revista a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça e que este tribunal deles somente conhece ex oficio, quando constatar que a decisão recorrida, devido aos vícios que denota ao nível da matéria de facto, inviabiliza a correta aplicação do direito ao caso sub judice”.

Não podendo ser chamado a verificá-los, todavia, o STJ detetando na decisão em matéria de facto, os vícios previstos no art. 410º, n.º 2 e 3, do CPP, emergentes da simples leitura do texto daquela, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pode oficiosamente deles conhecer.

Assim mesmo se fixou no AUJ n.º 7/95: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.

Os vícios aludidos naquela norma legal, reportam-se exclusivamente à decisão em matéria de facto, mas tão-somente enquanto peça processual autónoma, tendo o vício de ser lógico, evidente e intrínseco, resultar do próprio texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Não podendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com o erro na apreciação e valoração das provas ou erro de julgamento, nem com a escassez da prova para suportar o julgado.

O recorrente não pode sustentar a arguição dos referidos vícios, por vezes designados vícios lógicos da decisão, invocando, elementos de prova ou dados do processo ou quaisquer outros elementos externos ao texto da decisão recorrida.

Consequentemente, não podendo a invocação dos vícios aí previstos legitimar recurso (de revista) para o STJ, não se admite (rejeita-se), nesta parte, o vertente recurso.

iii. princípio in dubio pro reo:

Alega o recorrente que a decisão pela verificação do concurso real em vez de “um único crime de trato sucessivo, perante a matéria de facto provada, é violar o princípio do in dúbio pro reo, condenando-o por seis crimes sem que existam factos que permitam tal qualificação jurídica com a certeza necessária”.

Manifestamente, a lógica desta argumentação insere-se na dinâmica da arguição do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que, como vem de dizer-se não pode legitimar recurso perante esta instância de revista.

Outro tanto sucede com o principio em epígrafe.

O in dubio pro reo é um princípio processual penal circunscrito à matéria de facto. À acusação compete alegar e provar os factos, a autoria (ou outra qualquer forma de comparticipação), a culpabilidade e a responsabilidade do agente. O arguido presume-se inocente - art.º 32º n.º 2 da Constituição da República -, até que a acusação logre provar que é agente do crime ou crimes que se lhe imputam.

Naturalmente que demonstrando-se que os factos imputados não ocorreram, ou quando se tenha comprovado o crime, todavia o acusado (ou pronunciado) não é o seu autor ou que não agiu com culpa (por o tipo de ilícito exigir numa modalidade que não se verifica ou porque se constata a existência de uma causa de justificação ou causa de desculpa), a absolvição decorre da não verificação do crime ou da não responsabilidade do arguido, não havendo que convocar o princípio in dubio pro reo porque verdadeiramente, nestas situações nenhuma dúvida existe.

Do mesmo modo, se a acusação não produz qualquer prova ou prova bastante, a absolvição decorre da ausência de prova, isto é, da não demonstração dos factos e da sua autoria.

Aquele princípio probatório entra em funcionamento somente quando os elementos de prova produzidos em julgamento sustentam a probabilidade da veracidade da factualidade e da responsabilidade do arguido, mas não afastem dúvidas razoáveis sobre algum destes pressupostos factuais essenciais para a sua condenação. Então, o tribunal, não tendo adquirido a convicção de certeza sobre a verdade prática - acima da dúvida razoável – para afirmar que o arguido cometeu os factos que se lhe imputam ou que por eles é responsável criminalmente, mas também não podendo excluir essa situação, na dúvida e em face da proibição do non liquet, tem de decidir-se pela absolvição em obediência ao princípio in dubio pro reo.

É, pois um princípio exclusivo da decisão em matéria de facto, que não deve confundir-se com a insuficiência de provas e que não é transponível para as questões de interpretação e aplicação do direito. Neste domínio valem as normas legais que regem sobre a interpretação das leis, sem olvidar que o direito substantivo criminal não admite a analogia.

O in dubio pro reo é uma regra de valoração probatória dirigida ao tribunal do julgamento não o obrigando a duvidar, mas a absolver quando, valorados todos os elementos de prova produzidos, persistam dúvidas razoáveis sobre os factos e/ou a responsabilidade do acusado.

Como se sustenta no Ac. de 5/07/2007 deste Supremo Tribunal: “Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – AcSTJ de 24-3-99, CJ-STJ 1, 247."

(…) Tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça, (…) [que] só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 19/10/2000, proc. n.ºs 2728/00-5 e 1552/01-5).

(…) Com efeito, não está então em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista, pelo que resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista.

Por outro lado, enquanto regra fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, o princípio "in dubio pro reo" somente pode invocar-se no recurso de revista (como é o caso) na sua função normativa, ou seja, quando do próprio texto da decisão condenatória recorrida resulta que o tribunal se decidiu pela condenação, não obstante ter evidenciado dúvidas sobre os factos e/ou a responsabilidade do arguido. Consequentemente só pode ser sindicado pelo STJ quando resultar do texto da decisão recorrida em termos idênticos aos dos vícios a que alude o art. 410.º n.º 2 do CPP[5]. Isto é quando da decisão recorrida em si mesma resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

No acórdão recorrido não se deteta que o Tribunal tenha ficado com dúvidas sobre a factualidade que julgou provada, incluindo a que vem impugnada pelo recorrente (sendo certo que não questiona a sua autoria) nem sobre a culpabilidade do arguido.

Ao invés, resulta que o Tribunal recorrido decidiu firmemente convencido da veracidade dos factos contestados pelo recorrente, bem suportado em provas seguras e abundantes.

Razões que impõem a rejeição do recurso, neste domínio.

b) da invocada nulidade:

Alega o recorrente que a decisão recorrida “apresenta deficiências de falta de fundamentação” porque é parca na motivação de “tão pesada pena” –certamente referindo-se à pena única aplicada.

Argumenta que não explicitando como chegou ao valor da indemnização arbitrada “a decisão, nesta parte, é nula por omissão do dever de fundamentação”.

A Constituição da República – art.º 305º n.º 1 -, e o CPP –art.º 374º n.º 2 -, erigem como requisito nuclear, indispensável das decisões judiciais, a fundamentação, tanto em matéria de facto como na aplicação do direito ao caso concreto.

O dever de motivação impõe que a sentença ou acórdão enumere, especificadamente, um a um, os factos provados e não provados; que exponha, concisamente, ainda que de modo tanto quanto possível completo, os motivos, de facto e as razões de direito, que fundamentam o julgado, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e a explicitação do exame crítico a que foram submetidas, isto é, a exposição do processo lógico e racional que influi na apreciação e valoração das provas produzidas em julgamento.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”  - Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. n.º 3063/01.

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte[6].

“O cumprimento do dever de fundamentação deve ser claro e transparente, permitindo acompanhar de forma linear o raciocínio sentenciado, não sendo exigível que o mesmo explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos que equacione todas complexidades suscitadas pelos sujeitos processuais[7].

A decisão que não cumpra com estas exigências enferma da nulidade cominado no art. 379º n.º 1 al.ª a) do CPP. 

Por outro lado, como se sustentou no recente Ac. de 19/09/2019, desta secção (3ª), “ao Supremo como tribunal de revista, (…) apenas incumbe sindicar eventuais nulidades, se a convicção do tribunal do julgamento se fundamentou em meios de prova, e provas, proibidos por lei., atentos o princípio da legalidade das provas e os métodos proibidos de prova. –v. artºs 125º e 126º do CPP”

E ainda: “a discordância do recorrente no modo de valoração das provas, e no juízo resultante dessa mesma valoração, não traduz (…) ilegalidade de procedimento ao não coincidir com a perspetiva do recorrente sobre o modo e consequência da valoração dessas mesmas provas, efetuada pelo tribunal competente para apreciá-las, pelo que não integra qualquer nulidade, desde que o tribunal se orienta na valoração das provas legalmente permitidas, de harmonia com os critérios legais”[8].

Uma das invocadas nulidades intercede diretamente com a medida da pena única, que adiante se apreciará especificadamente.

A outra reporta-se ao montante da reparação arbitrada à ofendida (que o recorrente considera excessivo).

Vejamos como o acórdão recorrido fundamenta o valor em causa:

“7. Do Arbitramento de Indemnização Reparatória

 (…)      O Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09, prevê no art.º 16.º, nº 1 que à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

(…)       No caso em apreço, não foi pela vítima deduzido pedido de indemnização civil no processo penal, nem, tanto quanto se sabe, em separado e também não se opôs expressamente a que lhe fosse arbitrada uma quantia reparadora.

Assim sendo, haverá que fixar uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos.

“Mas, não há que chamar à colação para a respetiva determinação as normas relativas à responsabilidade civil extracontratual, visto que a sua atribuição não é regulada pela lei civil, mas de acordo com o disposto nos artigos 16º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04/09, 67º-A e 82º-A, do CPP, sendo que estes se não reportam a uma verdadeira indemnização, mas à reparação dos prejuízos (…) figuras jurídicas não exatamente coincidentes, pelo que somos levados a concluir que, também neste caso, o que o legislador pretendeu foi a fixação de reparação, ainda que tenha utilizado de forma lata o termo “indemnização”, o que conduz a que seja calculada de acordo com a equidade (…)

A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

(…)     E a regra geral consta do art. 129º do Código Penal, que diz que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».

(…)    Não existem dúvidas que o arguido agiu de forma voluntária, ilícita e culposa, e que a sua atuação gerou um dano na esfera jurídica da ofendida (menor de idade que viu a sua liberdade de autodeterminação sexual coartada).

Assim sendo[9], considerando a culpa do agente, a sua atual situação económica, a gravidade dos danos causados, o facto de ter atuado sobre menor de idade com quem coabitava e ao número de atos praticados apurado, consideramos adequada a fixação de uma indemnização no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros).

À fundamentação da decisão recorrida, suficientemente explicita e compreensiva – de tal modo preocupada com a justificação da condenação que até apelou aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual -, acrescenta-se que, por imposição da Diretiva 2011/93/UE, as crianças abusadas sexualmente são consideradas vítimas particularmente vulneráveis –art. 19º n.º 4. Por sua vez a Diretiva 2012/29/UE obriga os Estados-Membros a assegurar às vitimas uma indemnização adequada – art. 16º. Quando a vítima é uma criança devem ter-se em atenção a idade, a maturidade, os pontos de vista, as necessidades e as preocupações da/o menor.   

Tendo em conta o regime interno, o recorrente não devia ignorar que o critério essencial para determinar o montante da quantia arbitrada a titulo de reparação – não se trata de uma verdadeira indemnização civil antes de uma compensação -, pelos danos não patrimoniais de que foi vitima a menor BB em consequência dos múltiplos atos de abuso sexual que nela perpetrou (conforme resulta dos factos provados) é, por disposição expressa –art.º 496º do Cód. Civil - a equidade. Que, por definição, significa encontrar uma solução satisfatória à margem do sistema legal para uma situação que não se ajustaria àquela que decorreria da aplicação ao caso prático dos parâmetros substantivos positivados. O que para o caso, vale por dizer que o quantitativo monetário da reparação ou compensação se deve encontrar à luz do que se apresente como equitativo, sem ter de obedecer ao regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos[10]. Se o montante da reparação a arbitrar nestes casos – nas situações previstas na Lei n.º 130/2015-, se obtivesse fazendo funcionar este regime civilista, a solução encontrada seria a legal, prescindindo de qualquer outro critério, incluindo a equidade, que por definição, não aponta para qualquer regime normativo que forneça uma solução mais ou menos aritmética para o caso.

A equidade, apesar de ser um conceito fortemente arreigado na prática jurídica e judiciária não fornece, por si só, um valor determinado que fique a salvo de juízos de discricionaridade. Como se exige a qualquer decisão judicial, o procedimento empreendido para fixar o seu quantitativo em cada caso, deve ser exposto para que os interessados e também extraprocessualmente, possa ser compreendido e aceite. Neste procedimento, decisivas são, em qualquer caso, as circunstâncias que conformam o caso concreto. Naturalmente que a comparação com os montantes arbitrados em situações nas quais se recorreu ao mesmo critério podem servir para padronizar o equilíbrio do pecúnio atribuído. Importante é, pois, que o montante encontrado se apresente, de uma perspetiva objetiva, equilibrado para compensar a situação ilícita que visa sancionar e reparar.

Foi o que sucedeu nos autos. O tribunal estabeleceu o valor monetário da reparação arbitrada à ofendida recorrendo à equidade, avaliando os danos não patrimoniais sofridos pela menor vítima em função da gravidade objetiva, subjetiva e da multiplicidade dos abusos sexuais de que foi vítima, bem como da situação económica do arguido. Com bom critério não atendeu, à situação económica da/o ofendida/o. Todavia, analisando a sua situação sócio-familiar – jovem estudante, com 17 anos, a viver com a mãe e um irmão -, à luz das regras da experiência, conclui-se fácil e logicamente que não usufrua de rendimentos ou de ingressos. Como certamente se aceita ou ao menos se compreenderá, se a situação económica da ofendida fosse, nestas situações, um fator a considerar na fixação do valor da reparação a arbitrar oficiosamente, do conceito de vítima especialmente vulnerável excluíam-se todas/os as/os que não estivessem numa situação de indigência ou à beira dela.

Não é essa nem a letra nem o espírito do referido conceito normativo. Nos termos da lei – n.º 130/2015 -, “especialmente vulnerável' é “a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”.

Em recanto algum do preceito se alude à situação económica da vítima.

Para o arbitramento da reparação, essenciais são a idade, - nomeadamente a juventude ou a velhice -, e o tipo, o grau e a duração da vitimização com consequências psíquicas e sociais[11]. E, naturalmente, a situação sócio-económica do condenado, enquanto fator determinante da sua solvência.

A jurisprudência invocada no acórdão recorrido se é certo que não contempla situações criminosas idênticas à dos autos, contudo aplicou o mesmo regime normativo que estabelece e rege o arbitramento de reparação a vítimas especialmente vulneráveis a suportar por condenados em processo criminal.

O acórdão recorrido explicita suficientemente o procedimento que guiou o tribunal na fixação do montante da indemnização arbitrada à menor, vítima especialmente vulnerável, indicando os critérios normativos e as razões de facto que justificam o valor monetário a que chegou. Não pode dizer-se que o quantitativo arbitrado foi discricionariamente estabelecido nem que, segundo a equidade, se possa ter por excessivo.

A decisão recorrida não padece de falta nem tampouco de deficiente fundamentação.

Consequentemente não está afetada da nulidade que o recorrente lhe assaca.

c) da qualificação jurídica dos factos:

i. abuso sexual de menores dependentes:

Argumenta o recorrente que “da matéria de facto provada, não resulta claramente que a menor lhe havia sido confiada para educação e assistência, pois, o recorrente não tinha qualquer vínculo legal que se pudesse concluir que a menor se encontrava a si confiada para a educação e assistência”.

Alegando que da economia comum e da coabitação não “se pode extrair, igualmente, a existência desse vínculo de facto”, remata, que no caso era “necessário que se desse como provado factos concretos que se traduzissem numa efetiva relação de confiança para educação e assistência”.

Expendendo que o crime só resulta cometido “quando for provado o papel de cuidador entre a menor e o agressor” para que pudesse ter sido condenado pelo crime de abuso sexual de menores dependentes exigia-se que “tivesse um ascendente sobre a menor de tal forma que, prevalecendo-se deste e por causa deste, tivesse praticado os abusos, o que se julga não ter ficado suficientemente provado”.

Menosprezando a impugnação do julgado em matéria de facto, por se tratar de reapreciação legalmente inadmissível perante o STJ, conforme acima se sublinhou, subsiste a questão jurídica-criminal postulada que mais não é do que saber se a vivência em condições análogas à de um agregado familiar formado pelo arguido, sua companheira e descendentes desta, é de molde a estabelecer uma relação de confiança para educação ou assistência dos menores que integram essa «família de facto».

O acórdão recorrido motivou a subsunção jurídica a que procedeu, expendendo (em síntese):

“Do Crime de Abuso Sexual de Menores Dependentes

(…)       No caso de crimes sexuais em que a vítima seja menor, agrupados na secção epigrafada de “crimes contra a autodeterminação sexual”, a decisão normativa-axiológica do legislador português foi a de proteger a autodeterminação sexual perante condutas que, face à pouca idade da vítima, possam, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.

(…)       “Importa sublinhar que neste crime está em causa o abuso sexual de menores que decorre de uma relação específica existente entre autor e a vítima, resultante de uma relação de confiança previamente estabelecida através da disponibilidade manifestada para as tarefas de educação ou assistência que o autor assumiu, quer pela entrega legal ou jurisdicional do menor, quer pela situação de facto criada.

(…)       A nível do tipo subjectivo, o crime em apreciação é um crime necessariamente doloso (art.º 13º do Código Penal), pressupondo assim o conhecimento dos elementos objectivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo). (…)

Após referenciar os factos (objetivos) provados, acrescenta:

Mais se prova que o arguido estava ciente da idade da menor BB, da relação de afinidade e confiança que existia entre ambos, por coabitarem, incumbindo-lhe prover ao seu sustento e educação, o que não o inibiu de atuar deste modo.

(…)       Analisados os factos que se deram como provados constata-se que mostram reunidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo incriminador.

Não se apuraram quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Com relevância para o caso, vejamos:

A Constituição da República, no art. 69º, n.º 1, consagra o direito à proteção das crianças “com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.

Sublinha no Ac. nº 382/2017 do Tribunal Constitucional que “as características físicas e psicológicas das crianças, assim como o dinamismo inerente à formação e desenvolvimento da sua personalidade tornam-nas naturalmente vulneráveis a circunstâncias que podem fazer perigar o seu processo de autonomização e, em última análise, comprometer ou condicionar a respetiva autodeterminação enquanto adultos. Daí que a Constituição as reconheça como sujeitos de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, se preocupe com as eventuais situações de necessidade associadas à sua natural vulnerabilidade, reconhecendo-lhes um específico e próprio «direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral» (artigo 69.º, n.º 1). Como sublinham GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, «este direito à proteção infantil protege todas as crianças por igual, mas poderá justificar medidas especiais de compensação (discriminação positiva), sobretudo em relação às crianças em determinadas situações (órfãos e abandonados) (n.º 2)» (v. Autores cits., Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. I ao artigo 69.º, p. 869). Com efeito, «a noção constitucional de desenvolvimento integral (n.º 1, in fine) – que deve ser aproximada da noção de “desenvolvimento da personalidade” (art. 26.º-[1]) – assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1.º), elemento “estático”, mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades» (idem, ibidem, pp. 869-870).

“A Constituição dá um especial relevo à inserção da criança ou jovem num ambiente familiar normal ou à sua privação. O desvio da normalidade ou “anomalia” é, neste contexto, aferido apenas pela falta de condições para o cuidado e o desenvolvimento da criança, e não na perspetiva de um qualquer modelo normativo de família (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, cit., anot. III ao artigo 69.º, p. 871).”

Na definição da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989[12], vigente desde 2 de setembro de 1990, “criança significa todo ser humano com menos de dezoito anos, a menos que, de acordo com a lei aplicável à criança, a maioridade seja atingida mais cedo” –art. 1º.

As crianças esperam da família (e das instituições públicas e privadas) e têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar[13].

Os instrumentos internacionais a que o nosso país aderiu obrigam a adotar medidas legislativas, para proteger as crianças, designadamente de “abuso sexual, enquanto estiver sob os cuidados dos pais, responsáveis legais ou qualquer outra pessoa que cuide da criança. – art.º 19º da Convenção.

Cabe aos pais ou outras pessoas responsáveis pela criança a responsabilidade primária de lhe garantir as condições de vida necessárias para o seu desenvolvimento equilibradoart. 27º da Convenção.

Portugal como subscritor dos principais instrumentos internacionais neste domínio – designadamente da Convenção de Lanzarote -, está obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com uma criança que não tenha atingido a idade legalmente prevista para o efeito; abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre a criança, incluindo o ambiente familiar; ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.

E por imposição do direito derivado da União Europeia – concretamente a Diretiva 2011/93/EU -, está obrigado a punir com pena máxima de prisão não inferior a cinco anos quem praticar atos sexuais com uma criança que não tenha atingido a maioridade sexual –art.º 3º, n.º 4.

“«Maioridade sexual», [é] a idade abaixo da qual é proibida, segundo a legislação nacional, a prática de atos sexuais com crianças” –art. 2º, al.ª b).

Portugal está também obrigado a punir com uma pena máxima não inferior a oito anos de prisão quem praticar atos sexuais com uma criança, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” se esta não tiver atingido a maioridade sexual, e não inferior a três anos, se a criança tiver atingido essa maioridade; a punir com penas de prisão de igual moldura penal máxima a prática de atos sexuais com uma criança recorrendo ao abuso de uma situação particularmente vulnerável da criança, nomeadamente em caso de uma situação de dependência –art.º 3º, n.º 5.

Podendo não punir atos sexuais consensuais entre pares próximos de idade e grau de desenvolvimento ou maturidade psicológica e física, conquanto tais atos não comportem abuso –art. 8º n.º 1.

E está também obrigado a agravar a punição, na medida em que não sejam já elementos constitutivos do crime, quando concorram, entre outras, alguma destas circunstâncias –art.º 9º:

a) a criança vítima se encontrar numa situação particularmente vulnerável, nomeadamente devido a uma situação de dependência;

b) o crime ser cometido por um membro da família da criança, por uma pessoa que coabita com a criança ou por uma pessoa que abusou de posição manifesta de confiança ou de autoridade.

É esta a filosofia que informa - e que também estabelece as balizas mínimas da punição -, dos crimes contra a autodeterminação sexual das crianças. Nesta faixa etária se incluindo, necessariamente, menores de 18 anos de idade, salvo se antes se tiverem legalmente emancipado[14].

O legislador nacional deu expressão às obrigações decorrentes do direito da UE e da Convenção de Lanzarote através das alterações ao Código Penal operadas pela Lei n.º 103/2015.

Entre nós, a maioridade penal está atualmente estabelecida nos 14 anos de idade. A prática de ato sexual de relevo com, em, perante menor de 14 anos de idade, ou que se leva a praticar, é penalmente punida indiferentemente da sua capacidade para entender, anuir, ou até de provocar ativamente os referidos atos.

Incrimina-se também a prática de atos sexuais de relevo com, em ou perante menor dependente ou levando-a/o a praticar consigo ou outra pessoa atos desse jaez.

O bem jurídico protegido é o livre desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual, ligado aqui à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra carecida de uma proteção especial, não tanto pela falta de madurez para anuir como sobretudo pela viciação da liberdade de decisão ou de resistência derivada da relação de dependência para com o agente. Este prevalece-se dessa relação para obter da/o menor o consentimento ou anuência à prática de atos sexuais de relevo, sem necessidade de recorrer à força ou à coação. Porém, esse consentimento ou anuência está viciado por uma causa externa - a relação de superioridade determinada por causas legais, contratuais ou de facto -, que condiciona psiquicamente a liberdade de autodeterminação da criança e que a induz a aceitar a vitimização.

A relação de confiança para educação ou assistência gera um desnível notório entre as posições do agente e da/o menor, na qual este se situa em manifesta posição de inferioridade que restringe relevantemente a sua capacidade de se autodeterminar e, consequentemente, de se opor, de recusar a relação sexual que lhe é proposta ou requerida. Relação que o agente conscientemente aproveita para satisfazer os seus instintos libidinosos.

A união de facto[15], legalmente reconhecida e protegida – Lei n.º 7/2001 de 11/05 -,  confere às pessoa que a formam direitos mas também obrigações. Os filhos menores de qualquer progenitor que vive em união de facto com outra pessoa têm os mesmos direitos e devem ser igualmente tratados, educados e assistidos que os filhos de ambos.

A união de facto traduz-se numa comunhão de vida análoga à das pessoas unidas pelo casamento, implicando vivência em comum, entreajuda e partilha de recursos.

Identicamente ao que sucede com as pessoas casadas, aqueles que vivem em união de facto têm o dever cívico e moral e, consequentemente, de facto, de coeducar os filhos menores de qualquer deles ou de ambos que vivem no mesmo agregado «familiar de facto», de lhe prestar apoio e assistência, de garantir a sua segurança e saúde, de contribuir para a economia comum e, deste modo, também para o sustento dos menores que integram o agregado, independentemente dos laços de consanguinidade que possam ou não existir.

A/o criança filha/o da outra/o pessoa de uma união de facto não é simplesmente um hospede do agregado dessa «família afetiva». É um menor que, em igualdade de direitos com os filhos de ambos, integra e depende do respetivo “agregado de facto”. Os pais/mães, os padrastos/madrastas, no âmbito da relação matrimonial, mas também a outra pessoa de uma união de facto, em razão desse vínculo assumem as corresponsabilidades parentais, de direito, mas também de facto relativamente aos próprios filhos, e igualmente assim em relação aos descendentes menores do outro cônjuge ou da/o companheira/o. A/o mãe/pai que estabelece uma relação de facto com outra pessoa levando filhas/filhos próprias/os para o seio do agregado da sua “família afetiva”, confia-as/os para educação e/ou também para assistência ao companheiro, esperando e podendo exigir-lhe corresponsabilidade pela educação, formação, proteção, assistência e encargos.

Por sua vez, para a criança filha de uma das pessoas da união de facto, a/o companheira/o desta/e é, no dia a dia, a/o mãe/pai de facto. De tal modo que muitas vezes a criança interioriza e assume o tratamento de mãe/pai à/ao companheira/o de facto da/o respetiva/o progenitor/a, como sucedia neste caso – veja-se a conclusão 11ª do recurso (e também a motivação da decisão em matéria de facto).  

Atentando nos factos provados no acórdão recorrido, analisados à luz do entendimento interpretativo exposto, facilmente se conclui que entre o arguido e a menor BB, filha da sua companheira na união de facto e integrante do “agregado familiar afetivo” por ambos constituído, existia a relação especial de dependência tipificada na norma incriminatória. Isto é, quando a mãe a integrou na sua nova “família afetiva” e respetivo agregado constituído com o arguido, confiou-lhe a corresponsabilidade pela formação, educação e pela assistência da BB. Dos factos provados consta que o arguido vivia com a mãe da menor como se fossem casados, residindo em casa construída por ele, pagando a prestação do empréstimo contraído para o efeito. Consta dos factos que o arguido participava, quotidianamente, na educação e no provimento das necessidades da menor. Consta que sobre a BB tinha o ascendente de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar no qual o arguido exercia uma posição de dominância. E ficou provado que o arguido se prevaleceu dessas circunstâncias especiais para concretizar os seus instintos libidinosos, praticando na e com a BB os atos sexuais descritos na matéria de facto assente.

A doutrina[16] – com escassa dissonância - e a jurisprudência[17] deste Supremo Tribunal convergem em considerar que a relação de confiança para educação ou assistência inclui, ademais das situações decorrentes da lei, decretadas em decisão judicial, determinadas em decisão administrativa ou emergentes de relação contratual, também aquelas que se estabelecem através de relações de facto, entre as quais se incluem as situações hodiernamente cada vez mais frequentes em que as crianças vivem no seio de uma “família meramente afetiva”.

Entendimento que aqui se reafirma.

É do domínio público que parte substancial dos abusos sexuais de crianças ocorrem precisamente no âmbito de uniões de facto. Que as uniões de facto assumem cada vez maior número e avançam na equiparação às uniões matrimoniais.

Não é razoável interpretar que o legislador quis conferir direitos às pessoas que vivem em união de facto e não reconhece nenhuma proteção às crianças integradas nos agregados das “famílias afetivas”.

Uma tal interpretação violava gritantemente a igualdade de direitos de crianças dentro do mesmo agregado simplesmente em razão da sua ascendência e, portanto, sem razões substanciais que possam justifica-la e, por isso, enfermava de inconstitucionalidade material, - por violação do artigo 13º do Constituição da República -, que não fora a interpretação que aqui se adota da norma do art.º 172º do Cod. Penal e haveria que, desde já, declarar.

E violava também os arts. 69º - proteção da infância -, e 26º - proteção da (formação da) personalidade da criança e contra qualquer forma de descriminação.

No caso, o arguido e a mãe da menor formavam um casal com comunhão de vida estabilizada (perdurava e não consta que algum deles lhe quisesse por termo), assente em bases que iam para além do trato sexual reciproco, com projetos e projeções de realizações numa vida futura conjunta, de tal modo que os filhos menores da companheira passaram a formar parte desse agregado, estabelecendo uma “família de facto” ou, noutra perspetiva, uma “família afetiva” (com elementos sem relação de consanguinidade mas com laços afetivos).

No caso, a confiança para educação ou assistência resultou, como expende o Digno Procurador-Geral Adjunto “[da] convivência more uxorio do Recorrente com a mãe da vítima e do estabelecimento de laços de afetividade, de proteção, de assistência e de educação entre aquele e esta em tudo semelhantes aos de uma relação de filiação”.

Sendo este o contexto retratado pelos factos provados, resulta que o arguido, figura com dominância naquela estrutura (construiu a casa, pagava o empréstimo, tinha o rendimento remuneratório substancialmente mais elevado), ademais de lhe ter sido confiada pela mãe da BB (tanto assim que muitas vezes ficava sozinha em casa à guarda e cuidados deste) assumiu a coresponsabilidade pela educação e assistência relativamente à menor e interiorizou a relação de superioridade que essa relação lhe conferia, da qual se serviu para dela abusar sexualmente.

Conclui-se, pois que o arguido se prevaleceu da sua posição especial de dominância e se aproveitou da correspetiva posição de dependência da menor BB, então com 16 anos de idade, para com ela praticar os atos sexuais descritos nos factos provados, incluindo múltiplas relações de cópula em diversos locais do espaço habitacional comum, mas também fora deste, como sucedeu no seu local de trabalho.

Preenche, pois, a conduta do arguido, todos os elementos constitutivos do crime de abuso sexual de dependentes p. e p. pelo art.º 172º n.º 1 do Cód. Penal, sem que existam causas de justificação ou causas de desculpa.

Improcede, por isso, nesta parte, a argumentação do arguido.

ii. agravante da coabitação:

O recorrente alega que a sua punição só poderia agravar-se enquadrando-se numa relação familiar e/ou a coabitação. Porém, expende, essas circunstâncias “serviram de fundamento para a submissão da conduta ao tipo legal do crime a que foi condenado”.

Acrescentando: “o papel de cuidador está intrinsecamente ligado à relação familiar (de proximidade) e à coabitação, pelo que, agravando-se o crime nos termos do artigo 177.º, é violar o princípio da proibição da dupla valoração”.

Importa, antes de mais, salientar que é inapropriada a invocação deste último princípio, sendo manifesta a confusão do recorrente entre a proibição da dupla valoração consagrado no art. 71º n.º 2 do Cód. Penal, que é uma regra atinente à dosimetria da pena judicial, e o funcionamento como agravante de uma circunstância – a coabitação -, que, na sua perspetiva, é elemento constitutivo do tipo de ilícito.

O aludido princípio da proibição da dupla valoração proíbe que o juiz, na determinação da medida da pena concreta, considere circunstâncias de que o legislador se serviu para estabelecer a moldura penal do crime cometido pelo agente, seja ele simples, qualificado, agravado ou privilegiado. Não são estes os traços com que o recorrente desenha a questão apresentada.

Questiona, isso sim, que a moldura penal dos crimes pelos quais vem condenado se tenha agravado em razão de uma circunstância – que não refuta -, que, a seu ver já modela a pena abstratamente aplicável ao crime de abuso sexual de menores dependentes.

Atentando na alegação – e desprezando a deslocada figura de estilo com que equivocadamente rematou -, percebe-se que é esta última a questão que o recorrente realmente quis suscitar e, por isso, assim se vai apreciar. 

Acentuou-se já que o elemento nuclear da incriminação do abuso sexual de menor entre 14 e 18 anos de idade é a relação especial de dependência materializada na confiança para educação ou assistência. É “a já mencionada relação de dependência pessoal que fundamenta de forma autónoma a criminalização dos comportamentos previstos no artigo 172º” a qual, ademais de coartar a autodeterminação para o ato, “inclusivamente, pode favorecer a atuação do agente ao restringir as possibilidades de ulterior denúncia dos factos[18].

A coabitação, por si só, não é elemento constitutivo do crime de abuso sexual de menores dependentes. A relação exigida não advém da mera coabitação. Elemento objetivo do tipo é apenas a relação de confiança para educação ou assistência. Compreende-se, naturalmente, que um/a menor de entre 14 e 18 anos alojado temporariamente numa unidade hoteleira, numa residência para estudantes ou simplesmente numa casa particular que acolhe hospedes, não estabelece, somente pelo alojamento ou hospedagem de cama e mesa, aquela relação especial de dependência pressuposta pelo tipo de ilícito relativamente ao gerente ou empregados do hotel, da residência ou de qualquer pessoa da casa de morada onde se hospedou. Se a/o menor acolhido em hospedagem não lhes foi confiando, ainda que temporariamente, para educação ou assistência, por decisão judicial ou administrativa ou por pessoa singular ou jurídica que tinha essas responsabilidades, não existe de facto a relação especial que torna a criança carecida de uma proteção particular. Certamente que como qualquer outro hospede do mesmo local, indiferentemente da respetiva idade, terá a/o menor de observar as normas desses estabelecimentos ou residência, mas estas são geralmente regras ou imposições uniformes e universais que não visam diretamente a educação ou assistência da criança hospedada. Delas não decorre, pois, a relação especial de dependência pressuposta pelo tipo de ilícito.

Não existindo na mera hospedagem ou na simples coabitação aquela relação de dependência não existe também a correspetiva relação de prevalência radicada na superioridade conferida pela confiança das responsabilidades pela educação ou assistência. Nesse contexto não pode, em rigor, afirmar-se que a anuência ou consentimento ou a vontade da/o menor para a prática da relação sexual requerida está viciada pela relação de hospedagem ou coabitação, tendo esta diminuído psiquicamente a liberdade de autodeterminação sexual da criança.

Não estando o agente investido da superioridade resultante da particular relação de dependência não pode imputar-se à mera coabitação potencial suficiente para restringir ou cercear as possibilidades de denúncia dos factos e, deste modo, favorecer a prática do crime.

Da união de facto entre duas pessoas pode ou não resultar uma situação de coabitação de uma delas com os filhos menores da outra, como os factos provados bem ilustram. O arguido e a mãe da menor estabeleceram a união de facto com vivência comum cerca de 3 anos antes de a BB e o irmão terem ido coabitar na residência daquela “família afetiva”.

A coabitação não constituindo elemento do tipo de crime em apreço, é, isso sim, uma circunstância que funciona como agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pelo legislador ao art.º 177º n.º 1 al.ª b) do Código Penal na alteração operada pela Lei n.º 103/2015, que, como se deu conta, visou essencialmente transpor para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/EU que, repete-se, no art.º 9º al.ª b) impõe o agravamento do crime de abuso sexual de menores, entre outras situações, também quando é cometido “por uma pessoa que coabita com a criança”, conquanto esta circunstância não constituía elemento do tipo.

Acabamos de dizer que a coabitação não é elemento do crime de abuso sexual de menores dependentes e, conferindo maior gravidade ao crime, funciona como circunstância específica ou especial expressamente prevista que agrava a pena aplicável. Diferentemente se passa com a relação de dependência educacional ou assistencial, que funcionando como pressuposto do tipo de ilícito não podiam agravar a moldura penal, como realmente não agrava e não agravou.

Por isso, concorrendo no caso a coabitação entre arguido e menor vítima, esta circunstância, intervindo como agravante, eleva em um terço (1/3) os limites mínimo e máximo da respetiva moldura penal. Assim, o crime cometido pelo arguido – abuso sexual de menor dependente previsto no art.º 172º n.º 1 é agravado nos termos do art. 177º n.º 1 al.ª b) agravado, amos os preceitos do Cód. Penal -, é assim punido com a pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.

Consequentemente, improcede também nesta parte a argumentação do recorrente.

iii. concurso efetivo:

Argumenta o arguido que pode ser condenado apenas “por um crime de trato sucessivo” em razão “[d]o espaço temporal e físico onde se consumaram os atos, a [sua] personalidade (…), que (…) aconteceram num acordo estabelecido entre recorrente e vítima, [esta] ser a mesma, a homogeneidade dos atos e de não se conseguir demonstrar uma renovação da resolução criminosa”.

No acórdão recorrido, o tribunal motiva o concurso de crimes expondo (em síntese):

v Pluralidade ou unificação da conduta

O arguido vem acusado da prática de um único crime de abuso sexual de menores dependentes.

Mas resulta da prova que vários atos de caracter sexual foram praticados, tendo ocorrido relações sexuais orais, com penetração vaginal e anal.

Estaremos apenas perante um crime? Ou vários crimes?

Existem posições jurisprudenciais e doutrinais divergentes.

Há quem entenda que que este tipo de condutas devem ser enquadradas como crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

(…)       Não perfilhamos esta solução.

(…)       Quanto a nós, em cada ato praticado há uma renovação da energia criminosa, e não apenas pluralidade de atos semelhantes realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva, pois que, cada um dos vários atos praticados pelo arguido foi levado a cabo em contextos autónomos e comandados por diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Com efeito, os atos sexuais/relações sexuais foram praticadas no domicílio comum, prevalecendo-se dos períodos de ausência da progenitora, mais tarde, no local de trabalho do arguido quando a mãe da vítima começou a ficar desconfiada, o que é demonstrativo dessa renovação da energia criminosa.

(…)   Concluímos, assim, por uma pluralidade de crimes cometidos, os quais se encontram numa relação de concurso real.

Questão agora a elucidar é a de quantos crimes cometeu o arguido?

(…)   Há agora que tentar apurar em face da prova produzida, com certeza, quantos crimes é possível autonomizar.

Cotejados os factos que se deveram como provados entre n.º 5 a n.º 8 (que analisamos como o período prévio ao início das relações sexuais de cópula entre arguido e ofendida), se é certo que não foi possível apurar em concreto as datas em que tais factos ocorreram temos por seguro que terão ocorrido pelo menos mais do que uma vez, ou seja, com certeza pelo menos duas vezes.

Esta conclusão é perfeitamente admissível, nomeadamente face às declarações do próprio arguido que em julgamento quando confrontado com esta factualidade referiu que estes contactos ocorriam “sempre que havia oportunidade”.

Prosseguindo na acusação, de seguida temos o facto n.º 9, que marca o início dos contactos sexuais entre arguido e ofendida envolvendo penetração.

Temos por certo que aqui consumou-se um novo crime, sendo que este facto é expressamente admitido pelo arguido.

Dos factos provados n.º 10 a 15 não temos dúvidas que as relações sexuais com penetração terão ocorrido em número não concretamente apurado de vezes, mas com segurança apenas podemos afirmar que acontecerem por mais duas vezes, que corresponde àquilo que o arguido expressamente admite. E aquilo que o arguido admite está contido no número de vezes que a vítima refere. Pelo que, temos por certo que pelo menos mais dois crimes se consumaram.

Por fim, temos o facto provado n.º 16, que corresponde ao momento em que ocorreu a penetração anal, que pese embora o arguido não admita, a ofendida fá-lo de forma segura. Cremos, assim, estar na presença segura de mais um crime.

Em suma, da prova produzida, e da pluralidade de factos que se apuraram, em rigor e com segurança é possível individualizar a prática pelo arguido de, pelo menos, seis crimes de abuso sexual contra menor dependente (alteração da qualificação jurídica oportunamente comunicada à Defesa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.)

O recorrente está condenado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de seis (6) crimes de abuso sexual de menor dependente, previstos no art.º 172º n.º 1, agravados em razão da coabitação prevista no art. 177º n.º 1 al.ª b), do Código Penal, sendo (resumidamente):

-   dois crimes materializados com os factos provados narrados nos pontos 5 a 8 do acórdão recorrido;

-   um crime com os factos provados relatados no ponto 9;

- dois crimes com os factos descritos nos postos 10 a 15;

- um crime com os factos enunciados no ponto 16.

Alinhado numa corrente jurisprudencial que está a fazer doutrina, o tribunal a quo, na impossibilidade prática de individualizar todos e cada ato sexual de relevo, incluindo cópulas, que o arguido praticou com a menor BB, contabilizou aqueles que identifica concretamente, situando-os espacial e temporalmente, concluindo pela existência da enunciada pluralidade de resoluções criminosas.

Se esta posição interpretativa foi realmente seguida relativamente aos três primeiros crimes (em que há efetivamente uma multiplicidade de práticas sexuais de relevo não suscetíveis de singularização de forma diversa daquela que o acórdão recorrido adotou), já não sucede o mesmo relativamente aos factos provados narrados nos pontos 10 a 15 e nos pontos 16 e 17 (os factos relatados neste nem sequer foram considerados na motivação resumidamente transcrita), acabando a sucumbir na unificação meramente espacial de séries de atos sexuais de relevo perfeitamente autonomizáveis temporalmente.

Analisando atentamente os factos provados nos pontos 10 a 15, deles consta que o arguido praticou múltiplos e variados atos sexuais de relevo com a menor BB “em diversas datas não concretamente apuradas”,quase diariamente na semana antes de a vítima ficar menstruada, e também durante o período da menstruação, sem que (…) usasse preservativo”. Mas também “chegou a manter relações sexuais de coito vaginal com a vítima fora daquele espaço temporal, sendo que nessas ocasiões usava preservativo”.

Resulta, pois, inequivocamente daqueles factos provados que o arguido praticou na menor BB três (e não apenas duas) séries perfeitamente singularizadas de atos sexuais de relevo. Está provado, concretamente que com ela copulou fora da semana que antecedeu o respetivo período menstrual usando preservativo; na semana que antecedeu essa regra sem que tenha usado preservativo; e também que chegou a manter coito vaginal com a vítima durante a menorreia. Se não é realmente possível determinar com exatidão quantas vezes o arguido assim copulou com a menor em cada uma dessas fases do ciclo menstrual, resulta seguramente assente que assumiu pelo menos três diferentes resoluções criminosas para praticar os enunciados atos sexuais de relevo e com ou sem preservativo, em cada uma dessas fases.

Por manifesto lapso, o tribunal, na fundamentação da decisão recorrida, não se reporta ao facto provado no ponto 17, que narra a seguinte factualidade: “No dia … de Setembro de 2018, durante a manhã, na referida cave do local de trabalho do arguido, este, com o seu pénis, penetrou a vítima na vagina”.

Certamente não fora esse lapso e teria considerado que o arguido cometeu mais um crime de abuso sexual de menor dependente.

Certamente que não unificou esse concreto e especial e temporalmente bem identificado ato sexual de relevo com os demais ocorridos antes desse dia no mesmo local, porque então estaria, por um lado a sucumbir à cada vez menos seguida posição interpretativa balanceada na figura do crime de trato sucessivo e, pelo outro lado a usar duas soluções hermenêuticas na mesma decisão judicial. Para parte dos factos entendeu – e bem -, que “em cada ato praticado há uma renovação da energia criminosa, e não apenas pluralidade de atos semelhantes realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva, pois que, cada um dos vários atos praticados pelo arguido foi levado a cabo em contextos autónomos e comandados por diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido”. Para outra parte decidiria unificar num caso em dois e no outro em um só crime atos sexuais de relevo espácio-temporalmente perfeitamente localizados, e bem singularizados, decantando-se pela categoria do denominado «crime prolongado ou de trato sucessivo», jurisprudencialmente aplicado, sobretudo quando é praticamente impossível identificar todos e cada um dos atos sexuais abusivos reiteradamente cometidos pelo agente sobre a mesma vítima durante um período temporal mais ou menos longo.

 Entendimento que foi sustentado no Ac. de 23-01-2008, deste Supremo Tribunal, onde se expendeu: “em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime[19].

Na definição do Ac. de 29/11/2012 deste Supremo Tribunal, “crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma”.

O «crime de trato sucessivo» é uma categoria não dogmática criada e cinzelada pela jurisprudência[20].

Ressalvando os crimes de empreendimento, a sua aplicação a violações reiteradas de bens jurídicos eminentemente pessoais, ou seja, se estendido aos crimes contra as pessoas, objetivamente analisado, contorna a inaplicabilidade – cfr. art. 30º n.º 3 do Código Penal- da unificação punitiva através da forma do crime continuado.

Se até à entrada em vigor da vigente redação da norma citada, conferida pela Lei n.º 40/2010, o referido alargamento, quando a vítima fosse a mesma, ainda poderia colher algum amparo, depois da eliminação da expressão final do citado n.º 3, ficou completamente desapoiada. Atualmente não há suporte normativo para continuar a entender que constitui um só crime a realização do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico eminentemente pessoal, executada por forma essencialmente homogénea.

Naturalmente por isso a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal postergou aquele entendimento, recusando uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autoderminação sexual, a categoria do «crime de trato sucessivo»

Assim, no Ac. de 6/04/2016[21], sustentou-se: mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respetivo tipo incriminador há-de supor a reiteração. Consequentemente, em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente não nos encontramos perante uma «multiplicidade de atos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários atos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Cada um destes atos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única atividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. (…)

Com efeito, se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador”.

No Ac. de 21/04/2016, proc. nº 657/13.JAPTR.P1.S1, sustenta-se: “unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime”.

No Ac. de 14/07/2016[22] entendeu-se que: “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais - como sucede com os crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. no art. 171.º, n.ºs e 177.º, n.º 1, al. a), do CP - como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgado um dolo inicial que engloba todas as ações.

Se o n.º 3 do art. 30.º do CP proíbe o tratamento de unidade criminosa em termos de crime continuado estando em causa a violação de bens eminentemente pessoais, sendo o legislador insensível a uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente, por maioria de razão terá que ser da mesma maneira, se nem sequer estão preenchidos os pressupostos do crime continuado.

No Ac. de 30/11/2016[23], expende-se: a relevância conceptual do “trato sucessivo” pressupõe, em regra, a referência aos “crimes sem vítima” ou a crimes “complexos”, nomeadamente “tráfico de estupefacientes”, “detenção de arma proibida”, “auxílio à emigração ilegal”, “tráfico de armas”, etc.,; Isto é: Casos em que, por um lado, a atuação típica se desdobra numa sucessão de comportamentos que se complementam sempre no sentido de um incremento da lesão do bem jurídico respetivo (adquirir, deter, guardar, transportar, ceder, alienar, etc.), e, por outro lado, situações em que ao bem jurídico-penal tutelado não acresce normalmente um concreto objeto da ação protegido.

Bem diversamente:

Para além da sempre mais ou menos alheada e abstrata violação do bem-jurídico “autodeterminação sexual”, impõe-se, no caso dos autos, de forma flagrante, concreta e real, um grave e renovado atentado ao saudável, espontâneo, equilibrado e atempado desenvolvimento e formação da sexualidade da menor.

Cada ato sexual cometido com a menor representou (a mais que uma relevância típica autónoma) para ela (e para a comunidade), inexoravelmente, um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão no seu estado somático-psíquico-emocional, que inelutavelmente colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena:

-Uma nova vitimização, com autonomia ético-penal;

-Uma acrescida dimensão qualitativa, que não apenas quantitativa.

E, reversamente, cada ato de sexo cometido pelo arguido sobre a menor, deu àquele a oportunidade de, repetida, resoluta e pensadamente, ir satisfazendo os seus instintos lascivos mais ímpios e obscenos, em vez de lhe servir como alerta para a sua consciência ética malformada, em vez de lhe despertar os fatores de inibição que desde o início conseguiu reprimir.”

Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração.

Como refere Helena Moniza punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas pode decorrer (…) do tipo legal de crime”. Não é admissível “unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação”. Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual não pode considerar-se que integra um único crime a prática reiterada de atos sexuais de relevo “ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas[24].

Se esta interpretação é inquestionável nas agressões à liberdade e autodeterminação sexual sempre que o criminoso emprega violência, ameaça grave, torna inconsciente ou coloca a vítima na impossibilidade de resistir, identicamente deve suceder nos atentados cometidos sem recurso àqueles processos executivos mas em que não existente consentimento livre e esclarecido ou este não é sequer legalmente admitido.

O tratamento penal dos crimes sexuais registou assinalável evolução sociológica e politico-criminal de modo que hodiernamente se enquadram dogmática e sistematicamente no âmbito dos crimes contra a pessoa individual, concretamente contra a sua liberdade e autodeterminação sexual. Consequentemente, a vítima e a sua perspetiva, quando não validamente expressa, assume relevância decisiva. Pode que esta evolução ainda não estivesse perfeitamente traduzida na tutela jurídico-penal. E, por isso, talvez, uma reiteração sucessiva de agressões sexuais não tivesse obtido o mesmo tratamento doutrinário e jurisprudencial que é dispensado à conduta que atenta contra a vida da mesma pessoa (duas ou três tentativas de homicídio não são tratadas como um crime prolongado ou reiterado) ou que ofende a integridade física do mesmo ser humano (bater meia dúzia de vezes na mesma pessoa em datas diferentes não constitui um só crime de trato sucessivo) ou ainda que atenta contra a liberdade pessoal (privar da liberdade todos sábados durante meio ano a mesma pessoa também não constitui um crime continuado nem um crime prolongado ou protraído). Nenhum fundamento jurídico razoável se deteta, no tipo objetivo nem no tipo subjetivo, para que deva dispensar-se tratamento diverso a agressões à liberdade e autodeterminação sexual. À insistência ou persistência da resolução criminosa do agente contrapõe-se e sobrepõe-se a necessidade de, perante cada atentado ao bem jurídico pessoal tutelado, reafirmar a sua validade e importância para garantir o exercício livre e autêntico da identidade e da expressão sexual da vítima. Cada vez que o agente força ou implica uma pessoa sem o consentimento desta ou com o consentimento viciado ou legalmente inadmissível, a ter de suportar atos lascivos, agride o direito pessoal à liberdade e autenticidade da sua expressão sexual. Na perspetiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico-penal. A reiteração sucessiva e mais ou menos prolongada no tempo de agressões sexuais não é nem se pode transformar, para a vítima, num empreendimento ou numa atividade do agressor que tenha de suportar. Identicamente ao que sucede nos demais crimes contra as pessoas e, designadamente nos crimes contra a liberdade, não há nem se pode ficcionar a existência de quaisquer circunstâncias que propiciem a reiteração de agressões sexuais. Na prática sexual forçada ou não livremente consentida com outra pessoa dotada de maioridade sexual, cada vez implica uma abordagem destinada a obter a sua anuência ou a adesão ao ato sexual, na certeza de que o agente não pode estar seguro de qual seja a sua reação da pessoa visada e, consequentemente se consente ou adere. Muito diversamente das coisas móveis ou imóveis em que a situação criada com o primeiro atentado pode permanecer imutável ou mais favorável à repetição, aquele que pretende praticar noutra pessoa atos sexuais de relevo não saberá qual vai ser de cada vez a aceitação, ou não, da outra pessoa. Como identicamente não saberá como vai reagir se quiser voltar a agredi-la, sequestrá-la, ou ameaçá-la. Por isso sempre que queira voltar a ofende-la tem de renovar, adaptar e atualizar a estratégia. Consequentemente, cada agressão singular, repetida sucessivamente, indiferentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo crimes e como tal deve ser punida.

Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido”.

Sem prescindir da nuclearidade da perspetiva da vítima pode também dizer-se que, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio, ainda assim haverá pluralidade de crimes.

Deste modo, com os factos que julgou provados, não só o tribunal a quo devia ter decidido que o arguido cometeu não apenas os 6 crimes pelos quais efetivamente o condenou, mas sim 8 (oito) crimes de abuso sexual de menor dependente, como resulta evidente quão infundada é, também nesta parte, a argumentação do recorrente.

Se o Tribunal de recurso pode proceder à (re)qualificação jurídica dos factos, já não pode modificar o número, a espécie ou a medida das sanções constantes da decisão condenatória, recorrida unicamente pelo arguido, isto é, está vinculado a respeitar a proibição da reformatio in pejus – art. 409º do CPP.

No caso, uma vez que o Ministério Público também não sustentou a requalificação jurídica, para que este Tribunal a pudesse efetuar, teria de observar-se o disposto no art. 358º n.º 3 do CPP.

Não podendo extrair-se de uma possível alteração da qualificação jurídica qualquer efeito ao nível das consequências punitivas, o exame e apreciação das questões a decidir no vertente recurso cinge-se somente aos seis crimes pelos quais o arguido foi condenado no acórdão recorrido.

c) da medida das penas:

O direito penal é o garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos pela comunidade. A sua função é a de proteger os bens jurídicos que o legislador entender serem dignos desse amparo reforçado.

Como se testemunha na Exposição de Motivos do DL n.º 48/95 de 15/03, as molduras penais mais não são, afinal, do que a tradução da hierarquia de valores fundamentais da comunidade, onde reside a própria legitimação do direito penal.

Em perfeita consonância com o pulsar da vida, ali se adverte: “mais do que a moldura penal abstratamente cominada na lei, é a concretização da sanção que traduz a medida da violação dos valores pressupostos na norma, funcionando, assim, como referência para a comunidade”.

Uma vez ofendidos os bens jurídicos tutelados, impõe-se reagir de modo a restabelecer a paz jurídica, reafirmando a sua legitimação material, a sua aceitação e interiorização coletiva.

Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da qualquer pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar, isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.

Assim, estabelecida a moldura penal, o primeiro e decisivo fator a considerar no procedimento de determinação da medida concreta da pena é também o que decorre da finalidade da punição, firmado pelo legislador no art. 40.º do Código Penal: a aplicação da pena visa a proteção dos bens jurídicos violados e a ressocialização do agente (n.º 1).

Todavia, a absolutização desta finalidade, (da defesa da sociedade e da prevenção do crime), tendencialmente associada ao caráter mais ou menos drástico das reações criminais, não seria compatível com a dignidade humana.

Por isso, o segundo parâmetro é dado pela medida da culpa, funcionando esta como limiar máximo acima do qual a pena se torna desproporcionada e injusta.

 “Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”.

O terceiro parâmetro advém da finalidade de prevenção especial de socialização. A pena é orientada ainda pela recuperação social do delinquente, não com qualquer sentido corretivo de pretensos defeitos ou desvios da personalidade, mas de o reintegrar na comunidade e aí se situar e interagir conformando a sua conduta de modo a que “não lese ou ponha em perigo bens jurídico-penais”.

i. penas parcelares:

1. reexame:

Importa sublinhar que este Supremo Tribunal, no Acórdão (AUJ) n.º 5/2017  fixou jurisprudência com o seguinte sentido[25]:

«A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

Consequentemente, embora o arguido tenha sido condenado em penas parcelares em medida inferior a 5 anos de prisão – concretamente em 6 penas singulares, cada uma fixada em 3 anos de prisão -, uma vez que a pena única é superior aos referidos 5 anos – concretamente em 8 anos de prisão -, pode e deve este Tribunal conhecer também da dosimetria das penas parcelares.

2. a pretensão:

Alega o recorrente que a pena parcelar de 3 anos por cada um dos 6 crimes cometidos excede “a medida da culpa”, não podendo considerar-se que agiu com dolo intenso.

Acrescenta que “considerando, a idade da menor – 16 anos -, o facto dos atos terem sido praticados numa acordo estabelecido entre vítima e recorrente, a baixa iniciativa social do recorrente, a duração dos factos, o contexto em que os mesmos aconteceram, o facto de à menor não lhe serem conhecidas consequências a nível de relacionamento social, amoroso e educação” a ilicitude é “somente mediana”.

Convocando implicitamente as exigências de prevenção entende que os crimes cometidos constituem um ato isolado na sua vida, não revelando “uma disposição intrínseca para a prática de crimes contra menores, mas que terá sido um ato isolado na sua vida”.

Pugna pela redução das penas parcelares para medida que não exceda “um quarto da pena abstratamente aplicável, neste caso, no máximo 24 meses”.

3. motivação do acórdão:

No acórdão recorrido, motiva-se a dosimetria das penas parcelares expendendo (em síntese):

4.1. Determinação da Medida Abstrata da Pena

(…)       Com a agravação prevista no art.º 177, n.º 1, alínea b) do C. Penal a moldura da pena situa-se entre 1 ano de 4 meses e 10 anos e 4 meses.

4.2. Determinação da Medida Concreta da Pena

Para a determinação da pena aplicável manda o legislador que esta seja encontrada dentro dos limites da moldura penal de acordo com a culpa do agente e das exigências de prevenção que no caso se façam sentir (art. 71º n.º 1 do Código Penal).

Para além do mais, deve ainda o Tribunal atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuserem contra ou a favor do agente (art. 71º n.º 2 do Código Penal).

Nestes termos, há a considerar:

- A ilicitude do facto é elevada, atendendo ao bem jurídico violado e à forma de cometimento do crime – aproveitando-se de uma relação de confiança mantida com a menor e dos momentos em que se encontravam sozinhos, incluindo no domicílio comum, violando o sentimento de segurança a que este local está associado;

- O arguido agiu com dolo direto, representando o facto e atuando com intenção de o realizar;

- O arguido não possui antecedentes criminais;

- Admitiu parcialmente os factos em audiência de julgamento, demostrando alguma autocritica para os seus atos, apesar de revelar tendência para minimização, desculpabilização e atribuição causal externa dos seus comportamentos.

- As elevadas necessidades de prevenção geral que o caso desperta e que é necessário debelar, uma vez que a autodeterminação sexual de vítimas menores tem de ser de forma assertiva assegurada;

- As necessidades de prevenção especial que cremos situarem-se num patamar mediano, uma vez que o arguido não revela propensão para a prática deste tipo de crimes, nem lhe são conhecidas outras intercorrências, tendo-se tratado, ao que cremos, de uma situação isolada na sua vida.

Sopesados todos estes fatores, entende este Tribunal ser justa a aplicação ao arguido da pena de 3 anos de prisão por cada um dos crimes cometidos.

4. insubsistência:

Sublinha-se que a moldura penal de cada um dos crimes de abuso sexual de menor dependente agravado (pela coabitação) cometidos pelo arguido tem o limiar inferior em 1 ano e 4 meses e o limiar máximo em 10 anos e 8 meses.

A manifesta insubsistência da argumentação e, concomitantemente, da pretensão do recorrente de ver reduzida cada uma das penas singulares para medida igual a um quarto da pena abstratamente aplicável resulta dos próprios termos.

Em primeiro lugar porque, contas feitas, se partiu da moldura máxima com que o crime é punido, aritmeticamente a pena que peticiona deveria fixar-se em sensivelmente 2 anos e 8 meses de prisão e não nos deslocados 24 meses com que contraditoriamente remata.

Todavia se se quis reportar ao quarto inferior da moldura penal, como pareceria mais logicamente conforme com os critérios legais de determinação da dosimetria da pena, então, a medida de cada uma das penas parcelares seria de 3 anos e 8 meses de prisão.

Em segundo e decisivo lugar porque a pena efetivamente aplicada por cada um dos crimes situa-se ligeiramente abaixo do quinto inferior da moldura do crime de abuso sexual de menor dependente agravado (o primeiro quinto corresponde a 3 anos 2 meses e 12 dias).

5. os critérios:

Não obstante a argumentação do recorrente não se harmonizar com o seu pedido final, importa sublinhar que os critérios concorrentes na determinante da medida judicial da pena para o crime perpetrado pelo agente - no caso, para cada um dos seis crimes de abuso sexual de menor dependente agravados cometidos pelo arguido -, funcionando dentro da correspondente moldura penal – prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses -, são as exigência de proteção do bem jurídico violado (estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual a sanção deixará de cumprir esta função[26]), a medida da culpa posta na execução do facto (que traça a linha máxima para além da qual a pena se torna desproporcionada senão mesmo parcialmente arbitrária) e as particulares necessidades de ressocialização do agente (que, dentro daqueles duas balizas, deve fazer com que a pena concreta se encoste mais a uma ou à outra) – arts. 40º n.ºs 1 e 2 e 71º n.º 1 do Cód. Penal.

Especificando neste critério, estabelece o legislador que na dosimetria da pena judicial deve o tribunal considerar “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime” (aqui sim, proibição da dupla valoração) “depuserem a favor” e contra o agente. Enunciando exemplificativamente algumas, que podem agrupar-se em circunstâncias atinentes ao facto ou ao agente, ou, noutra arrumação:

- que evidenciam a medida da gravidade do ilícito objetivo e da censurabilidade da conduta (do ilícito subjetivo) –al.ªs a) a c); e

- que expressam as particulares necessidades de prevenção especial de ressocialização que no caso se fazem sentir – al.ªs d) a f).

6. penas aplicadas:

Importa então apreciar se a dosimetria da pena judicial (em igual medida – 3 anos) pela prática de cada um dos 6 crimes de abuso sexual de menor dependente pelos quais o arguido vem condenado nos autos, se conforma com os mencionados critérios e respetivos parâmetros.

Na fixação do quantum da pena o tribunal a quo atentou desde logo e decisivamente na importância do bem jurídico violado (na escala de valores fundamentais indispensáveis a uma sã e harmónica vivência comunitária) e as inerentes necessidades de reafirmação da sua validade e da vigência da respetiva proteção penal (que considerou elevadas). Efetivamente, o livre desenvolvimento da personalidade dos menores na esfera sexual demanda, não só no regime interno como também nos instrumentos de direito internacional, no direito derivado da EU (na signa inglesa UE), bem como na esmagadora maioria dos regimes jurídicos nacionais, a assertiva reafirmação contrafáctica dos inerentes tipos de ilícito.

Ponderou também a gravidade objetiva do ilícito refletida pelos concretos atos sexuais, o modo da sua execução e a energia criminosa com que o arguido atuou. Sublinhando-se a variedade de atos sexuais cometidos pelo arguido (beijos, apalpar os seios, introdução dos dedos na vagina, lamber a vagina, “acariciar” o pénis, felações (coito oral), coito vaginal completo, coito anal), a elevada frequência – “tais contactos sexuais aconteciam quase diariamente” (ponto 11 dos factos provados) - (portanto, bem mais que o número de crimes por que vem condenado) e o período temporal em que ocorreram (ininterruptamente durante cerca de 3 meses).

Não fora a menor ter posto fim à situação e o arguido não deu sinais de que tivesse intenção ou vontade de fazer cessar os abusos sexuais sobre a BB, sua “enteada de facto” e integrante do seu agregado familiar.

Atentou na censurabilidade elevada da conduta, comandada por dolo direto, intenso e persistente (o arguido quis praticar os atos sexuais referidos com a menor, abusando sexualmente da confiança que nele depositava a mãe desta, deixando-a à guarda e sob a vigilância do companheiro enquanto ia trabalhar e estava ausente de casa. Quando começou a suspeitar que o arguido podia ter abusado sexualmente da menor, o arguido firmemente decidido em abusar sexualmente da menor BB preparou um espaço no seu local de trabalho para onde a atraiu e cometeu os atos sexuais, incluindo e penetração anal e cópula vaginal, narrados nos pontos 16 e 17 dos factos provados.

Agiu com o propósito deliberado de satisfazer os seus instintos libidinosos sem se preocupar minimamente com as consequências na formação da personalidade da menor e na compreensão e desenvolvimento da sua futura vida sexual. Revelando-se insensível às consequências que sabia bem que adviriam para a união de facto que mantinha com a mãe da menor.

Ponderou também as necessidades de prevenção especial (medianas). Sublinhando-se neste ponto a necessidade da pena evidenciada pela “tendência para minimização, desculpabilização e atribuição causal externa dos seus comportamentos”.

O arguido admitiu apenas parcialmente os factos.

Alguma autocritica verbalizada esbarra num discurso vulgar neste tipo de agente visando atribuir culpas à vítima, como se o próprio mais não tivesse feito do que sucumbir à imaginária tentação, afirmando que a BB “andava sempre em cima de mim” e que “foi tudo por mútuo consentimento”. Desculpabilização verbalizada também nas alegações de recurso.

O arguido não tem antecedentes penais registados, como é de esperar de um cidadão comum. Todavia, a ausência de histórico criminal anterior não o afastou de cometer crimes graves, de abusar sexualmente e ininterruptamente durante 3 meses da menor filha da companheira e com ambos vivendo.

A pena judicial nestes casos convoca desde logo elevadíssimas exigências de prevenção geral evidenciada pela viva reação da sociedade a este tipo de crimes, reclamando penas em medida que patenteia a gravidade objetiva e a dimensão da censura social por tais condutas.

Os fins e motivos que determinaram o arguido à prática dos crimes – a satisfação da lascívia e desejo sexual servindo-se de uma criança –, evidenciam uma tendência que importa reduzir ou, idealmente, corrigir de modo a prevenir a reincidência que é muito comum neste tipo de criminalidade em razão da escolha de vítimas com diminuída capacidade de autodeterminação sexual e escassas possibilidades de imediata reação ao crime e que, como sucedeu no caso, geralmente são levados a cabo no próprio ambiente familiar que deveria ser o seu núcleo primário e essencial de amparo e também no interior da habitação onde o menor residia, que deveria ser o seu refúgio inviolável.

Neste circunstancialismo espelhado pelos factos provados conclui-se que o tribunal recorrido, no procedimento empreendido para dosear a medida de cada uma das penas parcelares impostas ao arguido, atentou nos critérios e fatores legalmente estabelecidos, quantificando-as uniformemente e abaixo do quinto inferior da moldura penal.

Não fosse a ponderação em seu favor da ausência de antecedentes penais com a idade de 58 anos, ter admitido parcialmente os factos, expressar alguma autocritica e a pena deveria atingir fração ou dimensão mais elevada.

Não há, por isso, razões para intervenção corretiva nas penas parcelares.

Assim e em conformidade, improcede esta parte da pretensão do recorrente.

ii. da pena conjunta:

1. a pretensão:

Insurge-se o recorrente também contra a medida da pena única aplicada que considera exagerada.

Argumenta não serem elevadas nem as exigências de prevenção geral nem as de prevenção especial e que a sua personalidade “demonstra não ter uma tendência criminosa”.

Argumenta que a medida das penas parcelares se situa no limite do primeiro terço da pena, enquanto a pena conjunta está “acima do segundo terço [da] pena abstrata”.

Pugna por uma pena única “na ordem dos 5 anos”.

E com execução suspensa.

2. a motivação:

No acórdão recorrido motiva-se a dosimetria da pena única aduzindo (em síntese)

4.3. Do Cúmulo Jurídico

O art. 77º do Código Penal regula a punição do concurso de crimes, dispondo que o agente será condenado numa pena única sempre que cometer vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por cada uma delas.

O que se verifica nos presentes autos.

Para o efeito, a moldura penal do concurso terá como limite mínimo a pena mais elevada das penas parcelares e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Impõe o legislador que na determinação concreta da pena em cúmulo deverá o julgador ponderar a personalidade do agente e os factos no seu conjunto (art. 77º n.º 1 do Código Penal).

(…)       Considerando as penas parcelares aplicadas a moldura do concurso a ponderar situa-se entre os 3 anos e os 18 anos de prisão.

Tendo em conta todas as circunstâncias já apontadas, especificadamente no que concerne às elevadas necessidades de prevenção geral que o caso desperta, as necessidades de prevenção especial, concatenando com a personalidade demostrada pelo arguido, a gravidade objetiva dos factos cometidos e sopesando que os crimes terão sido cometidos dentro do mesmo quadro fáctico motivador, consideramos adequada e proporcional a fixação da pena única de 8 anos de prisão.

3. manifesta contradição do pedido:

Também aqui o recorrente se enredou e, neste particular foi na aritmética. Contrariamente ao que assevera, a pena única está rigorosamente situada no ponto exato correspondente ao limite do primeiro terço [3+5=8] da respetiva moldura penal que tem como limiar mínimo 3 anos e como limiar máximo 18 anos de prisão [3x6=18] (o limite do segundo terço são 13 anos).

Não obstante vejamos a dosimetria da pena conjunta.

i. critério e factores:

O Código Penal, no art. 77º (regras da punição do concurso), n.º 1, dispõe:

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. (…).

Deste modo, o nosso legislador, divergindo de ordenamentos jurídico-penais próximos que optaram por sistemas que se aproximam mais da pura adição (soma de penas a cumprir sucessivamente, com plafonamento ou limite máximo legalmente predeterminado) -o espanhol[27]- ou de um cúmulo material (as penas aplicadas aos crimes em concurso dão lugar a uma pena - unificada), em qualquer caso também com limite definido –o italiano[28], o brasileiro[29], - ou de uma só pena -o Suíço[30]-, optou (por razões politico-criminais e de dogmática[31]) pelo sistema de pena conjunta (cada infração é punida com a pena correspondente e as penas aplicadas ao concurso de crimes fundem-se numa pena única), assente na combinação dos princípios da acumulação material e do cúmulo jurídico, tendo este por base uma consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente[32].

Ao cúmulo jurídico de penas subjaz necessariamente uma pluralidade de crimes que estão, entre si, numa relação de concurso (real). No sistema do Código Penal português, a reiteração ou sucessão de infrações que podem integrar-se num mesmo concurso de crimes é interrompida e assim delimitada pelo trânsito em julgada da condenação de qualquer deles[33], diversamente do que sucede em outros regimes que optaram pela decisão condenatória.

A moldura penal do concurso de crimes estabelece-se de acordo com o disposto no art. 77º n.º 2 co Cód. Penal:

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

A dosimetria da pena única a aplicar (em cúmulo jurídico) ao concurso de crimes rege-se pelo segundo segmento da norma do art. 77.º, n.º 1, II parte, Código Penal, que estatui:

1 – (…) . Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Deste modo, o legislador instituiu um regime especial para guiar o juiz no procedimento conducente à fixação do quantum da pena judicial do concurso de crimes, com a indicação do iter a seguir e dos parâmetros a observar.

Na dosimetria da pena única é considerado o “comportamento global” resultante da ponderação concorrente dos “factos” perpetrados e da “personalidade” do agente revelada no seu cometimento. As regras de determinação da pena não operam aqui por referência a um qualquer dos crimes em concurso, nem a todos como se de uma unidade de sentido punitivo se tratasse, mas por referência aos factos e à pena aplicada a cada um e a todos eles[34]. É esta referenciação aos crimes do concurso e às penas parcelares que confere autonomia dogmática ao sistema da pena conjunta e o diferencia do sistema da pena unitária (ou da pena unificada).

Deste modo, a determinação da medida da pena conjunta comporta, especificidades, submetida como está a um regime especial de pena única, diverso do adotado em ordenamentos com sistemas próximos nos quais a pena judicial do concurso se obtém por absorção (dentro da moldura penal do crime mais gravemente punido) ou por exasperação (a pena mais elevada aplicável a uma das infrações do concurso é agravada em razão do número de crimes que o integram), que aparenta assentar numa operação mais simplificadamente quantificável e com maior grau de uniformização sancionatória.

No sistema do Cód. Penal português informado pelos princípios da exasperação e da cumulação e que, na expressão de J. Figueiredo Diasas nossas doutrina e jurisprudência crismam … de sistema do cúmulo jurídico[35], a moldura penal do concurso é autónoma, resultante da consideração das penas aplicadas a cada um dos crimes integrantes do concurso, tendo como limiar mínimo a pena parcelar mais elevada e como limite máximo a soma de todas as penas aplicadas.

Dentro desta moldura a fixação da pena judicial única terá de resultar da atuação conjugada do referido binómio (factos e personalidade) - art. 77.º, n.º 1, II parte, do Código Penal.

Alguma doutrina questiona a admissibilidade da valoração, na determinação da pena conjunta, de fatores que tenham servido para fixar a pena singular aplicada a cada crime.

Um deles é desde logo a culpa, não na consideração politico-criminal do legislador quando elegeu os tipos de culpa, mas já nos termos dos artigos 40º n.º 2 (em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”), e 71º n.º 1 (“a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”) que a constituem como fator determinante do limite e da medida máxima de cada pena concreta.

A doutrina maioritária[36] e a jurisprudência[37] entendem que os parâmetros contidos no art. 71º do CP – culpa e prevenção –, servem apenas de guia na operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade dos crimes. Com esta advertência parece entender-se que nada obsta a que a pena única se determine pela ponderação conjugada de fatores do critério geral (enunciados no art. 71º) e do critério especial (fornecido pelo art. 77º n.º 1).

Como refere Figueiredo Dias, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º.º, n.º1, um critério especial: o do artigo 77º, nº 1, 2ª parte.

Mas também aqui não podem considerar-se circunstâncias que façam parte de cada um dos tipos de ilícito integrantes do concurso (proibição da dupla valoração –art. 71º n.º 2 do Código Penal).

Sustenta-se no Acórdão 14-09-2016[38], deste Supremo Tribunal: “na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele «pedaço» de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua atividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respetiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade.

É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da atividade criminosa do agente permite”.

Assim, no nosso sistema de pena única, essencial é desde logo a gravidade global dos factos. A avaliação do comportamento “unificado” pelo concurso de crimes deve assentar na ponderação conjugada do número e da gravidade das penas parcelares englobadas, da sua medida concreta e da respetiva grandeza no âmbito da moldura da pena do concurso.

Segundo J. Figueiredo Dias, na escolha da medida da pena única “tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)[39].

Critério a que o Ac. de 27/01/2016, deste Supremo Tribunal dá expressão prático-jurídica: «fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade à pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”

Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspetiva de existência de uma pluralidade de ações puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais. Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais”[40].

Em consonância com o exposto, para encontrar o quantum da pena única, dentro da moldura aplicável, o critério geral do artigo 71º tem de ser conjugado com o critério específico consagrado no art. 77.º, n.º 1 do Código Penal, respeitando, todavia, a proibição da dupla valoração. “À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Visão de conjunto que, todavia, não pode olvidar o número, a natureza e a medida concreta de cada pena parcelar ou então o sistema ainda que sob a terminologia da pena conjunta, seria, na realidade, o da pena unitária, em que a determinação da pena correspondente a cada um dos crimes em concurso mais não aproveitava do que para estabelecer a moldura penal do concurso.

Sem perder de vista as penas parcelares aplicadas “do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”.

“Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses fatores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita”[41].

c) a pena do concurso:

No caso, o arguido vem condenado por ter cometido em concurso real 6 (seis) crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor dependente inicialmente identificados, tendo-lhe sido aplicada, por cada um deles, a pena de 3 anos de prisão.

A moldura penal deste concurso de crimes tem como limite mínimo 3 anos de e o limiar máximo de 18 anos de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 8 anos de prisão.

O acórdão recorrido adicionou à moldura mínima da pena do concurso - 3 anos de prisão- uma fração exatamente igual a um terço (1/3) de cada uma das restantes 5 penas de prisão (3+1+1+1+1+1=8).

A “teoria” do «fator de compressão», podendo ter sentido prático e justificação em razões de certeza e segurança jurídica e de uniformidade de critérios, em casos como o dos autos em que os crimes em concurso ofendem bens jurídicos da mesma ou de natureza idêntica, ou em casos em que o bem jurídico violado plúrimas vezes é o mesmo, ou em casos de homogeneidade das penas, não é exportável para outras situações, não se podendo aceitar critérios matemáticos uniformes, alheios a uma valoração normativa dos bens jurídicos tutelados “que pode assumir uma diferença substantiva abissal consoante haja ofensa de bens patrimoniais ou de bens fundamentais, como é o caso da própria vida” ou à heterogeneidade das penas.

Na definição da pena concreta a aplicar ao concurso de crimes também “importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave”, em consonância com os propósitos do legislador testemunhados na «exposição de motivos» do CPP de que “convém não esquecer a importância decisiva da distinção entre a criminalidade grave e a pequena criminalidade - uma das manifestações típicas das sociedades modernas. Trata-se de duas realidades claramente distintas quanto à sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provocam. Não poderá deixar de ser, por isso, completamente diferente o teor da reação social num e noutro caso, máxime o teor da reação formal.

Consequentemente, na determinação da pena conjunta, a ponderação dos crimes e das penas deve adequar-se ao tipo de criminalidade com enfase para o terrorismo, a criminalidade violenta, a criminalidade especialmente violenta e a criminalidade altamente organizada -cfr. art. 1º alªs i) a m) do CPP.

“Paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia é uma mera pluriocasionalidade”.

O “comportamento global” que preside ao cúmulo jurídico, e à aplicação da pena única, evidencia uma personalidade mais ou menos intensamente desconforme ao modo de ser suposto pela ordem jurídico-criminal. A violação, pelo agente, de vários bens jurídicos de igual importância, através da mesma ou de condutas imediatamente seguidas, exprime, geralmente e segundo as regras da lógica e da experiência comum, pluriocasionalidade criminosa. A reiteração espaçada de idênticas ou de diferentes condutas delituosas, à mesma luz, poderá evidenciar uma tendência, persistente vontade, ou carreira criminosa.

i. da pena única aplicada:

Os vários e repetidos - durante 3 meses -, atos sexuais de relevo que o arguido praticou na menor BB, sua dependente em razão da relação de confiança para educação e assistência, constituem, no seu conjunto, uma situação de múltiplos crimes, agravados em razão da coabitação, como se explicitou, em que a reiteração criminosa preenche várias vezes o mesmo tipo de crime, de modo a que estamos perante um caso de concurso efetivo, na definição do artigo 30.º do Código Penal. Crimes que foram punidos cada um com uma pena de prisão e, em cúmulo jurídico destas, numa pena única que deve obedecer aos critérios e fatores de individualização estabelecidos no artigo 77.º do Código Penal, nos termos enunciados e, ademais que não extravase a desejável proporcionalidade por referência ao sistema punitivo criminal.

Vejamos então se a dosimetria da pena única aplicada no acórdão recorrido se conforma com a gravidade dos factos e se a personalidade do arguido neles revelada – art. 77º n.º 1 do Cód. Penal -, e também se não é desproporcionada à figuração do “ilícito global” dada pelo concurso de crimes.

Neste aspeto, releva desde logo que os crimes deste concurso (contra a autodeterminação sexual punido com prisão de máximo superior a 8 anos em razão da agravação) se incluem na definição legal de criminalidade especialmente violenta firmada no art.º 1º al.ª l) do CPP.

A Diretiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho, considera que:

(1) O abuso sexual e a exploração sexual de crianças, incluindo a pornografia infantil, constituem violações graves dos direitos fundamentais, em especial do direito das crianças à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, tal como estabelecido na Convenção das Nações Unidas de 1989 sobre os Direitos da Criança e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

E que:

(12) As formas graves de abuso sexual e de exploração sexual de crianças deverão ser penalizadas de forma eficaz, proporcionada e dissuasiva.

Nas palavras do Ac. STJ de 22/04/2015, proc. 45/13.0JASTB.L1.S1, os agente de crimes de abuso sexual de crianças, - no vulgo «pedófilos» -, no sentido de que se sentem eroticamente atraídos de forma compulsiva e exclusiva por crianças, o que, sem lhe retirar lucidez, poderá atenuar a sua responsabilidade, são justamente os delinquentes onerados por qualquer tendência para o crime os mais perigosos, os mais necessitados de socialização e aqueles de que a sociedade tem de se defender mais fortemente.

Os bens jurídicos insistentemente violados pelo arguido exigem proteção firme e atuante. A criança é, não só sujeito de direitos como, hodiernamente, um preciosíssimo valor humano a quem devem ser propiciadas as condições e a proteção que garantam um crescimento natural e gradual, a formação integra e apta a poder usufruir plenamente de uma vida sã, livre de traumas, numa sociedade cada vez mais global. A dimensão tutelar da menoridade apoia-se na ideia de uma incapacidade “natural” que define uma determinada “fase da vida” do ser humano[42], importando que decorra com total normalidade, resguardada de riscos que não é capaz de prever, protegida de experiências prejudiciais ou traumáticas de que não consegue livrar-se.

Como se sustenta no Acórdão de 1.06.2016[43] deste Supremo Tribunal o STJ, o bem jurídico violado prende-se com a estrutura fundamental do desenvolvimento das menores, ou seja, com o seu direito a um desenvolvimento harmonioso e feliz e à própria autodeterminação, pelo que o tribunal não pode deixar omissa a constatação dos efeitos devastadores que este tipo de crime tem, teve e terá, na evolução da personalidade da menor.

Referem-se neste aresto que, como consequências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha, a baixa autoestima, que deriva da ideia de que o abuso foi merecido, um sentido ou perceção de ego danificado, que leva a pessoa a sentir-se isolada e marginalizada, e dificuldades ao nível das relações interpessoais e de controlo dos afetos.

E tudo isto sem esquecer que, «frequentemente, os abusados são ativamente destrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas».

Como afirma Lucia Barbero[44], «o abuso sexual representa uma verdadeira catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica que afeta seus distintos aspetos. (...) Implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afeta o núcleo mais pessoal e básico de identidade: o corpo.

Nenhuma vítima que tenha sido sujeita a abuso sexual infantil pode ultrapassar incólume psiquicamente (...)».

Como se refere no Ac. de 13/07/2013 deste Supremo, “é inquestionável ter a conduta do arguido atingido e molestado de forma grave valores fundamentais à vida em comunidade, como são a dignidade humana, a liberdade de autodeterminação pessoal e sexual e, afinal, o normal desenvolvimento psicológico de (…) crianças (…)”.

A atuação criminosa “global” do arguido é realmente grave, tendo embutido, no modo e tempo de execução, um grau elevado de ilicitude, isto é, de desvalor em termos de contrariedade à lei.

Os crimes cometidos reclamam um forte juízo de censura, pela forma despudorada, sem compaixão pelo livre desenvolvimento da personalidade sexual da menor BB, sua “enteada de facto”, sujeitando-a à satisfação insistente dos seus instintos lascivos e libidinosos.

Assim, a finalidade primeira da pena consagrada no art.º 40º do Cód. Penal encontra aqui um campo específico de reafirmação da validade e da vigência dos bens jurídicos tutelados pela incriminação.

A culpa é muito elevada. O arguido tinha consciência plena da ilicitude e da forte censurabilidade desta sua conduta, tendo agido com dolo direto, intenso e persistentemente renovado.

A personalidade revelada pelo “comportamento global”, incluindo o modo de execução dos múltiplos e variados atos sexuais de relevo, de que se salienta a circunstância de, quando surgiram as suspeitas, não só não ter desistiu da prática criminosa como criou condições fora de casa para nele insistir só cessando contra a sua vontade (por denúncia da vítima)

A postura do arguido perante os factos evidencia insuficiente autocensura e escassa vontade de contenção, constituindo fatores de risco na reiteração da mesma atividade.

Não se pode extrair do comportamento global e dos dados atinentes à sua personalidade que o concurso de crimes é a expressão de uma tendência criminosa do arguido. Contudo, a persistência na prática delituosa revelou uma vontade férrea que não se deteve quando surgiram as suspeitas, apontando no sentido de algum embutimento nessas práticas delituosas.

Consta dos manuais de psiquiatria que a “pedofilia” tem normalmente subjacente uma personalidade antissocial com forte desprezo pelos direitos e sentimentos dos outros, propensa a explorar outras pessoas para a sua satisfação pessoal, desconsiderando danos causados e que não só não sente remorso ou culpa como se desresponsabiliza pelos atos cometidos[45].

No mesmo Manual Diagnósticos e Estatístico de Transtornos Mentais/DSM-5, da AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, afirma-se que os: “indivíduos com transtorno da personalidade antissocial não têm êxito em ajustar-se às normas sociais referentes a comportamento legal (Critério Al). Podem repetidas vezes realizar atos que são motivos de detenção (…). Pessoas com esse transtorno desrespeitam os desejos, direitos ou sentimentos dos outros”.

Em suma, a gravidade dos factos que integram o concurso de crimes documentam uma situação na qual se impõe fortes exigências de prevenção geral, existindo na comunidade um vivo sentimento de grande repulsa pelos crimes contra a autodeterminação sexual das crianças, reclamando uma punição exemplar dos mesmos e os tribunais, ao administrarem a justiça, no cumprimento do dever de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, postulado no artigo 202º, nº2 da CRP, não podem ficar indiferentes a estas realidades[46]. E sobressaem também necessidades de prevenção especial, pelas razões referidas, documentadas na decisão recorrida.

Atentando nos factos que o tribunal extraiu do relatório social referentes às condições pessoais do arguido, extrai-se que com as suas condutas criminosas, fraturou aquela que era a sua situação familiar afetiva nos últimos sete (7) anos e no regresso à vida em liberdade terá de reinserir-se e, se essa for a sua necessidade, estabelecer outros laços afetivos. Ademais das previsíveis dificuldades com que pode deparar-se nesse regresso, importa que fique preparado para, se voltar a encontrar-se numa situação como a dos autos ou mesmo que seja em contactos com menores, não reincidir.

Tudo isto a impor a necessidade de aplicação ao arguido de uma pena única de significativa duração, capaz de reafirmar e estabilizar a validade e vigência dos bens jurídicos violados, se contenha nos limites da culpa e da dimensão necessária à prevenção da reincidência.

No caso, atenta a homogeneidade dos crimes (o mesmo foi cometido seis vezes), não fora a diferença em dois graus, no âmbito das respetivas molduras penais, entre a dimensão fracional de cada uma das penas do concurso (a roçar o 1/5 inferior) e grandeza da fração da pena conjunta (exatamente 1/3) e ter-se-ia concluído que a dosimetria da pena única aplicada ao arguido se apresentava conforme aos critérios que presidem à sua determinação, em razão de se tratar de criminalidade especialmente violenta -, (atentado contra bens pessoais de importância, concretamente a autodeterminação sexual de menor dependente) reiteradamente perpetrada, demandar geralmente uma fração mais elevada que a acumulação jurídica de penas aplicadas a crimes de outra fenomenologia criminosa menos grave.

Também assim se concluiria em razão do tipo de crime, porquanto a adição à pena parcelar que estabelece o limiar mínimo da moldura do concurso, de um terço de cada uma das restantes penas singulares não seria excessiva. Sem prejuízo de, quando desta adição resultar uma pena conjunta excessiva, se poder temperar fazendo intervir o princípio da proporcionalidade, não enquanto simples juízo meramente subjetivo, ou enquanto pura abstrato, mas necessariamente sempre por referência ao sistema punitivo instituído (por exemplo, para que um concurso de crimes desta natureza não seja sancionada com a mesma pena que um concurso de crimes de homicídio).

No caso, como se disse, não há conformidade aritmética, e também não há explicação lógica para tão grande diferença fracional –em dois graus -, entre a penas parcelares e a pena única. Enquanto a pena singular de cada um dos crimes se situa ligeiramente abaixo do terço inferior da respetiva moldura penal; a pena do concurso situa-se rigorosamente no terço inferior da respetiva moldura.

Aceitando-se a diferença em razão da gravidade da fenomenologia criminosa, não se apresentam e o Tribunal não encontra razões que justifiquem que, sendo o tipo de crime em concurso o mesmo reiteradamente cometido, conjugado com as circunstâncias que depõem em favor do recorrente e se enumeram, essa diferença exceda mais que um grau fracional no âmbito de uma e da outra das duas molduras penais envolvidas.

Assim, entende-se que a pena única situada tão ligeiramente acima do quarto inferior da moldura do concurso quanto ligeiramente abaixo do quinto inferior da moldura de cada crime se situou cada pena parcelar, é suficiente e adequada a proteger o bem jurídico repetidamente violado, é proporcional à culpa do agente, se atêm à gravidade dos factos e à personalidade do arguido revelada pelos seis crimes cometidos e permite satisfazer as medianas necessidades de prevenção especial de ressocialização.

Por isso, reduz-se a pena única aplicada ao arguido para 6 anos e 10 meses de prisão.

Mantendo-se a condenação nas penas acessórias.

Consequentemente, neste segmento (redução da pena única) procede parcialmente a pretensão do recorrente.

d) pena suspensa:

Na pressuposição da redução da pena única para 5 anos de prisão, peticiona o recorrente que, se assim for, se decrete a suspensão da respetiva execução.

Pretensão manifestamente infundada uma vez que a pena única, embora tenha seja reduzida, é fixada em 6 anos e 10 meses de prisão, não podendo a sua execução ser suspensa porque não cumpre o pressuposto inultrapassável da pena suspensa consistente em pena decretada não ser superior a 5 anos de prisão.

e) montante da reparação:

Reclama o recorrente a redução de €5.000,00 para €1.000,00, do montante da reparação arbitrada à vítima especialmente vulnerável, a menor BB.

Sobre o modelo de determinação do valor da compensação em referência já acima se disse o bastante, sublinhando-se aqui que o critério é a equidade.

Ao que ali já se adiantou, acrescenta-se que o arguido auferia uma remuneração mensal de cerca de €1.700,00, com um único encargo fixo de €540,00 para pagamento do empréstimo bancário contraído para a construção da casa própria.

Resulta, assim, que o valor da compensação arbitrada à vítima não é excessivo na perspetiva de não ser facilmente suportado pelos rendimentos do condenado. Contas feitas, o seu rendimento mensal disponível permitia-lhe (permite-lhe, se a relação laboral não cessou entretanto) saldar aquele valor em 4 meses e sem ter de deixar de continuar a pagar o mútuo bancário. Ou, dito de outra maneira, sem ter de se endividar ou recorrer a ajudas de outras pessoas (€1.700,00-€540,00=€1.160,00).

Depois, aquele valor corresponde a menos de €1.000,00, por cada um dos seis crimes com que a menor foi vitimizada (a cada crime corresponde o valor de €833,34).

Do acima exposto completada pelo que ora se acrescentou, resulta que o montante da reparação arbitrada se mostra equitativamente equilibrado, e não constitui um encargo de valor exagerado para o condenado. Por isso se confirma o valor fixado no acórdão recorrido.

Improcede, também nesta parte, a argumentação do recorrente. 


V -DECISÃO.


Nos termos expostos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, acorda em: --

a) - Rejeitar, ao abrigo do disposto no art. 434º do Código de Processo Penal, o recurso do arguido AA na parte em que peticiona:

1.  reapreciação da matéria de facto;

2. invoca vícios do art. 410º n.º 2 do CPP;


b) - Julgar improcedente a arguição de nulidade da decisão recorrida;

c) Julgar improcedente o recurso do arguido AA na parte atinente:

1. à qualificação jurídica;

2. à agravação dos crimes;

3. à medida das penas parcelares;

4.  ao valor da reparação arbitrada à vítima.

d) Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, reduzindo a pena única que se fixa em 6 anos e 10 meses de prisão.

e) Mantendo-se em tudo o mais o acórdão recorrido.


f) Sem custas (art. 513º n.º 1 parte final do CPP).


*


Lisboa, 27 de novembro de 2019


Nuno Gonçalves (Relator)

Paulo Ferreira da Cunha

________

[1] Ac. STJ de 27.1.2010, Proc. n.º 293/08 - 5ª Secção, acessível em CJ (STJ), 2010, Tomo I, pág. 20.
[2] Curso de Processo Penal, III, pag 339.
[3]Acs. do STJ de 16-05-2019, Proc. nº 476/15.1PELSB.L1.S1 (3.ª Secção), de 20-02-2019, Proc. n.º 12/18.8GTBJA.S1 (5.ª Secção), de 06-02-2019, Proc. n.º 1074/15.5PAOLH.E1.S1 (3.ª Secção), de 21-11-2018,  Proc. n.º 179/15.7JAPDL.L1.S1 (3.ª secção), de 10-10-2018, Proc. n.º 1082/13.0GAFAF.G1.S1 (3.ª secção), e de 02-03-2017,  Proc. n.º 234/14.0JACBR.C1.S1 (5.ª Secção).
[4] Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, p. 1273
[5] Assim, Ac. STJ de 21-02-2018, proc. n.º 511/16.6PKLSB.L2.S1, 3.ª secção
[6] Ac. STJ de 21/03/2007
[7] Ac. STJ de 23-04-2008, CJ (STJ), 2008, T2, pág.205
[8] Proc. 881/16.6JAPRT-A.P1.S1 in www.dgsi.pt.
[9] Atendendo também às indemnizações que têm vindo a ser fixadas pelos nossos Tribunais Superiores:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.02.2019, foi fixada uma reparação no montante de € 700,00, (…)
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, foi fixada reparação no montante de € 1200,00, (…)
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.05.2016, fixou-se uma reparação no valor de € 2.000 (…),
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.05.2016, fixou-se uma reparação no valor de € 2500,00 (…).
- Acórdão do STJ, de 02.05.2018, fixou reparação no valor de € 7500,00 (…).
[10]
[11]
[12] Adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução 44/25 da Assembleia Geral
[13] Art. 24º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
[14] Art. 132º do Código Civil: “o menor é, de pleno direito, emancipado pelo casamento”.
[15]situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” –art. 1º n.º 2 da Lei n.º 7/2001. Também assim no artigo 3ºda Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, Lanzarote, 25.10.2007- E igualmente o art. 2º da Diretiva 2011/93/EU.
[16] Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999., Coimbra Editora, Tomo I, pag. 556; P. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica, 3.ª ed., pag. 690; Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2014, Almedina, pag. 738.
[17] Ac. STJ de 13/02/2019, proc. 3922/17.6JAPRT.S1, in www.dgsi.pt.
[18] Comentário Conimbrisense, cit. pag 556 e 554.
[19] proc. n.º 4830/07-3ª sec, in www.dgsi.pt.
[20] Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo” (?), julgar online, abril de 2018.
[21] 3ª sec. proc. 19/15.7JAPDL.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[22] Proc. 677/13.7TAAGH.L1.S1, www.dgsi.pt
[23] 3ª sec. proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[24] “Crime de trato sucessivo” (?),Julgar online, abril de 2018, pag 25. Também assim no Ac. STJ de 4/05/2017, 5ª sec. proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[25] DR n. n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23.
[26] Reafirmar a validade comunitária do bem jurídico violado e a vigência da sua proteção penal.
[27] As penas aplicadas a cada crime do concurso são cumpridas sucessivamente com o máximo de 20 anos ou se menor, do triplo da pena mais grave (Código Penal: Artículos 73, 75, 76 ).
[28] Codice Penale: Art. 73 (Se vários crimes importarem penas temporárias de prisão da mesma espécie, será aplicada uma única penalidade, por um tempo igual à duração total das penalidades que devem ser impostas para os crimes individuais).
[29]– Unifica-se a pena aplicando cumulativamente as penas aplicadas aos crimes em concurso, limitando-se a execução ao máximo de 30 anos (Código Penal: Art. 69, 75, 76), com a seguinte particularidade:
§ 2º - Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido..
[30] Code Pénal Suisse: Art. 49 3. Concours (à pena do crime mais grave é aumentada numa justa proporção até ao limite da respetiva moldura penal ou da pena do mesmo género.
[31] J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 280.
[32] J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo 1ª, 2ª ed., pag. 979.
[33] AUJ n.º 9/2016, DRE n.º 111/2016, Série I de 2016-06-09
[34] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 277.
[35] As Consequências … cit, pag, 284.
[36] Máxime: J. Figueiredo Dias e autores que cita na nota 98 da pag. 292, da ob. Citada.
[37] Máxime: Ac. STJ de 23-05-2018, 3ª sec, proc. 799/15.OJABRG.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[38] 3ª sec. Proc. 71/13.0JACBR.C1.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[39] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 291.
[40] Proc., www.dgsi.pr/jstj.
[41] A. Rodrigues da Costa, O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ.
[42] Ac. STJ de 22-01-2013, proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1, www.dgsi.pt.
[43] Proc. Nº 111/14.5GAMGD- 3ª Secção, www.dgsi.pt.
[44] Consequências do abuso sexual infantil”, http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs36/36FuKs.htm.
[45] Manual MSD.
[46] Ac. STJ de 13-07-2017, proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, www.dgsi.pt.