Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1773
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
AVAL
FIM SOCIAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200406170017737
Data do Acordão: 06/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6609/03
Data: 11/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Compete à sociedade comercial que garantiu um crédito de terceiro o ónus de alegar e provar que a garantia não satisfez um justificado interesse seu, sob pena de o acto dever ser considerado como conforme ao fim social.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. Em representação de A, dois administradores deram aval a uma livrança subscrita por B.
Na execução que o beneficiário da livrança, C, lhe moveu com base naquele título cambiário, A, embargou, alegando a nulidade do aval por falta de poderes dos que o deram em representação da sociedade e por se tratar de prestação de garantia a dívida de outra sociedade, dada sem justificação, tudo em desconformidade com os artº6º, 405º, 406º e 409º, CSC (1);
alegou, ainda, a falta de protesto e o disposto no artº53º, LULL (2).
Os embargos foram julgado improcedentes e a Relação de Lisboa confirmou.
Vem pedida, agora, revista, em que a recorrente insiste nos mesmos argumentos, acentuando, ainda, os especiais deveres de diligência dos bancos e a regra do ónus da prova, que oneraria o exequente, de que prestação de aval fora justificada. A parte contrária alegou, também.
2. A regra geral é, com efeito, a de excluir dos fins da sociedade comercial a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades (artº6º, 2, CSC).
É limitação que o legislador enquadrou no âmbito da capacidade jurídica das sociedades comerciais, e que, por isso, funciona seja qual for o objecto social, salvo a existência de regimes especiais, como o das instituições de crédito e sociedades financeiras.
Não cabe dúvida de que o aval é uma garantia pessoal (artº30º, LULL) e que, por isso, está fora, em princípio, do elenco de operações que a sociedade comercial, toda e qualquer sociedade comercial, pode realizar.
Em princípio, dizíamos, porque a segunda parte do citado nº2, do artº6º, CSC, ressalva os casos em que exista “justificado interesse próprio da sociedade garante” ou uma “relação de domínio ou de grupo” entre a garante e a beneficiária da garantia.
O justificado interesse próprio há-de compreender-se por referência ao fim da sociedade, que é a obtenção e distribuição dos lucros da actividade económica correspondente ao objecto fixado no contrato ou nas deliberações sociais pertinentes.
Mas, para saber se determinado acto é necessário ou conveniente à prossecução daquele fim (na expressão do nº 1, do citado artº 6º), importa não o considerar isoladamente, mas perspectivá-lo no encadeamento de actos que fazem a vida da empresa.
Sendo assim, tirando as proibições expressamente consagradas na lei ou as limitações que decorram da natureza das coisas (quer dizer, as relativas a actos que pressuponham a personalidade individual), a capacidade jurídica das sociedades tem uma amplitude tendencialmente ilimitada.
E, nesse enquadramento, a prestação de garantias a dívidas de terceiro inclui-se no fim social, isto é, no âmbito da capacidade de exercício de direitos da sociedade, desde que orientada (tal prestação) pelo superior interesse da sociedade garante (o interesse próprio ou o interesse do grupo de sociedades em que se insere).
Uma vez satisfeito esse requisito, que, aliás, deve acompanhar todo e qualquer acto praticado pelos órgãos e representantes da sociedade, a prestação de garantias, pessoais ou reais, passa a ser uma operação do âmbito normal da capacidade das sociedades comerciais.
A recorrente diz: só uma prévia deliberação a propósito, emanada do próprio conselho de administração é que, por um lado, garantiria o respeito pelo interesse social, e, pelo outro, credenciaria os administradores que subscreveram o aval com os indispensáveis poderes representativos.
Diz, portanto, que aqueles administradores careciam dos necessários poderes para obrigar a sociedade.
Mas não é assim.
Há que distinguir entre modelos de gestão e modelos de representação.
Os poderes de representação dos administradores e o consequente âmbito da vinculação da sociedade anónima (artº408º e 409º, CSC) são coisas distintas dos poderes de gestão, em que se inclui o de prestação de cauções e garantias pessoais ou reais pela sociedade (cfr. artº406º, f, CSC), englobando, aqui, a caução ou garantia quer de dívidas próprias, quer de dívidas alheias.
O acto de representação pode ser regular e já o não ser o acto de gestão que lhe está na origem.
No caso dos autos, as partes não discutem que a assinatura de dois administradores, como foi o caso, bastava, em princípio, para a representação em forma da sociedade.
Ora, “os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas” (artº409º, 1, CSC).
É, no dizer do próprio, preâmbulo do DL 262/86, de 02/09, que aprovou o CSC, a adaptação da lei portuguesa à Primeira Directiva CEE, de 09/03/1968, directiva esta que, acrescentamos, se destinou a “coordenar as garantias que, para a protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-Membros à sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58º do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade”.
Quem contrate com uma sociedade comercial não tem que se preocupar com as limitações que o contrato de sociedade estabeleça aos poderes dos administradores ou gerentes que se apresentem a negociar ou com a ligação entre o negócio e o objecto social.
Desde que os administradores ou gerentes que intervieram em nome da sociedade perfaçam o mínimo legal ou estatutário de representação, o que interessa (a quem com eles entre em negócio) é saber se o acto não é legalmente vedado à sociedade, e se está compreendido nos poderes de gestão legalmente atribuídos aos administradores ou gerentes designadamente, quanto à anónima, os elencados nas diversas alíneas do artº406º, CSC. Nada mais.
A representação, ainda que não seja fiel à gestão, ou, mesmo, aos estatutos, não deixa, por isso, de ser eficaz para com os terceiros que negoceiam com a sociedade.
Ponto é que, repete-se, a representação respeite a acto não proibido legalmente à sociedade e tenha sido exercida dentro dos poderes que a lei confere aos administradores ou gerentes, isto é, relativamente a actos que sejam legalmente considerados de gestão ou administração.
A infidelidade dos administradores ou gerentes ao pacto ou às deliberações dos sócios é, nestas circunstâncias, problema interno.
A menos, é claro, que o desvio do fim, se for esse o caso, seja do conhecimento da outra parte no contrato (cfr., quanto à sociedade anónima, o nº2, do artº409º, CSC).
O problema não é, pois, de representação, mas, sim, de capacidade da sociedade.
E a pergunta a fazer é, então, a quem cabe o ónus da prova daquelas ressalvas da lei (as ressalvas estabelecidas pela segunda parte do nº3, do artº6º), a quem prejudica a falta de prova de que a garantia foi prestada no interesse próprio da sociedade garante ou de que existia, entre esta e a beneficiária, uma relação de domínio ou de grupo.
Pondo de lado as relações de domínio ou de grupo, que, por natureza, não levantam qualquer dificuldade, e centrando a atenção na ressalva do interesse próprio da sociedade garante, a questão, assim delimitada, não é fácil de resolver e, por isso mesmo, a resposta não tem sido uniforme.
Em todo o caso, o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando com significativa predominância que o ónus compete à sociedade garante, isto é, que a esta cabe alegar e provar que a garantia que prestou a terceiro não satisfez um justificado interesse seu, sob pena de o acto dever ser considerado como conforme ao fim social.
Considera-se que, de contrário, se estaria perante uma prova muito difícil ou impossível de fazer, a não ser que existissem prévias cautelas à prestação da garantia, tomadas pelo beneficiário .
Diz-se, a propósito, no acórdão de 13.05.03, tirado na revista 318/03, da 1ª secção (3): “Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado a lei não diz o que entende por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada”.
O que, ao fim e ao cabo, confere com a ideia de que o normal é que os actos praticados pelos representantes da sociedade são orientados pelo interesse social, e não o contrário.
E, como se sabe, foi pelo critério da normalidade que o legislador se orientou na distribuição do ónus probatório (cfr., sobre o assunto, a anotação do artº342º, CC, no Código Civil Anotado de P.Lima e A.Varela, vol. I).
A solução que aqui se deixa vem na linha de outras decisões deste Supremo Tribunal, como sejam os acórdãos: de 21.09.2000 (4); de 24.04.2001, no recurso nº911/01, da 1ª Secção (5) de 13.05.03, Revista 318/03, da 1ª secção.
E não é pelo facto de a beneficiária da garantia ser uma instituição bancária que o caso muda de figura.
A imposição legal de exigentes regras de conduta, definidas nos artº73º e ss., do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF (6)) em nada interfere com a regularidade do procedimento da embargada, já que, na circunstância, apenas lhe era exigível um controlo sobre os poderes gerais de representação dos dois administradores signatários do aval.
O mais, isto é, exigir daqueles signatários uma prova documental de que tinham um mandato do conselho de administração, seria uma ingerência abusiva nos assuntos internos da prestadora da garantia.
O banco, ou confiava em que o aval interessava à avalista e concluía o negócio, sem mais indagações, ou desconfiava, e, então, não lhe restava outra atitude que não fosse exigir uma garantia de terceiro.
Não há-de ser, pois, por causa da falta de poderes dos que deram o aval em representação da recorrente ou por causa de se tratar de garantia dada em favor de terceiro, alheia ao interesse social, que a pretensão da recorrente deverá merecer acolhimento, pois nem uma nem outra dessas circunstâncias ficou apurada.
E não merecerá, tão pouco, por causa da falta de protesto da livrança.
Sobre este problema, o Supremo Tribunal de Justiça tem reiterado numa jurisprudência já com muitos anos, de acordo com a qual, para efeitos de dispensa de protesto, não há que distinguir, quer no regime das letras, quer no das livranças, o aceitante (da letra) ou o subscritor (da livrança) do respectivo avalista.
Um e outro encontram-se no mesmo patamar, lado a lado, em relação ao portador que pretenda exercer, contra eles, o direito de acção.
Este direito não se extingue por não ter sido feito protesto por falta de aceite ou de pagamento (cfr. artº53º e 77º, LULL), e isso, quanto ao avalista, porque, de acordo com a primeira proposição do artº32º, LULL, também aplicável ao regime das livranças, por força do citado artº77º, “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.
Apenas como exemplo da fidelidade a tal jurisprudência, que não há razões nenhumas para abandonar, remontemos da actualidade aos anos 80 do século passado pela mão dos seguintes acórdãos: de 20.03.03, na revista 4698/03, da 2ª secção (7); de 02.12.98, na revista 904/98, da 2ª secção (8) de 07.01.93, em BMJ 423º/454; de 27.04.90, na revista 78752 (9); de 17.03.88, em BMJ 375º/399.
3. Por todo o exposto, negam a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 de Junho de 2004
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código das Sociedades Comerciais
(2) Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças
(3) Na base de dados do ITIJ, sob a referência 03A318
(4) CJSTJ, ano VIII, tomo III, pág. 36
(5) Sumários de Acórdãos, Abril 2001, nº50, pág. 13
(6) Aprovado pelo DL 298/92, de 31/12, e alterado pelo DL 201/02, de 26/9
(7) 02B4698, da base de dados do ITIJ
(8) 98B904, da referida base de dados
(9) 078752, da mesma base de dados